The Project Gutenberg eBook of Salmos do prisioneiro

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Title : Salmos do prisioneiro

Author : Jaime de Magalhães Lima

Release date : April 15, 2007 [eBook #21082]

Language : Portuguese

Original publication : Coimbra: F. França Amado, Editor, 1915

Credits : Produced by Pedro Saborano. Para comentários à transcrição
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JAIME DE MAGALHÃES LIMA

SALMOS DO PRISIONEIRO

COIMBRA.

F. FRANÇA AMADO, EDITOR.

* * * * *

Salmos do Prisioneiro

Composto e impresso na Tipografia F. França Amado, rua Ferreira Borges, 115—Coimbra.

Jaime de Magalhães Lima

Salmos do Prisioneiro

COIMBRA
F. FRANÇA AMADO, EDITOR

1915

* * * * *

Mentiu-me a liberdade, foi blasfemia! Foi engano, foi ilusão, e atraiçoou-me, atraiçoando a fé que me dá a vida!

Vou levado de rastos neste mundo, guerreiro que nasci para ser vencido. Se movo o braço para combater por sonhos arrojados que o levantem, logo o sujeitam e mo fazem escravo as prisões de que em vão tento livrar-me—prisões de amor, abençoado carcere, onde sofre e se alegra o coração, onde se humilha prêso a toda a terra e onde se exalta erguido a céus eternos e ao Deus que rege a terra e rege os céus.

A piedade, a dôr, remorso e fé, perdão, esperança, a esmola e a contricção, e a ilusão e a mágoa e o desengano, tremores da consciência que dúvida, as lágrimas de afecto e aquelas outras, candentes e de fogo, em que o êrro chorou arrependido; e o silêncio, que eu temi, que eu amei e que busquei para todo me entregar ao seu poder; e a mudez que diz mais que a voz mais alta, e a sedução da morte, quanto anseio a minha alma pressentiu;—e quanta formosura nos afaga e quanta sombra nos aterra e prostra, a água clara do regato límpido, a luz do dia, a verdura do prado, e toda a austeridade da montanha, severa, grande e rude, imperturbável, e o inflamado terror da tempestade, e o mar e as suas ondas tormentosas, e os pômos rescendentes de perfume; a rosa, e a criança; e os olhos que fascinam; e a graça que incarnou na juventude, e a nobreza que é a graça de velhice:—venceram-me, prenderam-me!…

E sempre que me ergui para libertar-me, sempre escravo caí do seu encanto; e no meu peito ouvi salmos de amor, louvando os ferros que o apertavam e louvando o Senhor que lhos mandava; e o meu peito os cantou e repetiu, sorrindo à sorte que o rendeu cativo.

I

Da lívida tormenta, que em nuvens repassadas do seu luto turva o dia amoroso de setembro, cai sôbre a terra a chuva maternal a dar seu leite às seivas minguadas e a dar aos pômos tumidos a unção de um derradeiro e salutar frescor.

Realça na levada alvas espumas; redobra no açude o seu cantar; banha em cristal a rama dos carvalhos; a veiga reverdece; e o pinheiral, que àlêm sofria a sêde entre os penhascos donde, heroico, brotou a desmentir-lhes sua infecunda aspereza abandonada, serenamente bebe o refrigério, como sofreu sereno a crueldade da ardência do estio prolongado, seus ramos apontados às estrelas, quer padeça tormentos, que se exalte em bens das suas horas mais felizes,—por certo vendo amor que nós não vemos, mas que em suas esmolas nós sentimos, na sombra, na fogueira e na choupana, no tecto dos casais e sôbre as águas, salvando do naufrágio os desvairados filhos de cobiça.

Ao longe, o traço agudo das montanhas cortando a seu capricho os horisontes, seus píncaros audazes e a profundeza das suas largas sombras misteriosas; e as ermidas onde vivem, guardadas da corrupção do mundo e da mentira, a fé e a singeleza; e os castelos onde em ruinas penam as vaidades e as ilusões do orgulho e fortaleza—todos dos nossos olhos se perderam na confusão das nuvens insondáveis, todos por sorte igual já se ocultaram na plácida cinza humedecida que brandamente os cobre em seu repouso.

Depois, dissipada a tormenta, veloz em seus errores transpondo os montes, um silêncio velado lhe sucede; e no caír da tarde, magoada de sombra e de mudez, ressurgem as ermidas e castelos, as montanhas e os cerros mais erguidos, casais, verduras, relvas e florestas, renascidos para a vida e formosura na benção baptismal de águas lustraes.

Mas agora, por toda a vastidão da serrania, docemente vagueiam sonhos de candidez. Beijando o chão, pousou ali a alvura de nuvens desprendidas da procela, como se os céus quizessem ser humildes, mandando à terra anjos de pureza e bondade e caridade, a cobrir-lhe a aspereza misera e cruel, seus cardos e os espinhos mais agudos, e o nosso desamor, nossa traição aquele eterno Pai que nos criou, mais negra e mais cruel que a avareza da terra a mais ingrata.

E a minha alma prendeu-se nessas nuvens, com elas rastejou meu coração, esmolando dos céus que o redimissem naquela alvura em que remiram os montes e os cardos e os espinhos mais agudos!

II

Quando a saudade me repete as horas de infância e candidez, ha longos anos já contadas e passadas, e sempre tão presentes, renovadas na obsessão de sonhos procurando um reino de pureza onde não chegue o desengano amargo deste mundo que nos perturba a fé e o pensamento, renascem aos meus olhos claramente quantas sombras então me protegiam, quantas árvores então fôram afago do despertar das minhas ilusões e das alegrias em que me sorriam. Todas as vejo e todas me repetem a sua formosura e o seu encanto, tais quais nessa alvorada me encontraram, amando-as com um amor que só cresceu, intemerato, isento, incorruptível, sofrendo vária sorte sem mudança, a sorte mais contrária e a mais benigna. Em todos os meus passos me seguiu: foi amparo na dôr e acompanhou-me no mais rude trabalho, e no repouso, e na alegria de descuidados dias de ventura.

Aquelas mesmas árvores que amei e o acaso funesto destruiu para consumarem um heroico holocausto de bondade, essas mesmas eu vejo na lembrança, serenas e viçosas como as vi quando o meu coração as descobriu.

Lá ao fundo da encosta, onde a floresta acaba e vem o prado, ainda vejo, do alto do casal que me agasalhava, toda a espessura do pinheiro manso, a marcar o extremo do valado, cerrada e firme, quási insensível ao vento tormentoso dos invernos, e tão estreitamente unida e igual que pareciam tomadas de amizade as hastes apertadas para viverem seu diferente viver em uma só vida, a cumprirem fielmente um juramento, para afrontarem juntas o rigor e para juntas se erguerem em exaltação—comunidade mística de afecto, religioso côro de louvor, a entoarem seus hinos recitados, em severa harmonia, por um só breviário.

E à tarde, quando o sol decaía e as formas se afundavam no crepúsculo, e de manhã, quando rompia a luz àlêm dos montes e a custo ia acordando o salgueiral, a várzea e as amieiras, e ainda quando ela em nuvens se perdia e melancolicamente transformava em palidez e sombra o meio dia, sempre dos ramos do pinheiro vinha uma emanação doirada resplendente, como se o sol ali pousasse sempre, jámais o abandonasse à escuridão, e o defendesse, para que por sua vez a árvore nos desse, perpetuamente, aquela mesma luz que o sol lhe dava e nunca se apagava nos seus ramos.

A pobreza dos homens há muito arrancou já daquela terra, que esplendidamente engrandecia, o pinheiro rebusto a cuja sombra a minha mocidade, cativada de todo o seu podêr e magestade, muitas vezes pediu que lhe dissesse o segredo da sua aspiração e o mistério da sua formosura. Há muito é cinza e pó e ao pó volveu, sacrificado a chamas piedosas. Mas a perene claridade dos seus ramos que, constante, o doirava em doce esmalte, ou o sol brilhasse alto ou se ocultasse, êsse sonhar do sol que ali pousava e nunca se extinguia, êsse não se apagou nem dissipou e êsse me prende ainda e me fascina. Vive nos céus onde as estrelas vivem; de lá nos ilumina e guia em nossa estrada; perpassa etéreo em toda a imensidade repetindo-me os salmos que eu ouvi aos ramos do pinheiro murmurando sua ardente oração à luz do sol.

III

Prendeu-me a rola sob a sua aza. Ao sentir-lhe a carícia desarmou-me de vontade e firmeza que, estando em mim, não mais me pertenceram. Cegou-me a côr morena do seu colo. Sua voz, seu olhar… foram algemas.

Prendeu-me aquela rola do pinhal que balouçada ao vento, lá no cimo dos ramos mais subidos da floresta, ali canta e se alegra e dali parte cortando o silêncio umbroso adormecido na sonolência ardente do estio, ora erguendo seu vôo à luz do sol, ora airosa pousando tranquila, ora fugindo porque algures pressente um logar mais propício ao seu desejo.

Prendeu-me essa outra rola que em meus laços por minha arte caíu no cativeiro, a desprendida monja resignada que resa o seu rosário à madrugada e o repete ao luar em seus gemidos, mensageira bemdita do perdão que a mim, seu carcereiro! me saúda na brandura amorosa dos arrulhos, quando ao romper da aurora eu a visito e, confiada, me vem pousar nas mãos, aquecendo-me o sangue com o seu sangue.

Por que graça de Deus ou por que esmola, por que estranha indulgência consentiste, rola cativa, minha doce serva, que em minhas mãos eu prenda as tuas azas, te beije o peito e o toque a boca impura que murmurou êrro, mentira, a maldade, a descrença e a impiedade?!… Porque quizéste que assim se amassem e vissem nossos olhos, os teus que são a vida e a candidez, e a ternura sem mancha do teu ninho, e os meus que são a morte e a escuridão, e o desejo sinistro e o remorso que uma dorida consciência acusa?!…

Oh, mansidão, aparição angélica, mandada a este mundo de treva a alumiar-nos a estrada que a Deus conduz e Deus traçou!… Só de sonhar prender-te, já me prende a própria tentação de te prender.

IV

Verteu outubro suas côres de outono, purpura e oiro, nos céus do poente em que o sol se perde. Melancólicamente a luz abranda. Coroada de violêtas, a saudade chora entre brumas sua infinda mágua.

Cresce do mar a nevoa setinosa; o ardor adormece em suavidade. E tão carinhosa a nevoa nos afaga na repousada sombra da sua paz que mais a sedução da morte nos anseia do que a tentação da vida nos exalta.

Ao rubor do poente, repetindo-o, responde o rubor da vinha debruçada da muralha a que confia o seu arrojo. Sentindo que o inverno já não tarda, portador de agonias e rigores, incerta de viver, corou juntando o sangue para gloriosamente o dar à morte.

Erradia, tenaz, afoitamente, no delirio da sua caridade, cobriu de pampanos as estéreis rochas, deu-lhes o manto da sua verdura. Beijou-lhes a dureza e aviventou-a. Humedeceu a árida secura, insinuou-lhe tumidas raizes onde vagueia a aspiração da seiva. E agora humildemente vae despir-se, vae dar à terra suas grinaldas em um derradeiro clamor ardente. A essa mãe de todo o amor as abandona para à luz da primavera renascer e em estos de verdura ressurgir da sevéra mudez a que a condena toda a rudeza agreste de dezembro.

Ao sopro turvo da primeira rajada de novembro, o pampano vermelho empalidece. Desprendendo-o da haste, o vento leva-o, rolando-o pelo chão e consumindo-o. Um murmurio de dôr lhe canta a morte e um murmurio de esperança a abençoou. Está despojada da opulencia a vinha. Acende-se em seu seio e vem surgindo o sonho dêsse viço que desponta quando a aurora de abril lhe solta a aza.

Folhas mortas, caídas, desmaiadas e dispersas pelas frígidas brizas de novembro! Em que laços de morte me involvestes, prendendo à vossa sorte o meu scismar!…

V

Tambêm tu, serpão do monte, me prendeste, tambêm tu me roubaste a liberdade! Singelamente, floriste em flores onde a côr da violeta empalidece e rediz seu poema de ternura. Assim me possuiste e à tua pequenez me acorrentaste, àquela pequenez que para mim foi grandeza e voz divina ao desprender da humildade e modestia os mais perfeitos perfumes, os mais doces.

Urna de incenso para ungir o chão, vaso quebrado entornando a essência que o nardo e a mirra e o cinamomo e o galbano não negariam, se Deus lhe désse a escolha! Em teu poder sonhei reinos fulgentes e biblícas visões me arrebatáram.

Ao vêr-te entregue à fria ingratidão e ao desamparo dos montes e dos cêrros mais despidos, partilhando os rigores das urzes tímidas que em sua purpura ocultam a gandara negra; escravo sem sustento abandonado em solidões aváras por quem te quís coroar no sofrimento; sem o abrigo de uma só árvore, sem o consolo do mais tenue fio de água que entre as pedras banhasse e convertesse a aspereza em limpidez; resignado filho trasmudando em doçura suprema a austeridade que o gerou e o castiga despiedosa—na tua vida sonhei terras distantes onde se ergueu a cruz e Cristo orou na paz, entre oliveiras, pedindo àquele que o mandou e está nos céus que sómente a sua vontade se cumprisse. Estranha evocação me segredou que era assim a terra santa do Calvário—no chão o mais severo, a doçura infinita; e no martirio, o amor.

Dos teus ramos tão débeis que rastejam e condição mais alta não procuram, porque só na humildade estão contentes, fiz o rasto do próprio coração onde o senti pulsar em ardor que o acordasse e erguesse para o sagrar. Por te amar, fiz de ti sinal de amor. Em meus tesouros, ricos de lembranças, marcas iluminadas folhas e bemditas onde a minha alma recebeu a graça de peregrinas almas de pureza, onde sentiu a companheira e guia, enviada de Deus, para que no mundo lhe fosse amparo e a fortificasse, e a Deus a conduzisse, à eternidade do amor divino.

Dêste modo me prendes, se te encontro. Dêste modo sou teu, se te colhi.

VI

Está adormecido o vento do outono. É côr de rosa a aurora preguiçosa em seu berço rendado de neblinas; e rutilante o manto com que cobre a campina onde a noite e a madrugada mansamente verteram a ternura de um luminoso pranto cristalino.

Entre os orvalhos vem a despontar, em hastes débeis, hirtas, ainda palidas, sementes germinadas na frescura da terra já banhada pelas chuvas dos derradeiros dias de setembro. São legiões bemditas que conquistam o chão e o seu poder e os seus tesouros para os sonhos floridos de verdura, que a primavera sonhará no encanto do colorido esplendor do seu triunfo, e para as messes doiradas do estio, cálice de oiro que se faz em sangue, sustento e amor que nos fortalece o peito e os nossos braços e nos aquece e alenta o coração.

E os orvalhos que a manhã fez diamantes, e as turgidas sementes a crescerem, seu doce brilho e seu infindo anseio de eterna juventude, eternamente renascida e erguida do pó e da secura, a redenção das cinzas apagadas do estio na brandura outonal e sua esperança, emquanto me adormecem no seu canto, murmurando-me os salmos dos seus córos, louvando ao Deus que os engrandece e exalta, na própria obediência me teem preso, acorrentado à terra na qual bebem todo o vigor e força de crescer, e arrebatado aos céus que lhes ensinam, e por eles me dizem, o misterio da sua caridade, a gloria da sua aspiração e o enlevo da sua formosura.

VII

Vive oculto um misterio em cada peito. Se o sangue o anima e move, insinuou-lhe um ser de luz ou treva, a força eterea, a do bem e a do mal, o fogo que consome e o que alumia, a cegueira mortal que precipita em profundas gehenas insondáveis, onde só a piedade vae salvar-nos, e o sonho que alevanta a espaços limpidos, onde os olhos não chegam nem alcançam e só o nosso coração póde subir. E êsse deus íntimo, ou seja luz ou treva, ou dôr ou benção, todo respira e vive em um alento, todo nele se evola e nele existe.

O rouco arfar de um peito moribundo, no combate da morte inexoravel; o latejar irado da paixão, brazas ardentes da cobiça e inveja; a tremura da ave no seu ninho, sopro ofegante de animal bravio, na incerteza da sorte e seu terror; a timidez da corça perseguida, a criança dormindo no seu berço e os anjos que a visitam e em torno adejam; o cavador prostrado de fadiga, o velho repousando docemente, no repouso de quem já avista proximo o termo dos enganos dêste mundo; a mansa vibração das orações, o brando devaneio enamorado, e a tortura do mal que é irreparavel, e o anseio oprimido da saudade… Que vidas se conteem em um só alento e no breve erguer do peito que o desprende! Que infinitos misterios nos confessa, em que mudez divina nos descobre o que a voz mais clara não traduz, quantas lagrimas chora e em que alegrias de uma celeste luz banha a nossa alma!

Quanto se encerra e vive em um só alento!… Respirar é amor ou aversão, esperança ou danação, suplício ou benção.

Nunca houve alento que me não prendesse. Dos ruins me fez escravo a compaixão, e aos bons foi por amor que me prendi.

VIII

A viuva contou-me o seu romance, onde nascera e amára e onde chorára, seus folguedos, esperanças e infortunios, em que Deus lhe ensinára a obediência à sua lei divina.

A casa de seus pais era pequena, nas terras do morgado, ao qual levavam, em cada ano, pelo S. Miguel, o pão, o vinho e aves, copioso quinhão, e o melhor, dos bens que o seu amor pedira à terra e a misericórdia do Senhor criára.

Entre a pobreza o mundo lhe sorriu. Na pobreza cresceu e, descuidada, na pobreza cantou, teve alegrias, conduzindo as ovelhas no pascigo pela charneca agreste e pela encosta, segando o prado quando abril floria, debruçada na ceifa ao sol de julho, tingindo os braços no rubor do mosto e erguendo-os ao luar calmo de agosto a tanger a harmonia dos eirados.

Depois, no dia memoravel do arraial, ao pé da capelinha da montanha, quando lá foi a ve-la em sua gloria, tão linda e tão garrida de grinaldas por tributo piedoso da candura que lhe guardou e deu quanto a terra sonhou de mais formoso, turvou-se de tristeza a singeleza, e estranhas magoas, venturosas magoas, anseios de paixão ergueram o peito daquela mesma alegre rapariga, criada na pobreza e no trabalho, enamorada agora do moço que a segue e a acompanha, sombra apolinea que a graça e a gentileza fascinaram.

E, então, vieram o quebranto que esquece a obrigação, as tardes prolongadas junto à fonte, segredos murmurados no silêncio da aldeia adormecida, e as timidas palavras de carinho que os labios dizem mal e incertamente, e a mudez de melancólico scismar, e a confissão do olhar, ardor sem mancha, onde a nossa alma é luz e o coração vencido vem entregar-se. Até que um dia as rosas desfolhadas no limiar da porta anunciaram a quem na estrada fosse na jornada que o céu abençoára mais um ninho. E ao pôr do sol, quando o fumo dos casais se ergue e protege o tépido repouso do trabalho, mais um lar se acendeu e palpitou à beira da azinhaga, entre os ulmeiros.

Depois ainda, volvidos breves mezes de afeição, os devaneios daquela enamorada de algum dia todos se trocaram por desvelos do berço e por cantares de mansidão dolente enternecida em que a mãe aquecia o filho ao seio.

Criou seis filhos. Uns andam dispersos, além-mar, na aventura de cobiças; outros ali habitam ao redor, nas aldeias visinhas donde avistam esse mesmo casal em que nasceram; e todos, em chão estranho ou terra patria, redizem fielmente as orações do trabalho e amor e crença e fé que no regaço materno repetiam.

Por fim, a aza negra, a viuvez!… As agonias de um alento que se esváe, esperanças que se apagam dia a dia; e a morte e o seu silêncio desolado que levaram do lar o companheiro; e a escuridão da frígida vigília escutando debalde aquela voz que não mais voltará contar-lhe as horas; e o cansaço do mundo, inerte e pálido, porque já não o aquece nem ilumina a chama do coração que o iluminava.

A terra, para a viuva, era um crepúsculo, tal qual êsse suave entardecer em que serena me contou o romance da sua vida austera e prolongada, vivida só para amar e para servir, e ainda agora servida com afecto ao renovar-se na lembrança amorosa que a evocava e parecia beijar-lhe o rasto e os passos pelos quais seguira a receber de Deus, como esmola bemdita da sua graça, a amargura, a alegria, o riso e o pranto, quanto em sua vontade êle mandasse.

Ao ouvir as palavras da viuva, no meu peito sentindo transfundir-se toda a ventura e dôr que ela sentiu, bebi o calice que me descerrava, aquele calice que o Senhor lhe déra, e fui cativo em minha alma e prisioneiro até do proprio amôr que outros amaram.

IX

Companheira fiel da minha estrada, sempre a meu lado a mágoa me seguiu.

Comigo ela subiu àquela altura onde feliz me viu e amorteceu venturas passageiras de um momento. Entre alegrias a senti guardar-me. Calcou passo a passo o meu calvário, entoando-me os salmos da sua crença, sua fé compassiva e resignada em que a esperança, desfeita e convertida no suplício da desilusão, nem assim foi maldita ou desamada. Em todo o seu poder me iluminou; na sua mansidão curou as feridas do rigor de infortúnios e tormentos, e na sua amargura saciou-me toda a sêde de amor do coração que por amar bemdiz o seu martírio.

Já no berço a encontrei a bafejar-me com o seu tépido alento aquelas lágrimas, cláras, abundantes e divínas com que Deus me banhou a meninice. Ouvi o seu lamento dominando o rouco clamor das multidões que entre o terror nos fere a consciencia. Entorpeceu-me os braços na batalha a que fui disputar os bens da terra. Quebrou-me a crueldade em seu desvairo. Carinhosa, protege-me a velhice. Ou abril desfolhasse as suas rosas, ou novembro arrastasse os seus despojos, ou as águas dissessem seus encantos, ou no monte adorasse a magestade, em toda a natureza, na mais feliz e doce e sorridente como entre a inclemencia a mais sevéra, ouvi a voz de mágoa redizendo-me desenganos do mundo e consolando-me, na consolação bemdita de a sentir.

E quanto mais deserta foi a estrada e mais cerrado e fundo o seu silêncio, mais quis à mágoa que me acompanhou; aí me possuiu inteiramente, e aí se me entregou, candidamente, isenta de temor e de segredo. Essa foi a que mais amei na terra; foi essa que eu beijei na solidão, nascida do meu peito e nele oculta de corrompidos olhos que a profanem, no meu peito habitando e respirando sua dôr e mudez, seu alimento, no meu peito guardada e aquecida, para só viver com êle e aí morrer, ao abrigo do mundo e da traição, para só viver emquanto êle viver, revestida dos véus do seu pudor, reclusa que nutro do meu sangue e jámais beberá outro sustento.

Essa foi minha luz e companheira. Essa teve a pureza dos sacrários. Essa me exaure a vida, e por sofrê-la eu quereria para sempre a vida, aquela vida a que a mágoa me prendeu.

X

Rompeu clara a aurora de dezembro. O vento da manhã desce dos montes difundindo a secura sôbre a terra. As neblinas alvas carinhosas, ásperamente proscritas pela briza que do oriente corre a perseguí-las, mal se suspeitam longe sôbre o mar, exiladas do rio em que vogavam, brandamente cobrindo as suas águas, e banidas do vale onde habitavam, tranquilas, seguras, resguardadas no repouso do prado entre os salgueiros.

Um translucido céo vem acordar a mais pequenina forma ignorada. É clara a montanha e o pinheiral, e a inquietação da água da levada e o ribeiro profundo em que ela amaina as serenadas ondas passageiras. É clara a encosta pedregosa, inculta, e a aldeia e o sobreiral em que se abriga. E os carvalhos da estrada e os pomares e a lhama prateada da oliveira, e o comoro espesso e a madresilva que nele tece a rede dos seus ramos, e o medronheiro verde reluzente, e o musgo do valado e os seixos brancos, esmaltando a charnéca escurecida pelas hastes das urzes lutuosas, todos teem seu quinhão na luz dos céus, de todos êle disse a formosura através do cristal dessa manhã, dessa aurora sem nuvem de dezembro. Aos olhos deslumbrados desvendou quanto a terra criou de mais altivo, quanto é soberbo, grande e magestoso, e quanto de mais humilde ela gerou, quanto timidamente se escondeu nas prégas mais sombrias do seu manto. Em seu triunfo a luz os tem igualados; um só esplendor os enaltece.

E entre tanta riqueza que ela ostenta, em tão pura glória fascinando, quis estranho mistério que a esquecesse e, rebelde ao encanto, apenas visse e sentisse e amasse, subjugado, a rosa solitária mal aberta, derradeiro murmurio do rosal que penitentemente vai sofrer sua nudez sevéra do inverno. Só ela me prendeu e cativou, só por vê-la adorei a claridade e tudo o mais senti como dormindo, distante, inerte e frio, silencioso.

É que, talvez, meu pobre coração e o ardor que o consome e êle alimenta, sejam pouco e não bastem para adorar a doce palidez de uma só rosa!… É que, talvez, prendido só à rosa e transportado todo em seu perfume, nem assim lhe pagou, mesquinho e misero, o tributo do amor que êle lhe deve!…

XI

«Sempre só»[1] ali estava recolhida em sua estreita cela que habitava, na muda clausura de um retiro, sevéramente nú, desadornado de quanto o luxo ordena, inventa e quer para saciar suas mortais doçuras e enganos.

[1] Quadro de Paul de Plument.

Respira austeridade aquela estância, a cuja porta cessa, proìbido, o rumor apressado dos escravos, comprados, seduzidos pelo oiro, para servirem a gula, o capricho e a indolência dos fracos e orgulhósos, abundando no fáusto, e ocultando nos fumos e vaidades da grandeza a miséria dos bens da alma e do corpo, um ser enfêrmo que a força desherdou e o ânimo robusto desconhece; e é tão pobre de alfaias a morada onde a vi «sempre só», serenamente entregue ao seu scismar, que essas poucas, singelas, que lá tem e são quanto lhe basta para amparo das rudes provações do seu viver, essas poucas alfaias da indigência mais alargam em torno a solidão do que quebram, em um tenue clamor, o êrmo rigoroso da pousada.

Esplendor que a engrandeça, outro não tem, nem quer, nem recebeu, senão a luz do sol e a do crepusculo, e a da aurora, e o luar, e a estrela, e a palidez da nuvem errante, quanto dos céus lhe vem, a visitá-la, infinitos e prodigos tesouros dos que a presença do Senhor protege. Pela fresta rasgada na parede, amplamente aberta à sua benção, vem os ástros ungir a solidão e a obscura pobreza que a agasalha.

Mas, iluminada dessa luz bemdita, da luz vinda dos céos, eis que a velhinha que na cela habita, e ali vi «sempre só» no seu silêncio, a amá-lo e a aquecê-lo repassando-o dos alentos gerados do seu peito, eis que vai lêr a folha desbotada e a desdobrou diante dos seus olhos, amortecidos para a luz do mundo. Uma estranha beleza a reanima; uma estranha doçura lhe sorri e em seu rosto sorrindo acende a vida. Não sei se é de carícia, se de dôr, se de saudade, esperança ou desengano; se entreviu, já distante, a juventude na branca túnica que lhe foi seu manto, se é a velhice que desce a arrebatá-la envolvida na sombra da sua mágoa. Por certo, são visões que ali adejam e o coração lhe nutre no seu sangue, aureolando-as da chama e do fulgor que do coração se ergue e o purifica, ora sinistramente, ora em glória, e sempre consumindo-o na eternidade de um divino amor.

E entre visões que então a rodeiavam, recitando-lhe os salmos, todos lidos no seio que sofrera e confiára a afectos e ternuras e carinhos a ventura e a sorte de um palpitar ardente, apaixonado de alegrias e penas e anseios, renasceu transmudada e foi feliz aquela que «sempre só» eu encontrára. Vi-a cercada de anjos em sua côrte, que na pobreza tinham os seus paços e na lembrança as únicas riquezas, e no silêncio sentem companheiros, no silêncio dizendo os seus mistérios de doçura e de paz e amor perene.

Nessa imagem em que a terra me mostrou na solidão a bemaventurança, nessa imagem me tem prendido a terra, a rogar-lhe que acorde na minha alma os sonhos redentores, que ali sonhou aquela que eu segui na solidão, e ali, na solidão, edificára, de cristal e sem mancha, resplendente, o seu cláustro e templo onde guardava, sagrada e isenta, toda a sua fé.

XII

Se Deus me concedesse o seu podêr e o Senhor permitisse que um momento eu vivesse em puro espírito, convertendo a miséria em candidez, eu quereria erguer-me ao cimo casto e austero da montanha, da mais alta montanha que avistasse, e aí, tocando a terra tão sómente no píncaro agudo revestido dessa sagrada alvura imaculada que é a neve branca, eterna, incorruptível, aí me despiria totalmente da mentira implacável que nos prende, aí libertaria o coração em seus laços mortais tão oprimido, aí os soltaria para seguir humilde e fielmente o seu anseio.

Quanto penso e a razão me contradiz, a oculta rebeldia desleal que jura por certeza a própria dúvida, quantas palavras digo que eu não sinto, quantos passos eu dou atraiçoando meu querer e vontade e aspiração, onde obedeço ás convenções do mundo e onde à impostura cedo por fraqueza, o falso pranto que cobre a indiferença e o riso em que o enfado anda escondido, e o louvor sobrepondo-se ao desprêzo, e o desprêso negando as afeições, e o silêncio em que a voz estrangulei só porque estranhos podem desama-la—de todo o pervertido engano em que, inerte e prostrado, sou levado, enganado e enganando, mentindo à consciência, aos céus e aos homens, de toda a confusão dêsse tumulto em que o ímpio sacia o seu escárneo, eu iria isentar-me, dissipando-o no cimo glorioso da montanha, revestida da neve imaculada. E para que fôsse tal qual um cristal feito só de luz, assim eu lavaria o coração de quanto na mentira o enegrece. E então me sentiria redimido porque só a Verdade me prendia!

XIII

Segui de olhos vendados a ilusão. Para que não visse a aspereza do meu trilho, para me guardar de espectros que o assaltam, para me ocultar torpezas dêste mundo, cegou-me e desviou-se do caminho, juncado só de cardos, em que um ríspido destino me trazia. Ergueu-me em suas azas e levou-me àquela altura onde não ha treva e a luz não tem fraqueza nem crepúsculo, onde os espinhos se convertem em rosas, onde o veneno se transforma em filtros salutares vivificantes, e a amargura e a dôr e toda a pena se dissipam em auras incensadas.

Se, porêm, a ilusão me abandonou e o desengano apunhalou o meu peito e o fez chorar, não descri da ilusão nem a neguei. Sentindo-me infeliz, pedi aos ceus que aos anjos de ilusão me confiassem, que de novo os mandassem libertar-me da vileza da terra e seu tormento, da malquerença, do odio e da avareza, de quanto mal nos prostitue a alma e atraiçoa o Senhor. Pedi-lhes a cegueira da ilusão, pois quanto mais me cega mais a amo, mais distante me leva da ruindade, mais no seio de Deus me faz sonhar.

Tanto a amei e lhe dei meu coração, tanto lhe quiz meu peito e a adorou, que jámais me rendi ao inimigo. Se o desengano me assalta e fere e prostra atormentado, não lhe imploro graças ou consôlo, só da ilusão espero a fortaleza.

Prendeu-me nesta vida! Fui seu servo. Assim na morte a encontra bemfazeja!… De contínuo lhe rogo, humildemente, que na morte me guie e arrebate das certezas mesquinhas dêste mundo à incerteza feliz em que ela reina e em sua benção nos redime e exalta.

XIV

Passa ligeira a nuvem no luar. E, por momentos, foi obscura palidez incerta aquele espaço ha pouco resplendente, adormecido na mais dôce luz.

Que é dessa alvura que vestia a terra? Que é da brancura que a purificava?!…

Uma sombra turvou a imensidade. Como se os astros desmaiassem timidos e um estranho terror os apagasse, afrouxa e hesita a sua claridade e quanta brandura e calma ela derrama. É que uma nuvem perpassou errante e etereamente se esvaiu e perde.

Filha das águas, leve, inconsistente, só para mudar nascida, estranho ser que não vive um instante a mesma vida e a todas experimenta e a todas deixa com igual desamor e igual capricho, imagem fugidia de um efemero delírio descontente, tão pequenina e fraca, a nuvem foi mais forte que o podêr mais ardente das estrelas e pode te-lo turvado, escurecido e humilhado.

Ai de mim, ai de mim!… Sei seu mistério! Porque assim é tambem a minha sorte. Uma nuvem venceu a luz dos céus; e a mim vencem-me os sonhos toda a luz que do meu coração se ergue e desprende, carcereiros da dôr e da ventura, despóticos senhores e poderosos de toda a glória e mágoa do meu peito.

XV

Ouvi chorar a noite porque a orgia lhe roubara o silêncio, o companheiro. Quando o céu lhe acendeu suas estrelas e no seu negro manto esmoreceu todo o brilho que o sol cria na terra e toda a formosura que ele afaga, na benigna hora recolhida em que a noite murmura a sua paz e acorda em seu mistério as orações que nos prendem a Deus e aos seus mandados e nos revelam aquilo que sustenta o coração, quanto o eleva e quanto o enternece, quanto lhe abranda a mágoa e o incendeia, e quanto o arrasta exangue em seus lamentos—nessa hora bemdita, à paz da noite e à sua redenção respondeu o alvoroço e o sacrilégio de multidões perdidas no torpe ardor de indignas cobiças. Abandonadas à sordida torrente da impiedade, onde se afoga a candura e a fé e toda a essência que em nossos corações renova e alenta a imagem e a vontade do Senhor, e do mundo nos ergue a êsse seu reino de amor e de perdão e de pureza, ignoram a noite e o seu consolo. Impenitentes reprobos, profanam o divino silêncio emquanto escutam o rouco clamor da perdição.

E a noite, que orvalhou a bonina e acalmou os ramos agitados da floresta e adormeceu o rebanho e o seu pastor, que soltou mais clara a voz das águas e fez crescer a sombra da montanha, cingindo-a de grandeza e fortaleza, e compassiva veiu mansamente a resgatar de penas e trabalhos os vilares e casais afadigados, prostrados da canseira que dá o pão—a noite, o arauto sagrado do silêncio, sua mística sérva e confiada, sentindo que uma chama infernal a prostitue e no seu crepitar a martirisa, chorou amargamente o desvairo infiel que, ultrajando o silêncio, o aborreceu na injúria que o trocou pelo rumor da cidade enlouquecida.

Ouvi chorar a noite atraiçoada porque uma orgia atroz afugentou o seu supremo bem e companheiro que a inspira e lhe diz salmos divinos, o silêncio que ela ama e é o seu esposo. E então, ferida e dorida, me prendeu em compungidos laços da sua mágua, apertados e estreitos, como aqueles, bemvindos e queridos, que eu senti quando a vi, docemente, a proteger a bemaventurada terra a que trazia seus carinhos de sombra e de mudez.

XVI

Mal me aparta da esperança o desengano, logo vem a prender-me nova esperança de trazer a esta terra e vêr perfeitos os infinitos sonhos da minha alma, êsses que por Deus sonho e Deus me dá.

De cada mágoa me levanta e ergue, suave e doce e caridosamente, o despontar da estrela da alegria, visões que vem dos céus a iluminá-los. Em toda a queda me protege e ampára um eterno poder de fortaleza que me afoita e me manda caminhar. Onde vem desenganos desfazer desditosas venturas que findáram, o seu cutelo é aquela dôr sagrada que em um só golpe dá a morte e nos reanima, que ao mesmo tempo é pena e é a indulgência, que da própria amargura tira alentos para impôr a servidão de nova esperança. Onde, inclemente, o desengano ferindo-me me terminou enlevos e encantos que uma súbita treva escureceu, aí mesmo me mandou o seu socorro, seus anjos bons que acendem nova luz para me guiar na estrada e transportar-me aos reinos em que a esperança é a salvação.

Sem condições, rendi-me ao desengano. Divino portador de muitos bens, já não o temo se vem ao meu encontro, pois nunca me mentiu e, se me punge, é para dar o meu sangue a nova esperança, e nessa esperança me alongar a vida, e alongando-me a vida me ensinar o amor do Senhor de que êle é escravo.

XVII

Adormeci na escuridão da noite—cobria-me o luar quando acordei. Na tréva se esvaíu a consciência—restituiu-ma a luz vinda dos céus!

A fadiga do dia, as canseiras e penas que atormentam a vida descontente porque o mundo lhe combate e lhe oprime a aspiração; os sonhos de bondade malfadados, ruíndade que escarnece da doçura, astúcia que injuría a candidez, desamôr que responde ao bemquerer, ostentação preterindo a singeleza, a jactância suprindo a descrição, a pureza entre lagrimas traída, a pobreza arrastada em seus andrajos e a mentira orgulhosa em seus fulgores; perversão, crueldade, a fome e o ódio disputando os retalhos miserandos da riqueza mortal que a terra dá e à qual chamam os seus bens êsses escravos que outros bens da alma nem sequer suspeitam, no mesmo trilho em que a cubiça os leva—todo êste amargor que o passar de cada hora nos distila, o dorido bater do coração que em calvário de amor verte o seu sangue, êsse era meu algoz e companheiro quando a noite desceu e se cerrou. Assim me adormeceu imerso em mágoa, e assim eu confiei meu desalento à treva e à inconsciência, sem outra esperança que não fosse aquela de mais sofrer ainda e despertar mais forte para o sentir e para o servir, para mais longe arrastar a minha cruz.

Quando acordei, porêm, sorria a terra no vestalino alvôr que era o seu véu.

E disse-me a brancura do luar:

—«Emquanto, exausto, tu adormeceste e abrandaste na treva o padecer, Alguem, Consolador, velou por ti, convertendo na luz a escuridão. Alguem te transformou em claridade a negrura do mundo e a do teu peito. Se a treva te prendeu e por fraqueza te rendeste ao martírio da tristeza, que só te mortifica porque foste infiel, feriste o Senhor, renasce para a humildade e para a bondade, acorda e vê que a luz jámais fenece e sempre vem remir-te, para que a louves, em teu ser e nos céus, onde a encontrares purificando a terra e o coração.

XVIII

Pelos degraus de marmore subi à morada dos grandes que se abrigam sob tetos dourados, arrastando os enfadados ócios da riqueza. Benignamente me acolheu o seu fausto; e generosos, senão indiferentes, repartiram comigo os seus banquetes onde o destino os apartou do vulgo, para afagar-lhes volupias caprichosas que o tédio implacavel lhes segreda. Do seu esplendor tambêm fui escravo; tambêm me deslumbrou, tambêm o quiz e entre surpreza e espanto o experimentei, na embriaguês daquela estranha e pérfida beleza que no luxo se acoita e nêle oculta, sob um manto divino e formosura, em purpura e no jaspe e na ametista, uma traição cruel de outra beleza—da infinita beleza que é singéla e humilde e é castidade, que é a isenção sem temor e é a caridade, que é a alegria em Deus e na pobreza, que confiou á terra o seu sustento, que é eterna, que não mente e não desmaia, e nos dá a vida e para sempre afasta a morte, porque o Senhor a mandou e a abençoou.

Ou fôsse desengano ou fôsse esperança de ventura maior que essa, mesquinha, que sendo ouro é pó e em pó se volve, sentindo-me indigente me apartei da rijida frieza dos palácios, peregrino votado a incerta estrada. E vim aos casais pobres, a pedir-lhes esmola de consolo e fortaleza, toda a luz da alma e o calor de afectos e o louvor de Deus que a soberba baniu, na ignorância do seu alto poder; vim pedir-lhes a firmeza e coragem, que no orgulho andam pervertidas, e o trabalho e a fé que são brazão, altar e epopeia dêsses tugurios razos como o zimbro em que o teto mal cobre, a custo abrange, uma enxada e o berço e o coração, doirando só de amor e de fadiga um lar estreito, a rudeza das pedras mal unidas e os colmos negros que as revestiram.

É grande e altivo o cedro e é magestoso na opulencia profunda das suas frondes; e é pequenino o musgo que se arrasta no recato obscuro da sua sombra. Mas vestiu luto e tristeza o cedro alto e um severo desdem da sorte alheia; e só sonhou doçura o musgo humilde, não houve mansidão que o não beijasse, não houve esplendor que o não cobrisse. E o vendaval partiu o cedro robusto e sem vida o prostrou para desfazer-se; e o musgo não sentiu a tempestade, sorriu à violência quando o açoita como sorriu ao sol quando o alentava.

Seja o palácio como o cedro alto! Seja a cabana como o musgo humilde!…

Ah! Fôsse eu o senhor do meu destino e da minha fraqueza me remisse, soubesse eu servir meu coração para que o seu anseio consumasse, e eu iria prendê-lo na choupana, onde a suma beleza e o sumo bem, seus tesouros e luz e os seus coros, são os seios que dão vida amamentando e os braços que dão o pão cavando a terra!

XIX

A ave chora e geme enlouquecida derramando a tristeza na floresta.
Desnaturada mão lhe roubou os filhos para os votar à morte na tortura.

Em vão soltou a ave o seu clamor da materna agonia enternecida. Em vão chamou, dorida, anciosamente, por quem responda e queira ao seu amor, sedento, insaciavel de outro amor que agora não encontra e experimentou em freimas e fadigas e carinhos de afortunados dias prolongados!…

Já desmaia o poente e, descorado, deixa crescer a noite e se abandona a todo o seu império. Sentiu-a aproximar-se a ave infeliz. Redobra e é mais aguda e mais a oprime a lacrimosa mágoa em que se perde.

É noite; é noite!… É a escuridão e o frio e o desamparo. Que peito o seu amor vai proteger?… Por quem há-de correr todo o seu sangue?… Quem virá receber-lhe o seu alento?… Que boca o seu calor há-de aquecer?… Para que a vida senão para dar a vida?… Para que, senão para a dar só por amor?!…

Ao fim, na solidão como contricta de tamanho sofrer em que comunga, ao gemido da ave respondeu a dôr, a companheira que encontrou em seu tépido ninho onde afagára os sonhos de ventura malfadados.

E ao lamento da ave me prendi, como se prendem corações irmãos. Porque, escutando-o, repetiu e disse a fortuna e desgraça do meu peito—quanta ilusão e sonho arrebatado só por amor criou e acalentou, e quanto padecer é o seu martírio quando a sorte sinistra lhe converte seus enlevos mais belos na amargura.

XX

Dêsde o romper da aurora, quando o sol iluminando a terra me acordou os braços e o afecto para a servir, andára a revolvê-la, respirando-lhe alentos da negrura abençoada, e generosa e dôce, que me paga com todo o amor dos pomos e das rosas meu trabalho mesquinho e o meu amor, meu pobre amor fiel de obreiro débil.

Êsse humilde labor adormeceu-me o coração cansado e dolorido das lutas e paixões que o mortificam nesta jornada ingrata, onde se arrasta sofrendo a sua cruz, pênas do mundo. Esqueceu seus anseios infecundos, seu malogrado arrojo para se erguer à altura das visões que o seduziam. Esqueceu suas ruins turbações e o seu error entre ambições, escuros cativeiros, que em meandros sem fim, de treva e dôr, inclementes mudaram a doçura feliz da candidez na cerração de lívidos tormentos. Aí desconheceu, como se nunca as houvesse sentido em seus infernos, a impiedade, e a inveja, e a soberba, e a impostura, e a traição da hipocrisia, espectros negros que entre os homens o cercam e em vão tentaram desprendê-lo de Deus, precipitando-o na mentirosa fé e nos enganos de suas recompensas e prazeres. Êsse mundo que o ferira e ensanguentára, ali se dissipára e se perdera sob os afagos brandos, caridosos, que a terra lhe mandava a ensinar-lhe a paz e a alegria na vontade e misericordia do Eterno, tais quais as encontrava nos rosais, na espessura e nos silvados.

Resgatado, emquanto por amor servia a terra, abandonou-se à ingenua lei da terra, na terra confundido e renascido, o coração doente, semimorto, que regando com o seu calor e sangue as açucenas e a seára e o cedro e o jasmim, o pão e a formosura, assim baniu, em venturoso instante, suas dôres mais pungentes. Nêsse enlevo lhe foi bem curto o dia: foram momentos rápidos, fugazes, quantas horas podia ter contado, e muitas decorreram, muitas o sol marcou dêsde a fria palidez da madrugada, que foi seu berço e canto de glória, até que ao fim morreu para curta morte na mortalha vermelha do crepusculo.

Então, quando cresciam as sombras percursoras do repouso da noite e seu silencio, um clamor pausado e lento me acordou do sono bemfazejo em que a terra, consoladora, me embalava. Religiosamente, o campanário por sua voz de bronze anunciava aos campos e às estrelas que o trabalho findára e nos cumpria volver a face e o peito e o coração para aquela Mãe de infinda piedade, que com o Senhor está, cheia de graça, bemdita entre as mulheres, como é bemdito o fruto do seu ventre. Melancolicamente nos mandava que, crentes e fieis, a implorassemos para que a Deus e aos ceus ela rogasse que a fraqueza dos homens perdoassem e em sua luz os redimissem e erguessem.

No extremo do campo, junto ao rio, onde os salgueiros bebem refrigérios nas aguas que rebrilham sôbre as areias brancas, uma outra voz de bronze repetiu a oração que eu ouvira comovido. Logo após a repete aquela torre do outeiro mais alto entre os irmãos que, levantando a cruz, guarda e protege a gândara prolongada e a choupana, onde unidos não tardam a acolher-se cordeiros e crianças, seus moradores e filhos, por igual amamentados e queridos de uma mesma candura. E mais distante, àlêm dos pinheirais, ainda uma voz igual renova a súplica para os cavadores das margens da laguna que lhes dá às searas seus orvalhos, aos prados a frescura, e à deveza o esplendor viçoso das suas frondes.

Peregrina de Deus, de lar em lar, a prece dessa voz erguia os homens para que orando terminassem o trabalho.

Então, por seu amor e mansidão, voltei ao mundo e aos homens pecadores que no amor da terra eu esquecêra, esquecendo tambêm, por minha culpa, suas paixões e dôres e os seus tormentos, toda a fraqueza ingénita da sua sorte. Onde o meu coração tinha morrido, maldizendo êsse mundo que temera e, fugindo, deixára, renasceu do enlevo para a mágoa, para prender-se àqueles que viviam e com êles sofrer seus suplícios, para comungar na comunhão sagrada da sua compassiva piedade.

XXI

Sonho dos astros que alimenta o sonho dos corações que ao sonho se renderam, a servi-lo votando todo o sangue e outra fé não querendo conhecer, vagueia sobre os prados o luar, cobre as águas do rio, e na floresta, sorrindo brandamente, confundiu-lhe em vagabunda alvura e infinita a mais ousada haste e a mais pequena, a mais endurecida e a mais tenra. A tortura dos ramos, mutilados pela rajada agreste de dezembro, e a doçura das frondes ainda débeis, incertas da sua forma e robustez, repassadas da pálida verdura em que as sustenta de suave orvalho um tépido abril, por igual as involve na sua paz. Espargiu sôbre a terra a mansidão; renovou-a em candura, resgatando-a de seus espinhos, sombras e asperezas. E a terra, humilde, silenciosa, e muda, e religiosa, como virgem que a Deus se consagrou e de um mundo cruel se desprendeu, adormeceu feliz, santificada no seio da pureza que a protege, por graça do luar isenta e livre de agitados errores que a ferem e mancham, e dos tumultos vãos que a atormentavam, de quanta fealdade a entristecia e de quanta escuridão a desvairava.

Consolador, 'místico luar, êsse que soube e ouviu na sua glória as ternuras ocultas e queixosas, devaneios que a vida atraiçoou, anseios que o mundo nega se os escuta, saudades, desventuras e lamentos da cegueira contrária dos destinos; o sonho eterno da eterna luz dos céus, que nos sonhos dos homens se engrandece e benignamente lhes responde e compassivo os ama e acrescenta:—êsse foi senhor meu e ao seu império, ao seu casto império sujeitei-me, contente, apetecendo-o. Por lhe oferecer a misérrima oferenda do meu peito, contei impaciente e inquieto em esperança e penas as horas que corriam e as que tardavam; ou sôbre o mar o visse declinar, ou atento aguardasse o seu rubro surgir de alêm dos montes, jámais o pressenti, jámais o vi, jámais me abençoou ou me deixou sem que estranho pulsar me alvoroçasse, para só ao seu mistério confiar mistérios indizíveis da minha alma, para ali os guardar na candidez de luz que os defendesse da corrupção da terra e seus ultrajes.

XXII

Ouvem-se perto os mangoais cantando os pausados cantares do seu mestér.
Outras eiradas andam a aloirar os milhos sazonados copiosos.

Já vergados os turgidos vinhedos despertaram delírios das bacantes; e às macieiras córa-lhes os pomos o sol amortecido, emfim liberto de abrazado ardor canicular. Ainda incensam a tarde derradeiros perfumes do jasmim, mas, a dizer-nos que o estio finda, floriu côr de rosa o eloendro. E aquela madre-silva que murchára sob a calma do mês de S. Tiago, de novo desprendeu seus ramos ágeis, de novo nos mostrou a palidez do cálice que verte os seus aromas, rediviva ao respirar primícias da mansidão do outono, generoso de frutos e carícias.

E deleitosamente, ávaro e ávido, eu colho o meu quinhão de encantos e de pão e de abundância, como se fôsse meu, me pertencesse, vagamente sonhando, em cego orgulho, que era só minha a terra e o seu sustento, e a caridade infinda do Senhor só para meu benefício se gerára, e só para me servir ela existia, só para meu contentamento e meu deleite.

Algures, porêm, passou uma voz rebelde, de dôr e de queixume e desalento. Uma sombra sinistra me turvou a alegria soberba dessa hora, seu repouso e ventura triunfantes. Meu domínio e riquezas, severamente os julga o desamparo, para o qual nem abril nem novembro teem mudança e por igual são negros. Mensageiros de Deus mo anunciaram no frouxo clamor dessa mendiga que vi descer, curvada, dos montados, trazendo aos hombros o escasso feixe com que, cerrada a noite, irá avivar a amortecida cinza do seu lar.

Cansada, extenuada, face a face com a visão das penas da sua sorte, pousou a lenha à beira do caminho para rehaver alento que a animasse a levar a jornada até final.

E disse alto, erguendo aos céus cruéis o seu lamento:—«Meu divino Senhor!
Como é arrastada a vida que me déste!…»

Não a escutou a serena mudez inflexível dessa Vontade austera, onipotente, que a consagrára à cruz da desventura para a redimir em tronos de humildade. Mas ouviu-a, hesitante, sucumbida, a atribulada consciência tímida que, emquanto dura a palidez mortal da fome e da miséria, suspeitou em cada gozo uma traição, e repassa do mais amargo sal o pão e o fruto e quanto os lábios tocam, e entretece de espinhos todo o linho e toda a seda que nos cobre.

Porque ali me tocou a sua aza, nessa tarde de outono doce e fértil, me prendeu a indigência e a apeteci—impiamente, talvez, menosprezando o banquete opulento que o Senhor me oferecia e ao qual não vinham, por êrro e crime da avareza humana, as maceradas legiões proscritas.

XXIII

Na frieza alvacenta da manhã, quando, lentos, os montes, ressurgindo da confusão da noite, de novo vinham a esculpirem na luz o seu orgulho, sonhei que as horas do nascer da aurora, essas de redenção, eram contadas em torres de mármore, e, compassadamente, instante a instante, as apontavam, caminhando sempre, os ponteiros doirados de um relógio, fulgentes, repetindo no fulvo scintilar o ardor dos astros. De espaço a espaço, como anunciando um mandado solene inalterável, o bronze da torre modulava, em seu cavo bradar, pausadamente, aquelas mesmas horas tão ligeiras que os ponteiros doirados lhes diziam.

Assim, altivamente ufana, a vaidade do mundo pretendia reflectir a glória dos céus e adorá-la, traduzindo-a nos bens da terra que mais caros tinha. Porventura pensou, enlouquecida, igualar em seus falsos tesouros perecíveis a emanação divina da beleza que nas alturas passa e não consente em ser cativa e serva da nossa arte.

Porêm, quando acordei, uma doçura estranha baniu essa ilusão que era o meu sonho, e perseguido e vão o dissipou. Quando a ave cantou a despertar o cavador ainda adormecido nas minguadas palhas da choupana, quando a sua ternura, reanimando-os, exaltou da obscura nudez que os oprimia os prados e as selvas, e as aguas, e os rochedos, e os orvalhos, fôram pobreza estreme e pequenina aquêles sonhos doídos da grandeza fundada em ouro puro e claro mármore; como caíram as torres altas que ela edificou, de todo se calaram humilhados os écos magestosos do bronze que lhe apregoavam o breve império. Efémera quiméra, afugentou-a o místico poder que na ave incarnou e a fez arauto e missionário sobrehumano.

Cai o palácio, a fortaleza, o templo; desfaz-se em pó e é nada o diamante. Não renascem se o vento os arrastou. Mas a ave, essa de peito em peito volta e revive, a cantar perenamente a madrugada, ou na terra se ostentem monumentos, ou no chão se esboroem as ruinas. Não sei que eternidade a faz eterna onde foi fraca, tenue e transitória a fôrça mais robusta, quanto o homem imagina duradouro. Mistério da candura dominando toda a mortal jactância da soberba, foi a maior grandeza a singeleza e mais pôde em nossa alma que o fausto da volupia, ainda mesmo quando impulsos sagrados transviados ofereceram à glória de Deus e ao amor da luz toda a fortuna que é a paixão e pasto da avareza.

Erradamente, sonhei, louvei e amei o sonho passageiro que me contava as horas da existência no mármore e no ouro. Mas outro sonho, e êsse foi constante, e fiel e seguro não mentiu, êsse me desprendeu do pérfido fulgor que me enlevava, êsse me libertou para arrebatar-me àquêles reinos de infinda pureza em que as horas da vida são contadas pelo cantar ingénuo e pela ave.

E então, outras jámais contei, essas sómente ouvi, louvei e amei humildemente.

XXIV

Não tarda a madrugada. E o campanário, e a igreja, e a fortaleza da muralha impassivel que resguarda as eiras, as moradas e a deveza, se o ímpeto das águas ameaça, quando em torrente desce das montanhas, geladas, no inverno; e o rio, e os amieiros, e os palácios, e a ponte, sombriamente altiva e orgulhosa:—sonham encantos ao luar cadente que em derradeiro afago ainda os protege no silencio da sua mansidão. A rocha e a onda, que eram inimigas e porfiádos combates combatiam pertinázmente disputando o chão, confundiram-se, adorando o luar; e na mesma doçura adormeceram, dormindo o mesmo sôno, desarmadas, ambas humildes, dóceis e sujeitas à magia divina desse bemdito alvôr que as alumia. E o coração, dorido dos anseios que o agitam, prostrado dos enlevos e das penas que lhe são cadafalso e o seu consolo, sustento, pão e cálice e o algôz, a cicuta mortal e a perdição, acalmou-se, como o rochedo e a onda, em seu lutar; à luz piedosa do luar se entrega e em seus sonhos lhe roga e lhe implora que benignamente suavise, e lhe abrande, embalsame e lhe receba esperanças e tormentos, e os vôos da ilusão e a loucura de engânos que só querem renascer renovados e crescidos em muitos mais enganos e mais loucos.

Mas vem a despertá-los a manhã. Além, onde as estrelas desmaiaram, o ceu pressente a aurora e o seu rubôr. E rochêdos, e igreja, e amieiros, e muros, e palácios, a criação dos deuses e a dos homens, e o próprio coração que Deus habita, acordam para sofrer uma outra luz, essa do sol cruel e inclemente na turbação candente de um ardor que por igual é vida e consumpção, géra e destrói.

Que destino adverso as amedronta para fugirem pálidas, vencidas, as sombras carinhosas do luar em que a nossa alma e a terra redimidas cantavam confiadas e felizes, como se estranha fé as afoitasse a dizerem segredos do seu seio, como se a sombra feita de ternura as confessasse e ouvisse cautelosa e lhes rasgasse os véus do seu mistério?!… Porque passaram, assim breves e inquietas, e tão pouco duraram beatitudes da salutar brandura que descerra os mundos só de paz e ventura, onde no extasi se dissipam mágoas, e a culpa se apagou, e não existem nem mentira ou traição ou a fraqueza?!… Para mais queridas serem e desejadas, foram curtas, aladas como fumo, essas graças celestes do luar que em seus tronos pozeram as quimeras, resplendentes, coroadas nas alturas?!…

Embora!… Não fugiram, porém, tão apressadas que eu, preso da saudade, as não seguisse e, seu escravo, não as sirva e ame, fiel, obediente, em seu infindo rasto e eterna gloria.

XXV

Subi ao cerro agreste onde encontrei a morada da morte. Estava aberta a meus pés a sepultura e cavado na rocha o ataúde.

Em torno Deus espalha a formosura, alvorôço o tumulto da beleza que me engrandece a alma e alegra os olhos:—rosais e sebes repartindo a terra, os campos, os caminhos e os vilares, como se aroma e viço fossem donos, soberanos doadores munificentes e ríspidos juizes dos bens que a terra cria;—os lares encastelados nas encostas, fumegando, estrelas de humildade e caridade recatadas, acesas entre os colmos;—seáras e pomáres;—as ermidas orando piedosas, a interceder por nós lá nas alturas, rogando a Cristo e a sua Mãe Santissima, e aos bemaventurados que a sonharam e para a sua presença renasceram que a ama-los nos ensinem e nos conduzam, e aos seus pés nos levem e ajoelhem;—as frondes dos carvalhos;—a soberba robusta dos pinhais;—os indómitos píncaros dos montes;—as águas apressadas pelos vales, de rocha em rocha a abrirem a sua estrada e cobrindo de verdura os seus haveres;—e as urzes de montado que preferiram, sem invejarem sorte mais feliz, vestir de encantos a braveza do chão e ungir a aspereza transmudando em çarças floridas a indigencia;—e, como balsamo do poder divino, tal qual fosse uma briza, emanação que descida dos céus nos acordasse o peito endurecido por morbidos torpôres em que a indiferença séca e corrompe a vida em sua imortal essência, em seu amôr; mais alta do que a voz da natureza, dominando-a, vencendo-a e consagrando-a, a voz do coração, dizendo ali murmurios de carinhos remansosos, ali nos libertando por instantes da dureza do mundo e das suas penas, para erguer-nos aos reinos que o mundo não alcança e sómente o coração possue e nos concede.

Mas, aberta a meus pés a sepultura e cavado na rocha o ataude, a sedução de morte, sem temer quanta beleza ali me extasiava, de súbito acendendo o seu lúgubre facho e iluminando a formosura que era meu enlevo, repete-me aos ouvidos as tentações da sua redenção. E serena, na brancura dos anjos, lançando para longe o véu sinistro e o manto negro em que surgira involta, mansamente me diz, consoladora:

—«A ventura suprema e toda a gloria só por mim serão tuas! Em meu seio é cinza quanto avistas, o roble e a rosa, como o poder humano e a sapiência; a féra, o santo, o crime, e vileza e candura; quanto te atrái, fascina e tu procuras, e quanto por aversão foges e temes. Tempos e espaços, o edificio mais alto e o maior feito, o heroismo, a dôr, a herva e o cédro, o ódio e a paixão, o mármore e o vérme, e os sóes mais luminosos que convertem a noite em esplendôr, todos em cinza acabam e em cinzas guardo na profundeza infinda do meu seio. E a todos restituo a vida e o ser, para sempre isentando-os do temôr, do pecado e da incerteza, a todos eu conduzo à vida eterna, à vida imarcescivel da saudade!»

FIM

DO MESMO AUTOR

Vozes do meu lar, 1 vol.
Na Paz do Senhor, romance, 1 vol.
Reino da Saudade, romance, 1 vol.
Via Redentora, 1 vol.
Apostolos da Terra, 1 vol.
Sonho de Perfeição, romance, 1 vol.
S. Francisco d'Assis, 1 vol.
José Estevão, 1 vol.
Alexandre Herculano, 1 vol.
Rogações de Eremita, poemetos em prosa.

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