The Project Gutenberg eBook of Miniaturas Romanticas

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Title : Miniaturas Romanticas

Author : S. de Magalhães Lima

Release date : May 22, 2007 [eBook #21567]

Language : Portuguese

Original publication : Coimbra: Imprensa da Universidade, 1871

Credits : Produced by Pedro Saborano. Para comentários à transcrição
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MAGALHÃES LIMA

MINIATURAS ROMANTICAS

Martyrio d'um Anjo. -- Amour et Champagne. -- Um drama intimo. -- A Fatalidade e o destino. -- Cambiantes da comedia humana. -- Estrellas e Nuvens. -- Á Beira-Mar. -- Um dia de noivado.

COIMBRA
Imprensa da Universidade
1871

MINIATURAS ROMANTICAS

MINIATURAS ROMANTICAS

POR

MAGALHÃES LIMA

Ce livre............................
Tremble et palpite abrité sous vos pieds.

Victor Hugo .

COIMBRA
Imprensa da Universidade
1871

A
MEU PAE

DUAS PALAVRAS

Miniaturas romanticas --é um livrinho modesto e despretencioso. O seu auctor não aspira aos louros d'uma gloria certa e immorredoura. Tem desejos; estuda para isso; e tanto lhe basta.

O auctor.

MARTYRIO D'UM ANJO

MARTYRIO D'UM ANJO

Despontara risonho o dia 23 de maio de 1856. Era profundo o anil do céu. Nem uma nuvem sequer toldava o puro azul do firmamento, nem um sôpro de desgosto vinha embaciar o prisma da felicidade humana.

Tudo era bulicio, vida, amor!...

A natureza, revestida das magnificentes pompas da primavera, desentranhava-se em flores e fructos, revelando mais e mais a grandeza e omnipotencia do Creador, que avulta tanto no mais humilde insecto, como no mais esplendido organismo.

Folgava a toutinegra no raminho frondente, dizendo-se ternos amores com o emplumado rouxinol, cujo canto mavioso repercutia em echos longinquos o idyllio melancolico da creação.

Impellida doudejava a mariposa de flor em flor, e a brisa, tepida, ciciava de mansinho ao perpassar por sobre a solitaria florinha.

Em delirantes extasis, suspirava a pudibunda donzella, sorvendo grata a vida num casto e puro anceio.

O amante, sem desfitar os olhos da fugitiva lympha, mudo contemplava, gentil, o retrato da sua amada.

E ao pobre faminto, para quem a ventura fôra meteóro fugaz, no horisonte medonho da humana desdita, sorriu a furto um raio de esperança no seu espirito angustiado por cruciante dôr.

Sublime era o quadro, beatifica a visão!

E qual seria o ente, cuja alma fosse aleitada por uma centelha divina, que não sentisse arrobar-se-lhe a existencia ao contemplar tão sublime maravilha, tão rara formosura!!...

Que Raphael seria capaz de reproduzir na tela esta estrophe melodiosa e suavissima do Senhor, a que os homens deram o nome de--primavera!!...


Mollemente reclinada em flacida alfombra, Leonor, parecera, comtudo, indifferente ás doçuras d'este panorama, e ao brilho da sua divina poesia. Em que scismava aquelle anjo de pudor?... Que fatal magnetismo a arrastara ali?

Ninguem o poderá dizer. Ao certo só sabemos que a sua alma, cheia de sublime poesia, procurara instinctivamente aquella solidão, como que agrilhoada pela necessidade innata de fugir ao mundo e aos seus encantos.

Leonor chegara do Brasil havia poucos mezes. Cecilia, sua mãe, vendo-se viuva, com este unico thesouro das suas entranhas, para logo tractara de alugar casa em Bemfica, não só por ser esse o logar da sua naturalidade, senão tambem pelo desejo de satisfazer ás reiteradas instancias de sua filha, que desde muito aborrecia a cidade. Ali viviam aquelles dois anjos uma vida beatifica, alentados pela mutua esperança, e identificados pelos poderosos laços do amor.

Leonor, no dia em que a encontrámos, completara vinte annos: tinha, portanto, attingido essa idade sublime e mysteriosa, mórmente para a mulher, que, elegiaca por condição, sente o vacuo da sua existencia, arrojando-se loucamente ás ondas do amor, talvez, pela natural fragilidade da sua natureza.

Quem sabe, se n'isto divagaria a nossa poetiza, no momento em que a encontrámos no seu pittoresco jardim?

Uns vislumbres de saudade, de tristeza e melancolia animavam seu rosto naturalmente pallido.--Aquelles olhos pretos e rasgados, enturvecidos por uma nevoa de languidez, provavam bem quantos e quão perigosos seriam os pensamentos que se lhe agitavam na mente.

Sua mãe viera pé ante pé, curiosa, sem duvida, por penetrar no recondito d'aquelle coração. Leonor presentiu-a, e sorriu-se. Cecilia pousou seus castos labios na angelica fronte da filha, e nella depositou, com maternal carinho, o nectar que dimanava de seu extremoso peito. Depois, tomando entre as suas as mãos d'aquella pomba, disse:

--Então que tens tu, minha querida filha? Tão triste e solitaria no dia de teus annos! Ora anda: falla francamente a tua mãe.

--Oh! minha querida mãe, quanto lhe sou devedora! Como havia de eu estar triste, tendo-a aqui ao meu lado? Não vê que sou tão sua amiguinha, e como já estou tão alegre?

--Por quem és, Leonor, nada me queiras occultar. Poupa-me a um sacrificio doloroso, dispensando-me a sinceridade que mereço. Comprehendo a tua dôr, como se minha já fosse. Tu amas, bem o sei. Tenho presenciado tudo. Nada me é extranho.

Leonor córou de involuntario receio, ao ouvir as ternas expressões de sua mãe, e por alguns minutos permaneceu em scismador enleio, como que subitamente preoccupada por estranho pensamento. Recobrando, porém, a serenidade, que momentaneamente houvera perdido, prorompeu nos termos seguintes:

--É verdade, minha mãe, nada lhe desejo nem posso occultar. Eu amo meu primo Mauricio. Amo-o com toda a pureza da minha alma, e em todo o fervor da minha existencia. Uma circumstancia poderosa veio, comtudo, cavar um abysmo entre nós, e forçar-me á dura collisão, em que, máu grado meu, me tenho conservado. Foi esse o motivo por que ha mais tempo lh'o não declarei, intimamente convencida de que a minha bondosa mãe perdoaria mais uma vez esta falta á sua filhinha, que tanta felicidade lhe deseja.

--Julgas, talvez, que te culpo por isso; antes, pelo contrario, não podia achar mais acertada a tua escolha. Mauricio é um rapaz serio, capaz de te retribuir o teu affecto, e de desempenhar no futuro a missão d'um marido exemplar.

--Sem duvida, tambem assim o creio. Mas não lhe tenho já declarado por vezes que só me unirei eternamente a um homem de muita instrucção e de grande saber?

--Isso é uma fraqueza da tua parte, que se virá a dissipar com o tempo; sendo que muitas vezes os homens mais celebres são exactamente aquelles que menos se coadunam com a indole do viver domestico. Além d'isso, teu primo tem o desinvolvimento sufficiente para te saber estimar; e eu morreria tranquilla se um dia tivesse a dita de te ver enlaçada pelo affecto áquelle que já posso appellidar--meu segundo filho.

--Oxalá assim succeda, replicou Leonor, com um disfarce feliz. O futuro só a Deus pertence. Amar a mediocridade, isso só pode ser o apanagio das mulheres vulgares. Por hoje não fallemos mais n'isso. Vamos antes esperar as pessoas da nossa intimidade, que decerto não perderão esta noite, para nos prestarem agradavel companhia.

Dirigiram-se depois para casa, e assim correu o resto da tarde sem maior incidente.

Ás nove horas da noite já se cruzavam nas salas algumas familias, que expressamente tinham vindo festejar o anniversario natalicio de Leonor, com brindes de toda a especie. Esta não sabia como agradecer tantos e tão prolongados obsequios, que a cada passo lhe prodigalisavam os convivas recemchegados. No entretanto todos se retiravam sobejamente remunerados, com o galardão do seu peregrino talento e natural candura.

Mauricio, como era de esperar, abrilhantou esta festa com a sua presença. Logo, porém, notou em sua prima um ardente desejo de o evitar. Na primeira quadrilha viu em Leonor hesitação, e que só forçada condescendencia a obrigava a dançar com elle.

Não sabendo a que attribuir tão rapida transformação, recorreu a sua tia. Cecilia, que a principio vacillara em relatar o acontecido a seu sobrinho, não pôde de modo algum abafar o grito imperioso do seu coração, patenteando-lhe tanto ao vivo o pensamento de sua filha, que Mauricio a custo reteve uma lagrima de saudade por aquella que já ha muito dourava o horisonte de sua existencia.

E quantas vezes um sorriso nos labios occulta uma grande dôr!...

Mauricio, como se nada com elle houvera passado, voltou á sala, e dançou até ver a reunião completamente terminada.

Seriam duas horas da noite. Despediu-se de sua tia, e sahiu. Mas, ai do malfortunado mancebo!...

Longe de se dirigir para casa, divagou triste e pensativo pelas ruas da capital até ao alvorecer do dia, sendo a cada passo assaltado por dolorosas recordações, que lhe dilaceravam as fibras do seu apaixonado coração.

No dia immediato Mauricio havia desapparecido de Lisboa!...


Deixemos agora esvoaçar quatro annos nas azas do passado, e voltemos a Bemfica.

Ali reconheceremos Leonor, proxima de sua mãe, trabalhando diligentemente. Aquella flor, que ha cinco annos se ostentava tão altiva e louçã, vêde-a, presentemente, como vai estiolando e fenecendo, e ai d'ella!... se o céu, na sua infinita misericordia, lhe não enviar o orvalho que lhe restitua o viço e frescor!

Estavamos, então, em maio de 1860, cujo mez fôra assignalado pela rapida ausencia de Mauricio. E n'isto fallava a virtuosa mãe a sua filha, enxugando de quando a quando uma lagrima, que espontanea lhe rolava pelas faces. Não era tanto o desapparecimento de seu sobrinho que a affligia, como ella julgar-se a principal causa d'esse fatal evento.

Leonor vivificava o pezar de sua pobre mãe com gostosas consolações, que, puras e castas, brotavam de seu virginal seio.

Seriam talvez cinco horas da tarde do dia 30 de maio, quando sentiram bater á porta. Sensação particular, por aquelle inesperado toque, fez estremecer mãe e filha. Mysterios ha na vida humana que se não explicam. Este era um d'elles.

A porta da sala abriu-se, e o criado annunciou uma visita, que não queria dar o nome, mas que muito desejaria fallar com a senhora.

Mandaram-na entrar.

Ora imagine o benevolo leitor qual não seria a profunda commoção, sentida simultaneamente por aquella familia, vendo junto de si o sobrinho que que ha muito julgava perdido.

Mauricio tinha chegado naquelle dia de Paris, onde, a grandes e penosos sacrificios, fôra buscar uma solida instrucção com o unico intuito de realisar a sua felicidade futura, unindo-se a sua prima pelos laços matrimoniaes. Cursava, então, o terceiro anno de engenharia, e viera passar as ferias a Lisboa.

Leonor, ao ouvir dos saudosos labios de seu primo a narração circumstanciada dos motivos, que o levaram a executar tão heroico projecto, sentiu augmentar-lhe gradualmente aquella paixão latente, que ha muito ardia em seu peito. Elle, attento ao benevolo acolhimento e fraternal regosijo, que então lhe dispensaram, não duvidou em declarar-se a sua candida prima, que o attendeu com meiguice e amor.

Rapido se passou o tempo de ferias. De dia para dia se iam identificando aquelles dois corações, que tinham nascido para muito se amarem. E, similhante a um grande rio, já não haveria dique capaz de lhe vedar o seu correr impetuoso.

O amor verdadeiro e puro é uma irradiação do sublime, e como tal uma aspiração constante para as regiões do absoluto.

Os esponsaes ficaram tractados, e por elles Mauricio voltaria dentro em dois annos formado, e sobejamente instruido para melhor poder satisfazer as nobres e santas aspirações de sua prima.

O leitor melhor poderá imaginar qual não seria a violenta agitação dos dois amantes ao dizerem-se o adeus da despedida. Um drama intimo, impossivel de descrever-se, e que só poderá ser bem apreciado por aquelle que, no decurso da sua vida, se encontrar algum dia em identicas circumstancias.

Porém o bom senso de Mauricio, e sobretudo a necessidade, que nelle fallava mais alto do que a voz de seu apaixonado coração, estimulou-o a prosseguir na vereda tão briosamente encetada, ainda através dos maiores obstaculos.

Partiu, levando a saudade gravada no intimo do peito, e a esperança a refulgir-lhe por entre as perspectivas d'um risonho porvir.


Ao entrar nesta parte da veridica narrativa, que intentamos esboçar, julgamos mais conveniente satisfazer a curiosidade da amavel leitora, transcrevendo para aqui fielmente a limitada correspondencia que se trocou entre Mauricio e sua prima.

É o que vamos fazer.

CARTA 1.ª
(De Mauricio a Leonor)

Paris, 1860.

«Nem eu sei como relatar-te a minha viagem. Feliz teria ella sido, por certo, se te tivesse visto sempre a meu lado. Mas... não digo bem... a tua terna imagem acompanhou-me sempre. Na onda, que preguiçosa ia beijar a fulva areia; na estrella, que á noite scintillava nos céus; no espaço, que infinito se me antolhava; por toda a parte, emfim, meu anjo, a tua melancolica figura vinha sempre afagar a minha tetrica existencia, e contornar uns doces effluvios de amor no meu angustiado espirito.

Oh!... e quem me dera poder hoje abraçar-te, e depois n'um extasi delirante, dizer-te:--Leonor, benefica luz dos meus olhos; amo-te, adoro-te, sou teu. Mas um dia virá em que te poderei dizer desafogadamente:--agora, por toda a vida, meu amor, jámais me verás longe de ti!

Louco, que eu sou, na verdade! Insensato!... a dispôr do futuro, como se meu já fora. Embora! Deus é bom! Não sejamos incredulos! Elle, que na sua infinita bondade não esquece o desgraçado agonisante no leito da dôr, por certo não consentirá que uma negra nuvem venha toldar o puro azul do nosso céu.

Leonor, por quem és, envia-me o balsamo para as saudades que me opprimem o coração.-- Mauricio.

CARTA 2.ª
(Resposta de Leonor)

Bemfica, 1860.

«A tua carta veio encontrar-me agonisando nas vascas d'uma paixão febricitante.

Um dia sorriu-me o oasis mimoso no deserto da vida, acerquei-me d'elle extenuada de fadiga, e com o meu pobre coração dilacerado por uma lucta gigante, que me fôra impossivel evitar. Julgava ser aquelle o alento para proseguir na minha espinhosa tarefa!... Illusão!... Sinto-me fraca, e não sei se terei forças para resistir ás agitações febris que hoje me dominam.

Pede a Deus, meu bom amigo, me prolongue os dias da existencia, para poder abraçar-te mais uma vez ao menos, e morrer depois com a consolação derradeira do moribundo, que vê junto do seu leito o vulto venerando do presbytero, amenisando-lhe a algidez do sepulchro com a uncção da sua divina prece.

Lembra-te sempre da tua amiga, que, ao longe, vela por ti dia e noite.-- Leonor. »

CARTA 3.ª
(De Mauricio a Leonor)

Paris, 1860.

«Não sei como communicar-te o temor violento, que se apoderou da minha debilitada existencia ao ler e reler a tua carta. Aquellas linhas, dictadas pela fatalidade poderosa do amor, e escriptas por tua angelica mão, que tantas vezes beijei com o anceio de largas esperanças no futuro, compungiram-me profundamente.

Justamente, quando o meu espirito allucinado procurava o calix da ventura para docemente o libar, veiu a desdita sentar-se ao lado, e involver-me no luto de medonha desesperança.

Meu Deus! meu Deus! Quanto a vida é cruel, sem uma esperança fagueira que nos alimente os sonhos radiosos do porvir! Quão duro é de tragar o absintho d'esta existencia ephemera!

Porque será que o espirito do homem é tão possante librando-se nos vôos d'uma phantasia ardente; e cahe depois prostrado pela vertigem das paixões no mais temeroso de todos os precipicios?

Insondaveis são os arcanos do Creador!

A esperança vivifica; o amor martyrisa!

Podesse ao menos o holocausto do meu doloroso soffrer resgatar os dias sanctificados de Leonor, e eu satisfeito deporia a minha cruz, orvalhada pelas lagrimas de eterna saudade.

A ventura é um anceio febril em espiritos privilegiados. Mas a ventura é uma vaidade, uma chimera, entrecortada, apenas, pelas alternativas radiantes de melhores horisontes!

Feliz o homem que tem fé; porque a fé, para almas bem formadas, é a agua redemptora do seu baptismo.

Porém o homem, que sente o gêlo da descrença no seu coração; o homem, que não pode evitar a peçonha corrosiva do cynismo e da perversidade; esse homem é um desgraçado, um miseravel, como muitos, que a sociedade escolhe para instrumento da sua implacavel vingança, e opprobrio da humanidade!!

E quem me permitte ajuizar da minha virtude?...

Só Deus o sabe, meu anjo, quanto é leal e verdadeiro o pranto acerbo, que derramei ao saber da tua sentida doença.

Possa, emfim, o Senhor ouvir a sinceridade da minha supplica, e fazer descer sobre ti o anjo da felicidade e do amor.-- Mauricio. »

CARTA ULTIMA
(De Leonor a Mauricio)

Bemfica, 1860.

«Apezar da expressa prohibição dos medicos de me evitarem tudo o que possa prejudicar o meu estado melindroso de saude: não pude, ainda assim, furtar-me a um desejo imperioso de me associar ao teu pezar, mitigando-o, no caminho espinhoso do meu Golgotha.

É uma expiação, que a mim propria imponho, sem outro galardão, que não seja a retribuição do teu entranhado affecto.

As lagrimas têm um condão mysterioso. Adoçam a adversidade terrestre, com a consolação extrema d'um futuro incerto. Assim eu podesse encontrar n'ellas o topico provavel para a medonha enfermidade moral que hoje me devora.

Tudo creio impossivel.

Só a tua presença me poderia ser, talvez, refrigerio momentaneo para o meu aturado martyrio, e doloroso esquecimento.

Regressa, portanto, á patria, meu bom amigo. Vem engrinaldar a fronte da esposa com as flores amarellecidas do sepulchro, e prestar um derradeiro tributo áquella que te amou na terra com o fervor da virgem e pureza dos anjos.

Só Deus poderá abençoar o nosso amor!...

Não posso mais,... Mauricio... Sinto-me desfallecer sensivelmente.

Adeus... adeus, e talvez... para sempre.-- Leonor. »

Inutil se tornaria aqui dizer, que Mauricio obedeceu peremptoriamente ás ordens de sua saudosa noiva, tomando bilhete para o primeiro vapor com escala por Lisboa.

Fôra, porém, intempestiva a sua viagem.

Quando chegou a Bemfica, encontrou a nudez e a solidão enthronisadas no solio, onde deveria ter existido o jubilo e a gloria de dois amantes ditosos.

Leonor havia desapparecido para sempre d'este mundo!...

O anjo da morte, extendendo suas negras azas sobre aquelle coração de pomba, arrebatou-o para sempre á humanidade.

Eclipsou-se no céu uma estrella, e da terra voou um anjo á mansão dos justos!

Mauricio libou até ás fezes o calix do infortunio.

Aquelle amigo verdadeiro e fiel; aquella intelligencia robustecida á luz da profunda meditação; aquelle coração de poeta; aquella imagem continuamente açoutada pelo tumultuar de sentimentos encontrados, onde meigamente vinha transparecer a morbidez e o desalento d'uma paixão precoce,--nunca mais transpoz o limiar da casa de Bemfica, que outr'ora pisava, sentindo a vida a rejuvenecer-lhe a cada passo.

Ainda houve quem o visse, um mez depois, com as faces pallidas, os olhos cadavericos e um semblante sepulchral.

Não era passado muito tempo, quando Cecilia recebeu uma carta de seu sobrinho, concebida nos seguintes termos:

--Minha excellente tia.--Ao deixal-a em contristante e dolorosa desolação, tendo-se associado á dôr e orphandade do espirito, como unicas companheiras, que lhe restavam no areal sombrio da vida, era mais do que dever d'um filho allivial-a, quanto em si coubesse, dos transes medonhos e caprichos da sorte, por que acaba de passar o seu bondoso coração.

Porém, minha tia, se neste mundo pode haver perdão para um desgraçado, conceda-lh'o.

Já a meus pés se abre o abysmo incommensuravel do cynismo e da descrença, que dentro em pouco me ha de absorver.

Haverá muito quem me censure, chamando-me--louco!

Louco!... porque não soube abafar a palpitação febril d'um sentimento elevado e nobre!

Louco!... porque não tive a resignação, para oppôr ao marulhar tremendo das vagas da desventura!

Louco!... porque cri na sanctidade do amor; ajoelhei perante um archanjo celeste, e senti o fogo da inspiração a enroscar-se-me voluptuosamente pelos membros!

Louco, emfim, porque soube desprezar a imbecillidade dos homens pelo gozo ineffavel d'uma ventura celeste!

O suicidio é a suprema aspiração d'uma imaginação sublimemente grandiosa, que, não podendo suster o vôo audacioso a que se arrojara, se despenha fatalmente no oceano do nada.

E a resignação o que é?...

A immobilidade physica e moral, uma profunda negação do ser humano, e uma violação flagrante dos verdadeiros sentimentos.

O homem, que vê o seu nome malbaratado, a sua honra vilipendiada; sem ter uma mão caritativa, que lhe sirva de luz por entre as fragas estereis da vida; sem mesmo um refrigerio para as chagas do seu pobre coração; sem uma esperança, ao menos, que lhe acalente os sonhos radiosos do existir durante o correr tempestuoso, que vai do berço á sepultura: esse homem, digo, descrê da Providencia; torna-se cynico; e vai buscar na ponta d'um punhal aquillo que não pôde encontrar no meio d'essa sociedade estulta e devassa.

E, ainda haverá quem condemne o suicidio?!...

Condemna-o, sim, a mediocridade, porque o não comprehende; porque lhe é mesmo impossivel conceber a lucta gigante que se trava a cada passo nos espiritos altaneiros entre a razão e a vontade,--duas faculdades de que depende toda a nossa vida e bem-estar terrestre.

Por isso, minha bondosa mãe, e deixe-me chamar-lhe assim nos ultimos instantes do meu passamento neste mundo, abençôe pela derradeira vez o seu desgraçado filho, que sem saudade abandona este theatro maldito, para ir tributar perante o throno do Altissimo o sanctuario das puras affeições e leal obediencia.

Adeus, minha desvelada mãe, e adeus para sempre. Não descreia do seu filho, e lembre-se que só no céu se poderá encontrar a remuneração condigna ás virtudes mundanas.-- Mauricio.

Cecilia ficou como que petrificada, ao receber o golpe inesperado, que lhe causara a carta de Mauricio. Desvairada pelo infortunio, assaltada por uma visão sinistra e cruel, aquella extremosa mãe vendeu a sua casa em Bemfica, que lhe era recordar amargo d'uma felicidade radiante e fallaz, e recolheu-se a um convento, onde vive ainda hoje, acompanhada pela resignação, e alimentada pela virtude esperançosa de que um dia se irá reunir no seio do Creador áquelles dois martyres bemaventurados, a quem o vulcão das paixões sorveu para sempre na sua cratera de fogo.

AMOUR ET CHAMPAGNE

AMOUR ET CHAMPAGNE

Vive l'amour! Vive le champagne!...

O amor é o nosso heróe, mas um heróe comme il faut ; o champagne o seu condigno satellite.

A scena passa-se n'um baile, se bem me recordo.

O protogonista da acção é um mancebo de vinte annos, pouco mais ou menos; alto, magro, de cabello e bigode alourado, testa rasgada e ampla, olhos pequeninos e vivos, e com todos os signaes visiveis d'uma imaginação eminentemente fogosa, mas, em parte, já obscurecida pelo contínuo perpassar de medonhas orgias e pelo roçar de perigosas paixões.

Agora, com estes preludios, leitor amigo, acompanhemos o nosso personagem, e perscrutemos, sem escrupulo, alguns episodios da sua tragica vida.

Silencio, pois!

Eil-o ali, áquelle cantinho! Lá caminha passo lento e medido! Os sons da orchestra attráem-n'o irresistivelmente ao salão! Aquelle esplendor, aquella voluptuosidade oriental, que se respira n'aquelle recinto ideal e angelico, despertam em sua alma febril o enlevo de mais venturosos dias, evocando á sua phantasia amortecida esses phantasmas crueis e fagueiros, que outr'ora lhe alimentavam os doces sonhos do porvir.

Alvaro, dirigido para ali automaticamente, foi sentar-se na primeira cadeira, que, ao acaso, encontrou.

A dança tornara-se delirante, e a sua alma, já de muito saturada com a triste realidade do mundo, palpitava-lhe no seio com a violencia de prolongadas e suaves sensações.

Senão quando, o som desconhecido d'uma voz argentina e doce lhe attraíu a attenção desvairada por longinquas paragens.

Despertou do lethargo, o nosso galan. Acercou-se d'aquelle vulto gracioso e nobre, e, convidando-o a dançar, entrou n'uma quadrilha.

Alvaro encarou tres vezes o seu mimoso par. Não sabia devéras, como encetar a conversação. Dirigir-lhe alguns requebros frivolos e banaes, em que tanto abundam estes bailes da nossa moderna sociedade, isso não. Não se coadunava com a sua indole, em extremo sensivel, o compendiar meia duzia de palavras semsabores, para entreter uma dama, cuja belleza elle, aliás, admirava.

Era dura a collisão, mas tinha de acabar, e acabou com effeito, explosiva, mas real.

E senão, ouçamos o resto do dialogo, se nos apraz. Esqueçamos, por um momento, os outros pares dançantes, e concentremos a nossa curiosidade sobre os heroes d'esta pequena scena, que intentamos esboçar.

--Nem v. ex.ª é capaz de avaliar quanto foi poderoso e salutar o feiticeiro sorriso de seus labios sobre o meu pobre coração, minha senhora. Já esquecido, ha muito, d'este mundo hypocrita e ridiculo, estava longe de me reputar feliz um momento sequer, quando divisei, na orla do meu horisonte, a terna imagem de v. ex.ª E, com effeito, não houve resistir-lhe. Cedi a um impulso intimo; compenetrei-me da gravidade do caso, e agora aqui me tem completamente escravisado e rendido aos pés de v. ex.ª

Emilia, e porque não? Seja-nos licito revelar aqui o seu nome, Emilia nada respondeu; baixou sua loura cabeça em scismador enleio, e teve a loucura de o acreditar, a desgraçada.

Horas depois, Alvaro, ao vêr os salões de todo desertos, saíu, como sempre, tetrico e pavoroso.

Entrou no primeiro café, que se lhe deparou; mandou vir champagne e cognac; e bebeu, bebeu até á embriaguez! O ultimo calix voou pelos ares, em pedaços ao clamor estridulo e rouquenho de-- Vive l'amour! Vive le champagne! Vive l'ivresse! Vive la folie! ...

A prostração, comtudo, não o tornou em completa demencia, nem tão pouco as forças physicas se lhe esgotaram.

Passeou a vista pelas mezas da casa, e apenas avistou dois meliantes ainda profundamente encarniçados no delirio do jogo.

Levantou-se, e foi direito a elles. Apontou a uma carta, e perdeu; apontou a outra, e tornou a perder; á terceira, entisicando-se-lhe a bolça, soltou um derradeiro e sentido suspiro!

Já não havia mais recursos: saíu, pois, do botequim.

A aurora começava, então, a roxear o oriente com o clarão da sua divina poesia. Ao longe, a cotovia annunciava um dia ameno e bello. A brisa mórna do crepusculo bafejava de mansinho, ao brando contacto de solitaria violeta, que se espreguiçava indolentemente, qual indiana lasciva na sua rede de pennas!

Alvaro nem sequer se commoveu com aquelle espectaculo.

Pobre desgraçado! como seria elle capaz de poder comprehender essa epopeia gigante, que tão evidentemente nos revela a existencia d'um Deus omnipotente e justo, n'aquelle estado deploravel e asphyxiante?!

Passou, como se tudo lhe fôra indifferente.

Subiu, depois, uma longa e sinuosa escada, que conduzia a uma agua furtada, cuja era a sua residencia. Veio abrir-lhe a porta uma joven mulher pallida e alta, de feições distinctas e ainda delicadas, mas já quasi extinctas pelo marulhar tenebroso do gêlo da desventura!

Uma luz baça allumiava o humilde aposento. Pela fresta da janella apenas se coava um tenue raio de luz, que contrastava singularmente com a pobreza e nudez d'aquelle exiguo e acanhado recinto.

Mas quem era aquella mulher? Que vida era a sua? Que fazia ella ali?

Aquella mulher era uma d'essas creaturas, como muitas, que Deus arrojou ao mundo, para justa punição do homem, e opprobrio eterno da humanidade.

Filha de paes abastados, aquella mulher, teria sido rica, outr'ora, nimiamente formosa e sublimemente ditosa, se a fatalidade do destino, peior que a fatalidade das paixões, não tivesse vindo macular para sempre a sua reputação ephemera.

Paulina amara Alvaro ardentemente; mas o traidor, longe de sanctificar aquelle amor com uma união licita, prostituiu torpemente a victima indefesa de seus nefastos designios, sempre indifferente ás suas agonias e ás suas dôres.

Paulina aproximou-se do seu amante, com o intuito de o beijar docemente, segundo o seu costume, quando elle a arremessou brutalmente ao meio da casa:

--Afasta-te, mulher vil! Para sempre! Não me tornes a beijar! Não queiras, ainda mais, manchar a minha fronte com o teu osculo impudico e pestilente. Julgara-te uma mulher, e não passas d'uma desgraçada! Reputei-te um anjo, e és um demonio! Cri, por algum tempo, na sanctidade do teu amor, e illudi-me, illudi-me sim, vibora dolosa e maldicta!

Triste verdade!...

Ah! Ah! Ah!

Neste ponto, Alvaro soltou uma d'essas gargalhadas estridentes e medonhas, que causam horror até ao maior heróe d'este mundo. Depois caíu sobre um canapé esfarrapado e sediço, que elle herdara de seus paes, em tempos mais ditosos, e ao lado do qual existia uma mezinha tosca e ligeira, onde se accommodava invariavelmente uma botija de genebra, que elle collou aos labios, tractando de a sorver diligentemente.

Paulina, embrulhada n'um roupão rôto e velho, com as suas longas madeixas em completo desalinho, foi-se arrastando insensivelmente no pó da sua ignominia, até chegar ao pé de Alvaro, cuja mão ainda tentou beijar mais uma vez.

Elle, quasi adormecido, soffreou aquelle golpe como lh'o permittiam as suas debeis forças.

Paulina ajoelhou perante o seu algoz. Mal começara, porém, a introduzir suas pequeninas e niveas mãos por entre os avelludados cabellos de seu amante, prodigalizando-lhe toda a especie de blandicias e carinho, de que só uma mulher é capaz,--Alvaro, como que tomado de subito desespero, levantou-se, e, tomando do braço d'aquella pobre mulher, exclamou:

--Paulina, é preciso que tu me entendas, d'uma vez para sempre. Eu não te amo, nunca te amei, nem te poderei jámais amar. Has de ser desgraçada toda a tua vida, porque nunca me soubeste comprehender,--porque nunca foste capaz de imaginar que, em logar d'um amante, só tinhas diante de ti um leproso vil, a quem a sociedade contaminou com o seu halito corrompido, para depois o deixar triste e solitario neste theatro ignobil da humana corrupção. Tu, que foste boa e meiga para comigo, procura outro mais digno de ti. Não faltarão homens, que te saibam estimar. Vae, vae correr mundo; e deixa-me, deixa-me por uma vez!...

Neste instante, desabotoou-se, por acaso, o casaco de Alvaro, e de seu seio caíu um leque, que lhe havia sido dado poucas horas antes por aquella joven e espirituosa Emilia, de quem já nos occupámos no principio d'esta narrativa.

Paulina empallideceu terrivelmente, e ia para apanhar aquelle objecto, tão caro e saudoso, de seu amante, quando elle se interpoz á sua vontade, collocando-se de modo a impedir a realisação, bramindo rancoroso e medonho. Os olhos chispavam-lhe sangue, e a bocca espumava-lhe de satanica raiva.

Tambem não articulou nem mais uma palavra. Apanhou o leque com soffreguidão inaudita; abriu-o, e começou a reparar n'uma borboleta que alli se achava gravada. Depois sorriu-se, e, sempre com os olhos fitos no mesmo ponto, exclamou:

--Qual te via sempre, mariposa gentil, adejando mimosa por sobre os meus sonhos radiantes, appareceste-me hoje, mais bella e sublime como nunca te havia imaginado. A tua imagem despertou ao longe os echos da minha alma; consolou-me o fulgor da tua benefica luz, na esperança d'um ditoso porvir!

Sê grande, minha Emilia, dá-me a crença e a vida outra vez! Suavisa o meu penoso soffrer, com o teu balsamo salutar, e, com o orvalho de teu doce coração, refrigera as chagas da minha imaginação enferma!...

Alvaro saíu, então, com tenções de nunca mais voltar áquella casa.

Paulina, essa jazeu por muito tempo n'um abatimento deploravel, até que, ao fim de alguns dias, se resolveu a ir mendigar de porta em porta o pão ázimo da desventura e do arrependimento.

Enganara-se, porém, aquella pobre mulher, quando julgara ter perdido para sempre o seu amante, que, ainda no opprobrio da sua existencia, não podera olvidar.

Um dia Alvaro regressou a casa, completamente regenerado d'aquelles vicios hediondos, que nós lhe conhecemos na sua mocidade estouvada, e perfeitamente arrependido das passadas loucuras.

Emilia fôra o seu anjo da guarda. Quando soube da mulher vilipendiada, d'aquella boa e angelica Paulina, longe de a rivalisar, pelo contrario, tractou de lhe promover o seu maior bem. E foi tanta a longanimidade do seu coração, que um mez depois Alvaro era legitimo esposo de Paulina e um dos mais honrados e bemquistos cavalheiros da invicta cidade do Porto.

Deixal-os ser felizes. Que a benção do Senhor se compadeça dos seus peccados, e faça descer sobre elles o anjo da felicidade e do amor.

O mundo é assim!

UM DRAMA INTIMO

UM DRAMA INTIMO
Ao meu amigo Agostinho F. Velho

La vie en effet n'est qu'une idée sans valeur, une page blanche, qu'otan n'y a pas écrit ces mots:--J'ai souffert, c'est à dire, j'ai vécu.

Baron de Feuchtersleben .

I

«Como Amelia era formosa! que bondade a sua! que terna expressão a do seu rosto angelico; e, que sentimento! que grandeza d'alma!...

«Como não eram radiosos aquelles sonhos da loura criança, que á noite ia segredar á brisa os seus amores sentidos, em infantil rubor!...

«Oh!... e que meiguice não era a sua, espalhando tão docemente o aroma de seus argenteos cabellos á viração perfumada da tarde, e despertando, ao longe, os echos da solidão com o brando dedilhar da sua harpa portentosa!...

«Phantasma cruel, que, por tanto tempo, me alimentaste o porvir grandioso das minhas aspirações ephemeras! Sombra implacavel d'um destino fallaz! Effigie derradeira d'uma chimera inutil! Espectro medonho da medonha existencia! Mulher! anjo! demonio! tudo emfim!...

«Porém, não!... renasça uma crença, ao menos! reviva a fé, em nossos corações! dissipem-se as negruras da vida, e surja a aurora boreal d'um futuro certo, e de uma verdade eterna!...

Nestes termos apaixonados fallava o venerando presbytero, Francisco de Castro, ao seu affectuoso amigo, Alberto de Carvalhal, quando um raio furtivo do sol, penetrando de soslaio por entre a coma dos pinheiraes, que se erguiam altivos lá no cume das montanhas, os veio despertar do inebriante gozo e suavissimo prazer, em que, desde longas horas, se haviam esquecido dois amigos desditosos, profundamente adormecidos nos braços d'uma saudade infinda.

O pescador deixara a choupana, que lhe era consolação extrema nas horas de afflictivos transes e doloroso penar, para ir estender a rede na praia mais proxima!

Ao longe ouvia-se a voz rouquenha e estridula do gondoleiro, accordando aos echos da sua alma o doce nome da amante ditosa, que, em terra, por elle velava, dia e noite.

O astro do dia, erguendo-se phantasticamente das salsas, escumosas ondas em que parecera mergulhado, havia desfeito as obscuras brumas, que lhe empanavam o brilho, espargindo sua luz etherea pelo espaço infinito.

Tudo rejuvenescia, ao seu halito bemfazejo!

A planta, modesta e grata, elevava para o céu a corolla de feiticeiro encanto, gottejando compassadamente a ambrosia celeste de suas elegantes petalas, matizadas d'ouro e prata.

Rejubilava o passarinho no ramo frondente, pipitando a medo um eterno canto de amor e saudade.

A abelha, com a cabeça esmaltada de pedras e diamantes, as azas variegadas como o iris, encetava sua laboriosa tarefa, sorvendo diligentemente o succo da nectaria, que junto lhe acenava.

Neste comenos, Francisco de Castro enlaçou seu braço direito pelo corpo do idolatrado amigo, convidando-o fraternalmente a retirar-se para casa.

--Vamos, meu bom amigo,--dizia elle,--recolhamo-nos ao meu humilde presbyterio, e lá lhe contarei então, mais desafogadamente, os lances da minha existencia, se a tibieza do meu espirito tanto m'o permittir, e, antes d'isso, não afrouxar.

II

Francisco de Castro era natural de Aveiro. Filho de paes indigentes, e de baixa condição, a sua juventude deslisara, naturalmente, por entre o vegetar monótono d'aquella cidade, sem outro incentivo que não fosse a salutar influencia de algum parente mais proximo, ou o conselho leal e franco de algum amigo intimo.

Chegado, porém, que foi á edade da razão, os seus sentimentos abriram-se-lhe em sensações suaves n'um porvir radiante, e despertaram n'elle um prurido irresistivel de ir em cata de melhores horisontes por esse mundo além.

Com este intuito, pois, deixou o nosso provinciano a terra da infancia, antecipadamente recommendado, e sobejamente abonado por um commendador, seu padrinho, com destino para os portos do Brasil.

Que saudades se lhe não avivaram na mente, ao ver-se longe da patria e dos seus! que pavor não affrontou com o rugir da procella, e horrores do naufragio no alto mar! elle, que jámais havia ultrapassado os estreitos limites da sua terra natal! mas tambem, com que deleite, com que profunda emoção, não mirava elle, por noites calmosas, o manto do firmamento azul, magestosamente recamado de estrellas, que se lhe desenhavam por cima da sua fronte! e o sereno marulhar das vagas, quebrando-se de mansinho no dorso da fragil embarcação! e aquelle continuo acastellar de nuvens, debuxando tão ridentes e phantasticas figuras por sobre a vastidão dos mares!...

Como elle sonhava, então!... Como se deixava arrastar tão docemente pelos mundos ethereos de ignota phantasia, julgando ter já encontrado o almejado thesouro que ao longe lhe sorria! regressando rico e feliz ao solo natalicio, e vendo já os seus, agrupados em torno de si, beijando-o alegremente! E, comtudo, como foi diversa a realidade!...

Francisco de Castro desembarcára no Rio de Janeiro a 30 de março de 1849. Procurando saber immediatamente onde era a rua Direita, ahi se dirigiu, sem mais delonga, aos srs. Costa Pereira & C.ª, ricos proprietarios d'uma casa commercial, e correspondentes de seu padrinho n'aquella cidade.

Tanto que foram entregues as cartas, que devidamente o recommendavam, appareceu um caixeiro convidando-o a entrar, e, apertando-lhe fraternalmente a mão, como signal evidente de futura e benevola camaradagem.

D'aqui foi o nosso provinciano levado á presença d'um dos donos do estabelecimento, que o interrogou minuciosamente ácerca da sua vida passada, animando-o amigavelmente a entrar no escabroso labutar d'aquelle labyrintho commercial, e acolhendo-o para logo em sua casa, consoante a praxe de ha muito estabelecida n'aquelle paiz.

Eis aqui, pois, como Francisco de Castro se iniciou na vida activa do commercio, desejoso, sem duvida, de trabalhar, quanto o comportassem as suas forças, e esforçando-se o mais possivel por grangear, dentro de pouco, os meios de subsistencia necessarios para prover decentemente ás necessidades de sua familia, que tanto o havia mister.

A fortuna foi-lhe, porém, adversa. Cahiu, quando menos o julgava, e cahiu, para nunca mais se levantar.

Repugnava lhe á sua indole, em extremo ardente, o vêr-se um dia inteiro acorrentado a um balcão, não mirando a outro horisonte, que não fosse o sediço positivismo do-- Deve --e Ha de haver .

Cançado já d'aquelle pandemonio tumultuoso de gelo e de cifras, intentava uma ou outra vez espairecer os olhos lassos de fadiga e semsaboria, levantando um olhar modesto e casto para uma casa fronteira, em cuja janella voejava brandamente uma andorinha gentil.

Foi isto mais que sufficiente para elle ser despedido, ao cabo de alguns mezes, da residencia, onde tão familiarmente havia sido acolhido, logo após a sua chegada.

Assim vagueou incerto, por alguns mezes, bemquisto por uns, odiado por outros, sustentando, a cada passo, uma lucta ingente e dolorosa comsigo proprio; e regressando, mais tarde, á patria com o vivo remorso de nada haver contribuido para o bem estar de seus paes, e de ter ido, além d'isso, semear a desordem e a confusão no seio d'uma familia extranha.

Por isso, mingoado de recursos, apenas chegou a Portugal, Francisco de Castro, não contando mais de trinta annos de edade, resolveu-se a tomar ordens, expiando, com o sacrificio de seus derradeiros dias, uma mocidade, no parecer de muitos, estouvada e febril, que jámais podera olvidar.

Estava elle, um dia, meditando deliciosamente, á sombra de annoso cedro, recolhendo, na sua debilitada imaginação, as sombras longinquas d'esta tragedia estupenda, que se passa entre Deus, o homem e o universo, quando um desconhecido, eventualmente, se acercou d'aquelles sitios!

Era Alberto de Carvalhal!

Movido pela profunda tristeza, que subitamente accommettera Francisco de Castro, e pela curiosidade irrequieta de querer sondar os arcanos d'aquella alma formosa, que bem se deixava entrever na sua fronte generosa e ampla, e n'aquelle seu vulto insinuante e nobre, já curvado ao peso d'uma paixão prematura, e d'um destino atroz, que lhe seccára a seiva da vida, e lhe emmurchecera as flores mais ridentes da sua primavera; Alberto aproximou-se do logar, onde o presbytero se sentára, e prorompeu nos termos seguintes:

--Não sei se, da minha parte, haveria indiscrição, em vir quebrar-lhe este momento de goso ineffavel e placida meditação, accordando-o á triste realidade da vida?! Confio, porém, no perdão da sua generosidade.

--Bem pelo contrario, meu caro. Um amigo é sempre bemvindo, e, se uma ou outra vez nos apraz a solidão, é certo que a sua continuação nos causaria insupportavel tedio. Precisamos d'uma urna depositaria dos nossos segredos; do mesmo modo que a planta carece do orvalho para vicejar e crescer. Sente-se aqui ao meu lado, e assista comigo ao mais pavoroso de todos os espectaculos que só a natureza nos sabe prodigalisar, e que a maioria dos homens, no meio de seu estupido orgulho, olham indifferentes.

Travada, assim, a intimidade entre estes dois corações, que á primeira vista pareciam entender-se bem; facil lhe foi, a Alberto de Carvalhal, que Francisco de Castro lhe narrasse circumstanciadamente os tristes episodios de alguns dos seus dias passados.

Com este alvitre pois, enlaçados pela mutua sympathia, aquelles dois amigos encaminharam-se para casa, onde, depois de terem almoçado jubilosamente, Francisco de Castro, coadjuvado pelo attencioso ardor do seu companheiro, encetou o drama da sua vida com as palavras, que vão ler-se no seguinte capitulo.

III

«Foi por uma tarde serena de abril. Eu, criança ainda, dos meus 13 annos, divagava, triste e solitario pela margem graciosa do meu limpido Vouga, contemplando aquelle espectaculo de mystico enlevo, aquella hora de profundos arrôbos e de gostosa melancholia, em que o Creador mais parece fallar directamente ao coração do homem,--quando, inopinadamente, me pareceu ouvir, a poucos passos do logar onde me encontrara, o estalido rapido e secco d'um instrumento metallico. Em poucos minutos galguei um comoro, que me separava d'aquelle sitio desastroso, encontrando-me face a face com dois personagens, que, muito intencionalmente, tinham escolhido o silencio d'aquella hora para ali virem bater-se n'um duello de morte. Quiz dissuadil-os de similhante proposito: nada consegui.

«Travou-se uma lucta feroz, e, dentro de pouco tempo, um dos adversarios jazia por terra, coberto de pó, e revolvendo-se cruelmente no sangue de suas proprias feridas. Ainda experimentei, uma e muitas vezes, levantar o moribundo, e conduzil-o á primeira guarida, que se me deparasse opportunamente. Tudo foi baldado, porém.

«O outro adversario, apenas viu o contendor prostrado, e sem forças, abandonou o campo, e fugiu. Que fazer, em tal conjunctura? Eu, só, ali, sem uma pessoa unica, que podesse velar por elle. nem sequer uma gotta d'agua para o refrigerar momentaneamente!!

«Felizmente, meia hora não era passada, quando, ao clamor da minha voz, accorreu áquelle logar um trabalhador, que, casualmente, se recolhia a casa. Em poucas palavras, contei-lhe o succedido, convidando-o a que velasse pelo ferido, emquanto eu, açodado, correria á cidade a dar parte do acontecido.

«E assim foi com effeito. Dei-me pressa em correr á visinha povoação. Em vinte minutos estava de volta com dois valentes companheiros para logo o conduzirmos a um logar seguro, como a urgencia do caso nol-o ordenava.

«Sem saber, porém, o nome do individuo, nem tão pouco a sua procedencia, julguei prudente entregal-o ao cuidado d'um desgraçado, mas honrado agricultor, que, de bom grado, o acolheu no seio de sua familia, dispensando-lhe todo o desvelo e sollicitude, que sóe sempre encontrar-se no tugurio do pobre.

«O ferimento não fôra mortal. O cirurgião assistente, apenas decorrido o primeiro mez, para logo o declarara livre de perigo, concedendo-lhe egualmente a liberdade de dar alguns passeios pelos campos e devezas mais proximas, com o intuito de tornar mais rapida a sua convalescença.

«Pouco tempo depois, instaurou-se um processo para proceder a uma averiguação rigorosa sobre aquelle facto lamentavel. No dia aprazado para esse fim fui obrigado a comparecer na audiencia, como testemunha ocular, que, infelizmente, houvera sido.

«E fui pontual, n'esse dia, apparecendo, sem difficuldade no tribunal, onde pouco depois teria de julgar-se um crime de ha muito reprovado pela moral, e pelo direito. Estava impolluta a minha consciencia, não me arguindo de cousa alguma, a não ser o ter eu envidado todos os meus esforços, posto que inuteis, para salvar um desgraçado.

«Por isso, quando me chegou a vez de fallar, contei singela e lealmente o que me fôra licito vêr e presenciar. O juiz figurára-se-me satisfeito com o meu depoimento. A minha má sina, porém, já então me começava a perseguir.

«Após alguns momentos de silencio, e geral expectação, o réu começou a narrar circumstanciadamente tudo o que lhe houvera succedido; vindo eu, finalmente, ao conhecimento de que elle era um mancebo natural de Lisboa, descendente de preclara stirpe, a quem uma paixão violenta, e uma rivalidade sem limites haviam arruinado physica e moralmente.

«Estavam as cousas neste ponto, quando seus olhos, por acaso, se fixaram na minha humilde pessoa. Parecera-me encontrar n'aquelle olhar o quer que era de satanico e sinistro, que me horrorisou até á medulla dos ossos. E, de feito, não me illudi.

«Alguns instantes depois, aquelle individuo, para quem eu fôra o anjo custodio n'um momento de suprema desventura, apontava-me ao publico como um dos principaes cumplices n'aquelle crime; e asseverando até abertamente ter sido o meu desejo immediato o assassinal-o para lhe roubar o pouco que comsigo trouxera, se, por ventura, um transeunte não tivesse ido em seu auxilio, arrancando-o ás minhas mãos.

«D'esta vez a minha indignação tocou o seu zenith. Os olhos chispavam-me fogo; o coração, afogueado em cholera, batia-me apressado e violento. Quiz fallar, mas não pude. A voz prendera-se-me na garganta. Alcei os olhos para o céu, e caí, subitamente accommettido por dolorosa syncope. O que depois d'isto se passou, nem eu o sei, meu amigo.

«Quando, no dia immediato, descerrei as palpebras amortecidas ao astro do dia, encontrei-me isolado, n'uma alcova escura e humida, com uma estreita gelosia apenas, no vão da parede, por onde se coava, a custo, um tenue raio de luz.

«Por informações colhidas posteriormente, concluí ser aquelle o carcere, que, logo após o julgamento, me fôra predestinado para justa expiação do meu delicto. Appellei para a acção da divina Providencia, e soffri resignado o peso da minha cruz.

«Lembrei-me, então, de minha pobre e santa mãe, ralada de desgosto, de meu excellente pae, de meus pequeninos e innocentes irmãos, emfim, de tudo o que me era caro neste mundo, e chorei... chorei... muito...

Neste ponto, o venerando apostolo de Christo, não pôde, por mais tempo, suffocar a sinceridade de seu coração. Levantou-se do escabello, em que se havia sentado, com dois fios de grossas lagrimas a deslisarem-lhe brandamente pelas faces macillentas; e, de subito, alçou a adufa da janella, como se pêso enorme lhe affrontasse a vista. Alberto acompanhou-o n'aquelle movimento convulsivo, auxiliando-o de boa mente a volver as negras paginas do livro fatal da sua vida. Depois, sentaram-se novamente, e Francisco de Castro, fortificado pelas ternas consolações d'um amigo sincero e bom, continuou, mais alentado, a sua historia até ali encetada.

IV

«O desgraçado havia ensandecido. Por isso, reconhecida a verdade do facto, me concederam a liberdade, e me restituiram ao seio da familia. Ainda assim, não havia furtar-me aos olhares perscrutadores e cubiçosos d'aquella gente hypocrita e ridicula da terra.

«Foi, pois, com este intento que meu padrinho, Francisco Marques, homem solteiro e de grandes haveres, se resolveu a persuadir minha mãe, a fim de me deixar embarcar para o Brazil, pretextando ser aquelle o unico meio, não só de me subtrahir ás linguas viperinas, que, a cada passo, intentavam empeçonhar o sanctuario da minha reputação, até ali intacta, senão tambem o caminho mais seguro para alcançar no futuro uma posição certa e definida.

«D'ahi a dois mezes já eu estava no Rio de Janeiro como caixeiro d'uma casa commercial.

«A ingenua hospitalidade, e natural lhaneza, com que ali me tractaram, deixara-me de todo captivo d'aquella sancta e boa gente. Fôra-me, porém, impossivel contrariar a minha natureza, já de si sobejamente expansiva e juvenil, escravisando-a a tão arduo e difficil mister.

«Todavia, a despeito das mil e quasi insuperaveis contrariedades, que então se me antolharam no horisonte da minha vida social, estava intimamente convencido, ainda assim, que a fouce do tempo, roçando ao de leve por sobre os sonhos e illusões da minha mocidade, faria de mim um bom negociante , e um verdadeiro automato das minhas necessidades, sempre crescentes de dia para dia, se um motivo inopinado não viesse, por uma vez, cercear o nó fatal de todas as minhas aspirações no porvir.

«E foi o caso:

«Na rua Direita, onde eu residia, havia dois annos, habitava quasi vis-à-vis de nossa casa, um diplomata de grande nomeada n'aquelle tempo, muito affeiçoado a meus patrões, com quem nutria tambem algumas relações commerciaes.

«Descendente de illustres avoengos, este personagem, pelos seus ademanes e acções, affigurara-se-me, desde a primeira vez que o vi, um senhor feudal da edade-media, no entranhavel rancor e odio feroz, com que olhara sempre os que lhe eram inferiores em categoria e nascimento; ou, por outra, esse bando de mecanicos , que por ahi tropeça a cada canto, especie de bestas de carga,--segundo elle--uteis, apenas, para ludibrio dos grandes e descredito da sociedade.

«Já vê, pois, o meu amigo, quão longe estaria eu de sympathisar com aquelle homem, sinceramente estulto e fatuo, que receiava macular as insignias do seu brazão hereditario, apertando a mão impolluta d'um pobre, mas honrado plebeu. E, no entretanto, a minha má estrella parecia caprichar em me ter escolhido, um monstro d'aquella casta, para meu implacavel algoz.

«Do seu primeiro matrimonio, que elle concebera apenas obtida a elevada posição de embaixador extrangeiro junto á côrte brazileira, houve elle tão sómente uma filha, em quem debalde procurou imprimir o cunho dos seus depravados sentimentos. Amelia era o seu nome.

«Inebriado pela seducção de seu olhar magnetico, e lisongeado pela magia de celestial encanto que me sorria ao longe por entre o anil da minha primavera; eu, atomo insignificante, ousei, um dia, alçar a minha fronte obscura para aquelle astro de divina poesia. Contemplei-o, por longas horas, n'um extasi de ineffavel ventura, e reconheci, alfim, a grandeza e immensidade d'aquelle coração, para quem não fôra indifferente o meu olhar receioso e temerario.

«Porém, entre mim e aquella mulher existia um abysmo incommensuravel; um inferno medonho nos separava. Ella era rica, e nobre; eu era pobre, e plebeu.

«Era, sem duvida, uma attitude dolorosa, aquella, em que inesperadamente nos collocara um caso fortuito, e meramente instinctivo. Todavia, não desanimei, e cedi machinalmente aos impulsos poderosos do meu destino, alentado apenas por uma esperança vaga e indecisa, que me adejava furtiva e longinqua por sobre a orla do meu horisonte.

«Ao tempo em que primeiramente a conheci, Amelia não contava mais de 18 annos de edade, ostentando então toda a formosura e transparencia de seu elevado espirito, n'um rosto profundamente sereno e angelico, onde scintillavam, como esmeraldas, dois olhos verde-negros e seductores, que me deixaram devéras captivo e enleiado.

«Quando, pela primeira vez, fitei a gentileza d'aquella imagem radiante, d'aquelle corpo donairoso e alabastrino, d'aquella mãosinha tão delicada e quasi impalpavel, d'aquelle pésinho de sylphide, d'aquelles cabellos, pretos como azeviche, ondulando naturalmente por sobre os seus hombros de cysne, á mercê da branda e tepida viração do crepusculo; senti-me enlevado em mysticas harmonias; convulso, não pude suster o vôo da minha phantasia. Crêra-me até arrastado no mimo da flor, e na melodia do rouxinol, a um novo mundo; julgara entrever um paraizo, n'essa exuberancia de seiva imaginativa, que produziu em mim um mixto de sentimentos indiziveis e mysteriosos.

«Dir-se-ia uma visão oceanica!

«Amelia, para quem a minha presença fôra de todo indifferente, no principio, começou por me corresponder, dahi a um mez, com um amor apaixonado, e tão verdadeiro como era o meu. E, em verdade, tudo nos corria auspicioso e promettedor. Quasi nos haviamos esquecido d'este mundo, com as suas paixões e odios ruins, para nos extasiarmos perante o desabrochar d'aquella ventura celestial, cujo ambiente nos envolvia n'um deleite imperceptivel.

«Porém, tudo tinha de acabar irremediavelmente; e foi exactamente, quando menos o esperavamos, que o sopro terrivel da realidade nos veio dissipar, n'um momento, todas as doces illusões d'aquelle immenso amor, que nos absorvia, desfolhando-nos, impassivel, todos os sonhos que nos alimentavam o ideal da nossa juventude esperançosa e meiga.

«O diplomata, tendo sido competentemente avisado d'esta nossa mutua affeição, não só me ameaçou logo com toda a casta de doestos e convicios, como tambem o participou immediatamente aos meus patrões, que me despediram, n'esse mesmo dia, com uma desculpa ridicula e alvar.

«Amelia, essa, coitada! teve de luctar, e luctar muito, para arcar com os instinctos ferinos de seu pae, a quem prestes occorreu a idéa nefasta de sacrificar aquella victima innocente a um interesse sordido e vil. Aquelle miseravel concebera a satanica inspiração de vender sua filha a um millionario devasso, que, anteriormente, lhe havia manifestado o desejo de casar um unico filho que possuia com o doce objecto dos meus sonhos sobre a terra,

«Por maiores que fossem as imprecações d'aquelle anjo celeste, allegando a impossibilidade d'uma tal união com um homem, que mal conhecia, e cuja desventura seria infallivel no futuro, não houve, comtudo, resistir-lhe. A resolução, uma vez tomada, tinha de seguir o seu curso violento, ainda através dos mais insuperaveis obstaculos.

«E, de feito, assim succedeu!

«Um mez depois, Amelia, aos olhos do mundo, era legitima esposa do tal millionario. Seu pae havia attingido o auge de gloria e contentamento, julgando ter encontrado a maxima felicidade para sua filha. Era, porém, grande a illusão. E muito callejado, por certo, deveria de estar aquelle homem no vicio, para não resistir ao remorso da sua consciencia, e não conhecer toda a vastidão da sua perfidia e do seu crime.

«Mas esqueçamos esse homem hypocrita e embusteiro, se tanto nos for possivel, de que anda tão colmada esta nossa sociedade, e voltemos a rematar a nossa historia com os ultimos episodios de meus desgraçados dias.

V

«Apenas sahi d'aquella primeira e ultima casa, em que me fôra licito entrar no Rio de Janeiro, nunca mais consegui empregar-me em parte alguma. A minha reputação estava de todo perdida e manchada. Como valer-lhe? d'onde haver recursos, para voltar á patria? Em tal caso, o unico refugio seria, talvez, mendigar de porta em porta um mesquinho ceitil, com que podesse matar a fome que me devorava as entranhas; mas, como o havia de fazer, eu, um homem robusto e apto para trabalhar? quem ousaria acreditar-me, n'aquellas circumstancias? e qual seria o meu denodo para arcar peito a peito com a indignação da sociedade, arrojando-me ás faces os meus erros, e passadas loucuras?!...

«Todas estas interrogações dirigia a mim proprio, apertando, por vezes, entre as mãos convulsas, as minhas faces afogueadas em colera e subito desalento. Procurei repousar o meu corpo abrazado, e não pude. Experimentei distrahir-me, e tudo cri impossivel. Que fazer, pois? Appellar para a acção da divina Providencia; isso seria, além de demasiada temeridade, um puro lazzaronismo . Emfim, nem sei como possa descrever-lhe aquelle momento de suprema angustia, e fatal desesperança?! Só lhe direi que em poucas horas me senti envelhecer, como se já tivesse cincoenta annos de edade.

Oxalá Deus me tivesse chamado a si n'aquelle intervallo de pungente dôr e lucta tenaz!...

«No entretanto, a incredulidade ía-se apossando do meu debilitado espirito, e o cynismo não tardaria, de certo, a vir fazer-lhe companhia; quando senti um clarão de luz banhar-me a furto a minha existencia fallaz.

«N'esse instante, tinha eu recebido um bilhete, concebido nos seguintes termos:

--«Meu caro Francisco.--Espero-te hoje, sem falta, ás 11 horas da noite, junto de minha casa. Sempre a mesma--Amelia.»

«Esperei, pois, por essa hora, caminhando, lentamente, para o logar aprazado. Incitava-me uma curiosidade espantosa, e um desejo violento de poder dizer um derradeiro adeus áquella perola da minha alma.

«Apenas soaram 11 horas nos relogios da cidade, de subito Amelia, surgiu a uma das janellas da casa, acenando-me cautelosamente para que me aproximasse sem receio. Acerquei-me, portanto, d'aquelle logar; porém, oh! meu Deus!... o que vi eu?!... nem quero que tal cousa me lembre! Amelia, tão formosa outr'ora, como estava mudada!... As rosas das faces tinham-se-lhe seccado profundamente; os olhos encovados, e sem brilho; as palpebras apenas se volviam morbidas, e sem significação. Tudo denunciava terrivel cataclysmo, ruina inevitavel!

--«Mandei-te chamar, Francisco, porque me custava desprender d'este mundo, sem me despedir do unico amigo que ainda possuo na terra. Perante o despotismo da força foi cega a minha humilhação, como sabes. Obedecendo a meu pae, julguei cumprir um dever filial, e nada mais. Ao menos ninguem ousará taxar-me de ingrata, nem de insubordinada, creio eu. Agora, consumou-se tudo. A vingança está prestes. Deus, de certo, não me poderá recusar a bemaventurança d'uma outra vida. Os anjos esperam-me no céu, meu amigo, e só lá então poderei encontrar a verdadeira felicidade. Lembra-te sempre da tua Amelia, meu caro, e não percas jámais a esperança da nossa união ante o throno do Altissimo. Tambem imagino bem quantas privações terás passado, meu bom amigo. Não julgues, por acaso, que tenha esquecido a tua dedicação e infortunio, no meio do fausto e esplendor em que vivo. Não; pelo contrario. Desculpa, se antes te não mandei chamar; mas só hoje me foi possivel levantar as algemas de meus pulsos. Agora... adeus... sinto... passos... preciso retirar-me... Lembra-te sempre de mim... Não me esqueças.... por quem és... Toma lá... recebe, agora, a ultima lembrança... da tua querida... E adeus... adeus...

«Amelia retirou-se logo, para dentro, cerrando vagarosamente a janella, como para evitar que alguem a podesse vêr e ouvir. Eu, afastei-me immediatamente d'aquelle logar, suffocado, sem poder articular nem mais uma palavra. Por pouco se me não esvaíram os sentidos.

«Apanhei o pacote que Amelia me pedira para acceitar, como um penhor de reminiscencia das nossas horas venturosas. Abri-o, e encontrei um masso de notas do Banco, que subiam a um valor nada vulgar. Emmudeci, e ajoelhei automaticamente, levantando as mãos aos céus, n'um acto de piedosa contrição. Volvi, depois, a casa, ancioso por dar largas á sinceridade das minhas lagrimas, longo tempo represadas, e ao brado da minha consciencia generosa.

«D'ahi a um mez estava eu no alto mar, em regresso para Portugal.

«Alguns dias, porém, antes de partir, tinha, por acaso, encontrado Amelia, pelo braço de seu respeitavel marido, que me lançou um olhar torvo e sinistro. Foi tambem a primeira vez que o vi, e, valha a verdade, poucas ou nenhumas impressões me deixou. Apenas me recórdo ser elle um homem de estatura elevada, muito magro, tendo um espesso e elegante bigode a cobrir-lhe os labios, naturalmente grossos e rudes. De nada mais me recordo. Hoje, se o visse, estou intimamente convencido, que me seria impossivel conhecel-o.

«Mas, como lhe dizia, desembarquei no Porto a 2 de julho de 1852. Ahi mesmo consegui a minha entrada no seminario episcopal da cidade, d'onde saí, cinco annos mais tarde, já com ordens sacras.

«A despeito de todos os despotismos e ameaças, Amelia continuou a escrever-me todos os paquetes, até que chegou um dia em que deixei de receber noticias suas. Foi isto, cinco mezes depois da minha chegada a este paiz. Soube, finalmente, por carta d'um caixeiro da casa commercial, onde eu estivera, que ella havia succumbido a uma phthisica pulmonar, acompanhada de doloroso soffrimento e pranto acerbo.

«O diplomata, ainda hoje me consagra um odio feroz, attribuindo á minha pessoa toda a origem dos seus males e desgraças. Emquanto a seu genro, nem sei o que lhe terá succedido. Disse-me alguem, ha poucos dias, que elle viera fixar a sua residencia em Portugal. De certeza, porém, nada posso affirmar-lhe.

«Em conclusão, o que bem lhe posso asseverar é que, apezar da grande aversão com que aquelle homem ainda hoje me olha, talvez, eu, pelo contrario, nunca lhe desejei senão o seu bem e completa felicidade. Pois, em verdade, bastava ver n'elle o marido de Amelia, para não poder resistir a um profundo respeito e sincera veneração.

--E que faria hoje a esse homem se, por acaso, o encontrasse?--interrompeu finalmente Alberto de Carvalhal.

--Perdoar-lhe-ia, como expressamente m'o ordenam os preceitos de Christo.

--Ora até que emfim! sou feliz, meu amigo. Deus seja louvado!--exclamou Alberto, cahindo aos pés do padre Francisco de Castro, que debalde procurou sustel-o em seus braços.

Quem era pois Alberto de Carvalhal, já o leitor, de sobejo, o terá imaginado. E a razão por que elle sempre se conservara silencioso, no decurso da triste narrativa do padre Francisco de Castro, facil nos será suppor tambem, por isso mesmo que elle não fazia mais do que ouvir, em parte, a sua propria historia, e chorar nos seus proprios infortunios.

EPILOGO

Dois annos depois Alberto era monge benedictino. Ao cilicio do penitente junctara elle as lagrimas d'um peccador contricto.

O padre Francisco de Castro, ao receber esta nova, que lhe era de tanto prazer e consolação, deu-se pressa em ir abraçar o seu amigo, e, por longo tempo esquecidos, permaneceram nos braços um do outro, extasiados da mutua ventura e jubiloso alvoroço.

A felicidade os acompanhe! Que a gloria do Eterno lhes alente o espirito por entre as lagrimas e abrolhos d'este mundo, e que a certeza d'um beatifico porvir os inicie na practica das grandes virtudes!...

A FATALIDADE E O DESTINO

A FATALIDADE E O DESTINO

Blood will have blood

Shakesp .-- Macbeth.

O sangue pede sangue.

Era por uma d'essas noites tempestuosas e frias do mez de dezembro de 18... O vento soprava rijo e medonho. Lá fóra ouvia-se o rugir da procella. O ribombo do trovão echoava tremendo e severo, como um castigo de Deus. As nuvens, prenhes de electricidade, revolviam os ares, de cada vez mais espessas e rapidas. A natureza parecêra amesquinhar-se, perante o pavoroso espectaculo, que, em breve, teria de representar-se por sobre a superficie da terra.

Tudo cedia, sem remedio, á violencia de tão possante e irresistivel inimigo.

O roble altivo dobrava sua fronte magestosa ao impeto do vendaval raivoso. O cedro rojava-se humilhado ante a sua impotencia e fragil embaraço. No céu mal se destacava o refulgir das estrellas, d'entre a densidade das brumas e trevas espessas. A humanidade, em silencio, parecera adormecida n'um leito de funeral tristeza, e o prazer profundamente engolphado n'um abysmo de terrivel melancholia.

Dir-se-ía a hora de eterna vingança, o dia de suprema verdade!

Em Lisboa, nessa cidade luxuosa e rica, era prolongado o silencio. Apenas o vozear confuso e indistincto d'um ou outro pregoeiro poderia tomar-se, talvez, como um signal de vida e movimento ephemeros, por entre o tumultuar d'aquelle estranho labyrintho.

N'uma pequena e exotica habitação da rua dos Douradores agitava-se violento e apressurado, d'um para outro lado da casa, um vulto alto e nobre, de tez morena, barba preta, longa até ao peito, e com a fronte sulcada de profundas e salientes rugas.

De quando em quando, Lourenço Viegas corria pressuroso pela sala, abria a vidraça da janella, com impeto não vulgar, e observava impaciente aquelle estado de cousas, que refervia, lá por fóra, nas ondas da procella. Depois voltava para dentro, e continuava a passear agitado e trémulo.

N'um dos intervallos, porém, Lourenço caíu quasi automaticamente sobre uma velha cadeira de espaldar, ali existente, unico movel que guarnecia aquelle triste e humilde recinto, e que tivera a dita de escapar á sua espantosa prodigalidade. Após alguns momentos, como se pensamento estranho, de subito, lhe houvesse subjugado a fronte entumecida pelo continuo redemoinhar de idéas, quasi sempre oppostas, puxou por um punhal, que nunca esquecia ao seu lado esquerdo, e colerico arremessou-o para longe de si, sem outro instincto que não fosse o da propria salvação. A lamina de aço fusilou um instante, e foi cravar-se n'uma porta fronteira onde bruxuleava ainda o clarão quasi extincto d'uma candeia, ali cravada. Ao contacto de tão perigoso aggressor a porta estremeceu, e a luz, mal segura, caíu.

Nesse momento estrugiu os ares o latir agudo de enorme rafeiro, inseparavel companheiro d'este nosso Othello em miniatura. Lourenço apenas levantara a cabeça, para tornar a caír n'aquelle mesmo estado de medonha lethargia.

No entretanto a tempestade havia serenado algum tanto. As brumas começavam a dissipar-se no horisonte, e a estrella d'alva rompia bonançosa e feliz.

Lourenço levantou-se então, allumiado ainda pelo continuo e rapido fusilar dos relampagos, e foi arrancar o punhal do logar em que, momentos antes, se tinha cravado. Olhou para elle com a firmeza d'um heróe, e introduziu-o no bolso.

Tu me salvarás!...--dizia elle, empurrando cautelosamente a portinhola d'aquelle cubiculo, que nem já chave possuia. Acompanhava-o o seu-- Terra-Nova .

Mas que iria elle fazer a deshoras da madrugada? Que designio era o seu? Vel-o-hemos mais tarde. Por agora, limitar-nos-hemos a seguir-lhe seus passos incertos, se tal nos aprouver.

Da rua dos Douradores, Lourenço Viegas caminhou até o Caes do Sodré, onde parou junto do Grand Hotel-Central .

--É preciso partirmos já, sem mais demora. Remos ao mar, e nada de hesitações. Vamos a isso. O teu premio está nas minhas mãos.

Isto dizia Lourenço Viegas, dirigindo-se a um desconhecido, que ha muito o esperava n'aquelle mesmo logar.

--Receio muito pelo mar, meu amo. Mas, emfim, uma vez que é da sua vontade, vá lá. A Virgem Nossa Senhora nos acompanhe.

Assim fallava o arraes, saltando, prestes e desempedido, para dentro d'um pequeno escaler, que se vergava submisso sobre as ondas enfurecidas.

Depois de varias e perigosas peripecias, de todo inuteis á curiosidade do leitor, o escaler abicou finalmente á praia de Cacilhas. D'um pulo estava Lourenço em cima do caes, tendo exposto d'antemão ao arraes todo o plano de seus futuros designios.

Vejamos, pois, o que succedeu.

Lourenço subiu apressado a longa e difficultosa encosta, que conduz á villa de Almada, e parou no cimo, lá, onde alveja uma casinha graciosa, rodeada de espesso arvoredo, e fragrancias sem conto.

A um signal convencionado, abriu-se uma das janellas d'aquella airosa e solitaria vivenda, e logo após assomou a ella uma figura de mulher, que mal se destacava ainda por entre as sombras quasi desvanecidas da madrugada.

--Es tu, Lourenço?--perguntou Beatriz n'um tom receioso e baixo.

--Sim, meu anjo, é o teu amante, que te espera. Convém não demorar, de modo algum, a nossa partida. A claridade começa a romper, e os nossos esforços serão frustrados, se não fugirmos antes do dia.

--Então já, meu amigo. Fujamos, emquanto é tempo. Meu pae dorme profundamente, e creio até que ninguem mais véla nesta casa.

Neste comenos, Beatriz atou um lençol á beira da janella, procurando ter nelle um esteio seguro para a sua rapida fuga. Desceu, em seguida, até uma certa altura, em que Lourenço a pôde suster em seus possantes braços, não consentindo, por este modo, que seu pésinho aristocrata tocasse sequer esta terra ingrata e rebelde, que só pisam humildes mortaes.

Momentos depois as pedras da calçada iscavam fogo ao rapido perpassar d'um brioso alazão, que tomara o caminho do caes com celeridade inaudita.

Quem era o cavalleiro, ou antes, quem eram os cavalleiros, já o leitor, de certeza, o terá imaginado. E como Lourenço pôde haver á mão aquelle meio de transporte, facil nos será tambem conjecturar, mormente se nos lembrarmos de que elle havia transmittido, muito antes, as suas ordens ao arraes João.

Apearam-se no caes. Beatriz, quasi desmaiada, dando apenas accôrdo de si, foi conduzida ao escaler nos braços de Lourenço, que a envolveu sollicitamente no seu chale-manta , para evitar que sua melindrosa saude, d'algum modo, se alterasse com os rigores do tempo e intemperies da estação.

O escaler, depois, remou ao largo, e foi atracar a um brigue, que estava ancorado, defronte da torre de Belem, para onde Beatriz foi levada, a custo, com o salutar auxilio de Lourenço Viegas. D'ahi a duas horas já o navio se fazia de véla, com destino para New-York.

Mas, emfim, é tempo de sabermos quem são estes dois personagens,--dir-nos-ha a amavel leitora, já um tanto agrilhoada por desesperadora curiosidade.

Pois tem v. ex.ª muita razão, minha senhora. E para o que vou procurar, desde já, sanar este inconveniente, apresentando, o mais ligeiramente possivel, a photographia dos nossos viajantes.

Lourenço Viegas era bacharel formado em direito pela universidade de Coimbra, e exercia, ha dois annos, um logar de professorado em Lisboa. Procurando debalde obter a mão de sua adorada Beatriz, filha unica do abastado lavrador--José de Brites Lencastre Serrão,--Lourenço resolveu-se, por fim, a sacrificar toda a sua vida e paz de espirito, intentando o rapto d'aquella angelica sabina , em que se estreou evidentemente feliz, como acabámos de vêr.

Beatriz, que, a principio, vacillara em acceitar a temeraria e audaz proposta do eximio professor. não pôde abafar, mais tarde, o grito espontaneo do seu apaixonado coração, consentindo, de boa mente, nos sinistros desejos de tão aleivoso amante.

Eis aqui, pois, como, por uma natural coincidencia, nos foi licito assistir áquelle espectaculo, devéras commovente e fatal para ambos, que, ainda ha pouco, vimos ser representado dentro dos muros da villa de Almada.

Chegado que foi á America, Lourenço procurou logo empregar-se; e conseguiu effectivamente uma posição modesta e decente, sobejamente capaz para antecipar toda e qualquer eventualidade, que, inopinadamente, lhe podesse sobrevir pelo decorrer dos annos.

A saude, porém, não lhe fôra de todo favoravel, sob a influencia d'aquelle clima. Por isso, ao cabo de alguns mezes, jazia elle enfermo, no leito da desgraça e da miseria.

Beatriz bem lhe quiz valer com o seu trabalho, é verdade. Mas, coitada!... como o poderia ella fazer, se todo o tempo lhe era pouco para velar pelo moribundo e saudoso amante?

Portanto, quando Lourenço obteve algumas melhoras, os seus recursos estavam completamente esgotados. Era dolorosa a posição d'aquelle desventurado! As suas forças mal lhe consentiam ainda qualquer genero de trabalho, por menos violento que elle fosse.

Um dia, Beatriz, depois de ter vendido e sacrificado tudo o que possuia de seu, lembrou-se de appellar para a acção da caridade publica, como unico e verdadeiro recurso no extremo d'aquella aterradora indigencia. Lourenço, porém, apenas soube a fatal nova de que os alimentos, que ella lhe ministrava diariamente, com tanta bondade e doçura, eram colhidos de porta em porta, mediante as suas lagrimas e contristante humilhação, não ousou supportal-os por mais tempo.

D'ahi em diante, tudo o que ella podia trazer-lhe para alentar o seu vigor physico e robustez intellectual era arremessado á rua irremessivelmente. Nunca o seu orgulho e independencia poderiam conceder tal baixeza e opprobrio na mulher que elle desejara por esposa. Desde então o tédio começou a apossar-se violentamente de seu angustiado espirito, e Beatriz, a seus olhos, tornara-se um ente desprezivel e vil.

Assim pois, neste estado atrophiante e sensibilisador, pensou elle muitas e longas horas. A loucura parecia dominal-o fortemente. E já não havia valer-lhe, talvez, se, por acaso, uma circumstancia imprevista, o não obrigasse subitamente a abandonar aquella immobilidade e desoladora situação, em que, mau grado seu, o haviam encerrado suas forças e abominavel desesperança.

Por um acaso inexplicavel de manifesta loucura, Lourenço Viegas não pôde mais prolongar a febre vertiginosa, que lhe abrazava a mente enlouquecida: levantou-se de salto, como se o desespero, de subito, lhe houvesse alentado o corpo, enervado pela doença, e aproximou-se de Beatriz, cujos cabellos beijou soffregamente:

--Ao menos, morrerás com o meu amor, anjo bemdito do Senhor!--exclamava elle, afagando-lhe com delirio sua fronte mimosa.

Já não havia remedio, que lhe podesse abrandar o seu feroz instincto. Que valeriam as supplicas da pobre mulher, em face da hediondez d'aquelle tigre asqueroso e repellente,... se, minutos depois, ella tinha de jazer a seus pés, victima expiatoria d'um pensamento infernal?!...

Consummou-se o sacrificio!...

Lourenço, cégo de raiva, sem atinar mesmo com a enormidade do crime, que praticara, deu-se pressa em fugir para longes terras, passando sempre incolume ás mãos da policia vigilante d'aquelle paiz.

Decorridos alguns annos, voltava elle a Portugal, em demazia opulento, para poder grangear quaesquer d'esses titulos ou commendas, que tão malbaratados andam por este nosso malfadado paiz. Onde elle conseguira tão rapida transformação, isso ainda hoje passa como mysterio insondavel para todos os que o conheceram outr'ora pobre e sem meios de vida. Diziam alguns que elle se associara a uma quadrilha de bandidos na America do Sul; outros affirmavam ter sido roubada aquella fortuna a um abastado proprietario, ao serviço do qual elle se conservara por muito tempo.

Em conclusão, o que se sabe ao certo é que, estando elle um dia, muito descançado, pacificamente encostado ao portal de sua casa, respirando docemente as exhalações fragrantes das mil florinhas, que, então, apenas começavam a vegetar, de subito parou junto d'elle um vulto desconhecido, sopeando galhardamente um brioso e folgasão ginete.

--É o sr. Lourenço Viegas a quem tenho a honra de fallar?--dizia o cavalleiro, dirigindo-se para elle com delicadeza e urbanidade.

--Um seu humilde servo,--replicou Lourenço, admirado.

--Pois, sr., saiba que aproveito esta occasião para vir pagar-lhe uma divida antiga, que até hoje não tenho podido satisfazer.

--Uma divida?!... A mim?! Isso ha de ser engano, forçosamente. Creio que v. s.ª nada me deve.

--Pois então saiba mais que me chamo José de Brites Lencastre Serrão, e que tinha uma unica filha chamada Beatriz, a quem um infame assassinou e roubou para sempre aos meus carinhos e affeições.

Palavras não eram ditas, e já Lourenço Viegas caía moribundo no chão com um tiro de bacamarte, que lhe varara o peito de lado a lado.

Lourenço cahiu exclamando:--Mataram-me!... Fez-se a justiça de Deus!...

Quando, algumas horas depois, accorreu a gente da terra áquelle sitio, já elle havia exhalado o ultimo suspiro.

No dia immediato alguns dos seus poucos amigos conseguiram, a grandes rogos, que o parocho da freguezia desse o seu consentimento para elle ser sepultado no adro da igreja.

Hoje a sua lousa jaz quasi ignorada. Algumas florinhas solitarias, que derramam aromas nas horas do crepusculo, ou quando muito um cypreste erguendo-se melancolico e severo, com as côres sombrias e esverdeadas da sua eterna primavera, e uma cruz silenciosa e triste indicando que ali repousam os ossos d'um desgraçado!...

CAMBIANTES DA COMEDIA HUMANA.

CAMBIANTES DA COMEDIA HUMANA
Ao Dr. Antonino José Rodrigues Vidal

CAPITULO I

Henrique IV, perguntando a Gabriella d'Estreés por onde se entrava para o seu quarto, esta respondeu-lhe:--pela porta da egreja. Pela sociedade moderna pode dizer-se que a entrada para o matrimonio é muitas vezes a porta d'um salão onde se dança.

Lopes de Mendonça. -- Scenas e Phantasias.

Um baile!...

Delirio da mocidade! gloria d'um amante! receio das mães! enojo da velhice!...

Um baile!...

Quantas vezes sonhamos, ainda crianças, com aquelle novo mundo ideal e angelico, com aquella visão dulcissima, enlevo de amantes, com aquelle rodopio vertiginoso e inebriante!...

Um baile!...

Mixto de ideas e sentimentos oppostos! Sorrisos e prantos! suspiros e lagrimas! amor e saudade! lyrios e goivos!...

Um baile!...

Desgraça de muitas familias! orphandade de muitos corações! inveja de muitas creaturas!...

Um baile é a photographia da humanidade, assim como o theatro é o espelho da sociedade.

Tem-se dicto muito sobre bailes. Todos lhe reconhecem os perigos, e, todavia, ninguem os evita.

A donzella corre ao precipicio, attrahida pelo canto seductor d'esta implacavel sereia. O mancebo alimenta ali sua phantasia ardente. Os velhos assistem a elles, como meros espectadores, realçando as glorias dos seus tempos, em menospreso das modernas velleidades civilisadoras e progressistas.

Emfim, tudo anceia por um baile; todos rejubilam na sua presença; todos esquecem, por momentos, as ulceras do proprio corpo, para dar largas ás vélas da sua imaginação.

Seja, pois, bemvindo o salão onde teremos de encontrar um dos principaes personagens da narrativa que vamos encetar!...

Estava eu em Fafe, no mez de agosto de 1860. Ali, fugindo ás ardencias do estio e monotonia da cidade, me fui recrear, durante alguns mezes, á sombra d'aquellas viçosas amoreiras, completamente descuidado do bulicio d'este mundo, para a sós comigo me entregar ao prazer de alguns dias serenos e beatifico scismar.

Foi tambem n'uma d'essas occasiões, creio eu, que me foi licito sondar uma das almas mais formosas e um dos genios mais modestos que tenho encontrado em dias de minha vida. Arthur de Campos era realmente um moço affavel e de uma fina educação; bom até ali. Havia um não sei quê de mysterioso e sympathico n'aquelle seu vulto insinuante e bello, que me attraía irresistivelmente para elle.

Para logo, procurei travar relações com o joven provinciano, e de tal modo o consegui, que, dentro de pouco tempo, já vivia nas suas proprias alegrias, e chorava nas suas tristezas. Entre nós a amizade era mais que fraternal. Quasi todos os dias nos juntavamos de manhã, para só nos separarmos ao recolher para casa.

Oh!... com que saudade me não lembra ainda aquelle tempo!... como os dias se deslisavam então brandos e suaves! como era puro o azul do nosso horisonte, e feliz a nossa existencia, juncada pelas rosas do amor, e matizada de flores, que nos enfeitiçavam a mente enlouquecida pelas larvas da phantasia!...

Ás vezes passavamos horas inteiras, um ao pé do outro, sem articularmos uma unica palavra; e, comtudo, os nossos pensamentos pareciam adivinhar-se mutuamente n'aquelles meigos e puros anceios de paz e felicidade.

Um dia, lembra-me ainda como se hoje fôra, eram talvez duas horas da madrugada. A lua, aureolada de mystica luz, campeava no seu eterno throno de magia e formosura. Reinava um silencio sepulchral. Apenas se presentia ao longe o grato arroio, serpeando de mansinho por entre as dispersas arvores, de que as folhas se agitavam frouxas, ao perpassar da fresca brisa da madrugada.

Senão quando veiu ferir-me o meu ouvido vigilante a voz de Arthur, que me chamava de fóra da porta. Corri a elle, curioso por saber o que se teria passado. Nada me disse. Entrou pensativo. para dentro de casa, e sentou-se melancolico e triste.

--Sei quem és, meu amigo; falla francamente, que tens tu, que te aconteceu?...

Elle, comtudo, conservava-se silencioso, sem nada me responder. Eu, por mim, julguei prudente não insistir em tão pertinaz proposito, e aguardei melhor ensejo para esse fim, certo de que elle se não recusaria a revelar-me o seu segredo.

Após alguns momentos, quando o vi sair, sem proferir sequer uma unica palavra, durante o tempo que ali estivera comigo, tive a fatal idéa de o acreditar demente. Para me certificar, porém, da verdade do facto, resolvi seguil-o a todo o transe, commettendo a discrição de me occultar, o mais cautelosamente possivel, atrás da espessura do arvoredo por onde elle tinha de passar irremediavelmente.

Similhante a um reptil, lá me fui arrastando, como pude, por entre o matto e silvedo, que delimitavam o estreito caminho.

Foi então, que sua tímida voz, de envolta, com o perfume do orvalho matutino, me veiu estancar no peito um mysterioso receio. Suas palavras foram tristes, como a solidão da sua alma, pavorosas como os milhares de phantasmas, que lhe voejavam na mente tresloucada. Era assim o monólogo:

--«A sociedade! sempre a sociedade! Maldicta sejas tu, mil vezes maldicta!... E o homem ha de respeitar necessariamente os teus decretos vis, e lisongear a tua hypocrisia infame!

«Triste abjecção!...

«Não sei porque; mas, quando penso nessas sombras pavorosas, que, a cada passo, me enluctam o espirito com as trevas deste mundo, sinto-me enlouquecer terrivelmente. Odeio os homens; abomino o prazer da terra, e não posso de maneira alguma acreditar na idéa d'um Deus infinitamente justo e bom!...

«Muita lagrima, muita miseria e muita vingança: eis devéras a realidade das coisas, eis a sociedade, em toda a sua nudez!

«Nasce a criança, de envolta com o cilicio do soffrimento, para expirar depois no meio de agudas dôres e medonho agonisar!

«Um dia, quando já homem, aproxima-se da mulher, que ama loucamente, e essa mulher, sem pejo, cospe-lhe nas faces a podridão da sua alma corrompida, o veneno absorvido no seio da sociedade, o lodo, a corrupção, a vaidade!...

«E ainda ha quem sonhe no amor d'uma mulher?!...

«Pobre desgraçado, quem quer que tu sejas compadeço-me da tua innocencia. Aprende antes a conhecer esses vermes nauseantes, e não creias jámais nas palavras hypocritas d'uma mulher fementida! Afasta-te, em quanto é tempo, d'essas viboras dolosas, que te podem acarretar a tua eterna ruina, e a degradação da tua dignidade!...»

Não pude ouvil-o por mais tempo. O echo de suas ultimas palavras foi perder-se a distancia nas azas da branda viração d'uma esplendida madrugada de outono.

Retirei-me para casa bastante apprehensivo. De todo me fôra impossivel atinar com a origem de similhante mysterio. Appellei, pois, para o tempo, como melhor mestre e mais efficaz para me elucidar a esse respeito.

Quando me tornei a encontrar com Arthur, d'ahi a algumas horas, já o reconheci mais sereno e agradavel. Affigurou-se-me ver dissipadas as sombras, que pouco antes lhe offuscavam o espirito. Ainda assim, evitei sempre o fallar-lhe sobre coisas, que de algum modo podessem offender o seu melindre e elevados sentimentos. Procurei amigavelmente distrair-lhe os seus pezares e profundas amarguras, mas vi quasi baldados os meus esforços.

No entretanto, o inverno ameaçava ser rigoroso. O mez de novembro principiara frio e insupportavel.

Tudo se transtornara ali, com a chegada da estação invernosa. Aquelles prados e veigas, até então tapetados de verde e flacida alfombra, começavam a inundar-se com as cheias, que os tornavam geralmente intransitaveis. O céu iriado da primavera havia desapparecido, deixando em seu logar um montão de nuvens escuras e temerosas.

Neste comenos, negocios de familia me chamavam a casa, impedindo a continuação da minha residencia n'aquelle encantado paraizo de amor e felicidade. Despedi-me, pois, affectuosamente do meu amigo Arthur, e regressei ao Porto.

Arthur promettera escrever-me d'ahi em diante sem interrupção. Passaram-se, comtudo, oito mezes sem que eu recebesse uma unica carta sua. Quasi o julgara doente, se, porventura, não fôra um amigo d'aquelles sitios, que me disse tel-o encontrado, poucos dias antes, de perfeita saude e invejavel robustez. Dei-me por satisfeito, e de nada mais quiz saber.

Aconteceu, porém, um dia, ser eu convidado para um baile em casa do conselheiro F., por occasião do anniversario natalicio de sua filha Mathilde. Mal teria entrado no salão, quando, cheio de espanto e receioso prazer divisei o meu amigo Arthur de Campos, por entre a multidão de cavalheiros, que se apinhava a uma das portas, para a proxima quadrilha.

Fiquei estupefacto!

Ora vão lá conhecer o mundo,--dizia eu, repetidas vezes a mim mesmo, mal acreditando ainda na realidade do que via. Pois aquelle homem que, ainda ha pouco, amaldiçoava a sociedade, no meio d'um horrivel spleen , que lhe atrophiava a dolorosa existencia; aquelle homem, para quem a mulher não passava d'um espectro hediondo e feroz,--já então não hesitava em se degradar d'aquelle modo, vivendo na sociedade, e procurando até o objecto da sua antiga indignação e odioso desprezo?!...

Pois a isto chama-se-- saber viver e nada mais,--dirão muitos, e digo eu tambem. Lá diz o proverbio:-- Qui ne sait pas feindre, ne sait pas vivre.

Passemos, porém, uma esponja por sobre estas miserias e humanas ninharias, e voltemos ao salão.

Ao meu lado conversava calorosamente um grupo de convidados.

Dizia o primeiro, litterato de grande nomeada na invicta cidade:

--Quem será aquelle joven Lovelace , que traz captivos tantos olhares modestos e apaixonados?...

--Pois, em verdade, ainda não o conheces, meu caro?--retorquia um adestrado Marialva , muito conhecido pelas suas proezas e afamada mestria.--Aquelle sugeito é um provinciano de Fafe, homem de grandes haveres, segundo me dizem, e que vem agora residir para o Porto. É o que em boa sociedade pode chamar-se un homme distingué, un homme à bonnes fortunes .

--Hum!... lá me parecia!...--prorompeu o primeiro. Isso assim é outro cantar. Por isso a filha do nosso conselheiro não descura da sua missão. Olha... que modos aquelles... como ella se quebra toda para lhe agradar... ah! pois não, coitadinha!... Nem a formosa nympha da mythologia, surgindo do seio do Oceano, seria mais bella e tentadora!...

--E bem haja. ella, continuou o segundo. Isto, hoje em dia, mulher esbelta sem dinheiro é o mesmo que um cavallo bonito e manhoso: todos gostam de lhe admirar a estampa, mas ninguem o quer para si.

Emquanto isto assim se passava, Arthur, de longe, pareceu reconhecer-me, e, levantando-se de golpe do logar onde se sentara, ao lado de Mathilde, veiu abraçar-me sem demora.

--Como tu estás gordo e bom, meu caro! Estava longe de te fazer hoje por aqui, dizia elle, apertando-me fraternalmente em seus braços varonis.

--Pois olha, eu a ti muito menos; foi milagre, de certo. Mas conta-me lá: que transformação foi essa tão rapida? Tu, o homem piegas e choramingas de outr'ora, o Heraclito provinciano, a quem nada podia distrair, a não ser uma ou outra pagina do milagroso Werther , appareces-me agora transformado em Democrito feliz e folgasão, catechisando estes corações rebeldes ao teu dominio e absoluto imperio?!...

--Isso é uma longa historia, meu amigo, que para aqui não vem a proposito. A esse respeito tenho muito que te contar. Apparece ámanhã no Hotel Central , quarto n.º 9, e lá fallaremos.

--Está dicto: ámanhã lá me tens, sem falta. Apertámo-nos depois as mãos reciprocamente, e cada um seguiu o seu rumo. Arthur voltou ao salão; eu retirei-me socegadamente ao meu quartel.

CAPITULO II

Amor, és immortal! sorris nas campas!

Goethe .

No dia immediato, á hora aprazada, dirigi-me apressadamente para a rua do Laranjal, conforme haviamos convencionado na vespera.

Seria talvez uma hora da tarde, quando entrei no Hotel Central . Fui assim percorrendo a longa numeração dos quartos, até que se me deparou o mencionado n.º 9, a cuja porta bati duas vezes, sem obter a minima resposta. Á terceira pancada, já conseguira mais alguma coisa, por isso que me soára distinctamente o ranger descompassado d'um leito, e o bocejar monótono d'algum sybarita, que se espreguiçava indolente, qual moderno Sardanapalo. Quasi me julgara illudido no meu humilde proposito, quando ouvi a voz de Arthur, clamando bem alto:

--Olé! quem está ahi? Entre quem é...

Abri a porta, e entrei. Arthur mal havia despertado ainda do contristante lethargo que d'aquelle modo lhe entorpecera seus membros voluptuosos.

--Sim, senhor, muito bem, menino Arthur! isto é que se chama viver, o mais é historia! Olha que lá por fóra já é dia ha muito tempo.

--Ora deixa-me, nem me falles n'isso. Estou perdido, estou morto! Amo uma mulher apaixonadamente.

Ai! Mathilde! Mathilde! o teu olhar foi o demonio, que se introduziu na minha alma. Preciso amar-te. D'ora ávante só quero viver para ti, adorar-te, e chamar-te minha, finalmente. Que nos importarão, então, os prazeres d'este mundo, quando nós, afastados da sua corrupção e miseria, vivermos um só para o outro e nos alimentarmos na innocencia e suave conforto dos nossos corações privilegiados?!...

Ai! Mathilde! meu amor! custe o que custar, tu has de pertencer-me um dia. Embora tenha de arrancar-te aos braços de teu pae, tu serás minha e só minha, doce perola do meu coração!

--Bravo! tudo vai a melhor. Á ultima hora appareces-me metamorphoseado n'um elegante Romeu. Realmente, és um homem singular, um typo sui generis !...

--Sou um homem singular, dizes tu. Não preciso, nem quero comprehender-te. Porque me não vês, como vós outros, verme impotente, rastejando impunemente na podridão das proprias chagas, chamas-me um typo sui generis . Embora! Prouvera a Deus todos assim fossem!...

--Lá por isso não vale zangar, meu amigo. Já vejo que não estás hoje de muito bom humor. Este tempo chuvoso tambem não deixa de ter sua influencia sobre o systema nervoso. Mas, emfim, fallemos n'outra coisa. Quando chegaste de Fafe?

--De Fafe cheguei ha tres dias, e de sobejo têm elles sido para me persuadir a que não devo voltar para lá.

--Não deves voltar para lá?!... Essa é melhor. Então por que?

--Porque já agora aborreço aquella vida solitaria da minha aldeia. Tenciono comprar uma casa, casar-me breve, e continuar a residir aqui. Mas, olha lá, isto devem ser horas de almoço: que me dizes?

--Até de jantar, meu caro: são quasi duas horas da tarde.

--Pois bem, n'esse caso, vou vestir-me quanto antes, e tu almoçarás comigo, como espero.

--Eu?! almoçar a estas horas?! Estás perfeitamente enganado a meu respeito. Eram 7 horas da manhã, já estava fóra de lençoes; ás 8 tinha o almoço digerido; e ás 9 estava na rua a tractar dos meus negocios.

C'est trop fort!... Far-me-has companhia, ao menos, estimulando-me o appetite com dois dedos de succulento cavaco; depois iremos juntos a casa do conselheiro F., onde se me faz mister da tua valiosa protecção.

--Nesse caso, uma vez que me queres para jantar, tomarei a liberdade de ir já confortando as paredes estomacaes, para o que dér e vier.

--Á cautela, tambem t'o aconselho; porque, finalmente sempre é obra que fica feita.

Almoçámos, pois, deliciosamente. Eu de cada vez admirava mais o meu amigo Arthur. Dir-se-ia um ente incomprehensivel, na verdade: ora alegre, ora triste, ora melancolico e sereno, ora folgasão e jovial; emfim, são coisas d'este mundo!

Depois de termos entrouxado duas boas travessas de appetitosas costellelas de porco e ovos, acompanhadas do saboroso e estomacal vinho de Xerez,--saímos ambos, em direcção á rua de Sancta Catharina, onde morava o nosso amigo conselheiro F.

Apenas haviamos subido alguns degraus da escada, cujo andar era habitado pelo conselheiro e sua familia, quando nos soou distinctamente a voz de Mathilde, altercando furiosa com sua irmã Maria. Hesitámos um instante no nosso proposito, e por alguns momentos ficámos perplexos, sem saber o que fazer. Por fim parámos juntos á porta da entrada, a cuja fechadura collámos o ouvido cautelosamente, para assim, invisiveis, melhor podermos assistir áquelle espectaculo de ciumenta fraternidade.

Dizia Malhilde, com as faces inflammadas em colera e subito desespero, accentuando bem as suas palavras, vibradas do intimo do coração:

--Ora a mana sempre é muito invejosa!... que se importa com a vida do sr. Arthur? que tem com elle? nunca o ouviu fallar a seu respeito, nem bem, nem mal, não é assim?... pois então é melhor calar-se, e nunca mais tornar a fallar em tal coisa.

--Sim, sim, tudo isso é muito bonito! eu já sei o que a mana quer: imagina talvez que o sr. Arthur está a distillar de amores pela sua pessoa, e illude-se perfeitamente. Nem elle tinha mais que fazer. Olhe, sabe que mais, é melhor tirar d'ahi o sentido. Ainda d'esta vez não péga a labia, minha senhora...

--Olhe bem a mana, veja lá o que diz; depois não se arrependa, porque pode vir tarde e a más horas. Não estou disposta a aturar as suas creancices por mais tempo. Parece que ainda cheira a coeiros! Que tal está o fedelho! já viram coisa igual?...

Neste ponto, Arthur, vendo que a contenda ia a tomar proporções um pouco serias e assustadoras, julgou do seu dever atalhar quanto antes os funestos resultados, que d'ahi lhe podessem provir. Para isso tocou a campainha, e logo após veiu um criado abrir-nos a porta, convidando-nos a entrar para a proxima saleta.

Entrámos n'uma sala, elegantemente adornada e cuidadosamente disposta. Sentámo-nos n'umas cadeiras de braços, ao acaso, e lançámos mão do primeiro objecto que se nos deparou opportunamente sobre a mesa: era um album , quasi todo manuscripto.

Abrimol-o distraídamente,--passeando a vista, ao mesmo tempo, por aquella multidão de paginas, repletas de centenares de palavas semsabores e sem sentido--quando vimos, no topo da pagina, a seguinte epigraphe:

ILLUSÕES

(Fragmento d'uma poesia inedita)

Á ex. ma sr.ª D. Mathilde

Isto excitou a curiosidade de Arthur, que continuou a lêr em voz alta:

No céu divinal nascida,
Tão querida!...
Entre os homens és rainha!
No teu olhar enlevados,
Pelo encanto avassallados,
Todos suspiram: sê minha!...

De manhã o sol luzente,
Vem ridente!...
A natura illuminar;
Assim tu, com teu fulgôr,
Vens n'um sorriso d'amor
Minha alma purificar!

No céu a estrella ondulante,
Tão brilhante!...
A cada passo é toldada!
Mas tu brilhas sempre pura,
Qual a rosa com frescura
Pelo sol illuminada!...

-- C'est assez!... --exclamou Arthur, contendo um longo abrimento de bocca, e depondo discretamente o album sobre a mesa. É um optimo narcotico para quem precisar d'elle: eu, por mim, declaro, estou satisfeito e mais que satisfeito.

Neste momento entraram na sala as duas filhas do conselheiro, acompanhadas de sua respeitavel mãe.

Trocadas as cortezias do estylo, tornámos a tomar novos logares.

Arthur começou, dizendo que aproveitava aquella occasião para ir agradecer pessoalmente o benevolo acolhimento e fraternal sympathia com que se tinham dignado tractal-o na noite antecedente, confessando-se eternamente grato por todos aquelles obsequios, que tão do intimo lhe tinham sabido prodigalisar, e que elle jámais poderia esquecer em dias de sua vida.

A isto respondeu mui laconicamente a dona da casa, intentando provar-lhe que não tinha feito mais do que cumprir um dever para com os seus hospedes e amigos, que tanto folgava em ver reunidos, como em familia, n'aquellas poucas noites de sancta alegria e jubilosa reminiscencia.

Arthur, por um momento silencioso, continuou logo n'aquelle mesmo estylo parlamentar, com que havia encetado a sua conversação, manifestando igualmente o seu profundo sentimento pela ausencia do conselheiro, a quem desejava fallar urgentemente para tractar d'um negocio importante, cuja solução deveria interessar a toda a familia.

Nesta occasião, confesso, tive um horrivel calafrio. Tractar d'um negocio importante, cuja solução deveria interessar a toda a familia?!...

Nem eu sabia que pensar d'aquellas suas palavras. Pois dar-se-ha o caso, na realidade, que este homem vá pedir a mão de Malhilde, não tendo fallado com ella senão uma vez, ignorando completamente os seus sentimentos e qualidades moraes?!...

Veremos!...--dizia eu a mim mesmo, abrangendo em toda a estreiteza d'esta palavra um raio de esperança no futuro.

Após alguns momentos, como vissemos que não chegava o dono da casa, saímos, promettendo voltar n'essa mesma noite.

Quando depois nos encontrámos, cá fora, ao ar livre, sem haver nenhuma pessoa que podesse espiar os nossos passos, Arthur encarou-me com um olhar furtivo, mixto de susto e alegria, perguntando-me disfarçadamente:

--Então que te parece a minha resolução? Não julgavas, talvez, que fosse tão precipitado nos meus planos; não é assim? Pois olha, eu previra tudo isso, e, todavia, não o pude dissimular. Quiz evitar todos os escolhos, que me podessem sobrevir, no decurso d'esta minha difficil peregrinação, mas cheguei nimiamente tarde. Agora entrego-me á Providencia de alma e coração. O futuro nos dirá o que fôr.

Estas ultimas palavras foram proferidas n'um tom severo e decisivo, e de tal modo, que julguei inutil toda e qualquer replica, que a minha amizade, porventura, podesse suggerir-lhe. Limitei-me apenas a fazer-lhe alguns reparos sobre o casamento, apontando sempre ao futuro, como uma sombra pavorosa, diante da qual elle teria de recuar um dia, se a fatalidade, por acaso, porfiasse em perseguil-o. Elle, pela sua parte, fingiu nada ouvir do que eu lhe dissera, e calou-se.

N'essa mesma noite, o casamento ficara definitivamente tractado, para ter logar dentro em quinze dias, o mais tardar. Esta resolução do moço provinciano propalou-se logo pela cidade, e todos pasmavam ao ouvil-a, acreditando uns na sua realidade, e outros negando-se em acceital-a como verdadeira.

O que é certo é que d'ahi a dez dias os jornaes da localidade registavam nas suas columnas o casamento de Arthur, do modo seguinte:

--«Hontem, pelas 10 horas da manhã, na egreja de Santo Ildefonso, contrairam os sagrados laços matrimoniaes o ex. mo sr. Arthur de Campos e a ex. ma sr.ª D. Mathilde de Andrade Castello Branco, menina de subidos sentimentos e elevadas qualidades. Os ditosos noivos retirar-se-hão brevemente para Lisboa, onde irão passar a lua de mel. D'aqui mesmo lhes enviamos os nossos parabens, fazendo votos pela sua felicidade futura, e eterna união.»

O ideal de Arthur realisara-se, pois, neste mundo. N'aquelle dia tudo lhe sorriu fagueiro e jovial. A primavera tornara a despontar no seu coração, cheia de galas e encantos. A sua imaginação, povoada de tudo quanto ha de mais bello e sublime, neste valle de lagrimas, nada mais enxergara além da existencia presente. O sol da sua felicidade, até então sepultado nas trevas de um desditoso porvir, surgiu emfim magestosamente no horisonte da vida, purpureado de bem vivas côres e rescendentes perfumes.

E, diga-se a verdade, n'aquelle dia, ao menos, Arthur julgou-se feliz, e muito feliz. Por entre as rosas do amor não distinguiu elle os goivos da existencia; através a pureza do seu horisonte de todo lhe fôra impossivel notar a orla sombria e fatidica. Sentiu-se deslumbrado por um não sei quê de vago e mysterioso, que o arrastava involuntariamente para um abysmo tremendo, onde tinha de resvalar mais tarde, a despeito mesmo da sua vida regrada e habitos morigerados.

Por esta occasião memoravel foi servido um lauto banquete em casa do conselheiro F.

Opiparos manjares guarneciam as mesas, rodeadas de amigos e parentes.

N'essa mesma noite houve um baile, esplendidamente servido, e que se prolongou até ás 6 horas da manhã.

Passados que foram tres dias, Arthur partiu para Lisboa, acompanhado de sua esposa e sogro. Ali se demorou tres mezes, ao cabo dos quaes regressou á invicta cidade, mais ditoso ainda do que lhe fôra licito imaginar.

A felicidade, porém, como o destino, tem os seus revezes neste mundo. Um amor excessivo aterra-nos e confunde-nos. Os extremos são sempre anomalias, mais ou menos perigosas, na vida humana.

CAPITULO III

Un groupe de Dalila et de Sanson avec celui de la farouche Judith serait toute la femme expliquée.

Balzac .

Ai! mulheres! mulheres! De todos os mysterios, que Deus ha creado, vós sois o maior d'elles, talvez!...

E quem poderá comprehender-vos, com effeito?!...

A candura do vosso espirito, ao desabrochar das mil chimeras da existencia; a meiguice de um vosso olhar voluptuoso e luxuriante; o feiticeiro encanto de um vosso sorriso, profundamente celestial e angelico; todo o complexo de variegadas côres e mysticas harmonias, que vos envolve e sobrepuja aos outros seres da creação: emfim, todos esses sons dispersos, indefiniveis e atrahentes, constituem em vós um Eden de amor, idealisação sublime, perante a qual todos se julgam impotentes, não sabendo até o meio de resistir-lhe.

Tudo tem o seu contraste, porém!... Não ha pomba sem fel, assim como tambem não ha rosa sem espinhos!

A par de seraphica innocencia existe em vós a ferocidade do tigre; junto á sublimidade do vosso coração tendes a fealdade da hyena!

Profunda e contristante antinomia!!!

O mundo, em seus juizos iniquos, condemna-vos, a cada passo, sem procurar mesmo ouvir as vossas queixas. A sociedade ha muito lançou o stygma fatal sobre a vossa fronte impura. E no meio de tudo isto, todos vos procuram para vos repellirem mais tarde, quando já eivadas das mil miserias e humanas torpezas.

Então ninguem se lembra já que fostes uma mãe desvelada e terna; que amamentastes a vossos peitos a loira criancinha--fructo mimoso do Senhor;--que procurastes imprimir na sua fronte o osculo do amor para o tornar o homem bom e virtuoso, que todos desejam, e por quem a civilisação trabalha sem cessar!

Sim! então, ninguem se recorda que fostes o encantamento do lar domestico, quando filha;--esse typo seductor, visão etherea, que pela sua natural candura, meigo aspecto e divina graça, fazia a felicidade dos paes e o respeito dos extranhos!...

Até mesmo a esposa carinhosa e meiga, que outr'ora illuminava, como um sol de primavera, foi esquecida e amaldiçoada pelos homens;--eclipsou-a a nuvem sombria da civilisação. O Minotauro de Balzac devora as mulheres jovens e bellas, as outras anceiam por serem devoradas por elle.

Ai! mulher!... mulher!... Quanto é sublime a tua missão sobre a terra! Como é soberbo o teu dominio!... Quantas dôres não tens tu mitigado com a protecção do teu magico affecto!... Para quantos infortunios não tens sido o anjo mensageiro, enviado pelo Creador á humanidade!... E haverá ainda alguem, tão estolidamente egoista, que pretenda negar o teu poder?!...

Homem, quem quer que tu sejas, dize-me--que és tu perante as lagrimas de uma mulher?... oh!... mesquinha e louca creatura!... quão ephemera é a a tua natureza!... grão de areia na vastidão do oceano!...

Mulher! Eu respeito as tuas dôres, bemdigo as tuas lagrimas!...

Porém, vai longa a digressão. Voltemos ao fio da nossa historia.

Arthur viera, pois, assentar a sua residencia no Porto, definitivamente. Ali comprou uma linda habitação, ao cimo da rua da Alegria, onde se conservou durante um anno, approximadamente, n'um remanso de paz e socego de espirito, que ameaçava ser eterno.

Não aconteceu, porém, assim. As nuvens iam-se-lhe amontoando gradualmente por sobre o anil do seu horisonte. A procella estava imminente; era terrivel o abysmo!

Acompanhemos o drama.

Arthur, apenas estabelecida a sua morada, e dispostas convenientemente as demais coisas, concernentes a uma boa administração, começou a embriagar-se de tal modo n'aquelles effluvios de amor, que brotavam espontaneos do seio de sua adorada esposa, que se julgou prestes a succumbir de felicidade e bem-estar.

A ventura em demasia conduz-nos a maior parte das vezes a uma dolorosa prostração e fleugmatica indifferença por tudo o que não fôr o objecto das nossas vistas apaixonadas e infantis.

Foi exactamente o que succedeu ao afortunado(?) mancebo. Mathilde tornara-o flexivel a ponto de o converter n'um instrumento pueril de todos os seus caprichos e insaciaveis desejos.

Os bailes multiplicavam-se; os jantares não tinham limites. Emfim, por aquelle andar, tudo tendia, sem remedio, a uma perdição infernal e miseravel corrupção. E a par d'isto tudo, como succede a maior parte das vezes, a reputação de Mathilde corria já empeçonhada e perdida...

O joven provinciano parecera não ter primado demasiadamente na escolha dos seus amigos. Por entre um ou outro coração sincero e bom, d'aquelles que frequentavam a sua casa, surgiram tambem muitas almas corrompidas e devassas. Entre estas, notára-se particularmente um flaneur de bom tom, a quem Arthur dedicára sempre, desde o principio, uma particular predilecção. Chamava-se elle Roberto Guimarães, se bem me recordo.

Roberto Guimarães era um d'estes elegantes da boa sociedade, a quem de resto pareciam sobejar dotes de espirito e faculdades inventivas para se fazer amar por qualquer mulher, egualmente formosa e bella. Trajava pelo ultimo figurino de Paris: o pescoço, vexado em enorme collarinho, que devia medir um palmo, aproximadamente; as pernas enfronhadas em apertada calça, que ameaçava desconjuntar-se a cada movimento; o pé, encaixado n'uma bota de lustroso verniz, obrigando-o a andar em passo de dança por causa dos callos que o molestavam; a luzente cabeça, sepultada em fino chapéu, cuja altura não excedia tres pollegadas. Era sua inseparavel uma badine , em que pegava com o primor do fino janota; frequentava o café Marrare , onde ia discutir a politica do dia.

Com taes predicados, Roberto era acolhido em todos os salões com inaudita anciedade e frenesi espontaneo; em todos elles figurava sempre na primeira plana, prodigalisando com perspicacia nada vulgar os preciosos dotes da sua atilada imaginação e acrisolado saber.

E, digamol-o de passagem, Roberto era uma alma grande e difficil de encontrar entre os homens. Emquanto tivesse dinheiro, não havia ninguem pobre ao pé de si: todos folgavam com a sua alegria.

Amava do mesmo modo todas as mulheres, sem comtudo ter paixão a nenhuma d'ellas. Para elle, a mulher não passava de um objecto, como qualquer outro, que o deleitava simplesmente durante duas ou tres horas por dia, um incentivo para melhor passar o tempo, e mais se rir com alguns amigos intimos entre duas botijas de cognac e appetitoso fiambre.

Com o contacto da sociedade tornara-se cynico. A seus olhos a familia, a religião, a patria, a sociedade não eram mais que meras phantasmagorias--um espectro vil e hediondo!

Não acatava ninguem, nem mesmo as cousas mais sagradas d'este mundo. Era implacavel nos seus juizos.

O boato circulava já nas ruas mais frequentadas da cidade. Aos olhos da sociedade Mathilde escorregara subitamente do sanctuario da moralidade no esterquilinio do vicio e do crime; já não havia valer-lhe.

Choveram, então, cartas anonymas, sem peso nem medida,--o meio mais torpe e tacanho de que se servem algumas pessoas, estribadas impunemente numa amizade insensata e vã, para acarretarem o desgosto e a perturbação ao seio de uma familia, muitas vezes innocente!

Arthur, que a principio não fizera caso de taes bagatellas, intimamente convencido da innocencia de sua esposa,--concluiu finalmente por encarar a sua vida pelo lado peior e mais perverso.

D'ahi em diante não perdeu a expectativa, simulando, comtudo, a maior tranquillidade, e plena confiança em sua mulher.

Um dia levantara-se pelas seis horas da manhã, e, arranjada que foi a sua mala, disse elle a sua mulher que se ausentava por tres dias para fóra da cidade: foi a primeira vez que tal succedeu... Mathilde, algum tanto assustada com tão inesperada resolução, não pôde, todavia, attingir qual o fim d'esta peripecia, que ella estava longe de conceber.

Roberto, aproveitando-se da ausencia do seu amigo Arthur, fôra immediatamente habitar para casa da sua querida amante, a fim de lhe fazer companhia, ao menos durante o apartamento de seu esposo...

Uma noite estavam elles inebriados em mutuo abrasamento, quando, inopinadamente, sentiram abrir-se a porta, de golpe, e entrar por ella o moço provinciano, d'uma pallidez sepulchral e com a fronte inundada d'um suor frio, que lhe devorava a triste existencia. Sustinha um rewolver na mão direita, que lhe fôra impossivel desfechar: tal era a sua situação!

Mathilde caíra desfallecida e exangue. Roberto, aterrorisado, recuou dois passos; depois investiu contra o inimigo, a quem tomou por um braço, e arrancou d'uma especie de torpor em que jazia.

--Medir-nos-hemos no mesmo campo,--vociferou Roberto, como que allucinado e simulando gestos medonhos.

Arthur interrompeu-o por algum tempo, olhando para elle fitamente e exprimindo, talvez, a sua profunda compaixão pelo miseravel que via diante de si.

Em seguida Roberto proseguiu:

--Ámanhã, ás 4 horas da manhã, na praça da Boa-Vista: escolherá as armas e padrinhos, conforme lhe convier: de resto, estou ás suas ordens.

Após esta fatal allocução, Roberto saíu tranquillamente d'aquella casa.

Arthur, apenas recuperados os sentidos, retirou-se egualmente pacifico, como se tivesse assistido a um magnifico espectaculo.

O certo é que Mathilde, quando voltou a si, já não viu mais ninguem no quarto, afora uma velha criada, que velava por ella solicitamente.

No dia immediato, á hora convencionada, Roberto apresentou-se destemidamente na praça da Boa-Vista, aguardando o seu adversario, com quem esperava bater-se n'um duello de morte.

Arthur, porem, não appareceu ali, como era para desejar. Tambem ninguem mais soube do desventurado mancebo. Diziam uns que elle tinha embarcado para Inglaterra, onde se fôra reunir a seu irmão, muito amigo, que negociava em vinhos n'aquelle paiz: outros affirmavam que vivia occulto n'um logar proximo de Lisboa, afim de nunca mais ser visto, nem tão pouco tornar a fallar com sua esposa depravada e falsa.

Mais adiante veremos o que é feito d'elle.

CAPITULO IV

Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe;
Qui sait sous quel fardeau la pauvre âme succombe?...

V. Hugo.

Caíu o anjo bom, ficou o anjo mau!

Já não havia valer-lhe, á triste victima. A quéda foi tanto mais fatal, quanto mais audacioso tinha sido o vôo a que loucamente se arrojara.

Dentro de pouco tempo, Mathilde ganhara o desprezo da sociedade. Seu pae havia succumbido a tão dolorosa crise. Arthur retirara comsigo a sua protecção e o seu dinheiro.

No meio do esplendor e louçanias d'este mundo tudo nos sorri prospero e seductor. Não faltam amigos; multiplicam-se os parentes. Vem depois o phantasma da tristeza, o espectro da desventura, e a victima, odiada por todos, á beira do abysmo, terá, apenas, a Providencia por unico e derradeiro recurso.

Nada mais verdadeiro. É assim a nossa sociedade: ataviada de galas no exterior, e contaminada de podridão no intimo.

Por algum tempo, Roberto continuou ainda a dispensar os seus disvelos e favores áquella desgraçada mulher; preparou-lhe uma pequena habitação, a alguma distancia da cidade, e lá conseguiu encarceral-a, durante algum tempo.

Commettido o crime, o primeiro cuidado do malfeitor é occultal-o, sem demora, aos olhos dos seus similhantes. As trevas fogem da luz; o sol odeia a noite.

Isto, porém, foi de pouca dura: com a saciedade veiu o odio, com o odio o abandono.

Mathilde ficou só no mundo, sósinha, com as suas lagrimas, com a sua dôr, com a sua miseria! E que poderia ella fazer, coitadinha!... Depois de ter empenhado e vendido tudo o que possuia de mais valor, vexada de si mesmo, com a febre do desespero, amaldiçoou o sol que a aquecia, e foi procurar na sombra o refrigerio á sua alma attribulada.

A sociedade cavou-lhe o sepulchro, e soltou uma gargalhada estulta e perfida! O homem covarde esmagou o verme impotente, e tripudiou incolume sobre todos os sentimentos e qualidades moraes! A materia venceu o espirito! a força bruta subjugou o movimento!...

Hontem censurámos em Malhilde a mulher social; hoje podemos e devemos justifical-a, sem que n'isto sejamos contradictorios.

E, de feito, o que era aquella mulher, senão uma d'essas desgraçadas, a quem a sociedade havia enxovalhado com a lama do desprezo, sujeitando-a a mercadejar o melhor dote que Deus lhe concedera--a honra?! Era uma d'essas mulheres estouvadas, no sentir de muitos, que, zombando de tudo, tambem ousam profanar com mãos sacrilegas o sanctuario do pudor e da virgindade, contribuindo assim para a sua inteira ruina e completa perdição!

E no entretanto, esses são os homens bons , que mais tarde fingem não reconhecer a victima de seus nefastos interesses, lançando o escarro do desdem na sua passagem. São estes os homens bons , que, longe de alliviar o pobre com uma esmola, filha de um nobre coração, pelo contrario, tropeçam impunemente nas suas chagas, ennodoando-as com a baba asquerosa do seu orgulho!...

Assim decorreram alguns annos. Mathilde, a mulher perdida, lá foi encontrar n'um prostibulo a expiação severa e ardua d'uma falta injusta, embora toleravel. O holocausto começara então; devia de ser bem negro o seu fim.

A aridez do deserto, depressa a superou, a triste romeira. As difficuldades foram-se-lhe tornando habituaes de dia para dia. O seu halito alcoolisado captivara a attenção de muita gente.

O corpo, já de si pestilente, transformara-se repentinamente em podridão nauseante. Ao longe, pairava o corvo, immundo e contente, por sobre as exhalações infectas d'aquelle charco putrido, aguardando occasião opportuna para cevar ali a sua espantosa avidez.

E assim aconteceu, realmente. Um dia, atravessava indifferentemente as ruas da cidade um camponez, levando um caixão ás costas. Dirigia-se para o Prado do Repouso ! Lá o lançaram para uma cova, e com elle os restos mortaes d'uma mulher desditosa.

A terra occultava uma infeliz no seu seio obscuro; os homens acolhiam no seu gremio um leproso vil e incuravel!...

Nem uma lagrima! nem um suspiro! nem um ai compassivo!...

Roberto, ao saber do funebre passamento de Mathilde, neste mundo, limitou-se muito ingenuamente a vomitar uma bafurada de fumo de seu enorme cachimbo, acompanhada de sinistra gargalhada!

E melhor foi assim, talvez!...

A mulher ludibriada havia desapparecido para sempre de sobre a superficie da terra! Era tempo de procurar outra victima!...

Rejubilae, satrapas da corrupção e da licença! erguei as cabeças, parasitas ignobeis!...

Vinte, trinta ou quarenta mortes, que importa tudo isso, uma vez que nós vivamos contentes e satisfeitos?!...

Arda muito embora o universo! De que vale essa triste ninharia, se as chammas mesmo de leve nos não tocarem?!...

Neros do egoismo! preparae a vossa argilla immunda! A hora soará uma vez, e os vossos cadaveres, por seu turno, agitar-se-hão ensanguentados ao longo das vossas miserias e villanias!...

No entretanto, em quanto as coisas assim se passavam, Arthur regressara finalmente á patria, após uma longa viagem, que havia emprehendido á Inglaterra, com o intuito provavel de recuperar no estrangeiro a ventura, que lhe fôra impossivel encontrar no meio d'aquelles que mais amava e queria. Quem o visse, depois da sua chegada, passear as ruas do Porto n'uma perfeita serenidade de espirito e jovialidade quasi espontanea, que tão peculiares se tornavam ao seu caracter indifferente e generoso--reputal-o-hia, á primeira vista, um homem feliz, sem receio de errar.

As grandes commoções variam de individuo, segundo a diversidade de circumstancias que as podem originar. A desgraça de Mathilde convertêra-se n'um manancial de felicidade para Arthur. O homem, aviltado por um amor insensato, reconheceu, alfim, a sua dignidade, e ergueu a cabeça, cheia de luz e esplendor. O holocausto de sua mulher resgatára-o para a vida e para o mundo.

Antes assim!

Após esta grande evolução do espirito humano, a transformação operára-se rapida e completa. Apagaram-se odios ruins; deslembraram-se velhos rancores.

O esquecimento da victima e o cynismo tornavam dois homens ditosos sobre a terra, em quanto o céo acolhia, talvez, no seu seio uma peccadora arrependida, e regenerada pelo amor e pela virtude!

E de facto, Mathilde, quando se viu assim ludibriada, e afastada da sociedade, chorou muitas lagrimas de arrependimento sincero, derramou nas trevas muita perola occulta, tragou até ás fezes o absintho d'aquella taça denegrida e empestada pela sociedade, a que alguns muito erradamente chamavam vida. Vida! para aquelles que a não conheceram outr'ora opulenta e a trasbordar de pura seiva vital!... Vida, sim, mil vezes terrivel e amargurada!...

Antes o inferno, a solidão, o abandono, a inercia, do que o sacrificio de tão ignobil vegetação!...

Agora, é tempo de terminarmos a nossa historia. Fica ao arbitrio de cada um, o ajuizar da bondade ou maldade da nossa heroina. Nem isso nos causará assombro. Para nós, Mathilde symbolisa uma perfeita imagem da mulher actual; nem mais nem menos.

Arthur foi, pois, despejadamente abraçar o seu amigo Roberto Guimarães, que de muito bom grado o acolheu em sua casa, cheio de gaudio ingente, e espontaneidade feliz. Congraçaram-se as duas velleidades; o veneno amalgamou-se com a peçonha n'um grosseiro deleterio; o piar do mocho agoureiro contrastou singularmente com a avidez do abutre esfaimado!

Fazia-se mister uma occasião opportuna, a fim de cada um poder expandir convenientemente os seus sentimentos.

É o que vamos ver.

O moço provinciano, já a este tempo purificado no cadinho d'uma civilisação depravada e falsa, foi readquirindo as suas antigas relações. Os seus salões continuaram a estar patentes a todos os velhos amigos e parentes. O seu nome tornara-se sobejamente conhecido no paiz. A sua fortuna augmentara consideravelmente com a ida á Inglaterra. Não lhe faltavam paes, que o desejassem ver bem collocado no seio de suas familias.

E o certo é que as circumstancias se combinaram de tal modo, que, dentro de pouco tempo, Arthur de Campos fôra feito barão de... E era justo, com effeito; tinha dinheiro: ao menos podia contribuir para a prosperidade do paiz.

A riqueza rehabilitou o homem covarde, perante as cataractas d'uma sociedade meia em dissolução. É assim que vemos muitas vezes a virtude supplantada, e o egoismo triumphante e victorioso!...

Tudo isto, porém, era pouco ainda, ante o glorioso porvir que lhe estava reservado. O baronato metamorphoseara o nosso provinciano a ponto de lhe incutir no animo um acervo de sentimentos depravados e baixos, de uma certa aristocracia ignara, que por ahi tropeça a cada canto.

Feito barão, o seu primeiro cuidado foi escolher uma mulher da alta sociedade, que lhe lisongeasse devéras o paladar, já de si delicado e corrupto. Para isso procurou elle unir-se em segundas nupcias com a filha d'um acreditado visconde, que ainda hoje reside em Lisboa.

De resto, nada mais é notorio, a não ser que o sr. barão de... emprehendeu, ainda ha pouco, uma nova viagem ao estrangeiro, em companhia de sua amavel esposa, com quem dizem gosar perfeita felicidade e verdadeira união.

A reparação, embora tardia, não foi intempestiva. Possa, ao menos, a Providencia prolongar-lhes os dias da sua ventura e do seu amor!...

Presentemente, de toda a familia do conselheiro F. existe apenas Maria, irmã de Mathilde, que nós encontrámos no principio d'esta narrativa. Vive do seu trabalho e das suas lagrimas, porque, segundo a tradição mais geralmente seguida, a sua reputação tambem não corre isenta de grandes manchas.

Emfim, é desculpavel o seu erro: quando a necessidade entra pela porta, a virtude sae pela janella.

Consta que Roberto lhe estabelecera uma mesada nada inferior, a fim de lhe minorar as suas penas, e restabelecer, talvez, a tranquillidade da sua consciencia!

Emquanto a este mal-intencionado cavalheiro, nada temos a accrescentar, senão que continúa a ser o mesmo homem, e sel-o-ha sempre!...

Ce qui a été, sera ,--dizia Eugenio Huzar....

Agora, leitor amigo, é occasião de me dirigir a ti. Desculpa o auctor d'estes Cambiantes , e continúa sempre a ver n'elles uma imagem fiel da comedia humana !

ESTRELLAS E NUVENS

ESTRELLAS E NUVENS

Vou contar um romancinho de amores,--amores singelos, amores de aldeia.

É tão simples a nossa historia, como a verdade que encerra; tão natural, como um sorriso de gentil criança; tão candida, como a pombinha do deserto.

Ouvi-a, por uma noite de julho, sentado á margem de saudoso regato.

Foi uma hora solemne: um momento augusto e santo!

A brisa, de envolta com o perfume da noite, foi segredal-a ás florinhas do vergel, e estas enviaram-na ao céo.

Na terra repercutiu-se o côro dos anjos, lamentando a desditosa sorte de seus adorados irmãos.

Por um momento, eclipsou-se o brilho das estrellas; deixou de reflectir-se a lua no seu espelho de prata.

As avesinhas não tiveram gorgeios; cessou a viração no seu curso veloz.

Silencio sepulchral! sublime idyllio! magestoso quadro!

Falta-nos o pincel de Corregio; não possuimos os thesouros de Petrarcha, nem tão pouco a eloquencia de Demosthenes.

E é pena, na verdade!...

Cada apostolo tem a sua missão a cumprir sobre a terra.

Sublimar a desventura, prantear a miseria do mundo:--nada mais grandioso, e tão sinceramente edificante!

É uma evangelisação despretenciosa e nobre.

Choremos, corações ternos; choremos e choremos muito; não tenhamos pejo de assim fazer.

Levantemos os olhos ao céo; e, com a fronte descoberta, ouçamos a funebre narrativa de dois mancebos desventurados!...


Quem não conheceu Maria, a flor das lavadeiras?

Quem não repararia n'aquelle formoso cherubim, que, ao sol posto, ia todo engrinaldado de rosas e lyrios, encher o seu cantarosinho de barro á fonte da terra?...

Oh!... de certo ninguem poderia esquecer tão promptamente a linda morena, o anjo bemdito?!...

Não sabe, leitor amigo, não se lembra já d'aquella casinha terrea, silenciosamente circumdada de festões e madre-silvas, que existe em Cintra, lá para as bandas do Castello?...

Pois olhe, ahi mesmo nasceu aquella rolinha; lá, coitadinha! desferiu aos echos a innocente lenda de seus amores; e, por fim, lá agonisou tambem, sem que ninguem désse por ella, nem tão pouco imaginasse soccorrel-a.

Pobre desgraçada!...

E não saber eu mais cedo a sua historia!...


O prazer, como tudo o que é ephemero, tem seus encantos: as lagrimas tambem os têm.

Maria, mui prasenteira e jovial, vira um dia Gregorio, que a esperava, junto da fonte, sempre á mesma hora: de subito, annuviou-se aquelle rosto, profundamente celestial e gentil; contraíram-se-lhe os musculos da face.

O amor havia penetrado em sua alma!

Desde esse momento nunca mais se tornou a divisar um raio de esperança e consolação n'aquelle horisonte, outr'ora tão limpido e sereno.

E Gregorio, o pobre lavrador, lá se foi triste e pensativo, caminho da aldeia, sem outra idéa que não fosse Maria, sem outro scismar que não fosse a felicidade.

E tinha razão!...

Era joven! Tinha aspirações!...


Assim decorreram dois annos,--dois annos, cheios de muita esperança, e entrecortados por afflictivos suspiros!...

Gregorio era tão ambicioso!...

O amor é muitas vezes caprichoso e louco!...

E quem o havia de imaginar?!...

Gregorio queria ser rico; queria ver a sua amada, reclinada n'um throno de esmeraldas!...

Entre as flores queria vel-a rainha! entre os anjos seraphim! entre as mulheres magestade!

E com esta idéa, e com o demonio da ambição, lá se foi elle a longes terras, em cata de grandes haveres!

E a pobre Maria ficou só, sósinha com as suas lagrimas!...

Ao menos... tinha esperança!...


Ai! como é triste e pavorosa a ausencia d'aquelles que amamos!...

Pobre Maria!...

Que saudades se lhe não avivaram na mente enlouquecida!...

Gregorio tinha partido, havia dez annos, sem dar noticias suas!...

Teria naufragado o triste Gregorio?...

Porem não, não era possivel!

Maria queria tornal-o a vêr junto de si.

Uma Virgem não abandona a supplica d'outra virgem!

Mas, apezar de tudo isso, a rosa ía emmurchecendo a olhos vistos.

De dia para dia se desfolhava uma pétala, seccava uma folha, até que, por fim, caíu de todo a haste, vergada apenas pela branda viração do crepusculo!

O resto... levou-o o vento!...


Eram passados tres mezes.

Quem observasse attentamente aquella pousada, onde estivera aninhada, por tantos annos, a terna andorinha, deveria reconhecel-a desguarnecida, e quasi em ruinas.

Um vulto, trajado de preto, percorria aquelles restos sem cessar.

Era Gregorio, o pobre lavrador, que havia voltado rico, com o unico fim de tornar Maria venturosa sobre a terra.

Chegara, porem, tarde o manná do Senhor!...

Um mez, mais tarde, ao lado do tumulo de Maria existia outro, egualmente modesto e lugubre.

Gregorio, tomado de incuravel loucura, depois de haver arrojado toda a sua fortuna a um abysmo, por elle cavado, para que ninguem mais a podesse descobrir e gosar, foi por si mesmo procurar n'aquelle precipicio uma morte desastrosa e terrivel!

O mais... só Deos o sabe!...

Á BEIRA-MAR

Á BEIRA-MAR

Por uma tarde calmosa de estio passeava eu distrahidamente á beira-mar, sorvendo o doce aroma, que emanava das auras celeres e vaporosas, compondo milhares de prismas seductores e phantasticos, ao som lúgubre das vagas altisonantes, que se escoavam languidas por sobre a fulva, resplandecente areia,--quando, inopinadamente, vi surgir do seio do oceano um longo objecto, informe e opaco. Aproximei-me da superficie do mar, esperando que este, no seu incessante impeto, o arrojasse á praia. Effectivamente, dentro de pouco tempo, examinava nas minhas mãos uma enorme garrafa, de amplo bôjo, que, a todos os respeitos, me parecera ter sido um echo disperso de algum naufragio recente. E não me enganei, com effeito. Abri-a, com todo o cuidado, e lá encontrei o curioso manuscripto, que vou hoje reproduzir textualmente, por o julgar digno d'isso.

É a vida d'um homem audacioso, encerrada no verbo da ambição, e sanctificada no prestigio da gloria!...


É possivel, minha mãe, que tenha esquecido o seu querido Ernesto? Dar-se-ha o caso, por ventura, que haja apagado na sua memoria a imagem da loura criancinha, que a fazia sorrir tão docemente n'aquellas horas de profunda tristeza, quando, cheia de virginal ternura e temeroso receio, pranteava na solidão a morte de meu chorado, bondoso pae?...

Oh!... não, não é possivel, mil vezes não!...

Pois bem, se assim é, se ainda vives, meiga visão da minha alma, ouve pela derradeira vez as palavras de teu desditoso filho, que de certo terá deixado de existir ao tempo em que receberes estas linhas, e sanctifica a sua desventura, n'este mundo, com a prece angustiada do teu coração atribulado.

Nada mais te peço, nem tão pouco ambiciono!

Desfolhou-se a ultima, sentida saudade da minha existencia: acolhe-a em teu seio; aquece-a muitas e repetidas vezes junto de teu peito, e acceita na pobre florinha emmurchecida o triste Evangelho da minha vida desventurada!...

I

Ambição! é um sonho, uma phantasia, um enthusiasmo, uma centelha divina!...

Sonho de gloria, phantasia. povoada de innumeras chimeras, enthusiasmo heroico e magnanimo, centelha do céo, que prende os homens ás grandes emprezas, e arrojados commettimentos, arco-íris deslumbrante, no mundo das idéas e dos factos, tudo emfim!...

Ambição e gloria são os dois elos extremos d'essa cadeia indissoluvel chamada humanidade.

A mocidade é uma ambição sem limites.

Ter ambição é aspirar: um aspirar de continuo para a luz, para a vida, para o amor, para a virtude!...

Era dominado por estes e outros pensamentos, que eu muitas vezes sentia o vacuo da minha acanhada existencia; espraiava então, com avidez incalculavel, meus olhos inconstantes por sobre uma extensa clareira, que orlava um vastissimo pinhal, e lá, muito ao longe, por entre o verde negro da sua espessa ramada, descobria o quer que era de vago e reflexivo, que me seduzia instinctivamente.

Era o meu sonho quotidiano!

E tantas vezes se repetiram estas illusões, tornou-se tão frequente este somnambulismo das minhas faculdades, que prestes reconheci a necessidade de obedecer-lhe cega e fatalmente.

Cortar o espaço e o tempo,--voar, voar e voar muito!--tal era a idéa, que me dominava!

Em meio, porem, d'este magnetismo attrahente, vertiginoso, indizivel, languido, vaporoso, sentia eu um fio dourado, que me prendia á terra, um echo longinquo e salutar, que tentava acordar-me á realidade do mundo.

Era a doce voz de Therezinha, que me chamava,--era o anjo do amor, que estendia sobre mim suas candidas e mirificas azas de velludo.

Indescriptivel collisão! fadado momento!

Sem embargo, a minha aurora resplandecia-me no horisonte do futuro; acenava-me de longe a estrella do Senhor. Era necessario partir.

II

Eu amava a liberdade; precisava de escolher um paiz livre!

A republica era o meu ideal!

A ave, que se agita nos ares, é livre em face do Creador Omnipotente; o homem pode e deve ser livre perante a lei,--imagem da justiça divina, lançada ao meio das sociedades actualmente existentes.

A existencia é a liberdade; o tumulo é o despotismo!

Livre é a flor, quando envia aos céos o aroma de suas douradas pétalas; a brisa é livre, quando beija o lyrio; é livre o passarinho, quando em haste vergada festeja o doce idyllio do crepusculo; é livre a humanidade, quando bafejada pelo sopro divinal das grandes idéas e sublimes principios!...

Por entre todas as nações do universo, a America sorria-me grandemente ditosa. Washington era para mim um planeta, aureolado de mystica luz; Franklin o seu majestoso satellite.

Um dia, quando menos o julgara, estava a milhões de passos da minha terra natal.

Singrei vastos mares.

E quantas vezes, minha mãe, veiu o teu doce anhelo contornar uma consoladora esperança em meu espirito perturbado! Oh! e quantas vezes, mimosa Therezinha, me veiu a tua imagem afagar o meu scismador enlevo! E como tu eras bella, então!...

Queres saber--nas horas da bonança, quando o nosso barco deslisava muito de mansinho, ao de leve, por sobre o crystal sempre agitado do oceano, em guisa de quem receia ser ouvido pelos milhares de espectadores, que se nos antolhavam n'aquelles raros momentos de inebriantes arrobos e mysticas harmonias,--eu imaginava ver-te entre nuvens, radiante de fulgor ingente, cingida a fronte alabastrina de rosas purpurinas, lyrios prateados, meigas violetas, opulentas camelias!

Depois vinha o desfazer das chimeras, e eu, a trasbordar de enthusiasmo, dizia de mim para mim:--«Ao menos, se um dia alcançar o que desejo, verei para sempre minha pobre mãe feliz, ao pé de mim, e Therezinha será o meu anjo custodio!

E vês tu, minha mãe, todos estes quadros se me desenhavam n'esta imaginação incendiada, quando ouvi subitamente a maruja no tombadilho levantar um brado compassivo e clamorosas imprecações.

Agitei-me violentamente, e corri ao logar do sinistro!

III

É medonho, causa horror uma tempestade sobre o alto mar!

O vento sibilava, agudo e frio, por entre as enxarcias do navio. A embarcação rangia lugubremente no seu movimento vagoroso e desegual.

Era o mez de dezembro, aspero, severo, rigoroso!

Os membros confrangiam-se-nos, ao encarar tão luctuoso espectaculo; vacillava a imaginação, e a fé entibiava-se-nos poderosamente.

--Lastro ao mar!--gritava o capitão n'um tom rouquenho e cavernoso.

--Amaina, amaina essa escota!

E todos nós trabalhavamos com phrenesi espontaneo, e celeridade inaudita. A tripulação, quasi toda nua, era incansavel no seu incessante labutar. Não se ouvia uma queixa, um ruído sequer. Todos denunciavam o mais vigoroso esforço, a mais acrisolada virtude.

Apenas existia ali uma mulher com dois filhinhos achegados ao peito, que soltava de quando em quando um estridente e doloroso gemido, até que por fim cahiu de todo desfallecida. Era tamanho o perigo, que nenhum de nós ousou soccorrel-a em tão espinhosa attitude.

Pobre mãe! coitadinha!...

O vendaval abysmara-nos n'um precipicio inevitavel!

Todas as nossas diligencias sahiram frustradas; em vão foram as nossas orações!

Dois escaleres desceram ao mar; dividiu-se a gente do navio entre elles de tal modo, que cada um comportasse doze pessoas.

Depressa nos separámos uns dos outros, impellidos pelo vento, pela agua, pelo mar, pela força, emfim!...

Depois de muilo remar, muito luctar, muito soffrer, extenuados, exhaustos, sem vigor, sem alento, abordámos, finalmente, a uma ilha completamente desconhecida, que existe lá para as bandas do norte da America. Para ali nos rojámos nús sobre a fria areia, onde adormecemos poucos momentos depois: tal era a nossa debilidade!

No dia immediato, de seis companheiros, que haviamos escapado ás garras d'aquelle inquebrantavel tigre--chamado oceano,--apenas appareci eu, preso de pés e mãos, e rodeado d'um grande numero de selvagens, todos armados de settas e outras armas de egual quilate.

N'aquelle momento, receei muito pela vida; julgara-me entre gente anthropophaga!

IV

Como a espuma do mar, impellida de praia em praia, assim se desvaneceram as minhas illusões ephemeras!

Reivindiquei para mim os direitos de homem livre, e tive a felicidade de ser bem acolhido no meio d'aquella gente inculta e rudemente educada. Eu era o monarcha d'aquellas solidões; amado, respeitado, e, mais que tudo, sinceramente incensado pelo thuribulo augusto dos mais atilados engenhos, que então nobilitavam aquellas ignotas paragens.

Um lampejo de felicidade, porem, é sempre acompanhado de atro penar e funesto mal-estar. Em redor d'um planeta faustuoso gravitam myriades de assoladoras estrellas.

Erin era um portento de formosura indiana: olhar escandecente e fatal, cinzelado por longa e avelludada pestana; o seu collo de perolas occultava-se debaixo d'uma farta e sumptuosa madeixa, que a tornava sobremodo angelica e donairosa; a cintura quasi se eclipsava, estreitada em esplendente faixa de valioso tecido; o gracioso pé, adelgaçado por eburneas sandalias, seria a inveja d'um cherubim. Dir-se-hia toda a opulencia do oriente ali profusamente derramada. E, além d'isto, animo varonil, imaginação de fogo, effervescencia de sangue nas veias; até a vegetação tropical parecera concentrar-se n'aquelle todo de luz e calor: a vida borbulhava de continuo n'aquelle pobre coração.

O vime fôra tão fragil, que não podéra ceder á violencia do tufão!

Erin amava-me com ardor. Era inextinguivel o incendio que lhe inundava a fronte, já de si escaldada pelos impetos d'uma paixão vulcanica.

A minha posição tornara-me sobretudo ridiculo. Nem sequer me occorreu um leve palliativo para attenuar aquelle manancial perenne de bons sentimentos e lisongeiro pensar.

Acima de tudo isto, porem, conservava ainda na memoria a imagem de Therezinha, os meus juramentos contrahidos, os meus protestos no porvir. Mentir assim á minha consciencia, doestar o meu pundonor, com tamanha aleivosia e escarneo da minha propria dignidade,--isso seria, além de tudo, um sacrilegio inaudito.

Conservei-me inabalavel á sinceridade das suas supplicas, aos seus rogos, ás suas lagrimas: tudo desprezei. Não havia demover-me de semelhante proposito.

V

No entretanto a pyra fumegava já em larga extensão, e a hydra do ciume não tardaria de certo a levantar as suas cem igneas cabeças, para me esmagar e opprimir.

Dois annos de negro scismar e indifferente convivencia não foram ainda sufficientes para cicatrizar as ulceras d'aquelle extenuado corpinho e abençoado thesouro.

Erin tinha esperança de subjugar de vez o inimigo: melindrosa era a sua tarefa, e... quem sabe?... talvez inutil.

Após muitos e infructuosos assaltos, o baluarte conservara-se inexpugnavel. Tornara-se mister um derradeiro e definitivo recurso.

Um dia estava eu sinceramente absorto na contemplação d'uma agigantada palmeira, que se erguia altiva junto do meu silencioso casebre, procurando lêr, em cada uma d'aquellas espalmadas, longas folhas, o verbo omnipotente do Creador, e de seus esplendentes attributos,--quando vi a doce pallidez de Erin, estranhamente retratada na reverberação que produzia o sol, por entre as suas ondulações e constante sombrear. As contracções do rosto, o seu andar morbido e inconstante, o pestanejar de continuo e violento, a resolução impetuosa de seus braços,--tudo prenunciava tremenda catastrophe.

Entrou, rojou-se tragicamente a meus pés, e rompeu nas seguintes dolorosas imprecações:

--«Falle, diga-me agora aqui, porque me não ama? qual a razão por que me despreza? Ah! sim, comprehendo: sou pobre de mais, talvez, para saciar a sua medonha ambição; repugnam-lhe as minhas acções, não é assim? causa-lhe tedio olhar para mim! Oh! Coitado! Vai cessar o seu tormento; descance, jámais tentarei embargar-lhe os passos; termina, emfim, o meu aviltamento! A mulher vilipendiada vai desapparecer para sempre d'este mundo, em face de seu despotico amante! Derradeira gloria d'uma desgraçada!»

Neste ponto Erin, n'um acto de inabalavel resolução, descobriu seu ávido seio com a feroz menção de n'elle cravar um agudo punhal, que conservava energicamente apertado em sua pequenina mão.

Cresceu de ponto o meu denodo, que até ali havia permanecido impassivel ás suas palavras e lagrimas represas. Consegui arrancar-lhe o punhal das mãos e abrandar-lhe a sanha, que a devorava. Ella, vendo assim frustrados os seus esforços, cahiu em dolorosa prostração, sem dar accôrdo de si.

VI

A mulher, que, esteiada na propria natureza, não pode captivar, recorre, por ultimo, ao artificio, como meio mais proprio e decoroso de attingir o seu fim.

Erin não podera abafar as luctas intimas do espirito. Devia de ser bem penoso o seu tormento! Ver esphacelar-se uma a uma as fibras mais intimas do coração; sentir o gottejar acerbo do gêlo da descrença e da iniquidade; viver tanto tempo atrelada ao pelourinho da ignominia, sem outro apêgo ás cousas d'este mundo, que não fosse um amor honesto, virtuoso, sublime,... contemplar, por longos annos, a lividez do proprio cadaver, arquejante, nervosa, moribunda!--que triste e grandioso luctar! que doloroso soffrimento!...

Como todas as mulheres, quando não vêem o seu amor egualmente correspondido, a joven indiana tocou o auge do desespero, da raiva, do odio, da vingança!

Estava preparada a victima; restava apenas o sacrificio!

No meio da minha virtuosa indifferença, mal julgara eu a dura sorte, que me estava reservada no futuro.

Erin aproveitou logo a occasião, que se lhe deparou mais opportuna, a fim de melhor e mais satisfactoriamente pôr em pratica um trama cavillosamente urdido e astuciosamente antecipado.

Sem dar treguas á sanha, que a dominava, entrou uma noite em minha casa, offegante, colérica, e nimiamente impaciente. Procurou mais uma vez convencer-me do seu amor, almejou ferir-me com o punhal da sua tyrannia, e tudo foi baldado: por ultimo quiz ver se despertava em mim a sensualidade pelos seus artificios, meneios e donairosos requebros, pela voluptuosidade do seu olhar ardente e libidinoso, resumindo, em fim, n'uma palavra, por tudo aquillo, de que uma mulher é capaz para excitar um amante profundamente amortecido, e glacialmente cynico.

Assim, pois, reconhecida e evidenciada a inutilidade de seus esforços, tomou ella uma derradeira deliberação, em nada somenos áquellas já por si anteriormente experimentadas. Com os cabellos desgrenhados, as faces afogueadas em colérico desespero, em andrajos, quasi núa, alucinada, doida, perdida, deu um pulo para fóra da porta, e começou a uivar, como uma fera, implorando soccorro, declarando-se deshonrada, para d'este modo provocar a morte d'um innocente, occultando a fealdade do seu crime!

VII

Erin fôra evidentemente feliz no seu audacioso plano. Indiciado no crime, que foi geralmente acreditado, reuniram-se immediatamente os magnates da terra para deliberarem em commum sobre qual fosse a pena, que me deveria ser applicada.

Eu, encerrado na minha choupana, apenas sentia o borborinho d'aquella multidão selvagem, já de ha muito conglobada em redor da minha habitação, com sinistro intento e feroz vozear.

Ao cabo de algumas horas fui manietado e cautelosamente conduzido a um largo terreiro, onde costumavam suppliciar-se os inimigos, atando-os a um vetusto tronco, que expressamente ali existia para esse fim, e lançando-se-lhes depois as chammas aos corpos; as proprias cinzas eram arremessadas ao rio.

Comprehendi, desde logo, todo o alcance da minha injusta condemnação, e senti o gelido suor da campa a trespassar-me vagarosamente os membros do corpo. As lagrimas escaldaram-me as faces crestadas pelo ardôr da indignação; o desalento surgia a meus olhos com toda a hediondez de suas negras côres.

A Providencia, porem, houve por bem fazer-me a justiça de que era merecedor, enviando-me sagazmente o meu anjo custodio, o libertador das minhas agonias e soffrimentos.

Poucos dias antes de tão estranho successo, acontecera ter ancorado, defronte d'aquella ilha, por falta de munições, um navio inglez, que se destinava para os portos da America do Norte. O capitão, homem corajoso e profundamente temerario, sabendo, casualmente, que a minha proxima execução ia ter logar, não duvidou assaltar a ilhota, durante a noite, para me livrar das mãos dos meus detestaveis algozes.

Travou-se uma encarniçada peleja. Houve muitas mortes, e ferimentos de parte a parte. O capitão alcançou a palma da victoria, no meio d'um esplendido triumpho, e eu recuperei a minha liberdade, sendo levado para bordo do navio.

No dia seguinte a embarcação levantou ferro; e nós, propiciados por fresca viração, seguimos viagem para New-York.

VIII

O acaso, o destino ou a fatalidade, levaram-me, finalmente, ao paiz da minha predilecção. Após longos annos de pacifico luctar e de evangelica resignação, foi-me dado livre ingresso nas terras do Colombo. Julgara ter attingido o zenith da felicidade e do bem-estar. Affigurou-se-me a entrada no paraizo, com as suas mil venturas, e delicias sem conto. Tal era a loucura, que me dominava!

As apparencias podem illudir o homem, por algum tempo; e feliz d'aquelle que as puder conservar. A realidade é negra como a noite. O desfolhar das illusões, o emmurchecer d'esse pequeno numero de florinhas solitarias, que, raras vezes, vegetam em redor da nossa alma, marca para a humanidade a crise mais tempestuosa e violenta,--o tremendo contraste entre a saudade e a esperança,--o sorrir da mocidade e as convulsões da velhice!

Suprema e eterna verdade!

O coração da juventude é um formoso, esplendido ninho, majestosamente entretecido de mil variegadas côres, onde se acoitam as mais ternas avesinhas do céo. A senectude, por seu turno, apresenta esse ninho desfiado, solto, disperso, e os passarinhos voando alegremente em cata de mais inspiradoras paragens. O mancebo, vivificado pelos raios da aurora, contempla o porvir, cheio de gaudio ingente; o velho, por entre as lagrimas da sua edade, olha o passado e entristece-se lugubremente... A primavera sorri-nos no berço infantil; o outomno vem, ainda mais, denegrir a algidez tumular!

A minha vida agitava-se alternadamente entre estes dois pólos distinctos e independentes. Cheguei a New-York, radiante de bellas aspirações e fulgurantes idéas. Procurei empregar-me honestamente: tudo consegui, sem difficuldade. O meu genio voluvel, porem, impellia-me constantemente para fóra d'aquella esphera, onde o trabalho se remunerava tarde e mal.

Dentro de pouco tempo, agrilhoado por uma ambição sem limites, e, mais que tudo, profundamente vulnerado pelo demonio do egoismo, tinha eu roubado o meu senhor, fugindo logo, espavorido e temeroso, para uma selva distante, onde procurei refugio entre uma quadrilha de bandidos, que, desde muito, ali haviam assentado a sua tenda de pilhagem e de nocturno assassinato.

IX

Por muitos e longos annos durou a minha nefanda peregrinação n'aquelle terrivel deserto, onde não penetrava sequer um raio do sol. Occultos, durante o dia pela espessura do arvoredo,--aguardavamos tristemente o silencio da noite para dar largas á nossa voracidade famelica. Então, não passava pessoa alguma, por aquellas solidões tenebrosas, em quem não procurassemos, desde logo, embeber a esponja corrosiva do veneno e da maldição,--o cutello do algoz e do malvado.

Aviltante e funesta condição a minha! A principio o remorso levantava-se irado contra tamanhas torpezas e monstruosas infamias. Mais tarde a minha alma, já de si callejada no erro e no crime, nada mais quiz ouvir; empallideceu terrivelmente nas trévas, e nunca até hoje tornou a guiar os passos incertos da minha vida depravada.

Nada mais pungente e superiormente bestial do que locupletar-se um individuo qualquer com o ouro roubado aos seus semelhantes. O trabalho honesto nobilita o seu auctor. Procurar illicitamente um interesse, que nos não pertence, isso, além de ignominiosamente villão, toca ainda as balizas da perfidia.--Não ha necessidade que só de per si possa abonar satisfactoriamente semelhante corrupção e baixeza d'animo!

A despeito de tudo isto, porém, não duvidei iniciar os dias da minha vida social em tão rude aprendizagem e degradante profissão. E bem cruel me foi esse engano!

Dentro em poucos dias, do esterquilinio do vicio e da maldição havia eu passado, rapida e insensivelmente, para o fundo de medonha enxovia. A justiça humana, no seu incessante vôo, não despegara a vista do desgraçado cadaver, que, ainda no recondito de arida floresta, lampejava chispas de fogo amedrontador.

E tudo foi bem assim!

Ao vêr cerrar-se sobre mim a solitaria porta do carcere, que rangia lugubremente nos seus enormes gonzos de ferro, senti um movimento involuntario e repulsivo, e tive o pavor de quem vê seu peito ferozmente esmagado pelo duro pé do inimigo victorioso!

Então veiu a sacratissima imagem de minha mãe dulcificar-me o amargor da desventura. Lembrei-me de Therezinha. Erin, a bella indiana, de quem nunca mais tivera noticias, calou-me no espirito não sei que indefinivel sentimento, que me fazia antever uma felicidade duradoura, se, por acaso, não houvesse desprezado o seu immenso amor para comigo.

X

Ao penetrar na escuridão do ergastulo julgara ter encontrado o meu epitaphio, assignalado, com letras de bronze, sobre a lousa sepulchral, que se me antolhava n'aquelle extenso e terrivel horizonte. Illudira-me, porém, o meu juizo. Havia-me Deus predestinado neste mundo para grandes e temerarias emprezas.

Por mero acaso, acontecera um dia ter eu lançado as mãos a um varão de ferro, que me interceptava a passagem para um longo claustro, por onde se me tornava facil a sahida para a rua. Recobrei alento, e não foram frustradas as minhas esperanças.

Coadjuvado por antigos companheiros, que haviam escapado milagrosamente ás garras da humana justiça, e com quem eu continuava ainda a nutrir relações de camaradagem,--púde aproveitar o silencio d'uma longa e tempestuosa noite de inverno para os fins a que me propunha.

Fui feliz no meu arrojado commettimento. Ás occultas consegui embarcar em um navio inglez, que se fazia de véla para a Europa.

Assim, no espaço de pouco tempo, abandonei o paiz dos meus sonhos tristemente desfolhados aos ventos do infortunio e de medonhas calamidades. E o certo é que, se não vinha tão rico, como de principio o havia imaginado, pelo menos trazia meios sufficientes para viver em Portugal, como capitalista de modesta apparencia.

Tudo isso se desfez, porém, ante a maxima desventura, que, neste instante, me aguarda terrivelmente.

A nossa embarcação jaz nas alturas da ilha de S. Vicente. O estado do mar é deveras assolador; não ha meio de resistir-lhe. Naufragio inevitavel! Estão talhadas as nossas mortalhas. Já a morte nos sorri satanicamente por entre a negra agitação do oceano. Lucta infernal! Que diabolico tufão! Meu Deus! meu Deus! Angustiadas lagrimas, sentidos suspiros, supplicas sinceras, fervorosas orações!... tudo em vão!... Não ha duvida: seremos devorados irremessivelmente pela sanha do mar! Que profundo abysmo nos espera! Como a esperança nos é ainda meigo amparo nesta hora extrema e funebre! E como estamos todos profundamente unidos pelo mesmo pensamento, pelo mesmo amor! Oh! Só Deus é infinitamente justo e bom! Emfim, estão lavradas as nossas sentenças! A redempção do céu, essa, só de ti a poderei supplicar, que decerto não deixarás de interceder na terra pelo descanço de teu desditoso filho. E adeus,... adeus,... para todo o sempre!... Uma sentida saudade para Therezinha, o anjo immaculado dos meus sonhos!... adeus... adeus!...


Eis o conteúdo d'este interessante manuscripto, no fim do qual estava assignado Ernesto, e era dirigido laconicamente a Maria dos Anjos, moradora no Porto, aos Clerigos. Após longas e infructuosas pesquizas, consegui saber que Maria dos Anjos era fallecida, tendo instituido por universal herdeira de seus bens a Therezinha, hoje noviça no convento de Arouca. Para lá foi remettida esta preciosa reliquia, e com ella a infeliz herança de seu esperançoso noivado. Por certo não faltariam lagrimas de bem viva saudade a orvalhar aquelle extremo legado d'um coração diluido nas grandes luctas d'um amor infindo e de constante tenacidade!

Antes assim!

UM DIA DE NOIVADO

UM DIA DE NOIVADO
A F. Simões Margiochi Junior

Ahi! null'altro che pianto al mondo dura!

Petrarcha.

Ai! neste mundo só as lagrimas não têm termo!

Cantae, ternos passarinhos; voae, mariposas gentis!

É dia de noivado!

Rejubile a natureza; reviva, resplandeça a festa!...

Folgam, auras indiscretas, nos choupaes e nos silvedos! Tudo acode, sem delonga, ao banquete dos bemaventurados! A aldeia exulta de vivaz festejo! É vivo o reboliço: grinaldas de flores, perolas e diamantes, tudo, á porfia, deslumbra os convivas!

Que doce aroma! que suave fragrancia!

Alada visão, fiel mensageiro do homem--o amor,--conforta o desgraçado e sorri á opulencia. Expellem-se os cuidados, apavoram-se os temores, rejuvenesce a humanidade!

Dia de solemne bemaventurança!--eu quero colorir teu quadro ingente, juncar de variegadas côres teu sólo matizado!...


A nove kilometros de Aveiro existe a pittoresca villa de Eixo. É uma deliciosa povoação! O Vouga espraia ali mansamente suas limpidas aguas, formando como que um vasto lençol, por entre os formosos salgueiraes, que lhe servem de margem e curiosa graciosidade!

Ha um não sei quê de vago e sympathico nos seus ignotos caminhos, tão cheios de divina poesia e magica formosura, que nos seduz instinctivamente. Em todos os paizes ha d'estas pequenas povoações, mais ou menos dilectas do povo, e que parecem ter sido apontadas adrede para a representação dos grandes dramas da humanidade. E esta foi realmente uma d'ellas, como abaixo veremos!

Ha de haver dez annos, Eixo trajava de galas. A solidão transformara-se subitamente em meigo theatro de harmonia e saudade. Os habitantes como que resuscitavam do seu antigo marasmo. Desvaneciam-se as trevas do sepulchro, perante o vivo esplendor d'uma aurora deslumbrante!

Era um dia de festa, emfim, dia de noivado, sancto alvoroço, candida alegria!

Fernando, o moço querido da terra, esposara Luiza, a joven e sympathica aldeã. E foi devéras uma suprema abnegação aquelle divino enlace! Fernando possuia a riqueza do espirito e a riqueza do dinheiro.

Era uma joia!

Luiza, essa, coitadinha! limitava seus parcos cabedaes á rara e quasi esquecida opulencia dos grandes sentimentos e vivas impressões. Amava com ardente intensidade.

Era uma perola!

Fernando era tão amado, tão louvado! Ai! Senhor! que thesouro aquelle!...

Na sua frequente passagem pelas ruas da villa, os lavradores descobriam-se respeitosamente. Depois lá se ficavam longos momentos a scismar, até que por fim! diziam elles de si para si:--Pombinha sem fel!--e seguiam o seu rumo.

Luiza grangeára a piedosa dedicação das suas patricias. Era em extremo philantropica: e de muitas conseguira ella até a sincera veneração de santinha, que realmente era.

Quando, por acaso, se fallava em Luiza áquella pobre gente d'aldeia, esta retorquia logo com vivo interesse:--Ai! a Luizinha! a noiva do sr. Fernandinho! isso é mesmo um anjo, meu senhor! E elle, que bondade, que ternura! É mesmo ouro sobre azul!...

Imagine-se pois, que mago fulgor não irradiariam aquellas duas ternas creaturinhas, ao estreitarem seus amorosos corações pelos vinculos indissoluveis do matrimonio!...

Que sancta alliança aquella, meu Deus! Que innocente festa não ia pela villa!...

Tudo folgava, tudo amava, tudo vivia!...

Apenas o mancebo sahira da egreja, levando sua angelica esposa pelo braço, immediatamente, d'aquelle enorme conjuncto de povo, apinhado em massa pelas ruas da villa, para assistir ao brilhante cortejo, rompeu a mais solemne acclamação, o mais enthusiastico viva.

Fernando respondia com lagrimas, que symbolisavam o enthusiasmo e a gratidão. Luiza, pela sua parte, julgara-se guindada a um paraizo de fadas, onde a vida se assemelha ao grato arroio escoando-se de mansinho por entre as mil verduras e fragrancias da natureza.

Porém surgíra a noite, e suas sombras temerosas, até ali occultas pelo brilho das luzes, invadiram a mesma área, que, horas antes, fôra povoada pelos raios diamantinos de mago encantamento e verdadeiro prazer!

No dia immediato ao do seu noivado Fernando despertára triste e pezaroso; isolára-se voluntariamente de sua esposa, e apparecêra envolvido em profundo meditar. Os éstos da sua primitiva alegria haviam-se-lhe convertido medonhamente n'um oceano de torturas. Os sons melodiosos da orchestra nupcial eram agora para elle um motivo de pungente agonia e de atroz supplicio. Silvavam-lhe no cerebro as negras viboras da loucura. Era forçoso afastar de si o vil e gélido phantasma, que o perseguia sem cessar.

Assim se passaram muitos e longos dias. Todos indagavam sollicitamente a causa de tão inesperada catastrophe, de tão cruel agitação; e, todavia, ninguem ousava responder, ninguem proferia sequer uma palavra.

Fernando corria todas as tardes os sitios reconditos da villa. Com os cabellos eriçados, a lividez nas faces, o olhar scintillante, as mãos nervosas, os punhos sempre cerrados, lá se ia o pobre doido, o desgraçado moço--para quem a fortuna fôra um sonho fallaz de alguns momentos apenas--a conversar com as arvores, que tanta vez lhe ouviram seus queixumes de amor,--a ralhar com o placido regato, que o atormentava ferozmente,--a rir-se, emfim, de si mesmo, da descompostura do seu trajo, das suas palavras!...

E era tremenda e pavorosa a sua gargalhada!...

Luiza conquistára, a par da sciencia do amor, a sciencia da resignação: por isso vivia, e supportava o agudo espinho, que lhe trespassava o coração.

Um dia, em que intentara approximar-se de seu marido, este repellira energicamente sua mão, e, sem dó nem piedade fugira para longe de suas caricias e afagos!

Estavam as cousas neste ponto, quando Fernando foi accommettido d'um delirio mais violento e doloroso. A sua constante monomania, o seu desejo incessante, era assassinar todas as mulheres, que, por acaso, encontrava. Tornou-se mister o auxilio de toda aquella gente, para o encerrar cautelosamente n'um quarto subterraneo, onde lhe era ministrada a comida, que mal provava.

No auge da loucura, conheceu-se, então, a causa do seu infortunio, por alguns poucos monólogos, que elle soltava de quando a quando, taes como este:

--«Ser eu feliz, alegre, bom, docil; amar uma mulher ternamente, com a intensidade d'um seraphim; e vêr-me tristemente illudido por esse demonio maldito!... Oh!... por Deus! nem pensar n'isso!...

«E aquella vibora, aquella Lui... i...--Ai! Senhor! Senhor! seja o seu nome para sempre esquecido!--a ostentar tamanho pudor, tamanha virgindade e honestidade, e tudo com o hypocrito fim de me amortalhar covardemente!...

«E toda a gente a acreditava piamente; sim! todo o mundo, até eu!...

«Eterna maldição sobre o desgraçado, que foi procurar na mulher, que escolhera para esposa, a deshonra da sua propria familia!...

«Ha! Ha! Ha!...

E n'isto o desventurado moço soltava uma cynica gargalhada!

Frequentemente repetia elle o nome de sua esposa, uma e muitas vezes; e logo após, n'um acto de medonho desespero, chorando desabridamente, arrancava de si um punhado de cabellos ensanguentados, e rojava-se no lagedo do carcere.

E eram bem tristes as suas lagrimas, bem acerbo o seu pranto!

Pobre Fernando! Quem não teria pena de ti?!...

Um anno decorrido exactamente desde o dia em que se havia festejado o noivado de Fernando e Luiza,--pelas ruas da pequena e triste povoação seguia compassadamente um funebre prestito.

O doido havia cessado de existir n'aquella madrugada!...

Mal julgara aquella gente, que tivera ido brindar tão esplendido noivado--que tão cedo havia de acompanhar o cadaver do sympathico Fernando á sua derradeira morada!

É assim o infortunio d'este mundo!...

A corôa de grinaldas, essa desfizera-a o vento desapiedadamente! Hoje só restam corôas de perpetuas, e alguns goivos tristemente derramados sobre a ignota lousa do desditoso mancebo!

Luiza vive resignada, e lá vae lavrando quotidianamente o epitaphio, que ha de guarnecer a lage sepulchral de seu marido, com as sinceras e ardentes lagrimas da saudade e do arrependimento! Aguarda pacientemente a hora da sua partida para ir fruir no céo aquillo que lhe foi vedado na terra!

Deus é compassivo, e de certo não olvidará a sua redempção celeste!...

FIM.

Obras do mesmo auctor:

EM VIA DE PUBLICAÇÃO

A Actualidade , estudo economico social.
A Morte do Poeta , scena em verso.