Title : A Invenção do Dia Claro
Author : José de Almada Negreiros
Release date
: September 29, 2007 [eBook #22801]
Most recently updated: January 3, 2021
Language : Portuguese
Original publication : Lisbôa Olisipo, Apartado 154, 1921
Credits : Produced by Vasco Salgado
Produced by Vasco Salgado
[Nota do Transcritor: Aqui surge a assinatura do autor.]
Escripta de uma só maneira para todas as espécies de orgulho, seguida das démarches para a Invenção e acompanhada das confidencias mais intimas e geraes.
Ensaios para a iniciação de portuguezes na revelação da pintura
Com um retrato do autor por elle-proprio
primeiro milhar
1921
Rimbaud
[Nota do Transcritor: Aqui surge o retrato do autor por ele próprio.]
Entrei numa livraria. Puz-me a contar os livros que ha para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.
* * * * *
Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a sciencia que trata da vida; era justamente do que eu necessitava—pôr sciencia na minha vida.
Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada.
Disseram-me que era necessario estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo á imagem e semelhança de Deus. Não basta?
* * * * *
Imaginava eu que havía tratados da vida das pessoas, como ha tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que ha para os animaes domesticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que ha!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como ha hostias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hostia. Um livro pequenino, com duas paginas, como uma hostia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.
* * * * *
Não achas, Mãe? Por exemplo. Ha um cão vadio, sujo e com fome, cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter fome. Até as crianças já lhe fazem festas.
Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si—não saber cuidar de si é ser cão.
Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!
* * * * *
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma arvore! quando ha uma arvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!
* * * * *
Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar.
Como o livro, as pessoas tinham principio, meio e fim. A principio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada do livro de me ter estendido a mão.
Talvez que nos outros livros… mas os titulos dos livros são como os nomes das pessoas—não quere dizer nada, é só para não se confundir…
* * * * *
Na montra estava um livro chamado «O lial conselheiro». Escrito antigamente por um Rei dos Portuguezes! Escrito de uma só maneira para todas as especies de seus vassalos!
Bemdito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quere que eu seja Mestre!
Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim: «O lial conselheiro»! Não achas, Mãe?
O Mestre escreveu o que sabia—por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção. Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros tambem. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres—era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.
* * * * *
Sonhei com um paíz onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha á escuta do universo; em seguida, fabricava desde a materia prima o papel onde ia assentando as confidencias que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chócos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da arvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
* * * * *
Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa—salvar a humanidade.
—O pequeno é como o grande.
—O que está em cima é analogo ao que está em baixo.
—O interior é como o exterior das coisas.
—Tudo está em tudo.
Minhas Senhoras e meus Senhores:
Mulheres e homens são as duas metades da humanidade—a metade masculina e a metade feminina.
Ha coisas inteiras feitas de duas metades e aonde não se pode cortar ao meio para separar essas duas metades. Exemplo: a humanidade com a metade masculina e a metade feminina. São duas metades que deixam, cada uma, de ser uma metade se não houver a outra metade.
A linha que passa por entre estas duas metades é parecidissima com o ar por dentro de uma esponja do mar, sêca.
Lembro-me de uma oleografia que havia em minha casa. A oleografia estava cheia de amarello do Deserto. O amarello do Deserto era mais comprido do que a vida de um homem se não fôsse o galope do cavallo onde o arabe rapta a menina loira.
Na oleografia havia uma palmeira. A palmeira era tão pequena como a esmeralda do anel da menina loira. A palmeira era assim tão pequena porque estava muitissimo longe.
Era em direcção à palmeira que ía a correr o cavallo.
Havia outra oleografia quando já tinham chegado à sombra da palmeira. O cavallo estava como morto por terra. O arabe, êsse, ainda nunca tinha estado cançado—tinha a menina loira nos braços, como a esmeralda estava no anel.
Eram trez as oleografias. Na terceira oleografia estava sósinha a menina loira a dar de mamar a um menino verdadeiro.
Estas trez oleografias explicam muito bem como se pode ser senhora e como se deve ser homem. As senhoras como a menina loira. Os homens como o arabe.
Um homem—saber raptar; uma senhora—merecer ser raptada.
Exemplo de homem que soube raptar: o arabe. Exemplo de senhora que mereceu ser raptada: a menina loira da oleografia.
Ser o arabe para desencantar a menina loira; ser a menina loira para que haja o arabe.
Mas não fallêmos sem alicerces. Nós não estamos algúres.
Nós estamos aqui dentro d'esta sala, onde eu estou a dizer a conferencia—o chão, o tecto, e quatro paredes. Vocês e eu.
Para nos orientarmos melhor, aqui onde estou fica sendo o
Norte, lá no fundo da sala o Sul, Éste ali e Oéste d'aquelle lado.
Que isto fique assim bem combinado entre nós, de tal maneira que, quando eu chamar Sul aqui ao logar onde estou, vocês se levantem, protestem, e digam que não, que o Sul é lá no fundo da sala.
O preço de uma pessôa vê-se na maneira como gosta de usar as palavras. Lê-se nos olhos das pessôas. As palavras dançam nos olhos das pessôas conforme o palco dos olhos de cada um.
As palavras teem moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais viajadas.
Depois dizem-nos adeus e ainda voltam depois de nos terem dito adeus. Emfim—toda essa tournée maravilhosa que nos põe a cabeça em agua até ao dia em que já sômos nós quem dá corda ás palavras para ellas estarem a dançar.
As mulheres e os homens estavam espalhados pela Terra. Uns estavam maravilhados, outros tinham-se cançado. Os que estavam maravilhados abriam a bocca, os que se tinham cançado tambem abriam a bocca. Ambos abriam a bocca.
Houve um homem sósinho que se poz a espreitar esta diferença—havia pessoas maravilhadas e outras que estavam cançadas.
Depois ainda espreitou melhor: Todas as pessoas estavam maravilhadas, depois não sabiam aguentar-se maravilhadas e ficavam cançadas.
As pessoas estavam tristes ou alegres conforme a luz para cada um—mais luz, alegres—menos luz, tristes.
O homem sósinho ficou a pensar n'esta diferença. Para não esquecer fez uns signaes n'uma pedra.
Este homem sósinho era da minha raça—era um Egypcio!
Os signaes que elle gravou na pedra para medir a luz por dentro das pessôas, chamaram-se hieroglifos.
Mais tarde veiu outro homem sósinho que tornou estes signaes ainda mais faceis. Fez vinte e dois signaes que bastavam para todas as combinações que ha ao Sol.
Este homem sósinho era da minha raça—era um Phenicio!
Cada um dos vinte e dois signaes era uma lettra. Cada combinação de lettras uma palavra.
Todos os dias faz annos que foram inventadas as palavras.
É preciso festejar todos os dias o centenario das palavras.
Ha palavras que fazem bater mais depressa o coração—todas as palavras—umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os logares e as posições das palavras. Segundo o lado d'onde se ouvem—do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol.
Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo.
As palavras querem estar nos seus logares!
Nós não somos do seculo d'inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do seculo d'inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.
Gásto os dias a experimentar logares e posições para as palavras.
É uma paciencia de que eu gósto. É o meu gôsto.
Tudo se passa aqui pelas palavras—todos os gôstos.
Collei algumas d'estas paciencias com palavras. São estas as palavras que trago aqui. Ainda não estão promptas—são pedaços de coisas, aqui e alli, como um rapaz novo, como uma rapariga nova. Como os cavallos quando ainda são petizes—vê-se já que se trata de um cavallo, mas tambem se vê que ainda não está concluido. As pernas cresceram mais depressa do que a espinha. A cabeça muito grande é que já está do tamanho em que ha-de ficar. Tudo se aguenta de pé provisoriamente—ainda não está prompto, vê-se perfeitamente que ainda não é tudo.
Agarrei uma mancheia de palavras e espalhei-as em cima da meza. Ficaram n'esta posição:
A humanidade abriu alas—as duas grandes alas da humanidade. Uma á direita, a outra á esquerda. Em baixo a Terra, em cima o Sol.
Vae acontecer qualquer coisa—os que passam vão mais depressa, os outros já estão á espreita.
As duas grandes alas da humanidade lá estão as duas em frente uma da outra. Não levantem os braços! não virem as cabeças!
Em baixo a Terra, em cima o Sol!
Ainda não chegou o homem-que-sabe-viver!
As duas grandes alas da humanidade querem ver com olhos da cara o homem-que-sabe-viver!
As duas grandes alas da humanidade não querem senão ver com os olhos da cara o homem-que-sabe-viver!
Em baixo a Terra, em cima o Sol!
Jesus-Christo desce sósinho por entre as duas grandes alas da humanidade. As duas grandes alas da humanidade estendem os braços para Jesus-Christo.
Uma das duas alas accusa a outra ala, e esta accusa aquella.
Jesus-Christo desce sósinho por entre as duas grandes alas da humanidade, sem se approximar de uma nem da outra.
As duas grandes alas da humanidade.
Jesus-Christo acabou de passar por entre as duas grandes alas da humanidade, sem se ter approximado de uma nem da outra.
As duas grandes alas da humanidade.
Em baixo a Terra, em cima o Sol.
Quando acabou a parabola, as duas grandes alas da humanidade desconjunctaram-se.
Havia uma cruz na encruzilhada.
A cada um que passava dizia o Christo de pedra:
«Em vez de ter morrido n'uma cruz, por ti, antes tivesse pegado na lança que me abriu o peito, para com ella te rasgar os olhos da cara. Para deixar entrar claridade para dentro de ti pelos buracos dos teus olhos rasgados.
«Tudo quanto eu te disse ficou escrito e é tudo ainda hoje tenho para te dizer.
«Se me fiz crucificar para t'o dizer porque não te deixas crucificar para sabêres como eu t'o disse?
«Não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, pregaram-m'as bem, como se prega um crucificado; não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, para te sacudir a cabeça quando viéres ajoelhar-te aqui aos pés da minha cruz.
«Se fôsse o teu orgulho de joelhos, ainda era o teu orgulho, mas são as tuas pernas dobradas com o pezo do ar.
«Não tenho uma das mãos livre para te empurrar d'aqui da minha cruz até ao teu logar lá em baixo na terra.
«Levanta-te, homem! No dia em que tu nascêste, nasceu no mesmo dia um logar para ti, lá em baixo na terra. Esse logar é o teu! o teu logar é a tua fortuna! o teu logar é a tua gloria. Não deixes o teu logar vazio, nem te deixes pr'áhi sem logar.
«Não te aleijes a procurar outras fortunas que não terás,—ha uma só para ti—é a unica que ha para ti, não serve senão para ti, não serve para os outros,—é por isto que ella é a tua fortuna!
«Porque viéste ajoelhar-te aqui aos pés da minha cruz? Foi porque a tua cabeça se encheu de duvida?…
Tanto melhor! Aproveita agora que tens a duvida dentro da tua cabeça, aproveita a sorte de têres a duvida dentro da tua cabeça. Não te cances de ter esta sorte!
«Não tenhas mêdo de estares a ver a tua cabeça a ir directamente para a loucura, não tenhas mêdo! Deixa-a ir até á loucura! ajuda-a a ir até á loucura. Vae tu tambem pessoalmente, co'a tua cabeça até á loucura! Vem ler a loucura escripta na palma da tua mão. Fecha a tua mão, com força. Agarra bem a loucura dentro da tua mão!
«Senão… se tens mêdo da duvida e te pões a fugir d'ella por môr da loucura que já está á vista, se não começas desde já a desbastar a fantasia que cresceu no logar marcado para ti, lá em baixo na terra; se não pretendes transformar essa fantasia em imaginação tranquilla e creadora…
… um dia a loucura virá plo seu proprio pé bater á tua porta, e tu, desprevenido, e tu sem mãos para a esganar, porque a loucura já será maior do que na palma da tua mão, porque a loucura será maior do que as tuas mãos, porque a loucura poderá mais do que tu com as tuas mãos; e ella fará de ti o pior de todos, por não teres sabido servir-te d'ella como tu devias sabe-lo querer!
Um por um, toda a humanidade ouviu a Cruz da encruzilhada, e a cada um parecia-lhe reconhecer aquelle modo de fallar.
Havia oliveiras á beira da estrada para a gente se encostar.
Antes de cada um chegar a casa havia um chafariz para matar a sêde.
Eu não sabia que o chafariz tinha tanto que vêr—havia muitos soldados por causa das raparigas a encher as bilhas!
Depois o Sol começou a ficar muito encarnado e cada vez maior por detraz das dunas, muito encarnado, e deixou-me sósinho em cima do muro.
Do lado do mar ouvia-se uma nóra a puxar agua. O boi tinha os olhos guardados para não entontecer. Os alcatruzes da nóra subiam por um lado e desciam plo outro lado—como hontem!
A musica da nóra só tem uma volta. Todos os dias. Ámanhã tambem, os alcatruzes da nóra vão subir por aqui e descer por lá. Todos os dias. Em baixo a Terra, em cima o Sol.
Quando olharam para traz, a Cruz da encruzilhada já estava muito longe. Era necessario acertar a vista para a reconhecer. Mas, era sem duvida ella, a cruz inconfundivel—aquella onde cabe um homem inteiro e de pé!
Mãe! a oleografia está a entornar o amarello do Deserto por cima da minha vida. O amarello do Deserto é mais comprido do que um dia todo!
Mãe! eu queria ser o arabe! Eu queria raptar a menina loira! Eu queria saber raptar.
Dá-me um cavallo, mãe! Até á palmeira verde esmeralda! E o anel?!
A minha cabeça amollece ao sol sobre a areia movediça do Deserto! A minha cabeça está molle como a minha almofada!
Ha uns signaes dentro da minha cabeça, como os signaes do Egypcio, como os signaes do Phenicio. Os signaes d'estes já teem antecedentes e eu ainda vou para a vida.
Não ha muros para que haja estrada! Não ha muros para pôr cartazes! Não está a mão de tinta preta a apontar—por aqui!
Só ha sombra do Sol nas larangeiras da outra margem; e todas as noites o somno chega roubado!
Mãe! As estrellas estão a mentir. Luzem quando mentem. Mentem quando luzem. Estão a luzir, ou mentem?
Já ia a cuspir para o ceu!
Mãe! a minha estrella é doida! Coube-me nas sortes a Estrella-doida!
Mãe! dá-me um cavallo! Eu já sou o gallope! Ha uma palmeira, Mãe!
O que quer dizer um anel? Tem uma esmeralda.
Mãe! eu quero ser as trez oleografias!
* * * * *
Mãe!
Em cima das estatuas está o verbo ganhar, Mãe! será para mim?
Quando passo pelas estatuas fico parado. A olhar para cima das estatuas. Fico parado a subir. Não sei quem me agarra para me levantar ao ar. Agarram-me por debaixo dos braços para me levantar ao ar. Para eu ver o verbo ganhar em cima das estatuas.
* * * * *
Mãe! eu não sei nada! Eu não me lembro de nada!
Ah! lembro-me!
Lembro-me de ter ajudado a levar pedras para as pyramides do Egypto!
Tambem me lembro de me ter chamado José, antigamente, com meus irmãos e uma mulher!
Mãe!
Estou a lembrar-me! Tu já fôste a menina loira! Eu já fui o menino verdadeiro a quem tu davas de mamar! Eu já estive comtigo na terceira oleografia!
Lembro-me exactamente! Quando tu me beijavas, o sol não doía tanto na minha pelle!
Mãe!
Estou a lembrar-me!
E as tardes quando iamos todos juntos soltar palavras no caes e vêr chegar mais laranjas!
Outras vezes juntavamo-nos na praia para nadar melhor do que os outros e deixar o sol queimar quem mais merecêsse. Já as laranjas estavam contentes com o que chegasse primeiro! O melhor jovem ganhava a melhor rapariga. Os outros sabiam aquella que tinham ganhado. Eu tinha ganho a minha!
De uma vez, quando deixavamos o caes, entornou-se o cêsto das tangerinas. Foi a alegria! E uma das raparigas pôz-se a cantar o succedido ás tangerinas a rolar pró mar:
tam
tam-tam
tanque
estanque
tangerina bola
tangerina boia
tangerina ina
tangerininha
pacote rôto
batuque nú
quintal da nóra
e o dique
e o Duque
e o acqueducto
do Cúco
Rei Carmim
e tamarindos
e amarellos
de Mahomet
alli
e lá
e acolá
…
* * * * *
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar historias ricas que ainda não viageie. Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta côr de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sêde! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cór os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a cosêres e eu a contar-te as minhas viagens, aquellas que eu viagei, tão parecidas com as que não viagei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a meza. Eu tambem quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a meza.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
A Eternidade existe mas não tão devagar!
Um dia foi a minha vez de ir a Paris. Foi necessario um passaporte. Pediram a minha profissão. Fiquei atrapalhado! Pensei um pouco para responder verdade e disse a verdade: Poeta!
Não acceitaram.
Tambem pediram o meu estado. Fiquei atrapalhado. Pensei um pouco para responder verdade e disse a verdade: Menino!
Tambem não acceitaram.
E para ter o passaporte tive de dizer o que era necessario para ter o passaporte, isto é—uma profissão que houvésse! e um estado que houvésse!
Á despedida os vizinhos deram-me o melhor conselho: Juizo!
Em Paris é tudo de carne e osso,—O Sacré-Coeur, O Sêna e a Torre
Eiffel—as casas, as pessoas, os domingos e os outros dias.
Ha em Paris uma Rocha Tarpeia que não é feita de rocha, é feita de domingos e dos outros dias.
Quando digo Eu não me refiro apenas a mim mas a todo aquelle que coubér dentro do geito em que está empregado o verbo na primeira pessôa.
Quando entrei na cidade fiquei sósinho no meio da multidão.
Em redor as portas estavam abertas. A multidão entrava naturalmente pelas portas abertas. Por cima das portas havia tabolêtas onde estava collada aquella palavra que sóbe—Liberdade!
Entrei por uma porta. Entrei como uma farpa!
Era uma ratoeira, Mãe! era uma ratoeira! Se eu tivesse entrado como uma agulha podia ter sahido como uma agulha, mas entrei como uma farpa, fiz sangue verdadeiro, já não me esquece. Aconteceu exactamente. Dei um mau geito nos rins por causa da ratoeira! Ainda me lembro da palavra—Liberdade!
Mãe! Vou contar-te como foi.
Havia dois vazos iguaes. Um tinha um licor bonito. O outro parecia ter agua simples. Um tinha a felicidade, o outro não tinha a felicidade. Era á sorte. A casa estava cheia de gente. Ninguem queria ser o primeiro a começar.
Depois, começaram a beber o licor. Diziam coisas tão felizes! Coisas quentes que enchem a cabeça toda e deixam os olhos escancarados! Eu vi-os, Mãe! estavam a augmentar a olhos vistos, juro-te!
Os que beberam do outro vazo não divertiam ninguem. Iam-se logo embora. E ninguem já se lembrava d'elles.
Só ficaram os que gostavam do licor. Eu fiquei com estes. Eu tambem bebi do licor. Não imaginas, Mãe! nunca subi tão alto! Ainda mais alto do que o verbo ganhar!
Havia uma rã que tinha entrado comigo ao mesmo tempo. A rã tambem estava a augmentar.
Depois, quando já estava quasi do tamanho de um boi, a rã estoirou. Coitada! Como antigamente, em latim.
Então, puz-me logo a escorregar desde lá de cima, até aonde eu já tinha amarinhado; desde mais alto do que o verbo ganhar.
A escorregar, a ser necessario escorregar, a querer por força escorregar, a custar immenso escorregar, a fazer doer escorregar, a escorregar.—O verbo desinchar!
O verbo desinchar dura muito tempo. No fim do verbo desinchar é outra vez a terra, cá em baixo.
Mãe! doe-me o peito. Bati com o peito contra a estatua que tem em cima o verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão contente! eu ia a pensar em ti e no verbo saber e no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão facil! Já estava a imaginar a tua alegria quando eu voltásse a casa com o verbo saber e o verbo ganhar, um em cada mão!
Doe-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Mãe!
Já não volto á cidade sem ir comtigo! para a cidade ser bonita. Irmos os dois juntos de braço-dado, e andarmos assim a passear; para ver como tudo està pôsto na cidade por causa de ti e de mim e por causa dos outros que andam de braço-dado.
Mãe! dize essa metade que tu sabes do que é necessario saber, dize essa metade que tu sabes tão bem! para eu pensar na outra metade.
Se não houvésse senão homens e saltimbancos eu ia buscar a outra metade, mas os saltimbancos estão vestidos como os homens, e os homens estão vestidos como os saltimbancos, ambos estão vestidos de uma só maneira, não sei quaes são os homens nem os saltimbancos, elles tambem não o sabem,—não ha senão losangos de arlequim!
Mãe!
Quando eu vinha para casa a multidão ia na outra direcção. Tive de me fazer ainda mais pequeno e escorregadío, para não ir na onda.
Perguntei para onde iam tão unidos, assim, com tanto balanço.
Responderam-me: Para deante! para a frente!
Iam para deante! iam para a frente!
Fiquei a pensar na multidão.
O meu anjo da guarda disse-me: Prompto! A multidão já passou, levou um quarto d'hora a passar. A multidão não é senão aquillo que levou um quarto d'hora a passar. Prompto! já está vista! anda d'ahi!
O meu anjo da guarda está sempre dizer-me: De que estás á espera? Vá, anda! Começa já! Começa já a cuidar da tua presença!
Não sei o que o meu anjo da guarda quer que eu advinhe em taes palavras.
Outras vezes, o meu anjo da guarda pede-me para que seja eu o anjo da guarda d'elle.
Mãe!
Hoje acordei todo virado para deante. Assim, como tu o compreendes,
Mãe!
Vi as coisas do ar que havia, as coisas que estavam focadas com o ar de hoje. As lembranças já estão inteiras, muito poucos os minutos falsos.
Fiz todas as horas do Sol e as da sombra. Ao chegar a noite estive de accordo com o Sol no que houve desde manhã até ser bastante a luz por hoje. Depois veiu o somno. E o somno chegou a horas. Antes do somno ainda houve uma imagem—um leão a dormir!
Na verdade, não ha somno mais bem ganho do que o de um leão a dormir com restos de sangue ainda no focinho, como os leões de pedra que ha nas escadarias por onde se sobe depois da batalha!
Na praia uma menina perguntou-me se eu era rico. Estava de gatas e muito longe, a perguntar-me se eu era rico.
* * * * *
Todas as manhãs ia brincar com os vizinhos para a sombra da egreja.
Depois do almoço a sombra era do outro lado.
* * * * *
Quando as meninas corriam no jardim, os cabellos e os vestidos ficavam para traz.
* * * * *
A rapariga das laranjas tinha uma linda voz para vender laranjas. As pessoas ficavam co'as laranjas na mão a ouví-la.
* * * * *
A larangeira ao pé da nóra já me conhecia—punha-se a fingir que era o vento que a fazia mexer.
* * * * *
Acho mais sinceros os dias de chuva. Nos dias em que chove ponhome a pensar que não sou eu só que vivo arreliado. Depois, o cheiro da terra molhada é que me faz de novo animar.
* * * * *
Ás vezes ponho-me a pensar em coisas que eu nunca vi. Naturalmente só ha muito longe, nas outras terras!
* * * * *
Estou a espera de ser grande para ver se o que eu penso é verdade ou não. Se não fôr, mato-me!
* * * * *
Gósto mais dos bois de barro que dos bois verdadeiros.
* * * * *
O gabão do jardineiro era forrado d'azul!
* * * * *
A rosa encarnada cheira a branco.
* * * * *
Quando vejo o côr-de-rosa parece que se referem a mim.
Bom-Dia, Mãe!
Bem nos tinham dito!—Espérem! foi o que nos tinham dito. E nós esperámos. Ah! que sempre tive a certeza que havia de chegar «o descerrar do escuro»! (ANTHERO, Sonetos.)
A eternidade e um instante é a mesma coisa.
Bom-Dia, Mãe!
Senta-te ao meu lado, que eu vou contar-te a viagem que eu fiz. Dáme a tua mão para que eu a conte bem!
Dei a volta ao mundo, fiz o itinerario universal. Tudo consta do meu diario intimo onde é memoravel a viagem que eu fiz desde e universo até ao meu peito quotidiano. Vim de muito longe até ficar dentro do meu proprio peito e defendido pelo meu proprio corpo.
Durante a viagem encontrei tudo disposto de antemão para que nunca me apartasse dos meus sentidos. E assim aconteceu sempre desde aquelle dia inolvidavel em que reparei que tinha olhos na minha propria cara. Foi precisamente n'esse dia inolvidavel que eu soube que tudo o que ha no universo podia ser visto com os dois olhos que estão na nossa propria cara. Não foi, portanto, sem orgulho que constatei que era precisamente por causa de cada um de nós que havia o universo.
E assim foi que, todas as coisas que a principio me pareciam tão estranhas, começaram logo desde esse dia inolvidavel a dirigirem-se-me e a interrogarem-me, quando ainda hontem era eu que lhes preguntava tudo. Foi-me facil comprehender que o universo era precisamente o resultado de haver quem tivesse olhos na propria cara. Muito maior foi o meu orgulho, portanto, quando tive a certeza de que hoje o universo esperava anciosamente por cada um de nós. Hontem, cada um de nós viajava por todas as partes do universo, com aquelle desejo legitimo de se encontrar, e se a viagem demorou mais do que devia é porque não seria facil acreditar immediatamente que cada um de nós estava, na verdade, em todas as partes do universo. Confesso que não pude supôr logo d'entrada que o papel de que seriamos incumbidos cá na terra fôsse precisamente o mais importante de todos.
Ainda hontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropellar sem querer; e emquanto eu procurava a maneira de não ficar espesinhado plo gigante, quem poderia, Mãe, ter-me convencido de que eramos nós-proprios o gigante?
Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo universo.
—«Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiement pas faire mieux.»
Henri Matisse.
Pede-se a uma creança. Desenhe uma flor! Da-se-lhe papel e lapis. A creança vae sentar-se no outro canto da sala onde não ha mais ninguem.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas n'uma direcção, outras n'outras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais faceis, outras mais custosas. A creança quiz tanta força em certas linhas que o papel quasi que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o pezo do lapis já era demais.
Depois a creança vem mostrar essas linhas ás pessôas: Uma flôr!
As pessôas não acham parecidas estas linhas com as de uma flôr!
Comtudo, a palavra flôr andou por dentro da creança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, á procura das linhas com que se faz uma flôr, e a creança pôz no papel algumas d'essas linhas, ou todas. Talvez as tivesse pôsto fóra dos seus logares, mas, são aquellas as linhas com que Deus faz uma flôr!
«Elle vous donne la sécurité.»
Charles Péquin.
Sécurité —M. f. (lat. securitas) Confiance, tranquilité d'esprit resultant de l'idée, qu'il n'ya de péril à craindre: l'industrie a besoin de sécurité.
Petit Larousse.
Tu separeras la terre du feu, le subtil de l'épais—doucement-avec grande industrie.
O desenho das creanças é como o das pessôas que não sabem desenhar—ambos dizem, mas não sabem o que dizem. Não sabem desembaraçar as linhas de uma coisa das linhas das outras coisas que veem ao mesmo tempo dentro da mesma palavra. A prova é que não são capazes de imitar o que da primeira vez lhes escorregou do corpo pela mão para o papel.
Eu-proprio, apenas agora começo a saber recordar o que foram os meus desenhos de ha dez e vinte annos, quando fiz uns traços em pedaços de papeis que guardaram.
Escuto estes desenhos como a um homem, do campo que diz, sem querer, coisas mais importantes do que o que está a contar, e que põe tudo á mostra sem dar por isso. Atravez d'estes desenhos sigo grafologicamente o meu instincto á espera da minha vontade,—a minha querida ignorancia a aquecer ao sol e a transformar-se na minha vez cá na terra.
Quando copiei pela ultima vez a Invenção do Dia Claro, sobejou uma frase que não me recordo a que alturas pertence. A frase é esta:
Ha systemas para todas as coisas que nos ajudam a saber amar, só não ha systemas para saber amar!
NOTA—Seguem-se as démarches para a Invenção. Foi-nos completamente impossivel incluir na presente edição as démarches. No entanto, reproduzimos como specimen a mais antiga de todas para que o leitor se convença do seu interesse quotidiano e imediato. N'esta, como em todas as outras démarches para a Invenção é flagrante a maneira como se representa a fortuna que nos rodeia todos os dias.
Je ne crois que les histoires dont les témoins se feraient égorger!
Eu tinha chegado tarde á escola. O mestre quiz, por força, saber porquê. E eu tive que dizer: Mestre! quando sahi de casa tomei um carro para vir mais depressa mas, por infelicidade, deante do carro cahiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando sahi de casa… minha mãe tinha um irmão no extrangeiro e, por infelicidade, morreu hontem de repente e nós ficámos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre! quando sahi de casa … estava a pensar no irmão de minha mãe que está no extrangeiro ha tantos annos, sem escrever. Ora isto ainda é peor do que se elle tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de lucto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lh'o disse!
Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria effectivamente que lhe dissesse a verdade. E, creança como eu era, puz todo o pezo do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração á solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar á Escola ha uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de côrde-rosa! Mestre! a boneca estava vestida de côr-de-rosa! A boneca tinha a pelle de céra. Como as meninas! A boneca tinha os olhos de vidro. Como as meninas! A boneca tinha as tranças cahidas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos…
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Dr. F. Alves de Azevedo.
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