Nota de editor:
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quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Dez. 2007)
Obras de JOÃO GRAVE
Os Famintos
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Paixão e morte
da Infanta
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A Eterna Mentira
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Os Sacrificados
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O Último Fauno
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Os que amam e os que sofrem
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O Passado
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Cruel Amor
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Gente Pobre
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Fogueiras de Santo
António
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Jornada romântica
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Vida do
Espíríto (pensamentos).
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Reflorir
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Reinado trágico
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A Inimiga
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No
prélo:
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O Mutilado
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A Morte Vence
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Almas ínquietas.
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Vitória de
Parsifal
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JOÃO GRAVE
DA ACADEMIA DAS SCIÊNCIAS DE LISBOA
A MORTE VENCE
ROMANCE
«
Sê leal a ti
mesmo
...»
shakespeare
.
SEGUNDA
EDIÇÃO, EMENDADA
PORTO
Livraria Chardron, de Lélo & Irmão,
L.
da
editores―Rua das Carmelitas, 144
Aillaud e Bertrand―Lisboa-Paris
1922
A MORTE VENCE
I
A criança dormia tranqùilamente, deitada no
seu pequenino berço vaporoso de rendas e resplandecendo
de brancura, por êsse glorioso meio-dia de
calor e de luz, no grande e benéfico silêncio que
envolvia
a vivenda feliz. A sua carne viriginal
e transparente,
ainda mal formada, parecia exalar claridade
e tinha a coloração suave de certas rosas
pálidas
e orvalhadas. A cabeleira anelada e loura espalhava-se,
como uma ligeira nuvem de ouro, na alvura
da almofada, macia e fôfa, que servia de travesseiro;
e sôbre essa fronte angélica não
profanada
por impuros, venenosos pensamentos, baixava um
halo de inocência luminosa e de graça imaterial.
Havia no quarto uma penumbra sedosa e frouxa
que refrescava o ambiente inefável e que tornava
mais imprecisas, mais vagas, as linhas e as formas
do mobiliário. Na pacificação
deleitosa tudo repousava
[8]
docemente. Em cima
do mármore do toucador,
em frente dum largo espêlho em que se reflectiam
imagens baças e indecisas, floriam perfumados ramos
de cravos brancos em jarras de cristal cheias de
água límpida; e da parede alta pendia, como a
protecção
celeste da infância adormecida, uma cópia a
óleo da Virgem, de Murillo, que, entre anjos alados,
extasiava os puros olhos nos fulgores siderais.
Cá fóra, o sol―um ardente sol de junho―rutilava
e ardia na atmosfera pesada e abafadiça.
Brandamente, na ponta dos pés para não fazer
barulho, Júlia entrou no compartimento solitário,
aproximou-se do casto leito do filho, que tinha apenas
meses de vida, contemplando-o com enlêvo e
ternura. Ela contava então vinte e quatro anos, estava
em pleno esplendor da sua beleza e do seu encanto
de mulher, a alegria reflectia-se-lhe no rosto e a
ventura iluminava-se-lhe na alma. Duma elegância
natural e sóbria, vestia um amplo roupão de cassa
creme apertado na cinta por laços de veludo preto.
O curto decote deixava a descoberto a pele do colo
que era setinosa, dourada e sem o mais ligeiro vinco.
Um pente de tartaruga com embutidos de ouro
segurava a massa dos seus cabelos castanhos enrolados
no alto da nuca. Os seios direitos e rijos formavam
uma delicada curva sob os tecidos flexíveis, ao arfarem.
Dois
anos antes, em Vizela, apaixonara-se sériamente
por Nuno Aragão, para quem fôra levada
por um forte impulso de sentimento; e com êle casara
ao fim dum romântino idílio em que os seus
sonhos de felicidade deram flor. Essa união
íntima que
a fizera espôsa e mãe e a que se devotou com um
admirável espírito de
abnegação, completou-a. Os
[9]
dias do seu noivado tam doce fugiram de leve sem
que dêles ficassem resíduos de tédio...
Absorvida na visão do frágil sêr que
lhe trouxera,
com a sua pureza e a sua formosura, uma revelação
à inteligência e à subtileza emotiva,
Júlia
ajoelhou junto do berço, compondo a roupa à volta
da cabecinha ideal, que a virgindade aureolava,
com dedos mais ágeis do que asas―e nem sequer notava
a presença de Nuno que a seguira de perto e
que, por detrás dela, sorria comovido. Houve um
momento em que Júlia se curvou sôbre a face gorda
e picada de còvinhas do filho, roçando-a com os
lábios.
―Cautela, não vás
acordá-lo!―murmurou o
marido em voz de segrêdo.
Ela voltou a cabeça, sorridente: e, fitando-o com
uma emoção que o olhar traía,
interrogou:
―Estavas aí?
―Quis acompanhar-te na tua amorável visita―respondeu.
―Olha, vem cá!...― pediu Júlia. Não
é verdade
que é lindo?
Nuno aninhou-se tam perto dela que lhe sentia
o sussurro brando da respiração, passou-lhe um
braço
à volta do pescoço, puxou-a tôda para o
peito e
ambos se embeberam na adoração da
criança que
continuava dormindo com a gracilidade e a poesia
dum botão de rosa, fazendo um pequeno volume sob
as lãs quentes e as cambraias ténues.
―Não é lindo?―insistiu Júlia.
Fala!...
―Como não havia de ser lindo, se veio de ti,
da tua purificação, do teu amor!...
―Do nosso amor!―emendou ela, com palavras
[10]
de mimo e de queixume, beijando-o demoradamente
na bôca.
―Do nosso amor, dizes bem!―confirmou
Nuno, enleado.
―E é curioso como já na sua carinha se desenham
as tuas feições. Vê... O nariz, a
testa, o queixo...
―São os teus...
―Não! São os teus!―atalhou Júlia,
indicando
com o dedo os traços fisionómicos do filho. Ora
observa com atenção...
―Não lhe toques, que podes magoá-lo,
coitadinho!―exclamou
êle. A sua carninha é tam tenra,
que até tenho mêdo de amolgá-la, quando
a
beijo.
―Que tolice!...―exclamou Júlia, rindo.
Por um instante, as cabeças de ambos, unidas,
fizeram um docel animado sôbre o berço inocente
que agasalhava, embalava, um destino misterioso
para o qual aspiravam tôda a grandeza, todo o
génio,
tôda a bondade, todos os favores generosos da
sorte enigmática, nessa hora bemdita e profética
em que os seus corações palpitavam com o mesmo
ritmo e a mesma ânsia, as suas vontades se fundiam
numa só vontade e as suas ambições se
irmanavam.
Depois, com os olhos humedecidos de lágrimas de
gôzo interior, ergueram-se, sempre estreitados num
apertado abraço, fitaram-se com enternecimento, emmudecidos,
penetrados por idêntico júbilo, com a
imaginação
perdida no encanto das mesmas idealizações.
―Abençoada sejas!―disse Nuno.
―E tu tambêm, por esta paz, esta certeza,
[11]
esta confiança, esta bôa fortuna que comunicaste
à
minha vida―atalhou Júlia com
convicção, afagando-o
no rosto.
Saíram do quarto, mirando ainda o filho―que
fôra como que a visitação duma
divindade propícia
à adoração que nunca deixara de
aproximá-los
mais desde o instante admirável em que pela primeira
vez se conheceram e que, entre os ternos cuidados
dos dois, cresceria, se faria homem, prolongaria
as suas existências, iria para as éras vindouras,
cantando
um hino de esperança. Êle representava a
expressão
definitiva e tangível do amor que os identificara,
do desejo puro que os fizera vibrar e que
alvoroçara a sua carne, da simpatia física que os
juntou.
Nas suas veias corria um sangue que era de
ambos; no seu corpo latejava uma carne que lhes pertencia;
e, mais tarde, quando fôsse grande, teria a
mesma fé, as mesmas crenças, as mesmas ideias, as
mesmas piedades, as mesmas finuras de sentir, a
mesma nobreza de aspirações.
―Estou hoje tam contente!―afirmou Júlia
já na sala, dispondo um
bibelot
sôbre a mesa do
centro, coberta com um largo pano pintado, enquanto
Nuno acendia um charuto. E êste contentamento
vem-me de ti, da tua fidelidade, da tua delicadeza,
e vem tambêm do nosso filho. A luz e a ventura
que esta criancinha veio trazer à nossa casa,
Nuno! Pois não é assim?
―É, querida!
―Parece um milagre! Às vezes, nem quero
acreditar!...
―Um milagre que merecíamos.
―Antes dêle nascer, tudo em mim eram sustos,
[12]
receios, hesitações. Em certos momentos, tinha
dúvidas
que me faziam chorar!...
―Dúvidas?
―Sim, dúvidas! Que queres? Aterrava-me o
pensamento da morte, do abandôno em que ficavas...
Não era de ti que eu duvidava, isso não; mas
não sei que tristeza me pungia, ennegrecendo, obscurecendo
o meu cérebro... Agora, porêm, tudo se apaziguou,
serenaram as inquietações,
tranqùilizaram-se
os sobressaltos...
Foi para o marido, que a esperava no meio da
sala, com um sorriso de fadiga que a tornava mais
graciosa e mais bela, as pálpebras meio cerradas, os
braços caídos e sem acção,
e, encostando-se-lhe ao
ombro forte, acrescentou:
―E sempre te direi que o nosso filho me inspira
uma veneração maior por ti e me fez melhor,
mais compadecida por todo o infortúnio, por tôda a
humana desgraça, por todo o vasto sofrimento.
―Se tu és uma santa!―disse Nuno, abraçando-a
novamente e com uma comoção
imperceptível
na voz.
―Não! Sou apenas mulher e mãe. E é
por isso
que me lembro constantemente da desdita das outras
mulheres e das outras mães. Ainda ontem, por
exemplo, não pude reter o pranto―oh! um pranto
que me desoprimiu!―ao ver brincar na quinta os
filhos do caseiro, descalços e tam rotinhos, com as
faces chupadas e macilentas e uma funda melancolia
no olhar... Antigamente, êstes espectáculos
lamentáveis passavam-me despercebidos, Nuno...
―O mundo está cheio de desigualdades, com
efeito.
[13]
―Mas é doloroso que haja fome ao lado da nossa
abundância!...
―Há de fazer-se alguma coisa, sossega...
―Porque a verdade é que o nosso filho, se
fôssemos
pobres, andaria por aí tambêm faminto e
nú como os outros, os que nada teem!... É
êle que
me pede pelos deserdados...
―Não digas isso!―acudiu Nuno, de repente,
muito perturbado... O nosso filho esfomeado e rôto!...
Bem sei que não pretendes acusar-me de injustiças
que não pratiquei... Eu mal conhecia esta
quinta e a gente que a habita; ainda hoje não
conheço
o caseiro e ignoro as suas misérias. Antes do nosso
casamento, só uma vez vim aqui, porque a
existência
tumultuosa das cidades solicitava-me, reclamava-me
e aturdia-me. Há uma semana apenas que nos
encontrâmos neste sitio e nestas terras, que são
nossas.
Não tive tempo para familiarizar-me com a sua
população, para tudo saber minuciosamente...
―Oh! meu amor, quantas palavras inúteis!
―Não!... É que me fizeste vislumbrar, de
repente,
possíveis castigos, terríveis calamidades,
abatendo-se
sôbre criaturas sem culpa!...
―Eu não queria...―atalhou Júlia, perturbada.
―Certamente, certamente!―disse Nuno, beijando-a
na fronte e nos olhos. É escusado defenderes-te...
Mas é que as palavras das mulheres que
amam como tu amas e que no seu amor abrangem
tôda a vida consciente, teem uma profundidade,
uma vastidão e uma inflexão que conturba... De
resto, tu só foste justa:―e esta
noção exacta da justiça
significa a superioridade das almas femininas
sôbre os homens, duros,
sêcos, implacáveis. Com
[14]
efeito, para sermos absolutamente felizes, é
necessário
que à nossa volta só haja felicidade...
―Então, bem vês!...
―Pois está claro, querida... Obrigado pela tua
lição tam digna e tam eloqùente. A tua
elevação moral
sublima o que em mim ainda existe de grosseiro
e de egoista. Sem o teu aviso, continuaria a haver,
perto de nós, privações e amarguras.
Eu nada via;
tu, com a subtileza dum amor materno incomparável,
viste tudo, num relance. Ensina-me sempre. Não
sou mau, com certeza, mas incompleto: felizmente,
tu completas-me e por isso a minha gratidão
subirá
perpétuamente para ti como o perdão dos crentes
sóbe para o céu...
Tinham-se sentado num amplo sofá de molas
flácidas que, a um canto, convidava ao repouso.
O sol vivo que se filtrava pela vidraça da janela respirando
para o jardim, batia, já atenuado pelo
store
de linho cru e pelo tule dos cortinados, sôbre as rosas
que morríam nos solitários, faùlhava
sôbre os móveis,
dourava fugidiamente o papel verde que forrava as
paredes. De longe chegava o som duma nora rangendo
no meio dum imenso campo de milho e produzindo
um ruído especial e ritmado de tear. Júlia,
encolhida
perto de Nuno, com as mãos esquecidas no regaço,
tornava-se mais pequenina, mais humilde, como se temesse
pesar demasiadamente sôbre aquele amor que
pressentia isento de tôda a mácula, perfeito de
dedicação
e de constância―um amor que era a razão
do seu sêr e o seu maior orgulho. As express
de linho cru e pelo tule dos cortinados, sôbre as rosas
que morríam nos solitários, faùlhava
sôbre os móveis,
dourava fugidiamente o papel verde que forrava as
paredes. De longe chegava o som duma nora rangendo
no meio dum imenso campo de milho e produzindo
um ruído especial e ritmado de tear. Júlia,
encolhida
perto de Nuno, com as mãos esquecidas no regaço,
tornava-se mais pequenina, mais humilde, como se temesse
pesar demasiadamente sôbre aquele amor que
pressentia isento de tôda a mácula, perfeito de
dedicação
e de constância―um amor que era a razão
do seu sêr e o seu maior orgulho. As expressões
carinhosas
de Nuno faziam-na còrar, causavam-lhe uma
sensação de inexprimível bem-estar e
de pacificação
interior. No seu sobressalto, nem sabia que responder,
[15]
não encontrava os termos precisos com que manifestar
a sua gratidão.
―Que maravilhosa manhã eu passei hoje na
tua companhia, minha preguiçosa!―exclamou Nuno,
quebrando a monotonia dum silêncio que se ia prolongando.
―Estou tam cansada!―afirmou Júlia, pousando-lhe
a cabeça no ombro. E olha que não tenho
feito nada.
―Anunciará êsse cansaço alguma
doença?
―Não, que ideia! Nunca me senti com tanta
saúde. Êstes ares campestres teem-me feito muito
bem. Por mim, não saíria mais daqui!
―Então, encontramo-nos na mesma
ambição,
o que não me surpreende, porque já nos
havíamos
encontrado no mesmo sentimento.
―Pois queres, na verdade?...―perguntou
ela, fitando-o com infinita meiguice. Que prazer me
dás com isso!...
Arrependendo-se, porêm, dum contentamento
que não soubera esconder e que lhe parecia impuro,
atalhou prontamente:
―Não, não!... Que loucura! Na cidade, tens
os teus amigos, os teus passatempos, as tuas conversas,
as tuas distracções. Aqui não
há nada disso.
Terminarias por aborrecer-te, por enfadar-te...
―É necessário que saibas que não
há coisa
que me cative, longe de ti, fóra do nosso lar, para
alêm
do berço do nosso filho. Nem sequer tenho pensamentos
que não sejam os teus.
Júlia, no entanto, teimava na certeza de que a
permanência constante na quinta seria o sacrifício
de Nuno, segura de que se não pode romper sem
[16]
violência com hábitos contraídos e
fundamente enraízados:
e, para que a sua teimosia encontrasse
vibração no marido, asseverava:
―Eu mesma viria a sofrer neste êrmo, mais
tarde. Enquanto durar o verão, isto será,
realmente,
bonito. Há luz, há horizonte, podemos dar largos
passeios, admirar tôda essa paisagem deliciosa, sentir
tôda a poesia rural... Mas depois, quando aparecer
o inverno, com os seus dias e as suas noites de
chuva, a sua desolação, os seus frios, as suas
tempestades,
a cidade, que é o movimento, a variedade,
a sociabilidade, voltaria a apetecer-nos...
Falando assim, Júlia estava intimamente convencida
de que defendia a continuidade da adoração
de Nuno, a sua felicidade permanente, a inalterável
placidez de relações conjugais que um mal
entendido
seria capaz de comprometer irremediávelmente. A
ternura que sentia pelo marido e que se lhe apoderara
do sangue, da substância nervosa, de todo o seu organismo
psíquico e material, afinava-lhe a
inteligência,
tornava mais arguta a sua capacidade de analisar
e de compreender. Não aspirava, únicamente,
ao amor de Nuno, mas tambêm à sua
gratidão e ao
seu respeito. Residir para sempre na quinta, distante
dum bulício que a desgostava e de episódios
sociais que a não interessavam, sería o seu
supremo
desejo―um desejo a que Nuno acederia alegremente:
mas considerava que o isolamento, a ausência
de convivências e de amizades, a falta de
ocupações
recreativas, viriam fatalmente a deprimir e entristecer
aquele homem que era o mais fiel dos homens e que,
para a amar mais puramente e mais intensamente,
renunciara a tudo o que fôsse estranho à sua
paixão.
[17]
―Ah! se é por isso!...―disse Nuno. Na verdade,
não te habituarias a êste deserto, minha
filha... Eu sim, porque gosto da solidão, porque as
multidões fazem-me mal. Mas, o que eu não permito
é que te sacrifiques...
Uma criada entrou, trazendo o correio que acabava
de chegar. Eram jornais e cartas que Nuno
começou a abrir distraídamente, enquanto
Júlia
continuava a arrumar com mais ordem e mais elegância
as peças do mobiliário, a deitar água
nas jarras
das flores, a espanejar o pó leve que maculava o
verniz das
étagères
.
―Tu não tens quem faça êsse
serviço?―perguntou
Nuno, parando um momento de lêr a sua
correspondência.
―Oh! filho! Deixa-me ocupar em alguma coisa...
Depois, é uma séca. Por mais que recomende
e que ralhe, nunca me atendem, não fazem nenhum
caso do que digo. Isto de criadas...
―Procuram-se outras melhores.
―Ora! São tôdas piores!...―exclamou
Júlia,
rindo.
―Mandam-se fabricar por um modêlo que tu
escolherás à tua vontade, com molas vindas das
oficinas
de Londres, movendo-se por um sistema de
relojoaria... E tu verás então como obedecem,
como
são atenciosas e pacientes...―respondeu êle,
rindo
tambêm e reencetando a leitura interrompida.
A vélha habitação, onde outrora tinham
vivido
os avós de Nuno, que eram abastados proprietários
rurais, parecia cabecear de sono sob o dourado,
faíscante banho do sol, sem que o menor ruído
perturbasse
a sua sonolência. Altas roseiras de trepar
[18]
subiam pelas paredes cobrindo-as de vermelhas e míudinhas
rosas de toucar. No pombal, que ficava ao
lado, perto da capoeira, arrulhavam as pombas aos
pares. Errava no ar um dormente zumbido de moscas.
―E esta?―bradou Nuno, de súbito, pousando
sôbre uma cadeira a carta que tinha entre as mãos.
―Que é?―inquiriu Júlia, aproximando-se. Alguma
novidade?
―Uma novidade estupenda. Nem tu calculas.
Sabes quem vem aí, fazer-nos uma visita?
―Não sei, não posso adivinhar...
―Pois devias, para seres absolutamente perfeita,
dispor dêsse dom... Quem vem aí visitar-nos
é Frederico, aquele rapaz que foi meu camarada e
que é o meu, o nosso melhor amigo!...
―Tinha-lo convidado?... E não me dizias
nada!...
―Escrevi-lhe, antes de partirmos para aqui,
como me obrigava o meu afecto. Ofereci-lhe, na nossa
casa, uma enxêrga e uma tigela de caldo, à severa
moda de Esparta... E êle aceitou. Bom, excelente
Frederico!...
―Quando chega êle?
―Estará, entre nós, àmanhã
ao romper do
dia. Já almoça. Dá as tuas ordens para
que se arrange
um quarto a êste vagabundo que tam amávelmente
se lembra do nosso exílio... Será uma companhia.
De dentro, da alcova, veio um débil vagido
que deteve repentinamente a conversa de Nuno e
de Júlia.
―Sua ex.
a
despertou e reclama, naturalmente,
[19]
o
lunch
―disse
êle,
levantando-se. Onde está a
ama?
―Lá em baixo, a brunir. Vai chamá-la, enquanto
eu entretenho a criança―murmurou Júlia,
dirigindo-se
ao quarto.
Nuno pegou nos jornais e nas cartas apressadamente
lidas e desceu ao pavimento inferior, gritando
pela ama do filho, que acudiu tôda afogueada do
calor do ferro. Era uma rapariga na fôrça da vida,
saùdavel, bem constituída, de fortes seios
estalando
de seiva sob o pano do colete, braços gordos e estriados
de rija musculatura.
―Corra lá acima à senhora. O menino acordou
agora mesmo.
Ela galgou logo as escadas ágilmente, num
rumor de saias engomadas, exclamando jovialmente:
―Aí vou, meu amorsinho, aí vou!...
Nuno, satisfeito com as suaves emoções daquela
clara e plácida manhã familiar, saíu
para o jardim
que, à roda da vivenda tranqùila, rescendia e
refrigerava,
com os seus canteiros coloridos onde desabrochavam
os cravos rajados e as derradeiras rosas
do estio. Estava um tempo maravilhoso. O céu luzente
e translúcido arqueava-se sôbre a quinta como
um enorme pálio de sêda azul sem uma ruga. Os
negrilhos,
as tílias, os amieiros e os plátanos deixavam
caír das suas espêssas folhagens
a consolação afável
das sombras. Pelas ramagens que sussurravam à brisa
adejante, cantavam as aves. A cada passo, amplos
bancos de cortiça, que as copas dos vetustos arvoredos
amenizavam de fresquidão, solicitavam ao
descanso e às séstas aprazíveis. Nuno,
passeando vagarosamente,
ia pensando que por ali se teriam sentado
[20]
outrora,
nas tardes de calor, as senhoras da sua
casa com os livros dos poetas esquecidos no regaço,
sempre que de verão vinham procurar ao campo a
saúde e as bôas côres que a cidade lhes
roubava.
Aquele retiro estava cheio de recordações, de
saùdosas
memórias dos antepassados. Sua mãe, que havia
falecido dois anos antes de êle se casar com
Júlia, passara no doce refúgio―em que agora se
encontrava com a família que constituira e que era
todo o seu enlêvo―a primeira infância, saltando
pelos
arruamentos que o Jacinto jardineiro trazia sempre
bem areados, regados e varridos. Evocando piedosamente
a figura de mamã, que fôra tam gentil e que
uma doença cruel bem cedo arrebatara, Nuno concentrava-se,
recolhia-se para com mais intensidade
sentir. Pobre, pobre mãe precocemente morta e
que com tanto fervor lhe queria! Revivia-a na
imaginação,
reconstituia-a com nitidez. Parecia-se ainda
um pouco com Júlia na bondade, na afabilidade,
nas maneiras, no timbre da voz, na candura e na
meiguice materna. Existiam nelas mesmo determinadas
semelhanças exteriores que o surpreendiam―nos
olhos que, em ambas, eram negros, profundos
e húmidos, na finura das linhas plásticas, na
brancura
da pele, na nobreza da expressão fisionómica
que reflectia conjuntamente a paixão, a gravidade
e a graça. Sobretudo, quando observava o sorriso
de Júlia―um sorriso em que havia qualquer coisa
de castidade infantil, de seriedade ponderada e de
ternura ingénua, Nuno assistia, deslumbrado, a uma
verdadeira ressurreição. E foi por isto,
de-certo, que
amou desvairadamente a espôsa desde a primeira
noite em que a viu, no salão dum hotel de Vizela
[21]
onde se dançava, e que ainda a amava e amaria sempre
com o mesmo transporte e a mesma firmeza.
A mãe, que não fôra feliz no
casamento―porque
o marido desertava do lar conjugal para correr atrás
doutros amores, para atirar ouro aos punhados sôbre
as bancas do jôgo, para dissipar uma existência que
nunca encontrou sossêgo senão na
sepultura―ressurgia
na mulher admirável que era a sua doce companheira
e que, com geito divino, devotando-se-lhe,
lhe fizera a revelação da felicidade!...
Continuando o passeio e embebendo-se em lembranças,
que aviventava para seu gôzo espiritual,
Nuno chegou, insensivelmente, a meio da propriedade,
que era de vastas dimensões. Para lá do parque
frondoso, com uma rica decoração de troncos
nodosos
e recobertos de musgos parasitários, ficava o
pomar que vergava de frutas pelos outonos elegíacos,
quando as fôlhas amarelas caíam como asas que
cessassem de bater: e mais abaixo, espraiavam-se as
terras de cultura, as pastagens para o gado, abundantemente
regadas por águas espertas e vivas que desciam,
cantando, das bôcas negras das minas, frias e
saborosas: o casebre dos caseiros pegado aos currais:
a eira todo o dia batida de sol. Ao fundo, um
pinheiral cerrado de rama verde-negra, que dava a
lenha para o lume, fechava à vista a linha do horizonte.
Das bandas do norte, elevavam-se espinhaços de
serranias escarpadas, correndo dum extremo a outro
e azulando-se, no crepúsculo, com os nevoeiros
que, como um fumo ligeiro e branco, ascendiam das
profundidades do vale, afogado em vegetações
exuberantes.
A quinta, situada nos arredores de Guimarães,
pertencia já a Nuno ainda em vida dos pais.
[22]
Legara-lha seu avô materno, aterrado certamente
com as dissipações do genro que fundia em orgias,
em viagens que não tinham fim, em
ligações ilicitas,
o dote da mulher legítima e que ameaçava deixar
na miséria, aos acasos incertos do destino, o filho
único. Ah! êsse pai! Nuno não queria
mal à sua
memória, que venerava, recordava-o com
saùdade e
com mágoa, não invejava o dinheiro que
êle espalhara
estérilmente com mãos perdulárias.
Desculpava-o.
Era fogoso, irreflectido, embrenhava-se em aventuras
arriscadas, perseguindo uma ilusão dos sentidos
que jàmais alcançou, tinha um irónico
desdêm por
tôdas as convenções, caracterizava-se
por uma rebeldia
de temperamento que nenhum conselho prudente
e fecundo conseguia apaziguar; o seu egoísmo
de
jouisseur
não admitia
restrições naquilo que julgava
essencial ao seu gôzo próprio; fôra,
talvez, um
doente, uma organização enfêrma
expiando sucessivas
acumulações de hereditariedade mórbida
que
vinham de longe, prolongando-se em gerações
taradas
e denunciando um doloroso fim de raça. Obedecera
passivamente, por ausência de vontade, aos secretos
e vertiginosos impulsos do seu mal interior―do
mal que insaciávelmente o roía, lhe debilitava o
carácter, o esgotava de energia para tôdas as
reacções
nobilitantes...
O amor tornava Nuno generoso. Só lamentava
que sua mãe tanto tivesse sofrido sem se queixar,
transida, conformada com o infortúnio, agarrando-se
ainda nervosamente ao seu verdugo como as heras
se agarram a uma árvore carcomida, negando-se com
obstinação a separar-se dêle e a voltar
para o lar
paterno, onde seria recebida em festa e onde a sua
[23]
existência atribulada encontraria suavidade e
consôlo―porque,
a-pesar-de tudo, continuava a amá-lo
com ansiedade, com loucura, com uma constância
que nunca afrouxou. Pensando neste caso singular
de devoção e de sacrifício, Nuno
julgava que havia
herdado da mãe as virtudes afectivas, a rectidão,
a lealdade, a sensibilidade aguda―e considerava-se
feliz por isso...
Meteu-se resolutamente por um fechado milheiral,
onde amadurecia ao sol de Deus o pão sagrado
que daria alento e fartura às bôcas famintas
e pálidas. Largas fôlhas compridas como espadas
roçavam-lhe
o rosto, açoutavam-lhe as mãos; as suas
botas atolavam-se no terreno remexido de fresco e humedecido
das regas que levavam o alimento às raízes;
um cheiro acre de seivas e de ervas esmagadas impregnava
a aragem. Nuno aspirava-o a fundos haustos,
murmurando, regalado:
―Ah! isto vigoriza, tonifica!
Da banda do nascente, uma poeira de luz flutuava
sôbre os píncaros das montanhas escalvadas
que, por vezes, na sua imobilidade, tinham atitudes
quáse humanas, sugerindo formas gigantescas e
animadas,
curvando-se sôbre a sombra, o vazio dos abismos.
Enquanto caminhava e admirava êste maravilhoso
trecho de paisagem, Nuno ia recebendo uma
lição de coisas ignoradas. Com efeito, era aquela
a
primeira vez que visitava tam minuciosamente a
quinta, que fôra a morada pacífica e venturosa dos
seus avós, da sua gente. Só ali tinha vindo uma
vez,
de fugida, para conhecer uma parte dos domínios territoriais
de que era senhor, mas não passara do jardim,
onde por sinal havia colhido um cravo branco
[24]
com que floriu a lapela do seu casaco de casimira inglesa.
Ao cabo duma curta hora, logo abalou para o
Pôrto, onde nascera e onde vivia, alarmado com tanta
solitude, penetrado de melancolia e de desalento,
sem compreender como certas criaturas podiam permanecer
longe das cidades, do seu movimento, das
suas seduções, dos seus aliciantes
espectáculos. Nesse
tempo, estava ainda solteiro, completava na Academia
Politécnica o curso de engenharia, era
revolucionário
como todos os seus camaradas, freqùentava
com assiduidade as reùniões políticas
em que se
conspirava contra a Monarquia, tinha rixas com a
polícia e namorava as costureiras. Agora, porêm,
via com olhos diferentes dos dessa época, possuía
uma compreensão mais lúcida, tudo nêle
se havia
modificado, existia na sua alma um sentimento mais
equilibrado e mais justo. A inquietação antiga
apenas
servira para transmitir um grato sabor á paz actual:
a reflexão e o estudo tinham-lhe revelado o mundo e
as sociedades por um outro aspecto. Para êle, as
urbs
onde se agitam os densos formigueiros de seres conscientes,
gritando os seus desesperos e as suas cóleras,
representavam a tentação corruptora, a
deliqùescência,
eram as sinistras geradoras da dor e dos pessimismos
modernos: e o campo, a aldeia, constituíam
os reservatórios da vida salubre, os últimos
santuários
da crença religiosa e da felicidade onde os
réprobos
deviam retemperar-se anualmente. Como a sua
mocidade fôra inconsiderada! Em
compensação,
como os seus trinta e cinco anos eram sábios e estavam
na verdade!... Ao romper do milheiral em que se
perdera, encontrou uma clareira bucólica de terra
que andava a horta, onde cresciam e enconchavam
[25]
as couves tronchudas, verdejavam as tiras das alfaces
e os talhões de feijoal ondulavam ao vento brando.
Um homem, em mangas de camisa, magro, esguio,
de rosto queimado pelos ardentes bafos das soalheiras,
cavava, com uma grande tristeza na face, em que
se emmaranhava a barba crespa e negra, e nos olhos
que fulguravam. Nuno foi direito a êle, saùdando-o
amigávelmente. O cavador, tirando o chapeú
esburacado
e sujo, murmurou com humildade:
―Salve-o Deus, meu senhor.
Durante um momento Nuno entregou-se à
contemplação
do pobre trabalhador, de cara macilenta
e mãos calejadas e nodosas, em que os dedos deformados
lembravam negras raízes. A camisa aberta
no peito deixava a descoberto uma pele macerada,
repuxando sôbre os ossos salientes: e uma grande piedade
comoveu Nuno por tanta miséria.
―Vocemecê―perguntou êle―é que
é o caseiro?
―Saiba vossa senhoria que sim. Já lá vai um
ror de anos depois que para aqui entrei, e tenho pago
honradamente as rendas.
―Bem sei, bem sei! Eu sou o dono da quinta...
―Pois vossa senhoria é que é o netinho do snr.
Vicente, que Deus haja?
―Sou eu mesmo...
―Oh! meu senhor! Desculpe, que eu não o
conhecia.
―Mas, desculpar o que, bom homem?...
―É que eu nem sequer fui vê-lo lá
acima, ao
palácio... Não podia adivinhar... Tinha-me dito
o snr. José, procurador, que vinham viver na casa
grande por algum tempo uns senhores, mas eu não
[26]
contava... Sempre uma assim! A gente anda cá nas
nossas apoquentações, não tem vagar
para nada...
E imediatamente, vergado ao hábito da obediência,
submetido ao jugo da escravidão que sempre,
no decurso duma vida trabalhosa e amarga, o coagia
a rojar-se, a fazer-se mais pequeno diante dos poderosos,
atirando a enxada para a leiva revolvida,
aproximou-se de Nuno, baixando a cabeça descoberta
como para receber o justo castigo duma grande
falta.
―O senhor perdôe... Eu não sabia...
―Homem, já lhe disse!... Não tenho que perdoar.
Está claro que a sua visita era-me
agradável:―mas
como amigo e não como dependente.
É boa... Ponha o chapéu.
―Como amigo, como amigo!...―mastigou
o caseiro, com a língua embrulhada na bôca e os
olhos rasos de água, conservando o
chapéu nas mãos.
―Como amigo, certamente... E ponha o chapéu.
Agora, mando eu. Ponha o chapéu, avie-se.
―Isso é que não... O respeito não
fica mal a
ninguêm. É um dever...
-Se não pôe o chapéu, zango-me e vou-me
embora...
―Ora essa!... Pois!...
―Afirmo-lho! Ou faz o que lhe peço ou retiro-me...
―Então, com sua licença, fidalgo...
―E vamos conversar à bôa paz... Está
contente
com os terrenos que traz arrendados?
―Eu não me queixo... Vão dando para viver,
com a ninhada dos filhos e a mulher entrevada, melhor
ou pior, como Deus é servido.
[27]
―Pois, não tira lucros?
―Umas vezes pelas outras tiro, sim, senhor,
que a terra anda bem tratada. Não lhe roubo ao sustento
preciso... Mas lá vem um ano mau em que
parte das colheitas se perde, lá morre um boi, e
vão-se
as economias escassas, para uma pessoa não ficar
envergonhada... Adeus, minhas encomendas!
Percam-se os aneis, mas conservam-se os dedos,
como o outro que diz...
―Ah! eu julgava que a lavoura era remuneradora.
―A terra é quáse sempre ingrata para os que
dela vivem, senhor... Alêm disso, para recolher é
necessário semear e o dinheiro não me sobra...
Mas
isto não é chorar-me. Não quero
aborrecê-lo. Vive-se
com o muito e vive-se tambêm com o pouquinho...
―E a mulher entrevada, disse?
―É verdade, coitada! Fiquei dum dia para o
outro sem o braço que me ajudava, e ando consumido,
cá por dentro, de vê-la sofrer. Depois que teve
o último filho, nunca mais se ergueu...
―Infeliz!... E os médicos?!...
―Os médicos... São muito caros. Veio
aí um
algumas vezes, para me dizer que o mal não era de
morte mas que não tinha cura!... E o que mais
me custa, meu senhor, é que a pobre de Cristo
está
sempre a pensar na labuta, na canseira do trabalho,
e quando vou para comer a migalha, costuma dizer:―«Oh!
meu homem, que te matas... Oh! criatura
que não tens um momento de descanso e eu para
aqui a curtir a minha doença, sem poder auxiliar-te...
Que Deus me leve!»... Enfim, corta o
coração,
coitadinha... E foi sempre tam minha amiga,
[28]
Senhor do céu! Estamos casados há anos e
damo-nos
como Deus com os anjos...
Enquanto falava, o cavador limpava as lágrimas,
que lhe corriam em fio dos olhos, às costas
da mão negra e cheia de terra. Nuno, condoído,
desviara
a vista.
―Quantos filhos tem?
- Em casa tenho seis. Quatro, três raparigas e
um rapaz, já casaram.
―São grandes, os que vivem consigo?
―Dois lá me vão ajudando a levar a cruz ao
Calvário. Os outros são pequeninos... Teem a
fatia
do pão, mas falta-lhes a mãe para olhar por
êles...
―Pois, está bem! Creio que a renda anda
um pouco elevada... Hei de falar com o meu procurador...
E ouça...
―Oh! meu fidalgo, eu não pedi que me baixasse
a renda...―acudiu o caseiro, de fronte erguida por
uns restos dêsse orgulho que existe tambêm no
coração
dos desgraçados.
―E ouça―continuou Nuno―disse há pouco
que, se tivesse dinheiro, faria com que a terra produzisse
mais. Terá êsse dinheiro. Sou eu que lho
empresto... Nada de agradecimentos. Pagar-mo há
quando o tiver... Quanto à entrevada, é preciso
tratar dela. Minha mulher há de ir vê-la―porque
as mulheres entendem-se umas às outras. E adeus!―concluiu,
estendendo-lhe a mão.
O caseiro olhou com espanto a mão aberta, franca
e leal de Nuno, cravou depois no rosto do seu senhorio
os olhos atónitos e fulgurantes como carvões
acesos, muito enleado, sem nada compreender, sem
fazer um movimento, sem murmurar uma palavra.
[29]
―Adeus, bom homem!―insistiu Nuno. Não
se acanhe. Tenho apertado a mão a criaturas muito
menos dignas do que vocemecê é!
Então, o caseiro, entalado de soluços, rendido
de admiração diante de tanta grandeza de alma,
apoderou-se
daquela mão purificada que se baixava
bondosamente para levantar os que sofriam e que
eram humildes, gaguejando, com a voz entaramelada:
―Ah! meu amo, que isto é o fim do mundo!
Um fidalgo como vossa senhoria a tratar assim um
ninguêm como eu!... Bemdito seja o Senhor, que
ainda há tanta gente bôa!
E, na sua exaltada gratidão, queria beijar a
mão que Nuno lhe dava.
―Não, isso não! Há maneiras de
reconhecimento
que se não aceitam, porque melindram quem
as pratica e quem as recebe...
―Deixe-me, meu senhor!... Ainda há pouco
disse: «meu amigo!» Um lagalhé, como eu,
amigo
de vossa senhoria!...
Nuno, por fim, desembaraçando-se do cavador,
despediu-se e afastou-se dêle, enternecido e murmurando
entre dentes:
―Creio que realizei hoje a melhor acção de
tôda
a minha vida... E devo a sua inspiração a
Júlia...
Que horror! Tanta miséria, mulher entrevada, criancinhas
com fome e eu a alimentar a minha opulência
com o esfôrço desta penúria!...
Dirigindo-se novamente para o jardim, meditava
que, para as almas sensíveis, as transfiguradoras
alegrias de bem pouco dependem. Bastava
para conquistá-las, um gesto mais espontâneo de
bondade... Como o seu dia fôra
proveitoso, efectivamente!
[30]
Vivera momentos inolvidáveis junto do
berço
do filho, que dormia como uma doce flor por desabrochar
com tôda a alma inocente reflectindo-se-lhe
na face, que era inconsciente, que mal reparava
ainda nas coisas que o cercavam e que, no entanto,
enchia tôda a casa, tôda a sua vida,
todo o seu amor
de encanto, de esperança e de perfume! Depois, a
adoração da espôsa dera-lhe uma
lição de magnanimidade
e fizera-lhe sentir a branda promessa duma
ternura eterna, duma inalterável
dedicação que o iluminaria
pelos anos fóra. Em seguida, recordara a memória
venerável da mãe, no seu passeio pelo
parque―essa
mãe que tanto o tinha amado e que, mesmo
morta, era uma radiante luz de que lhe vinha claridade
e beleza moral, e corrigira nobremente desigualdades
sociais, decidido a conceder um pouco
mais de bem estar a sêres desditosos que activamente
lidavam, acrescentando a sua riqueza. Para que
nada faltasse à formosura dêste dia
magnífico, até o
seu único amigo e seu companheiro de estudos e de
boémias românticas, acabava de anunciar-lhe que
viria
passar junto dêle uma semana, um mês! Levantara-se
com sorte, certamente. Há horas predestinadas
para a ventura, como há outras predestinadas
para a desgraça...
Entrou em casa, trazendo debaixo do braço
jornais que não abrira e cartas a que não ligara
atenção, exceptuando a de Frederico, que era
sumamente
grata à sua amizade. Subindo ao primeiro andar,
foi encontrar Júlia com o filho, gordo, robusto, de
cabelo muito louro e uns olhos muito
azúis, nos braços
amorosos. Nuno beijou a criança com mais
devoção
do que beijaria uma imagem religiosa, beijou tambêm
[31]
a espôsa longamente na testa e na bôca, para
agradecer-lhe
a felicidade de que transbordava.
―Que é isso, que é isso?―perguntou ela,
sorrindo com aquele sorriso que lhe fazia evocar a
mãe.
―É que te amo, que te amo, e que não sei
dizer-te por outra forma o meu amor!
II
Frederico chegou, com efeito, na manhã seguinte
e foi efusivo o abraço que trocou com Nuno,
ao saltar do automóvel, diante do portão do
jardim
que um grande ramo de jasmineiro em flor cobria de
sombra, de frescura e de aroma. Enquanto os criados
conduziam as malas de viagem, do carro para casa,
êle, compondo a roupa desmanchada e alisando,
com a mão, os cabelos despenteados, dizia para o
amigo:
―Menino, o que eu agora mais desejo, antes do
almôço, que ficarei devendo à tua
generosidade, é
um banho frio que me restitua a elasticidade aos
membros entorpecidos e me purifique da poeira da
jornada―uma poeira corrosiva que me morde a
pele.
―Pois terás êsse banho purificador,
homem!―prometeu
Nuno, alegremente.
Foram andando pelos arruamentos que corriam
[34]
junto dos canteiros rescendentes, no inspirador silêncio
matinal.
―Tu tens isto lindíssimo, na verdade. Sente-se
a ventura, o encanto de viver à volta desta
habitação
que eu creio bem que seja a morada da Fortuna!...
E como vai a saúde da família?
Próspera,
não é assim?... Desculpa. Tinha-me esquecido de
cumprir êste elementar dever de cortesia.
Do lado que dava para o parque havia uma
escada de pedra com grade de ferro pintada de verde,
subindo, entre redouças de trepadeiras que a bucolizavam,
até ao primeiro andar, sob a folhagem
fechada duma acácia. Tinham êles galgado o
primeiro
lanço, quando Júlia apareceu no alto, vestida
com simplicidade e gôsto. Frederico, tirando o
chapéu,
exclamou logo, ao avistá-la:
―Oh! minha senhora!...
E avançou, mais apressado, de mão estendida,
acrescentando:
―Venho pedir um pouco de repouso, de tranqùilidade
espiritual, às divindades protectoras dêste
lar, que é o Palácio da Ventura...
―Seja então bemvindo―acudiu ela, tôda risonha.
―Não o acredites, Júlia! É um
réprobo e tem
o sentimento derrancado―gritou Nuno. Ainda agora
me dizia da aldeia coisas pavorosas. Não te admires
se êle, logo à tarde, bocejando o seu
aborrecimento
e renunciando a uma conversão de alma,
nos fugir para a cidade...
Frederico, voltando-se para o amigo, murmurou
com ar cómico e forçadamente constrangido:
―É, então, assim que o afecto fraternal
compreende
[35]
e pratica as
obrigações sagradas da
hospitalidade,
mentindo para me comprometer? Com franqueza!
Isso não é leal...
Júlia, còrada e encantadora no seu pudor e no
seu recato de espôsa e de mãe, ria enlevada.
―Deixe-o falar!
―Pois se eu, só de atravessar a
pacificação
campestre, embebendo-me, impregnando-me da sua
doçura, até já me sinto outro e me
parece que dentro
de mim um outro coração renasce!...―disse
Frederico.
―É que o Espírito Santo estava à tua
espera
para baixar-te sôbre a cabeça em língua
de lume e
iluminar-te―zombou Nuno.
Entraram na sala que as flores das jarras incensavam.
Por tôda a parte se notava logo o cuidado e
a subtileza duma diligente
ménagère
, tal
era a ordem,
a elegância, o claro aceio daquele atraente lugar de
repouso. Sentaram-se um momento, conversando.
―Quis, então, dar-nos por algum tempo o prazer
da sua companhia, abandonando as alegrias da vida
citadina?―perguntou Júlia.
―Nuno assim mo impôs. E creia V. Ex.
a
que
nunca imposição alguma foi mais brandamente
acatada
por um rebelde como eu sou―afirmou Frederico.
Um relógio de bronze dourado, montado em
colunas de alabastro côr de rosa, marcava as horas
sôbre
o mármore do fogão, quebrando com o ritmo do
seu
tic-tac
a paz do compartimento:
e evolava-se de
tudo o que os cercava essa serenidade, êsse divino
mistério inspirador, essa graça imaterial que
só
existem nos ambientes calmos em que as almas de
élite
fazem a troca
mútua das suas afeições puras,
[36]
das suas emoções delicadas, das suas
aspirações nobres.
―De-certo que não encontrará aqui as
distracções
que um grande centro de população pode
oferecer―exclamou
Júlia. No entanto, haverá para o
snr. uma sincera amizade.
―Eis tudo de quanto eu preciso, minha senhora,
porque a amizade é o que ainda vale no egoísmo e
na
tristeza da nossa época.
―Mas, não terias perdido a virtude, o dom
e motivo de senti-la?―interrogou Nuno, com ironia
afável. Êste homem é um perdido,
Júlia. Vamos a
ver se conseguimos levá-lo de novo para a luminosa
vereda da verdade... E vai-te arranjar, criatura, que
aqui, na aldeia, almoça-se cedo, janta-se cedo e deita-se
a gente ao anoitecer...
―Bem! Começa a minha
regeneração―murmurou
Frederico, erguendo-se. Se me concede licença,
minha senhora, vou tratar da
toilette
. Vejo que Nuno,
antes de me servir o alimento, pretende servir-me um
método. É justo. Quem dá o
pão, dá o pau...
―Se precisas dêle!...
―Do pau?
―Não, desgraçado, do método!...
Nuno acompanhou-o ao quarto, enquanto Júlia
descia à cozinha. A tranqùilidade envolvente era
tam profunda que os menores ruídos adquiriam uma
prolongada vibração. Ouvia-se a voz dos
carreteiros
ao longe, excitando os bois nas subidas e as cantigas
dos ranchos de mulheres que trabalhavam nas terras
de cultivo, sob o banho fluido e louro da luz. Nuno,
deixando Frederico, veio um instante para a varanda
envidraçada exposta ao sol, sentando-se numa cadeira
[37]
de
encôsto, perto dos vasos com avenca e
com begónias de estufa, de largas fôlhas
espalmadas
e ferruginosas, onde costumava passar as tardes com
Júlia, contemplando a ondulação dos
milheirais que se
estendiam por todo o vale, a ramaria dos pinheiros
vasta como um mar de verdura, a mancha azulada das
montanhas de perfil irregular e que formavam, das bandas
do nascente, uma rica, prodigiosa scenografia natural.
Estava contente, a vida tinha para êle um grato
sabor, nesse momento. Por mais absorvido que andasse
na sua feliz, plácida existência conjugal,
não podia
subtrair-se a determinadas influências que certos
factos produziam. A vinda de Frederico tinha
acordado, para seu regalo, um mundo de sensações
longínquas,
de recordações adormecidas. Com a
presença
do amigo, ressuscitavam tambêm a sua mocidade
distante, os anos consagrados ao estudo, à conquista
duma posição social que lhe imprimisse maior
relêvo
à personalidade, as ilusões que
fôra tecendo, as
esperanças
sonhadas em prometedoras horas de confiança.
Relembravam-lhe episódios há muito olvidados,
uma tumultuosa onda de saùdade e de indecifrável
ternura invadia-o. Ah! êsse bom Frederico! Havia
perto de dois anos―desde o seu casamento, a que êle
assistira―que não tornara a vê-lo. Nos primeiros
meses
de casado, como o seu forte amor por Júlia reclamasse
um absoluto recolhimento, isolou-se inteiramente
das suas relações, duma sociabilidade que o
não
interessava. Fizera, com ela, uma longa viagem de
núpcias por países que nunca visitara e que muito
desejava conhecer, encantado pelo anonimato da sua
individualidade no meio das ruidosas multidões. Estiveram
em Itália, em França, na
Suíça, observando
[38]
uma civilização que se denunciava radiosamente em
tôdas as manifestações da actividade
humana, na
sumptuosidade de capitais que são resumos lúcidos
do mundo consciente, passando as manhãs nos Museus,
indo à noite aos teatros, aparecendo nos sítios
preferidos pelo mundanismo para a exibição
maravilhosa
da esplêndida flor do luxo e da beleza, ofertando
à adoração que os estreitava a
surprêsa de espectáculos
constantemente novos e cativando pela
sua variedade infindável. Depois, quando regressaram
ao Pôrto, amando-se mais porque entre os dois
se tinha feito uma perfeita unidade moral e afectiva,
Frederico havia partido igualmente «para uma
confortável
vadiagem por êsse bemdito Portugal» como
dizia numa carta a Nuno, porque, mesmo separados,
nunca deixaram de estar juntos em espírito,
correspondendo-se
com regularidade, comunicando-se as
impressões recebidas, as opiniões, os
pensamentos,
os pontos de vista, por uma necessidade imperiosa,
que provinha de identidades de inteligência e simpatias
de temperamento.
Frederico nada ocultava ao amigo e ao camarada,
confessava-se-lhe sinceramente. Uma casualidade
singular os aproximava ainda mais:―eram
ambos ricos, sem família, fizeram o mesmo curso,
manifestavam
as mesmas predilecções. Nuno conhecia-o
minuciosamente no seu carácter, na sua psicologia,
nas suas tendências, nos seus hábitos. Um pouco
leviano e volúvel, por certo. Não havia em
Frederico
estabilidade de sentimentos, fixidez, reflexão. Os
seus actos quáse nunca estavam em concordância
com as suas ideias. Abandonava inconsideradamente,
como futilidades sem raízes na realidade universal,
[39]
projectos no dia anterior aceitos com entusiasmo e
fervor, como se representassem a verdade irredutível.
Era um dêsses homens estranhos que, possuindo
um grande orgulho de si próprios, ou pela superioridade
mental ou por dons puramente exteriores,
são incapazes de contrariarem a sua espontânea
vontade,
de se sacrificarem na satisfação do seu sonho,
muito embora sigam por caminhos errados, de renunciarem
ao que, para êles, encerra um efémero
minuto de prazer. Foi por isso mesmo que não quis
jàmais reduzir ou comprometer a sua liberdade,
conservando-se
solteiro com mêdo às responsabilidades
duma família, ao jugo dos deveres contraídos.
Nuno
lembrava-se, enquanto reavivava um passado ainda
recente, do desgôsto que em Frederico provocara a
sua decisão de casar-se com Júlia. Êle
ouvira-o friamente,
com uma expressão de sarcasmo na bôca―um
sarcasmo em que havia compaixão e desdêm.
―E tu devias fazer o mesmo. Arranjavas, assim,
uma ocupação séria!―dissera-lhe Nuno.
―Ah! obrigado pela intenção―respondera
Frederico, sêcamente e encolhendo os ombros.
―Homem, parece que estou a aconselhar-te
uma acção má!...
―Não! Apenas me aconselhas a loucura, o
absurdo...
Êle, casar-se, efectivamente! Nunca sentira
vocação para a vida conjugal, sempre que se
consultava
sôbre êsse complicado e perigoso problema. Julgava
que o casamento destruiria tôda a sua paz, tôda
a sua felicidade―se é que essa felicidade significa
mais alguma coisa do que uma rima frívola em
poesia ou do que uma imagem literária.
[40]
―Tu bem sabes, Nuno, que não sou um inexperiente
em amor―asseverou Frederico.
Não era um inexperiente, na realidade. Nuno
conheceu-lhe, durante muitos meses, uma ligação
sentimental
íntima com uma linda rapariga que êle seduzira
e de quem mais tarde, saciado, fatigado, desiludido,
se afastou, oferecendo-lhe um forte punhado de
oiro. E, nessa ligação, que foi mais do que um
capricho,
a princípio, porque a sua alma nela teve
interferência,
encontrou Frederico a certeza de que, para
o seu organismo, para a sua individualidade psíquica,
as venerações eternas e conservando
perpétuamente
a mesma intensidade, as afinidades da carne e da
emoção que estabelecem para sempre uma estreita
comunidade física e ideológica entre dois seres
de
sexos diferentes, pelo laço do desejo insaciável,
que
incessantemente se renova, e das semelhanças espirituais,
representam uma engenhosa mentira.
―A não ser―concluiu êle―que para
além
da minha experiência haja um mundo por mim ignorado.
―Porque não hás de tentar a sua
descoberta?―insinuava
Nuno.
―Porque não quero enliçar-me em aventuras
arriscadas... Se falhasse, o mal seria irremediável.
Nuno casou, entregou-se às meigas
preocupações
do seu amor, não tornou a falar com Frederico, a
não ser por cartas: mas êste facto nunca mais lhe
esqueceu.
Permaneceria ainda o amigo dentro dos
apertados limites das mesmas ideias, prevaleceria no
seu espírito o terror ao casamento? Era provável
que
assim fôsse: mas Frederico seria uma testemunha da
sua felicidade, que era imperturbável e perene: e
[41]
podia muito bem acontecer que modificasse raciocínios
falsos. Felicitava-se por êle haver aceitado o
seu convite, porque talvez a permanência naquela
casa o convertesse―o que seria sumamente grato
ao afecto que lhe consagrava.
―Porque não? Porque não?―monologava
Nuno.
A aridez da existência de Frederico entristecia-o,
porque o estimava profundamente. A-pesar da sua
leviandade, duma ponta de cinismo que a vida lhe
transmitira, do pessimismo que tornava estéreis
os seus anos alacres e improdutiva a sua actividade,
êle era um excelente moço duma lealdade firme,
afável,
encantador por mais dum traço da sua personalidade:
e só por isto, lhe abrira alegremente a porta
da sua vivenda onde com sobressalto, quáse com
ciúme,
guardava quanto possuía de mais querido e de
mais puro...
Um berro súbito interrompeu o fio do scismar
de Nuno. Frederico, já lavado do pó da viagem,
já perfumado, já mudado de roupa, entrou
inesperadamente
na varanda, exclamando:
―Tenho andado a procurar-te por tôda a parte
inutilmente.
―Estava aqui a reviver coisas extintas que a
tua chegada me sugeriu. E sabes o que evoquei?
Não sabes? Pois foi a última conversa que tivemos
nas
vésperas do meu casamento. Lembras-te?
―Perfeitamente...
―E ainda pensas da mesma forma?
―Pois que razão havia de desviar-me dêsse
pensamento?
―Vejo que és um convicto no êrro.
[42]
―Como tu o és na verdade...
―Bem, bem. Não falemos mais nisso!... Ocupemo-nos
de coisas proveitosas. Nem sequer viste o
meu morgado... Vou mostrar-to. Anda comigo.
Enquanto se dirigiam ao quarto da ama, que
comunicava com o de Nuno por uma ampla porta, êle
ia-lhe fornecendo esclarecimentos sôbre o filho:
―Oh! é um respeitável senhor com as pernas e
os braços às roscas de carne, uma cara rabugenta
e
uns olhos negros como contas de vidro que, a-pesar-de
ser ainda pequenino, é já um déspota.
Manda em
mim, manda na mãe, que o adora, e, como os
príncipes,
tem servos atentos à volta da sua importante
pessoa. Todos nós somos seus escravos.
Atravessavam um corredor quando Júlia apareceu
com a criança ao colo, entre rendas, cambraias,
laçarias de sêda.
―Aqui o tens. Vê que figurão!
Frederico curvou-se para uma carinha rosada,
emergindo da brancura imaculada das roupagens, tocou-lhe
levemente com a mão na face, esteve um
momento a contemplá-lo.
―Hein? Que te parece?―perguntou Nuno,
beijando, com ternura, o pequenino.
―Admirável!... Com certeza que a estas horas,
já elegeste, para êle, um destino
incomparável, já
meditaste na situação que mais lhe
convêm. É o primeiro
dever dos pais.
―Coitadinho!―murmurou Júlia, enlevada.
―E V. Ex.
a
tambêm, minha senhora. Ah!
as
mães! Se elas forem tôdas como a minha, que era
uma santa, nunca se sentarão à beira dum
berço sem
sonharem quimeras para os seres que lá dormem.
[43]
―Não, não! Eu apenas quero que êle
viva,
para o meu amor, para o amor de Nuno.
―Cá por mim―atalhou Nuno―decidi.
―Sim? Então, conta lá...
―Resolvi fazê-lo rei, dar-lhe um trono...
―Oh! Nuno, que disparate!...―interrompeu
Júlia.
―Disparate? Ora essa!... Que dizes tu, Frederico?
―Eu digo que, na verdade, um trono é uma
grande comodidade para os mortais, mesmo por êstes
ásperos dias de democracia, de
revoluções, de
indisciplinados movimentos políticos e religiosos.
Sim, minha senhora. Nuno está na sapiência. Uma
corôa, uma rialeza, milhões de vassalos vergados e
sem vontade sob o poderio dum scetro é, entre
tôdas
as vaidades humanas, a mais invejável vaidade. Resta
saber...
Júlia ouvia saborosamente as palavras de Frederico,
afagando o filho, aconchegando-o mais nos
braços, encostando-o ao seio com infinitas cautelas.
―Resta saber o quê?―interrogou Nuno.
―Resta saber se o pequerrucho terá uma decidida
vocação para tirano...
Riram com alarido, dando alguns passos no
corredor que a meia-tinta da luz refrescava.
―Se sair à mãe, será um tirano de
primeira
ordem!―concluiu Nuno, rindo ainda.
―Não creia, Frederico―replicou Júlia,
jovialmente.
Quem aqui sofre um domínio tirânico,
sou eu!... Nem pode calcular...
―Imagino, imagino, minha senhora. E lamento-a.
Em outras épocas, nos séculos mortos da
cavalaria,
[44]
eu
ofereceria a V. Ex.
a
uma espada
libertadora.
Mas, desde D. Quichote que os cavaleiros
andantes não são bem vistos pela
polícia. Tudo quanto
posso fazer é recomendar-lhe
resignação...
―Sou já uma resignada―disse ela, envolvendo
Nuno num inexprimível olhar de afecto.
A ama veio pegar na criança, que agitava os bracinhos,
que levava os punhos fechados à bôca e galrava,
quando em baixo, no rés-do-chão, uma sineta
de estridente timbre, tocou para o almôço,
assustando
as pombas no pombal.
―Ora, graças a Deus! Pensava que nos querias
hoje matar à fome, Júlia―disse Nuno.
―Que horas são?
―Meio-dia. E Frederico deve estar com um
apetite igual ao de Ugolino na sua prisão. Desde alta
madrugada que rolou, através de estradas poeirentas,
para nossa casa, animado na sua tortura pela única
esperança duma farta mesa...
―Nem só de pão vive o homem―exclamou
Frederico. Mas lá apetite há, bemdito seja o
Senhor
que nos fez assim glutões e terrestres.
Foram caminhando pelo corredor, ao lado de
Júlia muito elegante no seu vestido de sedinha branca―um
vestido que lhe modelava nítidamente as
linhas corpóreas, ondulantes e flexíveis, e em
que
havia harmonia, graça e ritmo―entrando, por fim,
na sala de jantar, que era espaçosa, clara,
aprazível,
com o seu mobiliário de nogueira americana, as
suas três janelas abrindo para o jardim, os seus cortinados
de renda inglesa, os seus
brise-bise
de tule bordado.
Nos aparadores, as pratas resplandeciam, iluminando-se
de súbitas claridades; o esmalte das porcelanas
[45]
pintadas
faíscava
de brilhos metálicos; os
cristais dardejavam a um raio de sol que incidia nas
vidraças e se prolongava como um delgado fio de
ouro, ardendo, fulgurando, tremendo sôbre o verniz
dos móveis. Uma perturbante fragrância vinha de
fora, exalando-se das corolas, subindo na aragem.
―É agradável, esta sala!―louvou Frederico.
―Como situação...―alvitrou Nuno.
―Por tudo:―pela situação, pelo aspecto
ornamental,
pela simplicidade, que logo revela o solícito
cuidado e o bom gôsto feminino... Os meus
cumprimentos, minha senhora.
―Ora! Amabilidades de hóspede amável!―disse
Júlia.
―Mas não, mas não! Digo a verdade, digo o
que sinto.
A larga toalha da mesa, do linho mais puro
e mais fino, alvejava entre os solitários com cravos
e avencas e espalhava frescura; largas cadeiras de
couro lavrado, de alto espaldar e pregarias de metal
amarelo, ofereciam repouso; dos pratos cheios de
fruta evolavam-se vivos aromas; os morangos, colhidos
de manhã, no morangal, por Nuno, perfumavam
o ambiente. Sentaram-se: e Frederico, desdobrando
o guardanapo vagarosamente, afirmou:
―Pois, senhores, adorável retiro para uma doce
convalescença de espíritos doentes, para um
perfeito
exame de consciência! Aqui é o El-Dorado que
o dr. Pangloss em vão procurou na terra.
―Tu o dirás!―retorquiu Nuno. Mas mais
tarde. Por enquanto, é cedo para julgamentos ousados.
Não te precipites, não arrisques
opiniões temerárias
[46]
que
podem ser erradas... Chegaste há
três
horas apenas.
―Há três horas já? Nunca, para mim, o
tempo
fugiu tam ligeiro...
Júlia sorria sempre, muito rosada, muito animada,
diante de tôda aquela efusão do amigo da
casa, que viera trazer com o seu afecto por Nuno
mais movimento e mais vida à tranqùilidade
inefável
da vivenda rural. Os cabelos abundantes, enrolados
no alto da cabeça e apenas presos por travessas
guarnecidas a ouro em que fulguravam pequenos
brilhantes talhados em rosa, caíam-lhe em madeixas
até ao lóbulo das orelhas, onde duas
pérolas dum
belo íris reluziam em fogos surdos. Na sua testa
ebúrnea
havia toques de luz. Frederico olhou-a um momento,
assim envolvida de claridade, satisfeita na
sua ventura de mulher, numa atitude que dava a tôda
a sua pessoa um extraordinário poder de
sedução.
―Quem tem feito uma grande diferença, para
melhor, é a snr.
a
D.
Júlia―disse.
―Sinto-me bem, com efeito!―respondeu ela.
―Eu, de resto, apenas a vi no dia do casamento,
e já lá vão dois longos, fastidiosos
anos. Mas parece-me
que tem mais côr e mais saúde, que está
um
pouco mais nutrida.
―Pois, olha que veio para aqui adoentada,
muito fraca―esclareceu Nuno. Meses depois do
nascimento do filho, chegou a inspirar-me cuidados.
Os médicos mandaram-na sair da cidade a tôda a
pressa: e, com efeito, na aldeia, curou-se. Não
há
como o campo, para êstes milagres.
―Visto isso, minha senhora, por gratidão,
deve ficar aqui, esquecer as grandes
aglomerações,
[47]
que são o veneno, a indigência orgânica,
a morte...―comentou
Frederico.
―Por mim, ficava. Mas Nuno não se acostumaria
à solidão, à tristeza, ao
isolamento...
E, como êle protestasse, acudiu logo:
―E nem eu, tambêm. Já outro dia falamos
nisso... O inverno, neste destêrro, deve ser medonho...
O almôço decorreu alegre, no calor constante
das palestras a que Frederico imprimia vivacidade
e graça, com a sua
verve
faíscante. À sobremesa,
a conversação derivou para as questões
sensacionais
do dia, motivadas pela guerra que, dum
extremo ao outro, pegava fogo à Europa, sepultando
em ruínas uma civilização que levara
tantos
séculos a construir. Nuno achava-a necessária,
pois
só por ela seria possível restituir a liberdade
aos povos
e a independência às nacionalidades
débeis.
Júlia, pensando no filho, na desdita das outras
mães,
nas torrentes de sangue e de lágrimas que corriam
nos campos de batalha e nos lares lutuosos, horrorizava-se
com uma carnificina que imolava à morte
as primaveras humanas. Não compreendia a ferocidade
dos homens e das nações,
despedaçando-se por
ambições de domínio, de hegemonias
políticas, de
conquistas de territórios e de mercados comerciais,
quando para todos havia um lugar ao sol e um direito
à existencia. Falava com uma verbosidade que
Nuno não lhe conhecia e que encantava Frederico.
―V. Ex.
a
, minha senhora, é uma das
poucas
mulheres que assim pensam e eu creio que, como
mulher, está na lógica e na verdade. Mas quer
saber
o que faz o gentil mundo feminino das potências
[48]
envolvidas no conflito? Não pensa nas modas, no
luxo, o que até agora parecia impossível.
Trabalha
nas fábricas de munições, faz
granadas, engenhos de
destruìção!...
―Por isso mesmo, essas mulheres são
admiráveis!―atalhou
Nuno, com entusiasmo.
―Admiráveis? Oh! Nuno, que heresia!―contrariou
Júlia.
No seu critério simplista, ela compreendia que
as mulheres, seres de abnegação e de
sacrifício, destacando-se
mais intensamente pela emoção do que pela
inteligência, mais pelo espírito do que pelo
cérebro,
amassem as suas pátrias; mas era-lhe doloroso
pensar que mãos de afago e de carícia, feitas
para
apaziguarem o sofrimento, para enxugarem com
infinita doçura os olhos que choram, para sararem
feridas, se ennegrecessem na pólvora, destinada a
devastar homens que vão para os combates, passivamente,
como as rêses para um matadouro. A sua
colaboração nas pendências guerreiras
nunca devia
ir alêm dos hospitais de sangue, onde acalmariam
dores e tranqùilizariam delírios.
―Pois, não é assim, Frederico? Diga! Seja
imparcial.
―Na realidade, minha senhora, através de
tôda a história, nunca vi as mulheres associadas
às lúgubres matanças. Pelo
contrário, tenho-as
visto sempre dispostas a lutar para conseguirem
tudo o que signifique elevação, nobreza, bondade,
amor. Elas foram, positivamente, os melhores arautos
de Jesus para a vitória do Cristianismo, que
redimiu o mundo; elas impuzeram, com as religiões,
a arte e a poesia.
[49]
―Então, aí está!―disse
Júlia, com um sorriso
triste.
―Vejo que tu não eras capaz de dar o teu
filho, se ele fôsse grande e pudesse manejar uma arma,
para a defesa do país―exclamou Nuno.
―Com certeza que não!―asseverou ela resolutamente
e com uma grande convicção na voz. E
digo-to:―para o defender da morte, eu era capaz
de tudo, de tudo, mesmo dum crime.
―Pensa, portanto, no heroísmo das outras
mães...
―Nenhuma delas os dará de bôa vontade...
Arrancam-lhos à fôrça, cruelmente !
―Repara, Frederico! Aqui tens uma compatriota
de Brites de Almeida, a padeira de Aljubarrota,
de D. Filipa de Vilhena, doutras criaturas heróicas!―zombou
Nuno.
―Ela está na razão, pensa como mulher―e as
mulheres, verdadeiramente, só vencem pelo sentimento.
Acenderam os charutos e continuaram a discussão,
enquanto Júlia, levantando-se, dava ordens
á criada para que o café e os licores
fôssem servidos
no jardim. Nuno, que a guerra apaixonara, ia
agitando ideias, condenava o pacifismo que estava
fóra da sua acção eficaz:
―Positivamente, por melhor intencionado que
seja, o pacifista é um produto nocivo do nosso estado
de perturbações e de ameaças.
Até hoje, imaginou
erradamente que a maneira mais prática de
realizar-se a paz seria odiar e condenar todos os movimentos
armados dos povos, sem distinguir lúcidamente
entre o justo e o injusto, entre a honra e a
[50]
cobardia. Quando a tranqùilidade do mundo entrava
numa fase precária, êsse pacifista aconselhava a
transigência dos menos poderosos, o que era uma
vileza.
―Mas que outra coisa poderia êle fazer?―inquiriu
Frederico, interessado e soprando baforadas
de fumo.
―Que outra coisa poderia fazer? Homem,
desconheço-te, perdeste a sagacidade antiga! No
domínio espiritual, a felicidade resulta da filosofia
e da religião; e no domínio material, da
sciência e
do trabalho. Igualmente, e nesta ordem de raciocínios,
a paz deriva do equilíbrio das potências e das
precauções a tomar contra aqueles que pretenderem
destruir êsse mesmo equilíbrio. A
missão útil e nobre
do pacifismo, se êle não andasse transviado, seria
esta, portanto.
―É ainda impotente para isso―opinou Frederico.
―Porque lhe falta organização―respondeu
Nuno.
Júlia reentrou na sala para dizer que o café
já
fumegava sob as árvores e entre as flores, à
espera.
―Já lá vamos, minha senhora!―informou
Frederico. Estávamos aqui a desenvolver coisas
muito sérias de sociologia e de política. Nuno
é terrível.
Tem uma argumentação, uma
dialéctica!...
―É porque estou na verdade.
Depois, debaixo dos arvoredos, o diálogo sôbre
o mesmo assunto ainda continuou, caloroso, vivo,
na tarde serena co
Depois, debaixo dos arvoredos, o diálogo sôbre
o mesmo assunto ainda continuou, caloroso, vivo,
na tarde serena como a doçura e a melancolia duma
rosa de luz e de sêda que se desfolhasse lentamente.
A sombra, caíndo, despregando-se molemente das
[51]
ramarias, espalhava na areia das ruas movediças
manchas rôxas. Um ar esperto e vitalizador circulava.
O sol, descendo para o poente, refulgia e dourava
tudo aquilo em que tocava.
Nuno surpreendia uma beleza nova nas vastas
massas de homens que avançavam para as batalhas
altivamente, sem o temor no coração, sem a
palidez nas frontes―nesses soldados que conheciam
a embriaguez do sacrifício total a um pensamento
grande e nobre e que, no
élan
supremo das
cargas, por entre o ciclone fulgurante da metralha,
tinham a visão nítida e simples das coisas,
sentindo
a divina claridade das almas heróicas, a alegria
prodigiosa da única verdade, que é a de lutar
até à
morte por uma liberdade mais ampla, por uma vida
melhor, pelo esplendor das nacionalidades a que
pertencem.
―Porque, não tenhas dúvidas! Desta
convulsão
saírá uma liberdade luminosa.
―Isto é―explicou Frederico―maior extensão
do privilégio. Eu não sei, realmente, em que
consiste
essa liberdade que tam calorosos hinos te merece...
―Não sabes? Pois é fácil
sabê-lo. A liberdade
perfeita consiste na absoluta adaptação dos
interêsses,
das actividades e das energias humanas. No
nosso tempo, a adaptação de que falo é
essencial
entre os indivíduos; entre a colectividade e as
instituições;
entre as instituições e os governos. Quando
isto se conseguir, a existência será mais suave e
mais
bela...
Na espessura dum caramanchão de madre-silvas
e clematites, um melro assobiava a sua canção
[52]
em louvor do claro dia; no parque, a solidão tornava-se
mais profunda; perto da varanda da casa,
sob a acácia, um gordo gato rebolava-se ao sol.
―Não creio que esta guerra nos dê uma liberdade
mais dilatada. Quando muito, fará apenas
com que a tirania empregue uma subtileza maior―contestou
Frederico.
―Não crês em nada. Perdeste a
fé―replicou
Nuno, bebendo o seu café a pequenos, espaçados
goles.
―Penso, porêm―continuou Frederico sem o
ouvir―que dela saírá alguma coisa de
inédito.
Com efeito, uma parte do culto ocidente sossobra e
afunda-se com a hecatombe. Tombaram, sucessivamente,
como as messes diante da fouce do segador,
as mocidades da Europa, que era a renovadora do
mundo consciente pelo génio artístico e
scientífico.
Essas mocidades haviam sido educadas pelos antigos,
pelos vélhos, pelas personalidades formadas em
ideias já conhecidas, semente de que germinariam as
searas futuras. Deu-se, portanto, com êste salto brusco
para o mistério, uma solução de
continuìdade. Do
saber guardado e arquivado nos livros, pouco subsistirá.
A Europa nova tem de educar-se por si, de refazer
uma consciência e uma sensibilidade, um espírito
e uma razão, em bases tambêm novas...
―Há talvez alguma verdade nas tuas palavras―atalhou
Nuno, surpreendido.
―Quem me diz que a Europa de àmanhã
não
terá de ir outra vez, como na Renascença,
às civilizações
extintas a procurar as suas inspirações?
―Não se anda para trás. A vida evolute numa
progressão ascendente...―exclamou Nuno.
[53]
―Não falo em retrocesso: falo na busca duma
fonte geradora de outros ideais. No entanto, se esta
peregrinação dos povos doloridos ao passado se
fizer,
muitas coisas hoje decadentes reconquistarão
o seu prestígio.
―Por exemplo...
―O Catolicismo que, depurado das suas
imperfeições
e das mentiras com que os homens o desfiguram,
terá belos e gloriosos dias.
―Que fantasia!
―Homem, contempla a febre, a ansiedade,
com que as nações que o tinham repelido,
novamente
se voltam para êle, procurando uma
consolação, uma
alegria interior que o racionalismo não lhes oferecia.
Em França os templos transbordam de fiéis. Nas
trincheiras, os padres combatentes pousam as espingardas
para dizerem a missa aos seus camaradas que
vivem debaixo da tempestade das granadas e da fuzilaria.
Não será isto uma profecia? Nas
terríveis
calamidades, Deus é preciso para que o sofrimento
seja menor...
Júlia voltou a aparecer com o filho ao colo.
O seu
perfil
, de linhas tam
delicadas,
recortava-se límpidamente
no disco, na auréola luminosa de que a
claridade lhe envolvia a fronte.
―Santo nome de Maria! Pois ainda discutem
a guerra?!...―interrogou ela.
―Sim! Temos feito, à volta de duas chávenas
de café e de dois cálices de
cognac
, uma enorme quantidade
de filosofia, minha senhora!―disse Frederico,
levantando-se e indo ao seu encontro. Nuno
tem sido duma eloqùência notável... Nem
V. Ex.
a
calcula.
[54]
― Eu sei, eu sei! Quando êle se apaixona por
uma questão, é um falador
incorrigível.
Nuno, que tambêm se aproximara do grupo,
todo afogueado do calor da controvérsia, acrescentou:
―Demos à língua, efectivamente. Desforrei-me
da minha mudez consecutiva de meses. Frederico
estava interessante...
Parou, um momento, absorvido na adoração
do pequenino, que mostrava os olhos espantados e
que incessantemente abria e fechava as mãosinhas
rosadas. Todo êle cheirava a perfumes, como uma
flor humana.
―Oh! lá, ó seu fidalgo!... Pst!...―acariciava
Nuno, pousando-lhe um dedo na còvinha do
queixo. Bem disposto, hein?
―Tomou agora o seu banho, sente-se feliz―disso
Júlia, baixando os olhos pensativos sôbre a
fronte do filho.
Ouvindo-a falar naturalmente, Frederico notava
nas suas palavras uma vibração, um timbre, um
enlêvo que não podia definir e que o perturbavam.
Na história da sua alma fazia-se uma página de
poesia
e de ternura, que lhe comunicava gôzo,
pacificação
interior. Como Nuno era feliz! E bem merecia
êle essa felicidade, pelos puros dons do seu
carácter,
pela sua bondade, pelas suas virtudes de
homem. Encontrara a mulher ideal que o completou
e que, à sua volta, fazia a graça, a serenidade,
a
confiança, o repouso.
―E aqui tens tu, Frederico―disse Nuno―a
minha pátria grande.
―Não! A tua família... A família
é apenas
[55]
a unidade da pátria, como o individuo é a unidade
da família.
―Bem! Que seja então a minha pequenina
pátria. Não quero outra. E tu, homem, porque
não
procuras uma?
Frederico olhou o amigo demoradamente, fitou
depois Júlia, agitado por sentimentos, por
inenarráveis
sensações que lhe pareciam
incompreensíveis
porque, na sua perturbação, não
conseguia explicá-los,
determinar-lhes a génese e o carácter. Por uma
revelação fulminante, via nessa doce mulher uma
imagem venerável e quási religiosa para que o seu
respeito e o seu reconhecimento subiam. Reconhecimento
de quê? Não o sabia.
―Tenho a certeza de que a não encontrava―respondeu
êle. Não possuo o génio das
descobertas.
―Não será isso egoísmo,
Frederico?―interrogou
Júlia.
―Egoísmo? V. Ex.
a
é
injusta com um homem
que resolveu sacrificar-se só a êle para
não
sacrificar os outros...
―Temos S. Francisco de Assis em nossa casa,
Júlia!― afirmou Nuno, afagando
distraídamente
o rosto do filho... Mas, se déssemos uma volta pelo
parque? A sombra, a amenidade do dia são convidativas.
E temos palrado tanto, justos céus!
Entraram vagarosamente na solitude dos troncos
e das folhagens onde corria uma fresquidão vitalizante,
na tarde pesada e quente. Através dos
ramos entrelaçados, num azul muito alto, flutuavam
farrapos esparsos de nuvens. Por tôda a parte,
sob a imensa abóbada de verdura, floriam cheirosos
[56]
arbustos que punham na suavidade da penumbra
uma atenuada e bela nota colorida. Por vezes, roseiras,
bracejando junto das árvores, trepavam às
ramagens, enroscavam-se nelas, rompendo depois
para o espaço livre em festões, em grinaldas,
desenhando
originais movimentos decorativos. Os seus
aromas harmonizavam-se, fundiam-se num só aroma,
que era excitante. No grande silêncio vespertino,
apenas se ouvia o canto medroso das aves que fugiam,
assustadas, da torreira do sol. Frederico e
Nuno caminhavam ao lado de Júlia, emmudecidos
para melhor sentirem e compreenderem a beleza envolvente.
A criança palrava entre as rendas e as cambraias
vaporosas; e uma bica de água, correndo perto
dum maciço de cedros e plátanos
enlaçando, casando
os seus ramos, cantava e brilhava na fina paz
vesperal.
―Isto é a delícia das
delícias―disse, por fim,
Frederico
. Há muito
tempo já que
não me reconciliava
tanto com a vida.
Enquanto êles se detinham numa clareira,
reencetando a conversa, Júlia adiantou-se alguns
passos, indo sentar-se num banco rústico de
cortiça
que ficava por baixo dum docel formado por mosqueteiras
ainda em flor. Ao vento brando que passava,
arripiando as fôlhas, um colorido e perfumado orvalho
de pétalas desprendia-se do alto, tremendo como
asas de borboletas, caindo sôbre Júlia e o filho.
Ela ria, com um riso mais contente, ditosa pela idílica
oferta que as trepadeiras faziam à sua gracilidade,
á sua pureza feminina, ao seu amor de espôsa,
à
sua divina maternidade, e Nuno e Frederico admiravam
êste espectáculo imprevisto.
[57]
―As flores, para serem justas, deviam-lhe
essa homenagem, minha senhora―declarou o hóspede.
O chuveiro das pétalas continuava sempre, cobria
duma geada aromática os cabelos de Júlia, o
rosto da criança.
―As bôas fadas saùdam a princesa, sua afilhada,
e o principe dilecto!―observou Nuno, enternecido.
É como nos contos de Perrault, nas lendas
doutras idades.
Por fim, Júlia levantou-se, tôda florida, com
as faces rosadas por uma ponta de sangue mais vivo,
enquanto Frederico a considerava, deslumbrado.
Como era encantadora e linda, na verdade!... E
outra vez louvou a felicidade de Nuno, do amigo
fraterno, para quem o destino tinha sido propício e
generoso, pondo no seu caminho, bem junto do seu
coração, aquela mulher incomparável.
―Vou-me embora. Faz aqui frio. Tenho mêdo
de que a criança se constipe―disse Júlia.
―Vai. Nós ainda por aqui nos conservaremos,
filosofando. Quero iniciar Frederico na formosura da
solidão!...―exclamou Nuno.
III
Os dias deslizavam serenos, para Frederico,
no encanto da simplicidade campestre, no íntimo
convívio de Júlia e de Nuno. Nenhuma
imperfeição
da vida dolorosa e amarga alterava a pacificação
dum ambiente que se fazia mais doce à volta de
tanta ventura humana. Ao contacto permanente das
coisas e dos sentimentos puros, o coração de
Frederico
purificava-se tambêm, como se fôsse um pouco
sua a felicidade dos outros. Vivia numa espécie de
esquecimento, não se lembrava de ter sofrido moralmente,
parecia-lhe que, na sua existência árida, no
seu sentimento estéril, desabrochava, por fim, uma rara
e ditosa flor. As faculdades emotivas subtilizavam-se
nêle; as tristezas, os desesperos que o haviam
atormentado em horas inquietas e febris, dissipavam-se
na sua alma. Passava por uma funda renovação,
penetrava-o uma fôrça estranha, formava-se-lhe
na inteligência e na moral um novo princípio: e
uma
[60]
prodigiosa multidão de sensações
espontâneas, que
não sabia interpretar, convertiam-se, para êle,
num
intenso fenómeno psicológico.
―Parece-me que vou renascendo, Nuno!― dizia
Frederico ao antigo companheiro de estudos. A
alegria que existe em tua casa comunica-se-me
tambêm aos nervos, à sensibilidade. E é
curioso!
A minha confiança no futuro, uma confiança que
nunca foi grande, aumenta agora sucessivamente.
Porquê? Porquê? Que elemento operou êste
milagre
estupendo?
―É porque só agora desperta em ti a capacidade
mental para a compreensão das coisas belas―afirmava
Nuno, zombando. O sêr pensante anda
inconscientemente perdido no turbilhão do mundo,
até ao momento singular em que acorda para a verdade.
Tu nunca leste o drama de Ibsen:―«
Quando
dentre os mortos nós
ressuscitarmos
»?
―Nunca li êsse nebuloso escandinavo, na realidade...
―Fizeste mal, porque Ibsen ensina-nos a analisarmo-nos
com lucidez... Eras um morto. Começas
a ressuscitar. E olha que é dêstes bons ares,
desta
claridade puríssima, da paz rústica, da singeleza
que
nos rodeia.
Frederico, em momentos de solitude, concentrava-se,
para melhor observar o seu caso, que era bizarro:
e tinha a impressão de que convalescia duma
doença de espírito e de corpo. Nesta
convalescença,
surpreendia-o um facto enigmático. Com efeito, alvorecia
nêle um encanto desconhecido que o absorvia
todo, que o exaltava e lhe perturbava os sentidos.
Levantava-se cedo, quando ainda a casa dormia na
[61]
frescura da luz, na ternura matinal, tomava o seu
banho bem frio, que o tonificava, descia ao jardim
que o orvalho nocturno tornava mais viçoso, passeava
nas ruas, fumando, entregando-se ao prazer contemplativo,
parando ingénuamente junto dos arbustos
floridos. Depois, Nuno levantava-se tambêm, vinha
ao seu encontro, ambos encetavam uma animada
palestra, que se demorava pelos inefáveis recantos
de sombra―por onde circulava um ar estimulante
e ligeiro―até ao almôço. Perto de
Júlia
Frederico principiava a sobressaltar-se, experimentava
uma ansiedade confusa que o angustiava. Nem
sequer pretendia investigar a origem dêsse sobressalto,
por temer que dentro dêle se fizesse uma
revelação assustadora e terrível...
Via-a andar dum
lado para o outro, nas ocupações caseiras,
tôda sorridente
e natural. A luz difusa imprimia-lhe mais nitidez
e destaque às linhas plásticas, dava uma
irradiação
maior à sua beleza de mulher completamente
formada. À mesa, sentada em frente dêle, perto
de Nuno, os seus olhos pensativos, iluminando-lhe o
rosto, pousavam, por vezes, sôbre Frederico, que se
sentia feliz sob aquela muda carícia em que nada de
impuro existia: e o tempo ia fugindo, leve e animado,
sem deixar resíduos de fadiga.
Nas horas de solidão e de calor, Nuno, cansado,
recolhia-se ao quarto para dormir a sésta: e Frederico,
pegando num livro, que escolhia na pequena
biblioteca do amigo, ou num jornal, dirigia-se ao
parque, indo sentar-se no banco de cortiça, sob a
mosqueteira que, na tarde da sua chegada, peneirara
uma chuva colorida de florações sôbre
Júlia
e sôbre o filho: e ali, fazendo esforços para
recordar-se,
[62]
evocava com saùdade um passado que já ia
muito
longe, quando a sua existência era inconsiderada e
o seu pensamento não tinha
inquietações. Na solidão,
no isolamento, estudava-se. Fôra sempre um
afectivo, por necessidades de temperamento, talvez
por vícios de educação: e, justamente,
essa afectividade
levara-o outrora para as aventuras de amor, em
que procurava o infinito para a sêde ardente que o
devorava e em que sempre encontrou o desengano,
a desilusão, o aborrecimento, o desgôsto. Certas
imagens
femininas que mais forte impressão lhe tinham
produzido, despertavam um momento nas suas
recordações. Lembrava-se, sobretudo, de Adelaide,
uma pobre e linda costureira por quem se apaixonara
e com quem fez um idílio saboroso que durou
seis meses. O alvorôço com que para ela
fôra
impelido, como se essa mulher pudesse oferecer-lhe
a verdade nos seus beijos!... Mas, sossegada a
animalidade dum sensualismo grosseiro, apaziguada
a febre carnal, viu que se havia iludido, mais uma
vez, e que a crédula rapariga que nêle confiara,
entregando-se-lhe, nenhum gôzo emotivo e intelectual
lhe daria para assim prolongar uma voluptuosidade
que a posse arrefeceu.
Nuno reconhecera êste seu romance, tinha-o mesmo
reprovado, dizendo-lhe que êle andava a gastar,
em caprichos banais da fantasia e da luxúria, e em
desvairamentos românticos, a reserva de energia sensitiva
de que precisaria mais tarde para uma adoração
séria que lhe enchesse tôda a vida, que o
transfigurasse.
Só depois, quando o desalento surgiu―e
com êle o cansaço, o enfado, a
saciedade―Frederico
verificara que Nuno estava na razão... Que
[63]
seria feito de Adelaide? Em que lamaçais profundos
teria caído? Por que despenhadeiros a iria conduzindo
a mão implacável do destino? Frederico, na noite
em que decidiu separar-se dela―uma noite tempestuosa
que
decorreu
entre
lágrimas e
lamentações―deixara-lhe
sôbre a roupa desfeita do leito
uma carteira com dinheiro. Fôra a sua primeira
acção
vil, porque nenhum ouro pagaria a felicidade para
sempre destruida duma alma que era virginal quando
o seu egoísmo a encontrou; mas, nesse procedimento,
reprovável de-certo, guiara-o ainda a generosidade.
Parecia-lhe que um punhado de notas de
Banco atenuaria o seu abominável feito―e só
agora
reconhecia o seu êrro e a sua ignomínia...
Com o livro ou o jornal, que não lia, abertos
sôbre o joelho, scismando ininterruptamente, seguindo
com os olhos vagos as espirais de fumo do charuto,
que se esgarçavam e ascendiam na atmosfera
luminosa, Frederico, durante longas horas, revivia
os seus fantasmas inertes e experimentava a
sensação
dum pêso contínuo que o esmagava, que esmagava
tôda a sua vida. Oh! a bela quimera dum
amor eterno, conservando sempre a mesma intensidade,
a mesma fôrça superior de
atracção, uma
fonte inexaurível de sentimento, uma novidade que
jàmais, jàmais, se banalizasse para os
corações que
fizesse palpitar! Existia êle, na verdade? Ou não
seria
mais do que uma mentira entre o acervo de mentiras
de que o mundo estava cheio e que os homens
criavam conscientemente para se iludirem a si próprios?...
Mas, quando o seu scepticismo era mais devastador,
o exemplo da união feliz de Júlia e de Nuno
[64]
surgia-lhe como a imagem tangível dêsse amor de
que duvidava. Então, para explicar a
contradição
que lhe exacerbava o sofrimento, construía teorias
originais.
―O que há é almas completas e almas incompletas.
Umas, possuem uma finura sensível que as
torna perfeitamente aptas para a vida amorosa. Outras
não teem uma receptividade que as faça vibrar
sob as influências dessa vida, e daí deriva todo o
mal,
que vai espalhando nas sociedades a funda melancolia
contemporânea. A alma de Nuno pertence às
primeiras...
De resto, Frederico entendia que as verdadeiras
mulheres são as admiráveis educadoras do
sentimento, as inspiradoras sublimes de tudo o que
pode fazer os homens grandes dentro do lar. Júlia
era uma dessas mulheres excelsas, pelas graças do
corpo e pelas graças mais puras e elevadas do
espírito:
e a ventura de Nuno provinha de êle a ter encontrado
no seu caminho. Por sua parte, em vão buscaria
uma criatura assim, que fôsse a companheira
ideal e perpétuamente desejada, a amante
incomparável,
a espôsa atenta, a mãe solícita! Com
ela,
a sua existência improdutiva entraria numa fase diversa
e activa, numa realidade que nunca se extinguisse...
Lembrando-se insistentemente de Júlia, Frederico
era assaltado por um sentimento curioso. Tinha
a sensação especial de estar encerrado num
círculo muito estreito, em que nada havia de claro,
de definido, de preciso. Tôdas as impressões da
natureza
exterior passavam por êle, velozmente, sem lhe
provocarem uma simpatia mais demorada. Apenas
[65]
lhe ficava, na intimidade moral, a noção profunda
do
seu próprio isolamento, entre a vastidão e o
tumulto
das aspirações indecifráveis. Sofria
essa fascinação
estranha que um desejo veemente―que se
não abandona, porque o abandôno excitaria o
padecimento,
e se não procura realizar tambêm, porque a
realização teria
conseqùências funestas―produz
nas almas!... Por cima da sua cabeça, a mosqueteira,
ramalhando ao vento, sacudia os seus cachos aromáticos
que se desfolhavam numa nuvem loura;
ao seu lado, a fonte, correndo no jôrro faíscante
da
água entre musgos verdes e veludosos, cantava
sempre, exalando-se em frescura e murmúrio. Frederico,
extenuado de imaginação pelas suas
infindáveis
rêveries
, erguia-se,
fechava o livro inútil, o jornal
mais inútil ainda, e recomeçava o passeio por
entre os arvoredos, por entre os canteiros de flores,
onde umas abelhas, tam douradas como as do Hymeto,
procuravam o mel. Nuno, às vezes com os olhos
inchados de sono, uma preguiça que lhe comunicava
lassidão, um pouco còrado, descia ao jardim,
perguntava-lhe:
―Em que passaste o tempo?
―Meditando, sentado num banco do parque―respondia
Frederico.
―Procuras, como S. Bruno, os logares solitários
para pensares nas felicidades do céu?
―Homem, ando a tratar da minha conversão
e S. Bruno, efectivamente, é um modêlo
desejável.
―E se fizéssemos uma jornada mais larga,
por êsses campos, por essas amplidões?
Júlia podia
ir tambêm...
[66]
―Acho o teu alvitre muito digno de ser aceito.
Iam acima chamar Júlia,
calçar luvas que lhes
resguardassem as mãos dos bafos da soalheira e do
pó cáustico dos caminhos, e na suavidade
maravilhosa
da tarde, rindo, conversando, sensíveis ao mais
fugidio eflúvio do ar ambiente, metiam pelos atalhos
escorregando por entre sébes que as madre-silvas
perfumavam, por azinhagas onde havia repouso
e penumbra, por congostas que os ervaçais reverdeciam.
A essa hora do dia, no delíquio da luz que
principiava, tudo era gracioso, jovial. Dos casais
disseminados pelas terras cultivadas, subiam colunas
delgadas e direitas dum fumo branco, que algodoava
o espaço. Nas eiras secava o milho, que lembrava
pequeninas bolhas de sol cristalizado. Errantes,
nas pastagens, os bois erguiam um instante a cabeça,
para os ver passar, fitando-os com uns grandes
olhos de infinita melancolia. Júlia que marchava
à
frente, na elegância dum vestido de tecidos leves
que lhe modelava puramente as formas corpóreas,
assustava-se, tinha mêdo, soltava pequeninos gritos,
acolhia-se à protecção de ambos. A
palha do seu
chapéu em que, entre laços de veludo negro,
destacava
a côr sugestiva de pálidas rosas de toucar,
fazia-lhe
uma sombra doce no rosto adorável. Nuno animava-a:
―Que mulher! Que criança! Tem mêdo dos
bois, que são tam mansos. Oh! tôla! Olha que
não
fazem mal!...
Frederico ria-se e achava-a encantadora.
Cortavam através das pradarias, das lezírias,
das veigas, ao acaso, sem fim. Às roupas de Júlia
prendiam-se os perfumes dos fenos atravessados, que
[67]
as suas saias roçavam, as seivas vitalizadoras das
ervas esmagadas. Sentiam uma grande e nobre
pacificação
interior. O gôzo íntimo emmudecia-os.
―Hein, Frederico? Como isto é diferente da
cidade! Era preciso que conhecesses a aldeia, homem.
A aldeia é a verdade―
dizia
Nuno,
entusiasmado.
Frederico não conhecia a aldeia, com efeito, e
nunca imaginara, vendo-a através das janelas de
combóios lançados a tôda a velocidade,
que pudesse
seduzir sêres civilizados; mas, eis que ela se lhe revelava,
totalmente, por uma feição atraente, que o
cativava. Louvava, com sinceras palavras, a
fertilidade
dos extensos domínios, que são o
Calvário da
gente humilde e que a sua dor, o seu suor, a sua miséria,
fecundam; as casas dos camponeses, duma
arquitectura rudimentar; os milheirais de longas
fôlhas já sêcas, ondulando e rangendo
à aragem; a
paìsagem que a luz, fulva e rutilante, espiritualizava,
transmitindo-lhe animação, uma vida
quáse supersticiosa,
insuflando-lhe uma alma. De quando em
quando, Júlia, batendo as palmas de contente, detinha-se
para observar de perto as trepadeiras silvestres
que se cobriam de florescências cheirosas, e as
suas mãos, que eram tam lindas, tinham delicadezas
extrêmas ao tocarem nas folhagens, nas corolas rescendentes.
―Veja que beleza, Frederico!―convidava ela.
E fazia um ramo que prendia, com alfinetes,
na blusa de sêda―uma sêda transparente que o
tom sadio e casto da sua carne rosava.
A cada momento deparavam vergeis em que
os frutos apetitosos amadureciam. Nos ramos mais
[68]
altos, as maçãs còravam ao calor como
faces humanas;
as laranjas, no meio das fôlhas, redondas e
amarelas―dum amarelo brilhante,―ofereciam-se às
gulodices. A terra mostrava-se hospitaleira e generosa,
e Frederico, já iniciado, sob o céu que tinha a
meiguice dum amoroso olhar humano, compreendia,
enfim, que essa terra, mãe piedosa e inexaurível,
comunicasse às criaturas um pouco da sua bondade
clemente, da sua energia vigorosa, inspirando-lhes
uma regra justa da vida. Diante dos casebres pobres,
Júlia, compadecida, parava, contemplando com piedade
as crianças rotinhas e sujas que brincavam
pelos portais e pousando-lhes os dedos sôbre as
cabeças.
Elas fitavam-na, espantadas, com um secreto
temor no olhar.
―A vossa mãe?―perguntava.
―Não está cá―respondiam elas, com
modos
agressivos.
Dava-lhes moedas de cobre, amimava-as com
essa ternura que só as mulheres felizes conhecem,
enquanto Nuno, enojado da porcaria em que a gracilidade
daquela infância murchava, dizia:
―Nas aldeias há, de-certo, muita pobreza,
muita penúria. Mas tambêm há muito
desleixo. Oh!
senhores, uma tina de água transformaria em flores
êstes pequeninos selvagens!
―Que queres tu, Nuno?―atalhava Júlia,
condoída. As desgraçadas mães
trabalham um dia
inteiro e quando chegam a casa o que querem é repousar.
Vendo-a assim, luminosa, pura e branca no
meio das meninices desditosas, Frederico tinha
a visão deslumbrante duma aparição
celeste baixando
[69]
do azul, num vôo brando, para consolar
aflições,
acolher no seu desamparo as plebes lacrimosas,
sarar feridas, suavizar torturas: e cada vez a
sua admiração por Júlia mais crescia.
Nela tudo era
perfeito, sedução, perfume, ritmo, claridade: e o
encanto
que derramava à sua volta penetrava-o até
ao âmago da consciência. Pensando na sua beleza,
na unção da sua bondade, abstraía-se
por tal modo
que até chegava a esquecer Nuno, marchando ao seu
lado: e era-lhe necessário fazer um
esfôrço violento
para reentrar na realidade das coisas.
Nestes instantes, analisando-se, espavorido, perguntava
a si próprio se não estaria interessando-se
demasiadamente por essa mulher tam digna e tam
cândida que, legítimamente,
pertencia ao seu melhor,
ao seu único amigo. No espírito passava-lhe
confusamente a recordação doutros dias
já extintos
em que, entre êle e Nuno, se fôra consolidando uma
camaradagem nunca interrompida; e, por isso mesmo,
julgava que a fôrça secreta que o impelia para
Júlia
era uma traição... Uma
traição? A esta ideia, ficava
transido de terror e ansiosamente pretendia conhecer
a essência da sua admiração, da sua
simpatia, para
ver se nelas surpreenderia qualquer coisa de impuro:
mas, a análise minuciosa tranqùilizava-o.
Não!
Não existia nenhuma impureza no seu sentimento.
Amava Júlia santamente, como amaria uma irmã
mais nova.
―Em que diabo vais tu a matutar, Frederico?―interrogava
Nuno, intrigado com a sua prolongada
mudez.
―Eu? Em nada! A paz rural mergulha-me
num estado psíquico de tal ordem que me torna
[70]
incapaz de sustentar uma conversa. Verdadeiramente,
nem sei o que hei de dizer. Custa-me a articular
os vocábulos, a construir as expressões.
Quando o crepúsculo, descendo progressivamente,
idealizava as perspectívas e desdobrava sôbre
arvoredos, sôbre outeiros, pelas encostas, pelos vales
mais fundos, uma sombra e uma névoa que de
instante para instante se adensavam e gradualmente
escureciam, regressavam a casa, satisfeitos, reconciliados
com a natureza que lhes ofertava alegrias,
prazeres nunca experimentados. Júlia, pousando os
ramos de flores silvestres, que sempre trazia das
suas digressões pela campina, corria para o filho,
já
saùdosa da sua inocência, da sua formosura.
Devorava-o
com beijos, acariciava-o com meiguice, mostrava-o,
orgulhosamente, a Nuno, que sorria enlevado,
a Frederico, que a fitava num alheamento.
Os
stores
subidos das janelas
deixavam entrar os
derradeiros fulgores da claridade expirante. Lentamente,
o céu embranquecia. Longe, as linhas dos
montes tinham enredamentos complicados que decompunham
uma paìsagem quáse sem realidade,
fantástica, cheia de vago e de mistério.
―E se tu tocasses alguma coisa antes do jantar,
Júlia?―lembrava Nuno. Até nos abria o apetite...
―Pois sim! Que queres que eu toque?
Prefere alguma composição, Frederico? Ou tem
horror á música?
―Eu, minha senhora? Sou um guloso do
som...
A delicadeza de Júl
A delicadeza de Júlia, interrogando-o sôbre as
suas preferências musicais, encantava-o. Não seria
isto já uma correspondência da simpatia
fraterna―oh!
[71]
simplesmente
fraterna―que sentia por ela?
A suposição alvoroçava-o.
―Que eu toco mal, muito mal. Não me julgue
uma grande artista. Há dificuldades que nunca
me foi possível vencer. Preciso que me escute com
benevolência...
―Deixa falar, Frederico. É exímia, por exemplo,
em Chopin―nos
Nocturnos
,―afirmava
Nuno.
Júlia, protestando, sentava-se ao piano. O marfim
das teclas reluzia ainda no fulgor indeciso da
luz moribunda. O verniz dos móveis perdia o brilho.
A sombra parecia prender-se molemente aos cortinados
de renda, amontoar-se aos cantos: e um
Nocturno
soluçava, em
harmonias, sob os dedos afusados
de Júlia, em que as pedras dos aneis chamejavam
fogos mortiços. Nuno e Frederico, sentados em
poltronas de molas flácidas e embalados pelo afago
da música, em que vozes ignoradas, vindas de muito
longe, das mais recônditas regiões da alma, se
lamentavam,
narrando a tristeza das aspirações nunca
alcançadas,
os sonhos de amor traídos, as ilusões nunca
realizadas, fechavam os olhos para mais se absorverem
no segrêdo, no mistério espiritual dessa
música
divina que pouco a pouco, e por influxo da sua
beleza, da sua potência expressional, da sua
doçura
penetrante, extinguia todos os azedumes, acalmava,
pacificava as imaginações sobreexcitadas, era
como que uma simbólica promessa de
aspirações
veementes que haviam de realizar-se e parecia conter
em si o sentido oculto da graça de viver. Fóra,
na noite silenciosa, a lua branca e enorme flutuava
no céu, entornava o seu luar suave como uma
carícia
pelo jardim adormecido, sôbre as ramagens dos
[72]
arvoredos imóveis do parque, alongava as formas,
transmitia às coisas inertes quáse que uma
emoção.
Na cozinha, em baixo, a vélha Margarida terminava
o jantar. O clarão vermelho do lume, que ardia
no fogão, irradiava, reflectia-se em cheio nos cobres
e nos metais, que resplandeciam, enquanto dois
belos gatos ingleses, cinzentos e listrados de negro,
ronronavam ao calor, enrodilhados debaixo duma
mesa. Depois, o piano calava-se, numa derradeira
vibração de som: e na tranqùilidade
que envolvia
a vivenda, a sineta retinia, anunciando festivamente
a refeição, que se prolongava até
tarde, entre
as conversas.
Muitas vezes, se o tempo corria brandamente
e a temperatura convidava, Frederico e Nuno baixavam
ao jardim, fumando e palestrando, ou, com
Júlia, iam sentar-se à varanda, entre as avencas,
os
fétos arbóreos, as begónias,
contemplando a scenografia
nocturna, que era surpreendente. Os campos
solitários, sob o fulgor do luar, repousavam sem
um sussurro. Um lento nevoeiro elevava-se para o
alto como uma ténue nuvem de algodão, esfumando
a paisagem. Os casais adormeciam na efusão luminosa,
extenuados da lide diurna. A paz que caía sôbre
a natureza, como uma bênção de Deus,
era infinita
e inexprimível. De instante a instante, a aragem
desprendia das frondes fôlhas mortas que baixavam
vagarosamente, quáse imperceptíveis, que se
demoravam um momento, no ar, trémulas, hesitantes
como asas de falenas. No seu recolhimento,
Júlia dizia, em voz baixa, para não perturbar o
enlêvo
contemplativo em que os três se abismavam:
[73]
―Admirável! Admirável! Só o campo
ainda
pode oferecer êstes espectáculos aos que veem do
ruído, da barafunda das cidades!...
O timbre da sua voz, que era muito puro, mais
encanto imprimia ao êxtase do Frederico, sentindo
que alguêm muito suavemente lhe falava à alma
para revelar-lhe sensações nunca
experimentadas...
Nessa manhã, Júlia, que estivera tocando a
Sonata
Patética
, de Beethoven, descansava ainda
os
dedos fatigados sôbre as teclas, enquanto Nuno e
Frederico, encostados ao peitoril da janela, espreitavam
o parque. Uma criada entrou, de repente,
na sala, com o correio. Eram cartas e jornais, de que
êles logo se apoderaram para conhecerem o que a
cidade, pela sua imprensa ou pelas suas epístolas,
lhes revelaria de mais importante. Em face da pressa
com que ambos correram para a correspondência,
Júlia riu saborosamente, comentando:
―As grandes aglomerações hão de ser
eternamente
tentadoras para os que um dia habitaram a
sua perigosa confusão.
―Porquê?―interrogou Nuno.
―Ora! Ainda perguntas! A ansiedade com
que todos os dias esperas o correio! E dizes que te
agradaria ficar aqui, para sempre...
―Viva! Viva!... Sim, senhor!―bradou Frederico,
de súbito, concluindo a leitura duma carta.
―Que é, homem?
―Pois, é uma coisa estupenda. Nem podem
imaginar!...
[74]
―Entrou a revolução no Vaticano? Foi proclamada
a monarquia na Suíça?
―Santo Deus, não. Êsses factos
consideráveis
não me causariam surprêsa, porque hão
de dar-se
àmanhã, daqui a um ano, a dois
séculos... O caso
é êste:―a Alice Tôrres fugiu ao marido.
―A Alice Tôrres? Quem diabo é essa
Alice?―perguntou
Nuno.
―Ora, tu conheces... A Alice, uma loura,
casada há dois anos com o Fernando Tôrres, que
foi nosso condiscípulo na Politécnica e que
não concluiu
o curso...
―Ah! sei, sei... Perfeitamente... Agora me
lembro. E tu tambêm conheces, Júlia.
Voltaram-se ambos para ela, que ainda se conservava
ao piano, muito còrada do pudor melindrado.
―Sim, eu conheço-a... É uma infeliz!
―Infeliz?... Não, o nome que ela merece é
outro mais violento.
―Oh! Nuno! Jesus!...
―Queres, talvez, desculpá-la?
―Não! Lamento-a... O seu acto não tem desculpa,
mais inspira compaixão.
―O que êle inspira, no meu entender, é
bengaladas―atalhou
Nuno, brutalmente.
―O que, porêm, torna mais reprovável esta
fuga é que o homem que ela seguiu foi o Vaz de Sousa,
o amigo íntimo, a inseparável sombra do
marido―comentou
Frederico.
―O que? Que porcaria é essa?―atalhou Nuno,
com furor.
―Exactamente!... Com o Vaz de Sousa. Está
[75]
aqui a coisa com todos os pormenores, nesta carta
que me escreve o Alfredo de Oliveira.
E, para dar às suas revelações um ar
mais solene
e verídico, Frederico leu alguns trechos menos
escabrosos.
―Ouçam, que tem graça:―«O grande
escândalo
da semana forneceu-o a mulher do Fernando
Tôrres, a scismadora dos olhos ideais, que se
safou, com tôda a semcerimónia e todo o
descaramento,
com o Vaz de Sousa, visita permanente
dêste curioso ninho conjugal. Simpatia romântica?
Admiração pelo ôlho
lúbrico e pela melena do amante?
Não sei! Mas o palerma do marido―que nunca percebeu
que os dois há muito conjugavam o verbo
inglês
To
flirt
―está como uma bicha. Há
miopias
fatais e a de Fernando foi uma delas... Aqui tens
tu!...»
Nuno, muito sério e sombrio,
cofiava o bigode,
enquanto Frederico lia. Júlia, emmudecida, curvada
mais sôbre o piano, batia nervosamente com a
ponta da unha sôbre um caderno de músicas. O
silêncio
tornava-se angustiado e embaraçoso para os
três.
―Que fará agora Fernando?―perguntou, finalmente,
Frederico, levantando-se da cadeira em
que estava sentado e dando alguns passos sôbre o
tapête.
―Não faz nada!―replicou Nuno. É um imbecil
e, alèm disso, é um
grotesco. Ainda havemos de
vê-lo, outra vez, muito amigo da mulher, depois
de perdoar à Madalena arrependida. Coitado, tem
bom coração, é inultrapassavelmente
cómico e a sua
dignidade é uma hipótese...
[76]
―Crédo, Nuno!―interveio Júlia. Pois,
é lá
possivel?
―Com êste idiota, tôdas as vergonhas
são
possíveis―afirmou sêcamente.
Ergueu-se tambêm, torceu o bigode com fúria
e depois, de mãos nos bolsos, parando diante de
Frederico:
―Se êle fôsse, na realidade, um homem, sabes
o que fazia?
―Procurava uma solução violenta...
―Tu o disseste... Porque esta traição carecia
dum castigo tremendo, exemplar, moralizador.
Portanto, partia atrás dos fugitivos, com um bom
punhal ou uma bôa pistola, corria até os
encontrar,
e, seguidamente, frio, implacável como a
vingança,
abatia-os a tiro como dois animais malfazejos e
imundos, retalhava-lhes as carnes sórdidas à
punhalada,
molhando bem as mãos no sangue culpado, que
escorresse das feridas, para se lavar...
Nuno falava
apressadamente
, com
uma raiva
concentrada nos olhos, que fulguravam. Júlia desconhecia-lhe
aquela cólera que de súbito irrompera,
costumada como estava a vê-lo sempre afável,
sempre
terno, cheio de delicadezas e de tolerâncias para
tôdas as fraquezas humanas.
―Não há nada que mais me transtorne, que
me perturbe até à loucura, do que uma
deslealdade―explicou
êle. E neste caso, Frederico, há deslealdade
e há vileza. O coração humano tem
abismos de
infâmia insondáveis...
Júlia levantou-se, pensativa e atribulada. Pensava
na doida que um engano de amor fazia desertar
do lar, para perseguir aventuras ilusórias, obrigando-a
[77]
a romper com o respeito e a consideração da gente
honesta, com as convenções sociais, a cobrir-se
de
lama, a preparar por suas próprias mãos um
destino
que seria doloroso e cruel. Tinha-a conhecido no colégio,
outrora, na mocidade, fôra mesmo amiga dela
até ao momento em que a vida as separara. E compadecida
com aquele desvairamento, encontrava na
sua bondade e na sua pureza um sentimento para
atenuar a sua culpa.
―Vais-te?―inquiriu Nuno.
―Tenho tanto que fazer, filho!―respondeu
ela.
Nuno e Frederico ficaram sós, no salão que a
luz, entrando pelas vidraças descidas, alegrava. Sentaram-se
em frente um do outro, reatando a conversa
momentâneamente interrompida.
―Ela era uma cabeça no ar―dizia Frederico.
E o ludibriado não valia mais do que a mulher.
―Todos os maridos―retorquiu Nuno com
rancor―teem as mulheres que merecem; e êsse
Fernandete, já depois de casado, continuava uma
existência de devassidões. Ora, o casamento
é um acto
de responsabilidade que deve confinar-se na fidelidade
mútua dos cônjuges. Fóra
dêstes limites de dignidade
e de nobreza, transforma-se numa miséria.
Mas o que me indigna não é a fuga da
adúltera.
Caso banal... Ocorre constantemente... E muitas
vezes, mesmo, pode até justificar-se.
―Então que é?
―Mais desprezível do que Alice e do que Fernando
é êsse Vaz de Sousa, abusando duma estreita
amizade e da entrada num lar que o recebia confiadamente,
[78]
para praticar as
suas odiosas façanhas...
―Sim, com efeito!...―aprovou Frederico.
―É reles, é dissolvente de tôda a
moral.
E puxando mais a sua cadeira para junto do
amigo, para que só êle o ouvisse nas
confidências que
ia fazer-lhe, Nuno continuou:
―O primeiro dever do homem justo é saber
defender integralmente a sinceridade dos seus afectos―porque
para isso pensa―e saber dominar o
impulso das suas paixões bestiais―porque para isso
difere dos brutos e tem uma consciência. Posso falar
assim, porque já tive de repelir ásperamente dos
braços a espôsa dum conhecido―um simples
conhecido,
nota!―que por fôrça queria enxovalhar o
marido comigo.
―E quem era essa interessante dama?
―Perdoa-me. Não to digo―afirmou Nuno
com energia.
―Desculpa-me... A minha curiosidade é, na
verdade, irreflectida...
―Foi no último ano do nosso curso... Nunca
te falei nisto, por dignidade, porque me rebaixaria.
Há coisas que sujam... Mas, o mais pitoresco é
que
êsse marido e essa dama se transformaram, mais
tarde, em meus inimigos irreconciliáveis!... Não
é
encantador?... Embora! Ainda hoje me louvo por
esta acção, que é uma das mais belas
da minha vida,
Frederico!...
―Efectivamente, há beleza, há coragem,
há
heroísmo nela. Só conheço um
acontecimento
semelhante
na História Sagrada―riu Frederico.
―Tu, que és justo e que és leal, vê
isto:―Mete
[79]
a
gente, ingénuamente, na sua casa um homem
que nos merece a maior confiança, para quem vai
a nossa dedicação, tôda a nossa
afectividade. E desde
o primeiro dia em que lá entra, êsse homem,
êsse
amigo certo, começa a observar que a nossa espôsa
é bonita e apetitosa, que deve ser tentador o sabor
dos seus beijos e doce a palpitação da sua
ternura.
Como goza de favores que só se concedem às
pessoas
que verdadeiramente se estimam, há para êle as
maiores
deferências. Surgem as ocasiões
propícias à traição,
veem as intimidades, as fraquezas da mulher
confiante. Diz-se-lhe uma palavra mais ousada,
que lhe melindra a candura, mas que a não faz protestar.
A sua passividade dá coragem ao sedutor
para levar mais longe a audácia. Depois, ambos
cúmplices no crime premeditado, encontram nêle
solicitações cada vez mais fortes. São
os sustos
perto do marido que se engana abominávelmente, a
suspeita de que êle venha a descobrir tudo e se
vingue, os olhares medrosos que se trocam. Por
fim, chega-se à quéda irremediável, a
maior injúria
com que se pode humilhar uma criatura. E de
quem parte essa injúria? Duma pessoa indiferente
ao nosso sentimento, alheia aos nossos interêsses
morais, à nossa alma? De modo algum! Parte dum
amigo!...
―É horrivel, na verdade!―asseverou Frederico.
―É pavoroso!
―Mas, sabes o que eu ainda não consegui entender
bem, Nuno? Pois, é isto. Nos casos de adultério
em que a mulher prevarica, as ironias insultantes
da
multidão
vão para o marido. Para a prevaricadora
existem a piedade e a absolvição!...
[80]
―Iniquidades sociais. A turba-multa é sempre
impulsiva, injusta, não raciocina, não procura
ser
equitativa nos seus juízos... Mas, por isso mesmo,
os traídos teem de desafrontar-se com a maior ferocidade.
Eu, no logar de Fernando, matava-os! Matava-os,
trucidava-os, despedaçava-os como bêstas
feras!...―concluiu
Nuno, rilhando os dentes de furor.
Júlia, surgindo imprevistamente, veio
surpreendê-los
ainda no comentário fatigante daquele
escândalo clamoroso, que punha uma sombra mais
negra na fisionomia de Nuno e que não deixava expandir
livremente a jovialidade de Frederico.
―Então, aqui fechados, com um dia que é uma
delícia, um verdadeiro dia de rosas?―exclamou
ela, com uma extraordinária animação
no rosto.
―Tens razão! Êsse animal do Tôrres, com
as suas infelicidades caseiras, veio estragar a nossa
paz de espírito―murmurou Nuno. Queres ir até
lá abaixo, ao fundo da quinta, onde trago obras importantes
na habitação do caseiro, Frederico? É
uma diversão que nos há de fazer bem!...
―Não! Se mo permites, aproveito o tempo
para pôr em ordem uma correspondência atrasada
e desordenada. Olha que estou aqui, na tua hospitaleira
vivenda, há duas semanas e ainda não respondi
a ninguêm! Quem sabe se me julgarão morto
ou exilado?
―Bem! Então vou eu. Cumpre os teus deveres
de bisbilhotice.
―E eu acompanho-te, Nuno―acudiu Júlia.
―Tu? Mas é admirável a companhia. O
príncipe
e a princesa passarão as horas fazendo
le
tour
[81]
du proprietaire
e oferecendo-se
à veneração dos seus
súbditos, dos seus vassalos, dos seus escravos...
Então, de-pressa! Vem daí.
―Ando há tanto tempo para ir ver essa pobre
gente, essa entrevada de quem me falaste, essas
crianças desgraçadas...―disse Júlia,
comovida.
―
Au revoir
, Frederico. E
sê prolixo, homem...
Olha...
Curvou-se ao ouvido do amigo, murmurou qualquer
coisa que Júlia não pôde perceber, e
riram ambos
com alacridade. Descendo a escada, atrás da
espôsa, Nuno ainda ria, jovialmente, enquanto Frederico
se encerrava no escritório, diante dum tinteiro,
de cadernos de papel de cartas e duma jarra
com rosas frescas que Júlia tôdas as
manhãs renovava
para que ali houvesse continuamente graça, côr
e perfume.
Sôbre a escrivaninha de pau preto com
ferragens
amarelas e polidas que refulgiam, brilhavam no banho
fluido da claridade envolvente, havia um soberbo
retrato de Júlia, representando-a vestida de
baile, em corpo inteiro. A sua beleza, a-pesar-de morta
na fotografia, tinira uma pureza de linhas, uma opulência
de contornos, um relêvo, um esplendor indizíveis.
O decote deixava a descoberto o
princípio
do
seio, que era redondo e farto; o pescoço, desafogado
da espuma das rendas, exibia uma elegância e uma
nitidez impecável de modelação, tendo
a gracilidade
e o movimento de certos caules de flores, ondulando
à aragem. Uma expressão de felicidade sem nuvens
animava todo o seu rosto; e uma grande rosa prendia-se
à
corsage
. Frederico
esteve contemplando o retrato
um instante, perdido em vagas meditações. Como
ela
[82]
era graciosa e divina, efectivamente! Os seus olhos
tinham um encanto virginal ainda―um encanto
que as lágrimas não haviam queimado. De
tôda ela
se exalavam, imperceptivelmente, a castidade, a
sedução, a ternura. A casa estava impregnada da
sua
personalidade, da sua virtude, do seu enlêvo.
Júlia
era a bôa deusa familiar que enchia, com a sua alma,
com a sua dedicação de mulher, com a sua
abnegação,
com o reflexo da sua formosura, aquela habitação
em
que um amor tam nobre vivia e se esquecia dos males
da existência. E Frederico via-a sorrir ao lado de
Nuno, mais presa do que nunca à sua paixão,
suavizando-lhe
os dias, acalmando-lhe as inquietações,
assistindo à formação das suas
vontades, dos seus desejos,
das suas ideias, para imediatamente obedecer-lhe,
oferecendo-lhe a bôca num beijo. Experimentava
uma inexprimível consolação interior,
pensando
nela...
Ao mesmo tempo, e sem saber porquê, acudia-lhe
à memória a cólera tempestuosa de
Nuno, quando
soube da fuga da mulher de Fernando Tôrres com o
outro―uma cólera que se adensava no olhar, que
ardia, que coriscava, que chamejava... Os dois amantes
iriam agora, entregues ao ardor da sua volúpia
pecaminosa, impura, talvez para as cidades estrangeiras
onde melhor pudessem ocultar-se, na embriaguez
dum gôzo que dura apenas um fugaz minuto e com
que a desgraça fabrica a dor, que é eterna. Mas
ao
menos, considerava Frederico, seriam felizes. A si
mesmo perguntava se êsse minuto, de que restaria
uma perdurável recordação,
não constituirá a felicidade
duma vida, de duas vidas inteiras...
Para fugir ao curso mórbido das suas
lucubrações,
[83]
Frederico
levantou-se, aproximou-se da
janela,
na ponta dos pés, como se temesse que o sentissem.
Na radiação loura da manhã, uma
alegria esparsa
flutuava sôbre as coisas. De baixo, do jardim, subia
um arôma adocicado. Nuno e a espôsa, de
braço
dado como dois namorados, afastavam-se ao longe,
através dos arvoredos do parque. Por entre os troncos
musgosos alvejava a brancura do vestido de Júlia―brancura
que ficava pairando no ar macio...
Frederico voltou a sentar-se. Uma grande, confusa
tristeza abatia-se sôbre o seu
coração...
IV
As primeiras manhãs de setembro tinham chegado.
Emigravam as andorinhas e as rôlas bravas e
no ar luminoso errava a melancolia vaga dum outono
próximo. Grandes nortadas sopravam rijamente, levando
através do espaço densas nuvens de poeira.
Pelos arvoredos do parque, na meia tinta de luz,
amareleciam as folhagens: e os crepúsculos, tendo ainda,
no horizonte, reverbarações imensas, eram
já
um pouco húmidos. Havia, por vezes, céus brumosos
que davam indeterminados longes á paisagem,
tocando-a de lentos nevoeiros.
Durante todo o tempo que Frederico passara
na quinta afastado da variedade e dos tumultos da
vida citadina, estabelecera-se entre êle e Júlia
uma
estreita intimidade afectiva que mais gratas tornava
as horas doces que de contínuo fugiam. Nuno
andava inteiramente ocupado com as alterações
[86]
a que mandara proceder nas dependências habitadas
pelo caseiro, para que nelas houvesse mais confôrto
e mais higiene. Interessava-o, afinal, o pobre cavador
que envelhecera precocemente, nas dolorosas labutas
da terra, vendo crescer à sua volta outras
vidas louras, frescas e inocentes, tambêm condenadas
â escravidão da
gleba, e enchera-o de piedade a miséria
da entrevada que no seu leito, escasso de roupas,
tinha um riso de resignação, absolutamente
conformada
com o destino. Mesmo enfêrma, enquanto
o homem, o bom Mateus, se extenuava de sol a sol,
segurando entre as mãos calejadas e firmes a
rabiça
do arado que rasgava o seio da leiva, para fertilizá-la,
ou espalhando no húmus revolvido as fecundas
sementes que germinariam nas abundantes searas,
remendava as roupas e dirigia o
ménage
.
―A-pesar-de doentinha―dizia uma vez o caseiro
a Nuno―ainda é uma ajuda. Deus ma conserve
mesmo assim, porque se morresse fazia-me grande
falta...
De quando em quando Nuno, comovido, abria
vagarosamente a porta cerrada, para a ver, para lhe
falar. Júlia, com a sua bondade, melhorara muito a
sorte da paralítica, rodeando-a de bem-estar, mandando-lhe
todos os dias um alimento mais apetitoso
e nutritivo: e ela, grata a estas delicadezas, não se
cansava de louvar, nas suas orações ardentes, os
bons
senhores que ao seu lar desditoso haviam levado
uma clara luz de alegria.
―Então, como vai hoje, snr.
a
Teresa?
Melhorsinha,
não é assim?―perguntava-lhe Nuno.
―Para aqui estou à espera da minha hora! Pois,
como hei de estar, se é esta a vontade de Deus?...
[87]
E curtidinha de padecimentos!―respondia ela, com
um fundo suspiro.
Mas logo, no seu rosto macerado e pálido se
iluminava a claridade dum sorriso.
―E a senhora e o menino?―interrogava a
doente.
―Estão esplèndidos. Não há
mal que lhes chegue,
neste paraíso. Êles qualquer dia por aí
voltam
a aparecer.
―Ai! Deus os guie, que bem o merecem!...
Nuno, que não queria que à roda da sua felicidade
existisse gente desgraçada, ordenou a
construção
duma casa nova ao lado da primitiva―que
se esboroava de vetustez e que vinha dos tempos
longínquos em que os seus antepassados tinham
adquirido aquela propriedade que constituía a parte
mais vasta dos seus domínios territoriais. Alargara os
estábulos para o gado, dera maior amplitude ao
alpendre e à eira e procurara longe, na encosta
dos montes que ficavam ao fundo da quinta, um
mais farto veio de água de rega, canalizando-o,
com argamassa e pedra, para as terras alugadas ao
tio Mateus, que resplandecia de contentamento e que
murmurava, com a face jubilosa e enrugada em que
as barbas crespas encaneciam:
―Isto é o poder do mundo! As colheitas futuras
hão de encher-me celeiros e tulhas!...
―Está contente?―inquiria Nuno.
―Ora! se estou contente!... Pois, o patrão
faz um milagre destes e ainda me baixa a renda!
Que hei de querer mais?
O caseiro, na sua gratidão, comparava a generosidade
do amo com a secura do procurador, um
[88]
unhas de fome que nunca lhe atendia as mínimas
reclamações,
que nem sequer lhe mandava concertar
o telhado por onde, nos invernos agrestes, entrava
a água das chuvas, e que, nos anos hostis, não
lhe
perdoava um ceitil.
―Se quereis conhecer o vilão metei-lhe a vara
na mão―dizia o tio Mateus, lembrando-se dêsse
homem de expressão dura e coração
empedernido
que um mês antes do pagamento do aluguer, o procurava,
exclamando:
―Olhe que é daqui a trinta dias. Previno-o,
para que não venha depois com desculpas.
Agora, mercê da magnanimidade de Nuno,
a esperança renascia na alma do lutador
destroçado
que, durante uma longa existência, em vão se
afadigara para que nas suas arcas o pão fôsse mais
farto e que a vida amarga vencera, acabrunhando-o
de tristeza. E êsse renascimento
palpitava por tôda
a parte, nos vergeis, nas hortas, que eram mais viçosas,
nos espíritos humildes, que adquiriam maior
confiança!
Entregue ao entusiasmo das suas ocupações
de proprietário rural, Nuno, em certas manhãs,
abalava
logo depois de almôço, de charuto aceso e uma
côr de saúde na face máscula, para
vigiar os trabalhos.
Esta actividade nova tinha para êle um grato
sabor. A princípio, Frederico acompanhava-o, interessando-se
tambêm por uma lide que desconhecia.
Depois, porém, enfadou-se: e, sempre que o amigo
o convidava para ir até ao fim da quinta,
êsse enfado acentuava-se, reflectindo-se-lhe no rosto
desconsolado. Acabou por desculpar-se, dizendo-lhe:
[89]
―Não! Eu fico, se a minha companhia te não
é indispensável.
―Pois fica, homem. Fica e dorme!
―Eis um ideal que me encanta, Nuno. Sempre
tive as melhores disposições para o sono.
Então, Frederico, penetrado pela quebreira
que amolecia o ar, descia ao parque, escolhia um recanto
de sombra e lá se demorava lendo um romance
ou evocando as suas recordações e pensando no
caso
passional que o trazia inquieto. O calor, a
irradiação
crua do sol, faziam pesar mais o silêncio. A atmosfera
resplandecia, tinha uma vibração especial no
esplendor
matutino da claridade. Até ao seu isolamento
chegavam o chiar dos carros de bois, vergando
sob a carga e atravessando os caminhos desertos,
a cantiga idílica dum pastor distante, o sussurro
das folhagens estremecendo ao vento, sôbre a
sua cabeça. Em certos instantes, repousando das fadigas
caseiras, Júlia, ao piano, tocava uma página
musical
que embalava suavemente a solitude. O sol saía
em ondas pelas janelas abertas aos eflúvios do jardim―e
a música, nesta solidão inspiradora, adquiria
maior sedução e beleza. Frederico, pousando o
romance, analisava o estado particular dos seus
nervos. Uma grande, inexplicável lassidão
prostrava-o.
Sentia-se incapaz dum mais vivo esfôrço de
reflexão, dum metódico exame da sua
sensibilidade.
Parecia-lhe que estava fóra da sua personalidade
psíquica: a realidade exterior produzia-lhe uma
bizarra alucinação que o transtornava; mas, neste
sobressalto intimo havia, alternadamente, certos
fulgores de pensamento, relâmpagos de inteligência,
que lhe aumentavam a angústia e a opressão
interior.
[90]
Um elemento
estranho, tendo qualquer coisa
de violento, de obscuro e de nítido, conjuntamente,
invadia-o e perturbava-o. A imagem de Júlia acudia-lhe,
sem repouso, à imaginação―e notava
que
essa imagem era muito diferente da mulher que êle
conhecia, da espôsa encantadora e virtuosa de Nuno,
Atribuía êste fenómeno desconcertante a
uma singularidade
do seu organismo enfêrmo. Monologava,
atribulado:
―Eu estarei doente, na verdade? Doente de
espírito e de corpo?
Como os dias que ia vivendo, no meio duma
confusão e duma agitação que lhe
não davam tréguas,
eram diversos dos que, dois meses antes, tinha
passado naquele refúgio em que Nuno se abrigara
com a sua ventura conjugal imensa! Então,
tudo era paz, enlêvo, serenidade no seu
coração,
lucidez
no seu cérebro. Compreendia mais fácilmente
o espectáculo que o cercava; era mais acessível
à
bondade e à beleza; convalescia, sarava, uma
esperança
floria no seu scepticismo, e o calor dos afectos
experimentados fundia dentro de si tôda a frieza e
todo o egoísmo. E agora, não! A tranquilidade
emotiva
dos primeiros dias perdera-se completamente.
Um agente mórbido, qualquer provocava nêle,
de-certo,
alterações profundas, transformava-o num
sêr
humano que o seu próprio sentido ignorava. Que
doença seria essa? Física ou espiritual? E se
fôsse
espiritual, proviria da influência duma luz
súbita,
revelando aos seus olhos uma felicidade possível,
ou da suspeita duma dor inevitavel? Frederico fazia
estas interrogações a si próprio, sem
encontrar uma
resposta que o esclarecesse. No entanto, observando-se
[91]
minuciosamente, era
ditoso pensando em Júlia―e
êste sentimento, ao mesmo tempo que o iluminava
interiormente, gelava-o de terror, como se
representasse um perigo imediato, uma catástrofe de
que não pudesse já desviar-se. Ela era a
companheira
purificada e terna de Nuno, via-a ao lado do marido
imersa na ventura que êle lhe oferecia, como
uma flor imersa em aroma, surpreendia-os a cada
passo beijando-se com transporte, apertando-se no
mesmo abraço, peito contra peito, face contra face,
para mais intensamente sentirem a pulsação dos
corações.
Frederico, absorvendo-se em ideias de que
não conseguia emancipar-se e que eram a sua permanente
obsessão, em sensações que o
não abandonavam,
ao estudar a sua psicologia com pavor de
chegar a alguma conclusão que o aterrasse, murmurava,
para se iludir:
―Verdadeiramente, não a amo com um amor
físico. Sou-lhe apenas grato pelo encanto que me
transmite e devo-lhe um reconhecimento moral a que
não quero fugir.
Concentrando-se, calculava as consequências
que uma adoração menos pura por Júlia
provocaria
fatalmente. Via-se perto de Nuno, escondendo, como
um remorso ou como um crime, essa adoração que
nunca revelaria e que lhe roeria a alma como os
vermes roem os frutos podres, quando êle, com uma
lealdade que se lhe espelhasse nos olhos e com uma
amizade consolidada por longos anos de dedicação,
lhe confessasse o reconhecimento que consagrava a
Júlia, a claridade, o perfume, a graça que lhe
trouxera
a vida, a bôa fortuna que nela―na sua pureza,
na sua beleza, na sua devoção―encontrara; e,
raciocinando
[92]
assim,
como se admitisse a duplicidade
do seu afecto por Nuno e do seu amor por Júlia, considerava
que seria infinitamente desgraçado. Tinha
mêdo dum tal desfecho: e, para se libertar de
cogitações
dolorosas, tentava esquecer, espairecer, distrair-se.
Levantava-se, corria o parque a largos
passos, sacudia com as mãos nervosas os arbustos
floridos, fazendo cair nos musgos do chão um luminoso
e colorido orvalho de pétalas, monologando:
―Ah! não, que horror! Não sinto ainda por
Júlia uma paixão sensual, não a desejo
pela carne,
não me impele para ela um fogo impuro, uma
fôrça
abominável. Quando essa paixão chegar―se
é que
ela tem de vir―saberei ser enérgico, hei de dominar-me,
fugir, esquecer...
Por nada traíria Nuno, abusando da sua hospitalidade
tam carinhosa e tam franca. Não queria imitar
Vaz de Sousa; não mancharia, com uma inapagável
mácula, a santidade daquele lar; não toldaria
a pacificação daquela morada em que se
agasalhavam
sentimentos perfeitos já abençoados por uma
inocência angélica; não conturbaria a
limpidez da
sua afectividade fraterna com um punhado de lama
e de vileza. Era um homem, um consciente, possuía
uma dignidade, uma irredutível inteireza de
carácter.
De resto, Júlia, que aos dons da sua formosura
aliava os dons mais nobres e elevados duma
dedicação
admirável, seria a primeira a repeli-lo com
indignação,
a execrá-lo, intimando Nuno a pô-lo
fóra
da porta como um ladrão que ali penetrasse para
roubar uma felicidade que só a ela pertencia. E o amigo,
sabendo de tudo, iria para êle com uma cólera
que a imensidade da traição praticada mais
avolumasse,
[93]
ferozmente, as
mãos crispadas, os dentes
rilhados, o desvairamento homicida fulgurando nos
olhos... Não era, de-certo, o temor que o fazia retroceder.
Nunca fôra timorato. O que o assustava mais
era a torpeza moral em que se afundaria para sempre.
―Quantos disparates a minha fantasia enfermiça
arquitecta!―diria Frederico, zombando forçadamente.
Com efeito, o irremediável não se interpusera,
por enquanto, entre êle, Nuno e Júlia. Podia estar
absolutamente tranqùilo, sem còrar da
perversidade
duma acção que nem sequer se esboçava.
Mas que
infortúnio, o seu! O ardor dos sentidos conduzira-o
a uma situação alarmante que já o
fazia sofrer com
amarga crueldade. Entrando naquela habitação,
pela
primeira vez, julgou que vinha encontrar o sossêgo
de espírito, a calmaria, o repouso da alma: e, afinal,
apenas encontrara uma angústia maior, uma tortura
mais lancinante! Como se operara no seu ser
uma transformação de tal ordem? O
convívio de
tôdas as horas, a ambição duma ternura
igual àquela,
o renascimento de ilusões que julgava extintas,
deprimiram-no,
certamente; o encanto que da formosura
e da pureza de Júlia irradiava, penetrava-o subtilmente,
contra a sua vontade, contra o seu veemente
desejo. Era êle, porventura, culpado desta fatalidade?
Podia ser acusado com eqùidade e justiça,
pela consciência e pela inteligência que lhe
formavam
a individualidade psicológica e mental? De-certo
que não! Êste subterfúgio
apaziguava-o...
Continuava o passeio ou entregava-se, mais
calmo, à leitura, olhando a vida por aspectos menos
[94]
carregados. Se Nuno se demorava, ocupado pelos
trabalhos que andava dirigindo, Júlia descia
tambêm,
um momento, ao parque, graciosa, adorável de beleza
e de simplicidade. Frederico via-a avançar, com
o coração pulsando desordenadamente, o sangue
circulando
com mais pressa nas veias e uma grande
palidez no rosto. O busto de Júlia modelava-se
nítidamente
na leveza e na frescura duma blusa de sêda
branca, deixando-lhe a descoberto o pescoço redondo,
fino e alto, o princípio do colo, em que a pele
se dourava à luz, uma parte dos braços que
emergiam,
admirávelmente contornados, da espuma de
rendas das mangas: e isto provocava uma atracção
irresistível, tornava mais áspera a sua
ânsia. Júlia,
avistando-o, ia para êle naturalmente, sem acelerar
mais os passos que obedeciam ao ritmo sempre igual
dos seus movimentos, falava-lhe:
―Então, para aqui só, aborrecendo-se
mortalmente?...
―Oh! minha senhora, que ideia!
―Nuno sempre tem um modo de compreender
a hospedagem!...
―Mas, se fui eu que não quis acompanhá-lo!...
Hoje,
apetece-me o isolamento.
―Tem, talvez, conversas com os espectros das
suas saùdades...
―Não. Sou um esquecido do destino, um abandonado
da própria saùdade. Ninguêm se
interessa,
por mim!
―Ninguêm?―interrogava Júlia, risonha e duvidosa.
―Ninguêm...!―afirmava Frederico, fitando-a.
Mas arrependia-se imediatamente da fixídez
[95]
com que a olhava, no receio de cometer alguma
grosseria que a magoasse, no susto de que o seu
olhar revelasse coisas que êle nem sequer se atrevia
a formular, no confuso turbilhão dos seus sentimentos―e
muito perturbado, desviava a vista.
―Creio eu lá nisso!―acrescentava ela.
Numa destas ocasiões, perigosas para a serenidade
de Frederico, Júlia sentou-se num outro banco,
perto dêle, quis saber que livro lia, quais eram as
suas leituras predilectas: e Frederico respondeu com
um riso a que pretendia imprimir naturalidade:
―As minhas leituras predilectas são as biografias,
a correspondência dos grandes homens, as obras
de psicologia.
―Porquê, porquê?
―Porque me interessam as almas superiores...
Júlia pegou no volume que Frederico folheava,
viu o título.
―Em todo o caso, lê tambêm romances!...
―Nos romances, há ainda almas, minha senhora...
―De que trata êste?
―Dum amor infeliz, dum amor que nunca se
confessou, e que era incomparável de
elevação, de
fervor, de constância...
―Bem sei! Dum amor absurdo, dum amor que
apenas existe na emoção e na ideia dos
artistas...
Um grande e puro amor confessa-se sempre.
―Sempre?... Eis um belo êrro!
―Ora essa! Êrro?... Não compreendo...
Para se furtar a um diálogo em que, irreflectidamente,
podia traír-se, Frederico deu novo rumo à
conversação.
[96]
―A uma mulher é que nunca se deve perguntar
quais são os livros da sua preferência, snr.
a
D.
Júlia.
―Não sei porque não. Olhe, eu digo-lhe
já o
que prefiro, em literatura:―são os poetas
líricos.
―Não se deve fazer uma tal pergunta indiscreta
às senhoras, porque na selecção das
leituras
os espíritos femininos revelam-se.
―Ah!―atalhava Júlia. Não sabia!...
E os seus olhos negros e imensos, banhados
por um claro-escuro húmido e misterioso, pousaram-se
vagamente em Frederico, parecendo contemplar
aparições inefáveis,
longínquas, imprecisas.
―Talvez haja alguma verdade no que diz―exclamou
ela.
―Creio que há tôda a verdade...
De repente, levantou-se, pousou o livro, murmurou:
―Nuno demora-se tanto!...
E sorrindo, com um enlêvo maior na voz, uma
gracilidade mais animada nos gestos:
―Coitado! Anda todo apaixonado por uma
obra de generosidade e de misericórdia. É um
santo.
A miséria da família do caseiro atormentou-o.
―Um coração de ouro!―concordava Frederico.
―Não é verdade?―atalhou ela, tôda
interessada
e com o reflexo dum grande contentamento na fisionomia.
―Um coração de ouro!―repetiu Frederico,
pondo nas suas palavras a convicção e a
sinceridade―uma
alma como poucas existem!...
Júlia agradeceu-lhe com um olhar infínitamente
[97]
meigo aquele justo louvor ao marido e disse afectuosamente:
―Vou até lá acima... Acompanha-me ou ainda
fica por aqui, pelas espessuras, como um namorado,
com as suas lembranças?
―Ainda fico, minha senhora, mas só, sem
recordações, uno e indivisível, em
corpo e em alma.
Soltando uma gargalhada, Júlia afastou-se vagarosamente,
colhendo uma ou outra flor no caminho,
cantando entre dentes, voltando-se ainda para trás
e rindo sempre; e Frederico, seguindo-a com a vista,
notava que junto dela, respirando o mesmo ar, o
envolvia a carícia dum ambiente em que a brisa
tépida e odorífera como que emanava a
vaporização
duma volúpia tôda esperitual em que não
havia
nenhuma instigação inferior da animalidade, da
substância,
do sangue, dos nervos. A notação fina desta
particularidade tranqùilizava-o. Ah! admirava profundamente
a mulher de Nuno, mas apenas porque,
entre a fealdade moral da sociedade que conhecia de
perto, Júlia era um dêsses raros seres dispondo do
condão de reconciliarem com a espécie o homem de
temperamento sensível...
Neste devaneio infindável, as horas corriam ligeiras,
a tarde baixava, um arrepio friorento passava
no parque, entre os troncos, fazia tremer as fôlhas
pendentes. O azul, alto e brilhante, empalidecia:
e Nuno, voltando das obras, com a roupa em desalinho,
despenteado, as mãos cheias de terra, veio
encontrá-lo
ainda sentado no banco, meditando.
―Cheio de tédio, hein? Mas a culpa é tua,
Frederico!―gritou
êle, surgindo, de repente, do meio
das árvores.
[98]
E contou-lhe então, com entusiasmo, como fôra
ocupado e fértil em resultados o seu dia, a sua actividade
junto dos pedreiros e dos carpinteiros, dando
ordens, fornecendo indicações,
esboçando projectos de
trabalhos mais vastos, pedindo esclarecimentos ao
vélho Mateus sôbre a lida agrícola.
Até, para se
exercitar, para desemperrar as articulações,
tirara a
enxada ao caseiro e cavara um bom bocado! Mostrava
as botas enlameadas, as mãos vermelhas do
exercício
violento. Frederico, ouvindo-o e como se regressasse
das regiões longínquas, irreais, por onde andara
com a sua fantasia, atalhou:
―Pretenderás tu fazer-te lavrador tambêm?
―E porque não?―replicou Nuno, muito
sério.
―Homem, isso é ainda literatura, poesia rural
à maneira das
Geórgicas
...
Mas Nuno protestava, afirmava que ia pensando,
realmente, em dedicar à lavoura a sua existência
improdutiva, sendo assim útil a si, aos seus,
à colectividade, empregando novos processos de cultura
que duplicariam a fecundidade da terra, fazendo
experiências em que constantemente pensava desde
que se instalara na quinta.
―Porque, sabes tu? Os nossos agricultores seguem
fielmente o caminho trilhado por uma rotina
secular. Não querem afastar-se dêle, desdenhando
as inovações que, com menos dispêndio
de fôrças,
aumentariam a produção e ofereceriam
óptimas compensações.
―Santo Deus, como vais de-pressa!―contrariou
Frederico. Mas isso é a multiplicação
dos pães
de que nos fala uma doce página da Bíblia. A
multiplicação
[99]
dos
pães? Que digo eu?
Trata-se dum milagre,
mais considerável. Chegas, da cidade, vestido
como um
dandy
, nada sabes de
agricultura, ignoras
mesmo como se produz a torrada que comes ao
almôço, com manteiga, mas isso que importa? Tens
audácia para tudo! Pegas num punhado de trigo,
ao levantar do leito, tomas o teu café, fumas o teu
charuto...
―Não rias, Frederico! Olha que começou, na
verdade, para mim, uma vida nova...
―Espera, deixa-me acabar!... Espalhas êsse
punhado de trigo ao raiar da manhã. Ao meio-dia,
uma enorme messe de louras espigas ondula já à
aragem, como um mar de ouro fôsco. Á tarde, chamas
os ceifeiros, fazes a colheita e enches um celeiro!... É
como nos contos do fadas...
― Bem! Não há maneira de nos
entendermos―concluiu
Nuno. Vamos jantar. Isso é debilidade... A
fraqueza excita o teu delírio.
Atravessando os arruamentos da floresta, que
escureciam, o jardim, que rescendia, Frederico ainda
satirizava as intenções de Nuno, afirmando:
―Se, na realidade, pensas em fazer-te lavrador, em
te consagrares à terra, então sempre te digo que
há tôdas
as probabilidades de que venhas a arruìnar-te...
―Arruìnar-me?
―Não tenhas dúvidas! Um simples pão,
que podes
comprar por um vintèm em qualquer padaria,
agricultado por ti, com máquinas para arar a leira,
máquinas para ceifar o trigo, máquinas para a
debulha, adubos químicos, outras coisas requintadas
e modernas, virá a ficar-te por cinto tostões, o
que é, na realidade, barato, não te parece?
[100]
Entraram em casa, conversando e rindo. Cá fóra,
ao ar livre, anoitecia. O ocaso, com sua tristeza elegíaca
e o vago das suas sombras, descia apressadamente.
As ramagens dos arvoredos imobilizavam-se
na atmosfera. Uma névoa ténue subia da terra para
o alto. Das coisas inertes parecia elevar-se um confuso
múrmurio que fôsse como que a confissão
da natureza
para Deus. As criadas acendiam as luzes, na vivenda,
e as vidraças lampejavam batidas por um súbito,
inesperado
fulgor de ouro. Nuno e Frederico lavaram-se,
vestiram-se para o jantar, aparecendo na sala já
quando os esperava Júlia―e a palestra reatou-se:
―Pois, minha senhora, dou-lhe os parabens!―exclamou
Frederico, sentando-se.
―Parabens, porquê?―interrogou ela.
―Nuno está decidido a integrar-se na simplicidade
e na lavoura. É bem provável que esta
habitação
mundana venha a transformar-se em herdade,
brevemente.
―Está hoje impossível,
Júlia!―retorquiu
Nuno. Não compreende que um janota como eu venha
a ser um agricultor razoável, a fixar-se aqui
definitivamente,
a despir-se de todo o artifício por
amor à naturalidade.
―Ouve-o? É a renovação que
começa. Teremos
em Nuno, dentro de pouco, o Jorge Brumell
das colheitas.
―E porque não? Porque não?―perguntou
Júlia, olhando demoradamente o marido.
―Tambêm V. Ex.
a
?... Belo!
Já está
convertida.
A coisa é mais importante e profunda do que
eu julgava. Assisti, neste lar afável, ao nascimento
duma religião nova...
[101]
A conversação alegrava-se, sob o reflexo da
claridade
que fazia relampejar as pratas, scintilar os cristais,
alvejar mais puramente os linhos e brilhar com
maior nitidez o verniz dos móveis e a
coloração
das flores que morriam nos solitários. A serenidade em
que a vivenda adormecia era tanta que se ouviam os
menores ruídos. A criada que servia à mesa, no
seu
severo vestido preto com punhos e gola de bretanha
gomada, ia e vinha sôbre a alcatifa do corredor longo,
em passos apressados e miúdos. Da cozinha chegava
o rumor das palestras e da louça que se entrechocava.
Cães latiam ao longe, pelos casais silenciosos.
De vez em quando, o som duma viola passando
para os serões ou para as desfolhadas nas eiras, sob
a lua branca, poetizava, bucolizava a solidão...
No fim do jantar, Júlia levantou-se, estendendo
a face a Nuno para o beijo costumado e apertando
a mão de Frederico, para tratar da
refeição dos servos.
Os dois conservaram-se ainda sentados, fumando
e divagando...
Depois, no seu quarto Frederico, sentindo um
desalento inexprímivel pesar mais duramente à sua
volta, na imensa melancolia dos ideais falhados, no
desespêro da ansiedade que o devorava e da incerteza
que o consumia, reencetou as suas lucubrações,
sentando-se
numa poltrona e deixando correr as infindáveis
horas de pacificação exterior. O que agora temia
era que nêle se viesse a dar o violento conflito do
espírito e do instinto, perto de Júlia―o que
seria
um suplício que mais lhe atribularia a amargura de
viver. Observava que já ao lado de Nuno não
estava
bem, que temia o desconhecido, que experimentava
um constrangimento inexplicável. E porquê?
De-certo
[102]
que o amigo tinha
para êle as mesmas delicadezas,
as mesmas atenções, a mesma inefável
simpatia;
mas bastava que Nuno o fixasse mais detidamente
para que logo julgasse que o seu olhar penetrante pretendia
expiá-lo, ler-lhe na alma surpreender os sentimentos
impuros que lá se geravam. Suspeitaria dalguma
coisa? Teria Frederico deixado adivinhar o seu
drama, por uma frase impensada, por uma palavra
mais ardente de louvar a Júlia, por um estremecimento
de paixão irreprimível que pusesse Nuno de
sôbre-aviso? Não! Claramente, não!
Tôdas as suas
dúvidas nada mais representavam do que uma
perversão
da sensibilidade nervosa, uma alucinação dos
sentidos...
Ainda não sabia se amava Júlia―porque tinha
mêdo de interrogar-se; se a desejava carnalmente;
se a admiração que lhe dedicava era de
essência espiritual
ou sensual: mas se, com efeito, era maior
a perturbação que o alvoroçava,
ninguêm―nem êle
mesmo―conheceria êsse amor insensato, que ficaria
para sempre secreto, que jàmais seria revelado!...
Enquanto scismava, a casa, sob o afago da sombra
nocturna, repousava serena, como a felicidade
que a habitava. Apenas do quarto, onde a ama dormia
com o filho de Júlia e de Nuno vinha uma claridade
dúbia da lamparina acesa, filtrando-se através
das bandeiras das portas, que eram de vidro. E Frederico
continuava os seus devaneios. Naquele momento,
a mulher admirável para quem ascendiam,
como um incenso, a sua crença pura e a sua
admiração
exaltada, adormecia tranqùilamente, junto do
marido, tendo ainda na bôca o calor e o perfume
dum profundo beijo apaixonado e genesíaco. Êsse
calor
[103]
rosava-lhe
a pele da face, acelerava-lhe a
circulação
do sangue, tornava-a mais linda. Reconstituia-a
no sono, a cabeça pousada sôbre a alvura do
travesseiro
por onde se espalhavam, como uma núvem, os
seus cabelos desmanchados, o peito arfando docemente,
a carne esplêndida vibrando de desejos... Impaciente,
Frederico erguia-se, dava alguns passos
irresolutos sôbre o tapête fôfo, e
voltava a sentar-se
sem poder aquietar. Sentia subir das recônditas intimidades
do seu ser um ciúme horrivel pelo amigo,
que fruía uma indizível ventura com a posse da
mulher
esplêndida (que tambêm o aliciava a ele―e com que
formidável intensidade! Então, enclavinhando a
mão
trémula nos cabelos, Frederico revoltava-se contra
si próprio.
―Que inferno êste, hein? E que abjecta criatura
desperta em mim!...
Na realidade, Nuno era para êle o irmão, a amizade
inquebrantável e fidelíssima, a
afeição cega. Abrira-lhe
confiadamente as portas do seu lar virtuoso, considerava-o
como um membro da sua família, devotara-se-lhe
inteiramente, mostrara-lhe a alma. E
êle, correspondendo a esta confiança, a
êste afecto,
a esta devoção, estava ali, naquele doloroso
momento
de tortura, invejando-lhe criminosamente a
espôsa legítima, odiando-o pelos beijos que com
ela
trocava, pela presença de Júlia no seu
tálamo―um
tálamo que a adoração mútua
santificava e em que o
ventre da mulher amada recebia o calor que faria
germinar as vidas novas e esperançosas.
―Não! Isto é verdadeiramente infame!―exclamava
Frederico, acusando-se com rancor.
Deitou-se, mas não podia dormir. A imagem de
[104]
Júlia perseguia-o; a inquietação
permanente irritava-lhe
os nervos, exauria-o. Quáse imputava a
Júlia a responsabilidade da dor fulgurante que sentia,
da agitação que o alucinava; mas logo
caía em si,
arrependendo-se. Era injusto, inexorávelmente injusto!
Ela não fizera nascer, por uma só palavra,
por uma atitude suspeita, por uma irreflectida
coquetterie
,
o sentimento funesto que o invadira. Frederico
é que não pudera dominar-se, ser casto, ser
nobre, ser
refractário a um
desejo
vil.
O culpado
único do seu tormento era êle, certamente. E
julgava
que, por mais que sofresse, todos os seus sofrimentos
não valeriam uma ligeira mágoa que pudesse
causar a Júlia, se lhe revelasse o fogo em que ardia;
que tôdas as suas lágrimas não valeriam
uma única
das lágrimas que Júlia choraria, se êle
tentasse destruir-lhe
uma placidez de que era tam digna, pela alma,
pela bondade, pela elevação moral, pela
formosura,
corpórea.
Em determinados instantes, o seu cérebro tinha
uma estranha lucidez. Lembrou-se, repentinamente,
de factos, de acontecimentos há muito olvidados.
Ocorriam-lhe trechos de leituras feitas. Recordou-se,
por exemplo, de ter lido há muito tempo,
num livro de que esquecera o título, esta
sentença
que agora solicitava particularmente a sua
atenção:―«Elemento
divino e principal, que a natureza produz
mas que apenas a vontade aperfeiçoa, a Beleza
é uma simples exteriorização da forma.
Tudo é susceptível
de beleza, do gesto ao acto, do olhar à palavra.
Se o primeiro passo perfeito fôr o de concentrar
tôdas
as aspirações de beleza num sêr
único, o segundo
será o de preferir a beleza da alma à beleza
físicamente
[105]
afectiva
do corpo». No delírio da sua
febre,
Frederico construía teorias que lhe pareciam encerrar
a verdade total e que logo abandonava, como
infantis: e só de manhã, quando uma luz ainda
indecisa
e fresca se coou através das frinchas da janela,
êle conseguiu adormecer, cansado, extenuado pela
vigília
e pelas emoções intensas. Ao levantar-se, estava
pálido, mal disposto, cheio de tédio―e pensava
então
que a vivenda de Nuno se lhe tornava insuportável
de dia para dia...
Uma tarde, o amigo abalou para as obras que
continuavam activamente. Ao passar no escritório de
Nuno, para escolher um livro, Frederico encontrou
lá Júlia, que bordava um pano de mesa, sentada
à
janela abrindo para o jardim e tôda ensombrada
por uma trepadeira já sem flor. Frederico sentou-se
tambêm, vendo-a trabalhar. Tinha um vestido preto
que lhe imprimia maior destaque à brancura das
carnações. Na gola da
corsage
, afogada ao
pescoço,
fulgurava um brilhante, irrizando-se à luz. Os seus
dedos magros manejavam ágilmente a agulha. Como
sempre, a noite de Frederico fôra tempestuosa,
deixara-o doente e mais aborrecido. Resolvera internar-se
no parque, à procura do isolamento, do
sossêgo, que apaziguavam o seu frenesi: mas, deparando
Júlia, experimentou logo a irresistível
atracção
que ela exercia sobre o seu sentimento e achou
um doce sabor na sua companhia. Seguia mudamente
o bordado, com a face encostada à palma da mão;
e, para interromper um silêncio que lhe fazia, mal,
exclamou:
[106]
―Só as senhoras teem paciência para tais
tarefas...
―Questão de hábito―respondeu Júlia,
sem
levantar a cabeça.
―Eu era incapaz de chegar ao fim duma coisa
dessas, que me parece mais fatigante e difícil do que
os dôze trabalhos de Hércules... Estragava tudo,
rasgava
tudo...
―Jesus! Pois é assim impaciente?...―perguntou
ela, fitando-o.
―Sou assim impaciente!
A radiação da luz fluida, que vinha de
fóra,
batia em cheio na cabeça de Júlia, aureolando-a;
sôbre os ombros descaídos havia tambêm
manchas luminosas.
Frederico, perturbado, voltou-se para a estante,
a escolher um volume.
―Que vaí ler?―interrogou Júlia.
―Sei lá! Talvez uma história triste
dalguêm
que nunca realizasse as suas aspirações. Estou
hoje
tam nervoso, tam melancólico!...
―Pois por isso mesmo, devia preferir as leituras
alegres, para se desanuviar... E diga-me: Crê
que haja pessoas correndo continuamente atrás dum
ideal que nunca alcançam?
―Oh! de-certo que há!
―Eu julgo que essas pessoas estão fóra da
realidade, e eis porque não encontram nunca o seu
mundo...
A voz de Júlia tinha, no seu timbre de ouro,
uma brandura acariciante. Frederico, enleado, contemplava-lhe
o busto, que era admirável de
proporções,
a linha, a curva ondulante dos seios que se
arredondavam sob os tecidos leves, o pescoço esbelto,
[107]
o lóbulo das orelhas que o penteado deixava a descoberto
e que era côr de rosa.
―Mesmo dentro da realidade―exclamou êle―nem
sequer se podem atingir certos ideais.
A solitude em que a casa estava mergulhada
assustava-o. Desejava o ruido, o barulho, tudo o que
o aturdisse.
―Conhece alguns casos dêsses?―perguntou
ela, mirando-o com a face tocada pela graça do
riso.
Frederico sentiu uma perturbação
instantânea,
passou-lhe na mente uma névoa, tôda a
resolução
anterior se deteve no seu sêr, fez-se-lhe uma
espécie de vácuo na consciência, a sua
timidez aumentou.
Sem poder falar claramente, gaguejava.
Êste sobressalto inexplicável excitou ao mais alto
ponto a curiosidade de Júlia que o envolvia com a
luz dos seus olhos tam sinceros.
―Diga!...―insistiu ela.
―Talvez!―respondeu Frederico. Tenho-me
entregado a êstes estudos especiais, porque o
maior prazer duma alma é reconhecer outras almas
belas.
―Oh! mas essas almas escapam-se a tôda a
observação―atalhou Júlia.
―Não. Quando muito, constituem um mistério―mas
mistério que se sente...
Desvairado, Frederico levantou-se, encaminhando-se
para a porta.
―Tem que fazer?―interrogou Júlia.
―Não... Absolutamente nada.
―Então, sente-se, seja a minha companhia,
se
isso
lhe não
desagrada.
[108]
―Oh! minha senhora!...
As fontes latejavam-lhe, uma vermelhidão febril
afogueava-lhe as faces, a sua respiração
acelerava-se.
―E como se denunciam, às vistas perspicazes,
as almas de que fala?―inquiriu Júlia, baixando
o rosto sôbre o bordado.
―Pelo encanto que irradiam, pelo domínio que
exercem, pela inspiração que produzem.
―Julgo que está enganado. As almas femininas,
por exemplo, furtam-se às mais subtis análises.
Se um homem louvar a beleza duma mulher, ela
sorrirá, não se defendendo, mas ocultando-se
às revelações
íntimas...
―Mesmo quando ama? Sendo o amor a obra
da alma, ela revela-se totalmente sob a sua influência...
Insensívelmente, o diálogo entre os dois tinha
resvalado para um plano perigoso, e Frederico empregava
esforços violentos para subtrair-se às
tentações,
porque começava a ter receio de dizer tudo
a Júlia, de lhe confessar o seu supremo segrêdo,
de
lhe denunciar, com lágrimas, o seu inferno, o seu
tormento de tôdas as horas. Ia-lhe fugindo a faculdade
de pensar, de reflectir antecipadamente na
significação
das suas palavras e de calcular-lhes as
conseqùências, porque erradamente supunha que o
interrogatório de Júlia, tam natural, tinha
qualquer
cousa duma provocação.
―Mas ainda me não disse francamente se conhece
alguma dessas almas―exclamou ela, de novo.
―Não conheço, mas tenho a certeza de que
existem...
―Nos romances?
[109]
―Ah! nos romances, há lenda daquele príncipe
que se sabia perto da mulher que amava, que
lhe sentia as palpitações do
coração, mas que não
podia tocar-lhe nem vê-la, porque uma cortina de
névoa opaca o separava dela!...
Júlia, esquecendo as mãos no regaço,
olhou-o
então longamente, como se quisesse compreender alguma
obscuridade psicológica que pressentia: e Frederico,
comprometido, levantou-se logo, rindo um
riso nervoso e atalhando:
―Mas, é claro! O que os romances dizem não
tem veracidade. E estas nuvens só aparecem aos
príncipes e às princesas...
Dirigiu-se para a porta, resolutamente, depois
de tirar um livro da estante.
―Sai?―perguntou Júlia.
―Sempre vou um pouco até ao jardim, tomar ar...
E desceu rápidamente sem se voltar, desgostoso
consigo próprio, excitado, ainda no pavor da
leviandade irremediável que ia cometendo. Ah!
não!
Aquilo não podia continuar! Era muito duro, muito
cruel para êle. Agora, compreendia que o temido conflito
do seu espírito com o seu instinto se daria fatalmente,
se prolongasse por mais um dia, uma semana,
a sua estada perto de Júlia. Chegaria uma hora de
fraqueza em que a energia lhe faltasse para dominar-se.
Antes de isso acontecer, fugiria para longe, tentaria
esquecer. Queria ser digno de amizade de Nuno e
do afecto da mulher de quem um amor infeliz o aproximara.
Estava ainda a tempo! E firmemente, nesse
mesmo dia, ao jantar, anunciou a sua partida inevitável,
pretextando a solução urgente de
negócios
que não deviam ser adiados...
V
Foi num inquietante estado de alma que Frederico
deixou a vivenda pacífica onde o seu sentimento
fizera, inesperadamente, uma tam alarmante
descoberta, regressando ao Pôrto sem um fim determinado,
sem mesmo pensar na maneira de evadir-se
duma intensa e amarga tortura. A certeza de que
amava a mulher de Nuno com um amor que poderia
levá-lo, violentamente, a todos os crimes e a
tôdas
as degradações da alma, obcecava-o e obrigava-o a
reflectir na impureza da argila de que é formado o
coração humano. Fugia de Júlia, do
amigo, do repousado
lar em que vivera tam plácidos dias―antes da
fatalidade duma adoração que quisera evitar, a
que
tentou, em vão, resistir e que lentamente se lhe apoderou
de todo o sêr consciente―em condições
trágicas
para a sua emoção. Sentia-se
enfeitiçado por
uma espécie de malefício ao mesmo tempo cruel
[112]
e doce, que lhe causava sofrimento e saùdade e que
nêle abolia o senso moral sem, no entanto, lhe conturbar
a lucidez da inteligência a ponto de não
discriminar
entre o bem e o mal...
Durante a jornada para o Pôrto foi sobressaltado,
várias vezes, por uma singular diversidade
de sensações. Ia fugindo como um bandido,
trémulo,
aterrado, com mêdo de tudo―e porquê?
Ninguêm
conhecia o seu drama, bem oculto, bem recalcado dentro
de si próprio―a não ser que Júlia o
tivesse adivinhado,
porque as mulheres; em coisas de sentimento,
são subtis. Aquela deserção
representava a
cobardia dum homem incapaz de afrontar altivamente
o primeiro perigo que diante de si imprevistamente
se levantava, com a segurança de que venceria;
mesmo incapaz de dominar as instigações da
outra personalidade em que se desdobrava e que o
concitava ao êrro, à deslealdade, à
vileza, solicitando
a imediata satisfação dum desejo gerado no
seu egoísmo e na sua sensualidade; que se mostrava
impotente para conter a expansão vertiginosa do
instinto. Alucinava-o a quáse
eliminação da vontade―de
que o último lampejo se exaurira com a
resolução
de sair apressadamente da casa de Nuno, inventando
um pretexto fútil em que se traíria, se o
amigo não depositasse nêle a maior
confiança. Raciocinando
nesta leviandade, Frederico monologava,
encolhido a um canto do combóio, sem mesmo espreitar
rápidamente a maravilhosa paisagem, que
atravessava:
―Como fui imprudente, na realidade!
E agora, que estava mais sereno, aquela imprudência
atemorizava-o. Reconstituía na
imaginação
[113]
sobreexcitada a
surprêsa de Nuno,
quando lhe
comunicou a resolução firme de voltar
à cidade. Fixando-o
com uns olhos penetrantes que o devassavam
até às recônditas intimidades da
consciência, êle exclamara:
―O que? Vais-te embora?
―Sim, vou!―atalhara bruscamente, com uma
perturbação que o denunciava. Assuntos
complicados
a liquidar, um inferno...
―Homem, sê sincero. Tu o que estás é
aborrecidíssimo,
odiando êste cárcere, abominando esta
solidão, morto por te veres de novo no ruído, no
tumulto urbano...
―Mas não, mas não! Que ideia!...
Júlia expiava-o tambêm interrogadoramente,
com um olhar em que à vivacidade se mesclava uma
pontinha de ironia amável.
―Para que hás de negar?―insistia Nuno.
―Oh! filho, mas que impertinência tamanha,
a tua!... Frederico é um homem do mundo
e julga ter cumprido já os deveres da amizade para
connosco, dando-nos algumas semanas da sua companhia.
Se quiséssemos retê-lo aqui por mais tempo,
entre estas árvores, nesta solidão, no meio
dêste deserto,
seria tirânico da nossa parte!―afirmara
Júlia benévolamente.
―É claro―acrescentou Nuno ―eu não te
imponho o sacrifício de nos aturares até
à consumação
dos séculos... O meu despotismo não chega a
tanto...
―Sacrifício?... Mas que sacrifício?... Se eu
te estou a dizer...
―Bem, acabou-se!―concluiu Nuno. Parte...
[114]
―Quem sabe, de resto, se haverá na cidade
algum motivo superior que o reclame a tôda a
pressa?―insinuara
ainda Júlia com aquele riso que era de
graça, de bondade, de malícia e de
doçura e que
tanto encantava Frederico.
―Certamente, minha senhora... Há um motivo!―respondeu
êle.
―Sentimental?―inquirira Nuno, rindo tambêm.
―Crê que estou a falar a sério!―replicara
Frederico.
Propositadamente, para desviar o rumo da conversa,
que o fazia sofrer e o forçava a simular para
esconder uma verdade que não podia ser conhecida
sem vergonha para êle, sem dor para Nuno e sem
cólera
amargurada para Júlia, Frederico procurou ser
alegre, mas inutilmente. A intensidade da comoção
experimentada crestou-lhe a floração do
humorismo,
tornou-o fúnebre; e as horas que se seguiram à
sua
decisão foram monótonas, tristes, cheias de
fadiga.
A cada instante, Nuno murmurava, fumando um
charuto e quebrando a cinza na beira do cinzeiro de
porcelana:
―Vais, então, para o Pôrto, scelerado, reentras
nos teus hábitos.
Frederico notava nestas palavras de afecto,
que lhe doíam como um queixume, a vaga sombra
dum desconsôlo, e dizia:
―Vou, de-certo... Deveres... As obrigações
primeiro e as devoções depois. O
método é tudo... E
tu? Ficas por aqui ainda?
―Fico. Há uma infinita multidão de factos
que exigem a minha presença... Alêm disso, esta
[115]
é que é a minha casa... Júlia
dá-se bem. Eu
passo óptimamente. Retirar-me, para quê?
―Pois olha que sou muito capaz de voltar
ao calor das vossas afeições, em concluindo os
meus
negócios!
―Que lisonjeira mentira!―acudiu Júlia, aconchegada
na sua cadeira, ainda à mesa do jantar, seguindo
o diálogo com a face inclinada na mão.
―Oh! minha senhora, eu nunca minto, por
princípio. Seria um pecado.
―Não! Muitas vezes, mentir por amabilidade
é uma virtude que denuncia puros dons de alma.
Tornou-se impossivel animar a palestra em
tôda a noite. Frederico pensava que o desalento se
comunicara, como um fluido subtil e dissolvente, a
Júlia e a Nuno, destruindo o gôzo espiritual
daquele
momento: e foi para ele um grande alívio o instante
em que pôde recolher-se ao seu quarto, isolar-se,
concentrar-se
nas suas meditações. Deitando-se e apagando
a luz, reencetou a análise da sua própria
psicologia.
A impressão que Júlia lhe produzia na
sensibilidade
era cada vez mais forte. Por enquanto, a
imagem da mulher amada iluminava-se ainda de esplendor,
movia-se num círculo de claridade e de
pureza que o coagia a uma adoração casta.
Não atravessaria
a zona luminosa que o separava dela, para
tocar-lhe com mãos profanas. Chegaria, porêm, uma
hora de alucinação em que a generosidade e a
grandeza
moral que prevaleciam na sua organização
desaparecessem,
fundindo-se a um fogo de voluptuosidade
impetuosa, e em que a sua áspera ânsia carnal,
numa
súbita e espontânea erupção
de luxúria, o impelisse
às piores injustiças, às violentas
rebeliões, às brutalidades,
[116]
às loucuras em
que nada se respeita. Frederico
temia essa hora e libertava-se, pela fuga, da sua terrível
influência. Por enquanto, conservava tôda a
sua energia, tôda a sua lucidez mental, podia calar-se
a tempo, encerrar o seu amor secreto num silêncio
impenetrável;
mas não viria a perder essas faculdades
redentoras se prolongasse a sua estada junto da
mulher que inocentemente excitara a sua paixão?
Era preciso cortar como flor venenosa o sentimento
vil que lhe germinara na alma, exilar-se para longe,
esquecer... Tam ardente era nêle a
imaginação que
lhe parecia que a voz de Júlia tremera ao ouvir-lhe
anunciar a partida e que os seus imensos olhos,
negros e húmidos, fazendo-se mais lânguidos e
acariciadores
sob as pestanas, cravando-se nos dêle,
lhe pediam que ficasse, o aliciavam com promessas
de tôda a sorte. Resistir aos avisos da dignidade, que
o mandavam retirar sem demora, seria uma
abjecção,
um acto inqualificável. Êsse amor, apenas
nascente,
tinha para êle a sordidez, a vilania, a crápula
dum incesto―porque Nuno era o seu irmão. Não
reagir contra a voz secreta e criminosa do instinto
puramente animal que o tentava a não sair do lado
de Júlia representaria a queda num abismo
insondável,
a submissão que o desonraria para sempre, o
remorso, uma dor futura que nem sossegaria sequer,
mesmo que fôsse possível satisfazer a
ignomínia da
paixão que o exasperava.
―Não! Não!―murmurava Frederico, revolvendo-se
no leito. Partindo, serei ainda nobre e
bom.
E a bondade, para êle, era a mais pura, a mais
alta manifestação da vida consciente. Alucinado
por
[117]
um sentimento que agitava tudo o que no seu ser
de homem havia de imperfeito, de inferior, de grosseiro,
sofrendo tôdas as torturas que um amor impossível
e sem esperança pode fazer experimentar
a um temperamento ardentemente apaixonado, Frederico
sentia, como uma carícia de
inexprimível
enlêvo, essa bondade à sua volta, naquele calmo
lar
tam digno. Ela irradiava da candura dum berço
onde dormia a inocência sem culpas; denunciava-se
numa adoração conjugal que se perpetuava
indefinidamente
com o mesmo encanto do dia maravilhoso
em que principiara; emanava-se de Júlia como
uma espécie de imaterialidade visível e
penetrava-o
a êle mesmo fazendo-lhe transbordar de ternura o
coração, purificando-o de pensamentos maus. Por
mais duma vez―absorvido na sua meditação e
louvando-se pela coragem, pela energia que revelava,
afastando-se dum enlêvo que para êle condensava,
nesse momento, a felicidade suprema―Frederico
descobria uma desconhecida frescura de emoções
novas e apaziguadoras, passava-lhe na alma
um sôpro vital que o rejuvenescia. Mas êste
entusiasmo
era fugaz: e uma saùdade muito funda―a
saùdade de tudo o que perdia―continuava a
exaltá-lo.
Murmurava, na sua viagem para o Pôrto:
―Fiz, talvez, uma asneira. Desertando, demonstrei
a mim próprio que sou cobarde, que tenho mêdo,
que sou incapaz de resistir...
Então, arrependido, levantava-se do banco em
que ia sentado, dava alguns passos nervosos no
compartimento em que viajava só e assaltavam-no
tentações de descer da carruagem na primeira
estação
[118]
e
de voltar para trás,
regressando a casa de
Nuno e de Júlia. Logo, porém, caía em
si, exclamando:
―Mas estou doido, doido! Êsse regresso seria
uma revelação, uma confissão completa
pelo menos
para Júlia, porque nada escapa à sagacidade das
mulheres, em amor.
Para se distrair, dissipar os sentimentos contraditórios
que o desvairavam, curvou-se à janela da
carruagem, observando o panorama que se desdobrava
ao sol no esplendor das suas tintas. A manhã
resplandecia como um cristal translúcido; tôdas
as côres se aviventavam na radiação da
luz. As forfas
elegantes das árvores, que donde aonde davam
sombra e manchavam de verdura os descampados,
desenhavam-se com nitidez de linhas e de contornos
no azul claro, e a serenidade deliciosa do céu cumunicava-se
à natureza inteira. A largura infinita do espaço,
mais branco para as bandas do nascente, mais
anilado no alto, parecia decorada, vestida como para
uma festa voluptuosa e delicada. A profundidade alvacenta
e luminosa do ar que envolvia e vivificava
tôdas as coisas tinha para Frederico uma novidade
nunca surpreendida. Parecia-lhe que Júlia, despertando-lhe
a faculdade de amar, lhe despertara tambêm
a faculdade de compreender.
Lentamente foi-se-lhe atenuando nos olhos a
imagem feminina que sem repouso acariciava. O fenómeno
fisiológico intenso que imprimira uma completa
modificação à sua
consciência em horas tam ardente
e dolorosamente vividas, dava agora um rumo
diferente aos seus pensamentos―e isto desanuviava-o
um pouco. Caía numa dessas cogitações
sem
[119]
objecto definido que constituem verdadeiros e inefáveis
desfalecimentos de espírito...
Desejava chegar depressa ao Pôrto, reentrar
na serenidade da sua vida de solteirão, mergulhar no
tumulto citadino, entregar-se todo à
satisfação dos
seus caprichos, à sua fantasia, à multiplicidade
dos
seus prazeres, com a secreta esperança de esquecer
completamente, de depurar-se, para ser outra vez
digno do afecto de Nuno e da confiança de Júlia.
Enquanto dentro de si vivesse aquele amor criminoso,
julgava-se impuro:―e como impuro, não deveria
pensar no regresso à vivenda do amigo, que era um
templo e que a sua impureza profanaria. Foi nesta
excitação que entrou no Pôrto, num
sábado à tarde.
Começou, então, para Frederico um sombrio
período do miséria moral e de sofrimento.
Jàmais a
sua existência lhe aparecera tam solitária, tam
inútil,
tam recuada das verdades construtivas e dos sentimentos
renovadores. Um inexplicável desalento
enchia-o de desgôsto, humilhava-o. Nunca, como
nesses dias alucinantes em que, em vão, procurava
aturdir-se, afundar-se na embriaguez de tôdas as
excitações, Júlia lhe parcera tam
desejável. Um fogo
sensual muito violento ia secando nêle tôdas as
fontes
da virtude e da honestidade: e a sua ausência
infligia-lhe fulgurantes torturas. Recordava, com uma
vivacidade que lhe aumentava o padecimento, a
sua graça de mulher, as perfeições do
seu corpo, a
doçura que a sua posse lhe transmitiria. O ciúme,
que já por mais duma vez sentira por Nuno, intensificava-se.
[120]
Como se na
evocação das coisas
amargas
houvesse para a sua alma um gôzo especial, Frederico
imaginava a cada momento Júlia nos braços do
marido,
fundindo-se ambos no mesmo beijo abrasador,
dando-lhe tôda a sua carne latejante, todo o sangue
das suas veias, murmurando-lhe ao ouvido tôda a
sorte de meiguices em palavras entrecortadas e ternas.
E via-a rolando a cabeça desfalecida no ombro
de Nuno, cerrando as pálpebras num delíquio, mais
côrada, com os lábios pálidos, o peito
arfando apressadamente.
Insurgia-se contra êste amor conjugal
como se êle representasse um crime, como se exprimisse
um pecado e como se fosse êle o traído... Um
acesso de impaciência e de cólera interrompia este
delírio dos seus sentidos. Reentrando novamente nos
domínios luminosos da inteligência, Frederico
exclamava:
―Preciso de reagir contra esta doença que me
devasta, senão enlouqueço!
Esperava que a crise lhe concedesse tréguas, e
para apressar êsse instante que seria venturoso e
afável para êle, ia aos teatros, aos concertos,
freqùentava
as reùniões das pessoas do seu conhecimento,
nunca faltava nos logares onde o mundanismo se
dá
rendez-vous
: mas, nas
salas de espectáculos, nos
salões de baile, nas
soirées
familiares,
surpreendia-se
a aguardar a entrada súbita de Júlia, radiante no
esplendor duma beleza a que a vida campestre tivesse
insuflado mais graça e maior poder de
sedução,
sem reparar em nada do que à sua volta ocorria.
As senhoras achavam-no muito mudado e diziam-lho,
entre ironias. Não tinha a alegria antiga, a vivacidade
doutrora, era um outro Frederico sem a jovialidade
[121]
que o
caracterizava e o impunha às
admirações.
Uma noite, em casa de D. Francisca de Medeiros,
que às terças-feiras reùnia algumas
famílias íntimas,
a sua tristeza foi notada pelas damas com quem
se entregara, em outras épocas, às suavidades do
flirt
. Uma delas, D. Felismina
Trigoso, que nutrira a
esperança de ser por êle amada em tempos findos de
que ainda conservava a lembrança doce, surpreendendo-o
a um canto a folhear uma revista ilustrada,
não se conteve.
―Sabe?―exclamou ela―tôdas nós o estranhamos.
―E porquê, minha senhora?―inquiriu Frederico,
fechando a revista e erguendo-se.
―Estranhamo-lo por essa melancolia, pelo desinterêsse
de tudo o que o cérca, pelo isolamento
em que voluntáriamente se encerra.
―É que ando a fazer um severo exame de
consciência. Fui um grande pecador, e para ganhar
a glória celeste, decidi fechar-me num convento, ser
monge, penitenciar-me―disse êle.
―Não disfarce, não finja!
―Mas sou sincero!
―O que pretende é ocultar qualquer coisa―insistia
ela.
―Ocultar o quê?
―Que sei eu? Talvez alguma paixão infeliz,
algum desgôsto muito profundo.
―Ah! como é errado o seu juízo! V. Ex.
a
não
sabe, então, que as criaturas que se recolhem, que se
isolam, que se concentram, são precisamente as felizes?
―As felizes?
[122]
―Certamente! Só a felicidade é
egoísta, concentrada,
e não gosta de revelar o seu gôzo interior.
O sofrimento, pelo contrário, precisa das
multidões,
das testemunhas, para dilatar-se.
―Paradoxos...
―Não, minha senhora. V. Ex.
a
não conhece,
de-certo, Heraclito, um filósofo da antiguidade
clássica,
que, quando sofria, procurava as praças públicas,
as ruas das cidades, para chorar... Se eu fôsse
desgraçado...
D. Felismina ria saborosamente daquela abundante
verbosidade que incitava ao humorismo pelos
efeitos do contraste.
―Se fôsse desgraçado?...―interrogava ela.
―Se fôsse desgraçado, rompia aqui num
chôro
de tal ordem, que a policia teria de acudir!...
―Venham cá, venham cá!―chamou D.
Felismina―está
hoje brilhante!...
As outras senhoras acudiram, num grande rumor
de riso e de sêdas amarrotadas: e D. Felismina,
voltando-se para a dona da casa, murmurou:
―Tem estado a dizer-me coisas monstruosas,
não calcula!...
―Sim?―atalhou D. Francisca, com um sorriso
afável iluminando-lhe o rosto simpático.
Então,
de que falavam?
―De grandes verdades, minha senhora―respondeu
Frederico. Afirmava eu que as paixões
amorosas mais sérias, porque decidem de todo um
destino, são as que alvorecem nos
corações de cincoenta
anos de idade. A snr.
a
D. Felismina,
porêm,
é de opinião contrária e assevera que
essas paixões
só podem ser sentidas aos vinte anos...
[123]
―Não era de nada disso!―protestou D. Felismina.
É um mistificador...
―E ainda não experimentou nenhuma, Frederico?
―Não, D. Francisca. Encontro-me na infância.
Tenho apenas trinta e cinco anos, estou muito
longe da minha primavera!...
O riso animou-se mais nas bôcas femininas,
que louvavam tôda aquela alegria, tôda aquela
mocidade
de espírito, e, por momentos, Frederico atraíu
as atenções; mas foi um fogo-fátuo
êsse instante de
jubiloso alvorôço, que se dessipou totalmente,
quando
D. Felismina, muito solicitada, se sentou ao piano,
tocando uma página de Mendelssohn, que ela interpretava
maravilhosamente.
De novo isolado e absorvido nos seus pensamentos
dolorosos, folheando outra vez a revista
que o fatigava de tédio e que tinha aberta sôbre
uma
mesa de pau preto onde, em jarras de faiança antiga,
brilhantes de esmaltes e de coloridos, morriam e se
desfolhavam lentamente ramos de azáleas brancas,
Frederico observava aquele mundo fútil de exterioridades
encantadoras e recordava-se de Júlia. O ambiente
era, na verdade, elegante. O salão estava decorado
com gôsto. Um tapête de tons suaves, rosa e
verde-malva,
amortecia o som dos passos e tornava mais
confortável o compartimento; os móveis, leves e
bem
lançados, destacavam-so pela forma e pelos estofos
que os recobriam. Sôbre um fogão de
mármore, que
resplandecia de brancura na crueza da luz eléctrica,
um relógio de bronze, estilo Luis
xiv
, marcava as
horas que longos ponteiros dourados indicavam num
mostrador esmaltado em que corria, no esplendor das
[124]
tintas, uma scena idílica, evocando as telas de
António
Watteau, com pares de namorados enlaçando-se
sob as árvores. Ao fundo, um piano Bechstein com
velas ardendo em serpentinas de prata e acendendo
fulgores de chama no verniz negro da madeira, tinha
uma graça ornamental pesada e imóvel.
Sòbre a alcatifa,
encostados dum lado e doutro às paredes, que um
papel côr de ouro fosco forrava, havia enormes vasos
do Japão, com figurinhas de mulheres abrigando-se
do calor sob largas umbelas de sêda, penteados altos
seguros por pregos de feitios bizarros e cegonhas de
bico vermelho adormecendo à beira de lagos, junto
de cerejeiras em flor.
Etagères
de ricas talhas
sustentavam
graciosamente cristais cheios duma água
que scintilava na claridade e em que esplendia a
graça duma rosa ou a beleza do ramos de violetas,
exalando-se em arôma. O que mais seduzia Frederico
era a harmonia, a disposição bem achada de cada
peça de mobiliário, contribuindo para o
equilíbrio
do conjunto, a correcção das linhas
plásticas e decorativas.
Por êste arranjo impecável,
reconstituía êle a
individualidade psicológica de D. Francisca, que se
fanava na sua viuvez de longos anos, que devia ser
inteligente, ter um sentimento acessível às
emoções
produzidas pela arte, possuir uma alma feita de tôdas
as delicadezas e de tôdas as bondades. Para ela
subiam o culto puro do seu afecto, a sua ternura de
homem. Sem saber porquê, D. Francisca fazia-o lembrar
com mais doçura de Júlia, que havia de ter,
mais tarde, uma velhice assim, encantadora, um
porte que inspirasse admiração e respeito, uns
olhos
em que vivessem milagrosamente as imagens dos
sonhos mortos...
[125]
Num gabinete ao lado, servindo de
fumoir
e de
sala de jôgo, os homens entregavam-se com interêsse
ao seu
bridge
, enquanto esperavam
pela hora da debandada,
discutindo, em voz baixa, escândalos sentimentais
ou casos frustes de política. A atmosfera pesava,
aquecida pela luz, carregada de perfumes. E
a música de Mendelssohn ia dizendo, numa voz de
sortilégio, a aspiração das almas
pelos finos amores
idealizados, tudo o que murmura nas florestas pelos
crepúsculos religiosos, tudo o que suspira nas aragens,
tudo o que sussurra nas fontes e nas folhagens.
Conturbado, Frederico fechou a ilustração,
levantou-se, deu algumas voltas, sacudido por uma
emoção muito viva e muito forte...
Aquela música segeria-lhe uma outra que ouvira
em casa de Nuno, por uma noite inspiradora e
silenciosa, pouco depois de chegar à aldeia e de conhecer
Júlia mais de perto. Nem um só pormenor lhe havia
esquecido, tam violenta fôra a comoção
experimentada.
A sua inteligência tinha uma extraordinária
argúcia. Relembrava o enlêvo daquela hora
reveladora;
a graça ideal do busto de Júlia, sentada ao
piano;
o banho luminoso que descia do candeeiro suspenso
no alto e batendo em cheio na sua cabeça, aureolando-a;
a ligeireza, dos seus dedos longos e brancos
pousando ágilmente sôbre as teclas de marfim;
o seu olhar animado e brilhante; o viço dos seus
lábios vermelhos e húmidos; o jardim florindo ao
luar; a massa confusa de sombra formada pelo parque,
ao longe...
Entrou na sala do jôgo, parando durante minutos.
A conversa banal dos homems enfastiava, sufocava-o
o cheiro do fumo. Veio novamente para junto das
[126]
damas que sonhavam ainda sob a influência perturbante
e emotiva da música. D. Felismina tinha acabado
de tocar e sorria, cansada, encostando ao piano
um braço nú, emergindo da alvura das rendas,
redondo, gordo e puramente medelado. Frederico,
gentilmente, cumprimentou-a.
―Sabe que é um nobre temperamento de artista?
―Ora! Gentilezas...
―Mas não, mas não! É perfeita.
Não lhe parece,
D. Francisca?
―De-certo! Eu acho-a admirável.
―E fica-lhe bem a modéstia―acudiu uma
outra senhora, D. Maria do Céu, espôsa dum
magistrado,
muito nutrida, entre duas filhas magras e pálidas.
―Não é modéstia, D. Maria.
É sinceridade.
―A música desperta em mim singulares
comoções,
fazendo aflorar tudo o que na minha organização
há de mais elevado moral e mentalmente―disse
ainda Frederico. É por isso que eu a considero
a arte superior, pelos sentimentos e pelas ideias
que inspira, quando os seus executantes lhe transmitem
uma alma. E é êste, justamente, o seu caso, minha
senhora.
―Para que há de zombar duma
dilettante
sem
pretenções?―exclamou D. Felismina.
―Mas então, ninguêm me acredita, mesmo
se digo a verdade! Arranja fama de
blagueur
e deita-te
a dormir―comentou Frederico, risonhamente.
Demorou-se mais alguns momentos numa palestra
que o aborrecia, pelo seu ar de cortesia
convencional; e, por fim, despedindo-se, saíu, seguido
[127]
pelo olhar de D.
Felismina, que outrora galanteara,
fazendo nascer na sua ternura feminina
uma fina flor de ilusão. A caminho de casa, pela
rua mergulhada numa meia obscuridade que mais
o entristecia, Frederico meditava na sua
condenação
atroz e monologava:
―Como custa ser honesto!
Efectivamente, a saùdade de Júlia acompanhava-o
para tôda a parte, no passeio, no teatro, nas ceias ruidosas
com amigos, nas reùniões familiares, velava-lhe
os sonos inquietos, seguia-o sem repouso, vigiava-lhe
a formação das emoções e
dos pensamentos. Não
podia separar-se dela um só minuto. Sentia-a
tirânicamente
no coração como um remorso conjuntamente aflitivo
e suave, no sangue, como um fluido que o incendiava,
nos nervos. Em vão procurava libertar-se. Para
a apagar no cérebro e na alma, torturava-se inutilmente.
Julgava-se abandonado de tôdas as
afeições,
mesmo de Nuno, que nunca mais dera sinal de si, desde
que Frederico deixara a quinta, no terror de praticar
uma vilania. Escrevera-lhe para lá uma longa carta,
narrando-lhe o repouso inolvidável das horas que
perto dêle e de Júlia passara durante duas
semanas,
pusera nas palavras mais vibração e calor, por
imaginar
que também ela leria essas linhas em que o seu
sentimento transbordava de gratidão, dissera-lhe a solitude
e a angústia dos dias que ia vivendo na cidade,
longe dum lar que lhe mostrára nítidamente a
realização
da felicidade terrestre―e nenhuma resposta
recebera. Porquê? Traíria êle, nessa
confissão ardente,
um segrêdo que ninguêm devia conhecer? Suspeitaria
Nuno dalguma coisa? Não teria a carta
chegado ao seu destino? Estas dúvidas pungiam-no.
[128]
Enquanto caminhava, pelas ruas ermas que
se esgueiravam como cobras na sombra que as fileiras
irregulares de prédios projectavam nas calçadas,
Frederico
sentia um grande desalento subir e invadi-lo
todo. Como a sua existência era estéril! Nem
alegrias
morais presentes nem confiança no futuro. Evocava,
por uma especial associação de ideias e de
sentimentos,
a melancolia da sua vida desde os dias já remotos
da infância, e, por instantes, todo o passado
se iluminava aos seus olhos.
Aos oito anos, quando as outras crianças ricas
brincavam e eram amimadas pelas mãos puras das
mães, fôra êle metido num
colégio como interno,
depois de lhe vestirem um fardamento. No internato
onde a sua meninice se enclausurara, deitava-se,
levantava-se, ia para as aulas, para as
refeições,
para a banca de estudo, para os ócios do recreio,
sempre ao toque duma sineta. A sua individualidade
passiva resumia-se em obedecer; os deveres da disciplina
vergavam-no, a êle que era então tam
tímido,
sem vontade, incapaz de rebeldias. Com que lucidez
maravilhosa se lembrava duma época para êle
desoladora!
Não lhe escapavam os mínimos detalhes.
Recordava, por exemplo, a ansiedade com que, tanto
êle como os condiscípulos, esperavam a hora da
folga, durante as lições enfadonhas que um homem
imensamente calvo e de bigodes brancos―o snr.
Justino―lhes professava. O snr. Justino tinha uma
voz que soava falso, uma face engelhada, vestia um vélho
frac
muito coçado na gola
e nos cotovelos. Os seus
olhos, que eram vivos e pequeninos, faíscavam por
detrás dos vidros das lunetas. Nunca se irritava,
era fleugmático, pachorrento, as suas palavras arrastavam-se
[129]
no
silêncio da sala―um silêncio tam
profundo
que, em junho, se ouvia o lento zumbido
das moscas descrevendo, no vôo, movimentos
giratórios
incoerentes. Os rapazes chamavam a êste pobre
professor, que era a imagem dos lutadores destroçados,
o
D. Ana
. Escondendo-se com os
livros abertos
e postos ao alto nas carteiras, curvando o busto,
deitavam a língua de fóra, faziam momices,
trejeitos
humorísticos, protestando assim contra a prisão
nas idades em que as infâncias, como as flores,
amam os grandes espaços livres, o tumulto, as indisciplinas.
Por vezes, das bancadas elevava-se um murmúrio
confuso, estalavam risos abafados, as solas das
botas raspavam, impacientemente, o soalho frio e encardido.
D. Ana
, interrompendo a sua vagarosa
exposição,
erguia a cabeça, fitava um minuto os colegiais,
que logo emmudeciam, atemorizados, dizia,
na sua voz de falsete:
―Então, meninos! Que é isso? Mais respeito
e mais atenção!...
A tranqùilidade restabelecia-se imediatamente,
mas por pouco tempo. Perto de Frederico, um estudante
com raras aptidões para o desenho fazia a lápis
a caricatura do snr. Justino, com as lunetas dependuradas
tristemente do nariz que sugeria o agudo e
longo bico dum pássaro. A semelhança dos
traços
era flagrante e já com uma notável
noção do grotesco.
O caricaturista dava a sua obra humorística
a Frederico, dobrada em quatro. Êle abria-a e lia
por baixo da figura ridícula do mestre:―«Veja
e passe adiante». Frederico via e passava, sufocando
o riso na palma da mão com que comprimia a
bôca. A caricatura corria assim tôdas as bancadas
[130]
dum extremo ao outro, despertando as hilaridades
que não podiam expandir-se e que espalhavam a
inquietação, o nervosismo, a
impaciência, na aula.
Por vezes, o prefeito, que era muito severo e a quem
os rapazes denominavam de
Mata e
esfola
, surgia de
repente à porta. Na sua bochecha còrada e gorda,
tôda rapada, barbeada de fresco, como a dum padre,
espelhava-se a indignação. Lançava um
schiu!
muito
sibilado que fazia entre os escolares o efeito duma
ameaça...
Os rapazes odiavam-no, imputavam-lhe a responsabilidade
de todos os castigos sofridos, a supressão
da sobremesa e das liberdades do recreio, as
longas e fastidiosas páginas de escrita em que se repete
um verbo cem vezes―e prometiam vingar―se... Depois,
D. Ana
terminava a
lição, os livros fechavam-se
de estalo, com alarido formidável, uma sineta
badalava na solidão e os colegiais saltavam as
carteiras, com o
bonet
agarrado nas
mãos, corriam para
o jardim que floria ao sol, no esplendor das formas
e das colorações, pulavam por entre os arvoredos
que
projectavam na areia branca do chão largas
máculas
de sombra oscilante.
Era a hora melhor e mais doce para os internos
do Colégio. Formavam-se grupos, organizavam-se
jogos, a gritaria tornava-se ensurdecedora. Dum céu
muito nítido vinha uma luz muito loura que dormia
pacíficamente nas clareiras. As mimosas enchiam-se
de florações de ouro. Os adolescentes que
pertenciam a
classes mais adiantadas não se associavam aos divertimentos
dos mais novos―passeavam dois a dois,
liam versos rimados na solitude dos seus quartos,
sonhavam com possíveis glórias
literárias e tinham escondidos,
[131]
entre
o colchão e o enxergão das camas
de
ferro, que recordavam tarimbas de caserna, romances
de enrêdo complicado e sensacional, que devoravam
às escondidas, no refúgio dos momentos de
descanso.
Alguns, mesmo, ocultavam-se com as ramarias
das árvores, para fumarem cigarros...
Frederico reconstituía com verdade surpreendente
todos os episódios dos seus longínquos anos
de colegial, sem deixar esquecido o menor detalhe. Relembrava
que já nessa era remota era infeliz. Nunca
pôde criar amigos entre os camaradas, que o miravam
desconfiados, que se afastavam dêle, que o
satirizavam. Uma vez, insurgindo-se contra estas
inexplicáveis antipatias, que não provocava, teve
uma
grave questão com um estudante, Pedro de Menezes,
contundindo-lhe a face com um forte murro.
Os guardas acudiram, foi repreendido severamente
pelo director do Colégio, que nem sequer escutou as
suas desculpas e privado dos folguedos do recreio
por tôda uma semana. O conflito, que o tornou temido,
mais o incompatibilizou com os condiscípulos.
Passou a ser designado pelo nome irónico de
Ferrabrás
e repelido amargamente pelos escolares, que o detestavam...
Feitos os exames, vinham as férias, os descuidados
meses de liberdade por praias, termas, quintas
rurais, sem a tirania dos livros, sem os abomináveis
toques da sineta, que tinham para êle o horror
dum dobre a finados, sem as reprimendas dos
mestres, quando as lições se não
sabiam. A população
do Colégio debandava alegremente. As casas ricas
mandavam carros e automóveis para levar os seus;
os mais modestos mandavam simplesmente um criado.
[132]
Frederico ia,
então, para junto da mãe,
já viúva,
que andava sempre vestida de preto, rezando pelos
corredores ou ralhando, em voz baixa, com os
servos. Chamava-se D. Isabel de Noronha e havia
casado, aos trinta anos, com o capitalista Simão de
Noronha, muito mais vélho do que ela e que fôra
fulminado por uma congestão cerebral poucos meses
depois do nascimento de Frederico, único herdeiro
da sua abundante fortuna porque uma sua irmãzinha
morrera aos dois anos de idade.
Dentro da casa, Frederico sentia-se mais só
do que no Colégio. A mamã, absorvida nos fervores
da devoção religiosa, nos ardores do seu
misticismo,
mal reparava nêle, e não ser para o admoestar
pelo barulho que fazia na vivenda, sempre de janelas
cerradas à luz exterior, como se lá dentro se
chorasse
uma desdita permanente, como se a morte a povoasse.
De manhã e à noite, ao levantar do leito e ao
deitar-se, Frederico aproximava, com indiferença,
o rosto da bôca materna e recebia um beijo frio
e rápido. No fim do almôço, do jantar e
depois do
chá, ela obrigava-o a rezar, de pé, junto da mesa
e de
mãos postas, pela glória de todos os santos
mencionados
na
Legenda Dourada
, de Voragine, que
tinha sempre
sôbre a mesinha de cabeceira, perto dum castiçal
de prata.
De vez em quando, vinham visitas, quáse sempre
senhoras idosas tambêm severamente vestidas
de preto, com quem D. Isabel se fechava, no oratório
da casa, durante horas seguidas. Nestas ocasiões,
Frederico fruía uma liberdade mais larga. Descia
à
cozinha, palrava com as criadas que se riam muito
das suas diabruras, jogava o arco nos arruamentos
[133]
do jardim... Depois, as férias acabavam, a mamã
reforçava o enxoval, puxava-o para junto do peito
sêco em que nenhum desejo profano arfava―rosando-lhe
as carnes duma ponta de sangue mais
vivo―despedia-se dêle com o mesmo beijo frio que
lhe causava arrepios, murmurava em voz sumida:
―Vê se tens juízo... Porta-te bem.
Frederico regressava jovialmente ao Colégio,
de que já tinha saùdades, e ouvia os seus
condiscípulos,
com inveja e tristeza, narrarem uns aos outros
o encanto das vilegiaturas por estâncias de águas
e
estâncias marítimas, das pequenas viagens
recreativas
com a família, das reùniões e das
danças nos Casinos,
onde alguns tinham arranjado namoros.
―E tu,
Ferrabrás
, onde
passaste o verão?―perguntavam-lhe.
Frederico, por vergonha, para não ser humilhado,
tinha vontade de mentir, inventando digressões
maravilhosas; mas a mentira repugnava-lhe.
Calava-se, ruborizado, afastando-se dos camaradas...
Mais tarde, concluiu os preparatórios, a mamã
morreu duma doença do coração, foi
nomeado um
tutor para administrar os seus bens, aumentados
considerávelmente pela viúva que vivia
parcimoniosamente,
que abominava o luxo como se êle representasse
ou um pecado ou um escândalo.
Na Academia Politécnica travou conhecimento
com Nuno, que como êle tirava o curso de engenharia,
que era igualmente rico e órfão. As suas
relações
estreitaram-se mais de dia para dia, talvez por esta
coincidência que os identificava. Aproximava-os
uma singular semelhança de infortúnios, de
temperamento
[134]
e de
carácter e foram, durante seis anos, como
dois bons irmãos. Nunca no afecto de ambos se levantou
uma discórdia que os separasse um instante... E era
êste o tempo mais doce e mais feliz da sua
existència
de homem, pelo menos aquele de que se recordava
com maior ternura. Mas Nuno, uma vez, anunciou-lhe
o seu casamento. Estavam, então, em Vizela,
tôdas as noites se dançava no salão do
hotel, e todos os
dias se passeava no parque, se organizavam merendas
no alto das serras, gericadas, barcarolas, no rio,
ao som de guitarras românticas. Frederico assistiu
à lenta formação do amor que encheu o
coração de
Nuno, que o levou para a felicidade conjugal, para
as bemditas alegrias da paternidade, para os deveres
e para as sérias responsabilidades da vida familiar.
A princípio, tomou a inclinação do
amigo por
Júlia como um banal
flirt
, como um capricho de que
nada restaria quando cada um fôsse para o seu lado.
Depois, vendo-o desinteressado de tudo quanto
não fôsse Júlia―que fielmente
acompanhava para
tôda a parte, com quem tôda a noite valsava ou
conversava,
em quem falava contínuamente como se
ela representasse o símbolo das suas mais belas
aspirações―sentiu
que Nuno estava bem preso e
bem apaixonado e que o desfêcho lógico daquele
namôro
seria o casamento. A partir de então, a sua vida
fez-se mais solitária e mais despegada, os seus
entusiasmos arrefeceram, perdeu tôdas as suas galvanizadoras
confianças. Nesta solitude, porêm, era
ainda relativamente feliz, até ao momento em que
Nuno teve a má ideia de aproximá-lo de
Júlia, já
mãe.
―E aqui está―murmurou êle com infinita
[135]
desolação―o que um amor sem esperança
pode
fazer dum homem!... Que sorte!...
No ermo da sua casa desabitada, Frederico,
no enorme silêncio que invadia os longos corredores,
as salas sombrias com um desagradável cheiro
e bafio, sentia tôda a imensidade da sua derrota.
Era um vencido. Para êle, o futuro não tinha
horizontes
luminosos, desde que uma adoração impura,
penetrando-lhe
insidiosamente na alma e incitando-o a
trair uma amizade fraternal, lhe cortara toda a possibilidade
de vir a amar com paixão e pureza uma outra
mulher que não fôsse Júlia.
Revoltava-se contra aquela
adoração, acusava-se a si próprio por
não ter
sabido manter uma absoluta impassibilidade de sentimento
diante da espôsa de Nuno. A fatalidade pesava
sôbre o seu destino, sôbre o seu
coração, que empolgava
com mão de ferro.
―Mas serei eu o único responsavel?― monologava.
E, na sua dor, alucinado por uma perturbação
que lhe toldava o cérebro e a noção da
equidade,
quáse que responsabilizava Júlia pela sua beleza
aliciante,
pela sua superioridade de mulher e pelas suas
admiráveis virtudes.
VI
Não podendo viver tranqùilamente perto de
Júlia,
com o seu segrêdo sempre oculto, nem
longe dela,
com a angústia interior que o devorava, Frederico procurou
aturdir-se na febre duma vida em que se esquecesse,
que o consumisse lentamente e em que
corrompesse a parte pura do espírito, excitando a
sua avidez de prazer nos delírios das paixões
voluptuosas.
Queria libertar-se dum suplício que tanto lhe
atribulava a existência. A fatalidade retinha-o entre
o amor e os deveres da lealdade para com um
homem que era, mais do que o seu amigo, a única
pessoa a quem consagrava um afecto profundo. Se,
numa alucinação, obedecesse aos impulsos
desordenados
e abomináveis do instinto carnal, mancharia
a limpidez do seu sentimento afectivo: e, só de pensar
na possibilidade dum arrebatamento que o levasse
a confessar a Júlia a sua adoração
pecaminosa―que
[138]
ela,
de-certo, repeliria indignadamente, porque
era pura, honesta e refractária às
tentações criminosas―uma
dor muito funda agravava a sua exaltação
física e o seu desequilíbrio emocional...
Notava, em todo o caso, que se tivesse a coragem,
a audácia e o cinismo de praticar uma
acção
vil, não seria o padecimento de Júlia que mais
vivamente
o pungiria, causando-lhe mágoa e
comiseração.
A sua piedade ia tôda para Nuno, tam leal,
tam comovido de bondade, dotado dum carácter do
melhor ouro. Na sua perturbação, imaginava, por
vezes, que todo o mal estava feito, que a
situação
criada pela sua loucura amorosa era já
irremediável:―e
concentrava-se, transido, para melhor reconstituir
a figura de Nuno, no instante em que conhecesse
o duplo ultraje à sua dignidade de marido e à
sua honra de homem, errando alucinado pela casa
erma, barafustando cheio de cóleras vingadoras, ferido
na sua alma e na sua confiança, devastado,
com a morte no coração e o calor da vergonha nas
faces, acusando-o a êle com mais fulgurante raiva
do que à espôsa, procurando-o por tôda a
parte
para lavar com sangue a afronta e a humilhação
que o tinham maculado e coberto de escárnio.
Então,
diante dêste sofrimento, Frederico, espavorido,
passava a mão trémula pelos cabelos, agitava-se
violentamente
para entrar na realidade das coisas, murmurava:
―É horrível, horrível!...
Readquirindo a serenidade e a lucidez, considerava
como o seu crime seria monstruoso e sem
perdão se êle não soubesse reagir
vitoriosamente
contra a fraqueza dos sentidos. Mas reagiria a todo o
[139]
transe, muito emhora a reacção o fizesse sofrer,
afirmava
Frederico a si próprio:―e parecia-lhe que a
sinceridade com que se defendia de desfalecimentos
de energia atenuava a imensidade da sua falta.
Foi numa destas crises fulgurantes, repetidas
vezes provocadas pela desordem da sua conduta, que
Frederico decidiu fugir da inquietação e do
remorso,
mergulhando na embriaguez dos gozos que a fonte
impura dos vícios lhe oferecia como
consolação lógica
e única da sua singular doença. Ainda a
princípio
pensou que entregando-se, com delírio, à
deliqùescència
de todos os abusos, se tornaria indigno da
amizade de Nuno e do afecto de Júlia: mas, no seu
romantismo, sentia um júbilo íntimo em
degradar-se
por ela, em descer aos pântanos das misérias
morais,
erguendo sempre os olhos em èxtase para a mulher
intensamente amada através de tudo, como os
ergueria para uma claridade purificadora e divina.
Orgulhoso e curioso dos seus actos, havia de ir
até ao fim, embora o caminho fosse errado e nêle
se
transviasse―porque era incapaz de conceber
abnegações
por si próprio.
Perturbado e cheio de confusão por esta ideia
fixa, Frederico, que durante muitas semanas viveu
completamente isolado, começou a aparecer de repente
em tôda a parte, a freqùentar os cafés
e os Clubes.
Era novo, era rico, sabia insinuar-se, aliciar. Na
roda dos seus conhecimentos houve espanto.
A ressurreição foi saùdada com ruidosa
alegria,
e logo alguns rapazes resolveram solenizar o acontecimento
extraordinário com uma ceia em que o
champagne
festivamente estalasse e a
verve
corresse
com uma scintilação dourada sob a brancura da
[140]
luz eléctrica. Alberto de Sequeira, que trazia no
dedo um grande anel brazonado e se vangloriava de
pertencer às raças finas, desejava um banquete
sério
e decente, em que os convivas fôssem de casaca,
correctos e irrepreensíveis, como para uma mesa
em que estivessem duquesas.
―Vejam que devemos isto a Frederico e a
nós, à nossa classe social, à nobreza
das nossas estirpes―comentou
êle.
O Paiva, toureiro amador e guitarrista, insurgiu-se,
porêm, muito desdenhoso de fidalguias e
pragmáticas,
bradando:
―Não, senhor! Nada disso. Trata-se duma festa
pagã, para comemorar a volta à
estúrdia e à pândega
dum companheiro. Temos, portanto, de meter-lhe
paganismo:―a rabona igualitária, a ninfa de
gordos braços, lânguidos olhos e saborosos beijos.
Olha agora a casaca! Não querem ver? Palavra
de honra, é escandaloso!...
―Sim, é claro! Devemos meter-lhe a ninfa !
A casaca é fúnebre, e nós vamos para
uma calorosa
manifestação de regosijo!―concordou o Taveira,
filho dum capitalista enriquecido na Argentina.
―Pois não é assim?―interrogou o Paiva.
―Mas...―atalhou Alberto.
―Não, filho! Não há mas nem meio mas.
Venha o belo pagode, a bela bacante agitando no ar
o seu tirso e saracoteando um
maxixe
desbragado...
―Muito bem!―acrescentou ainda o Paiva. A
bacante e o
maxixe
, primeiro... O
resto, é silêncio,
como Hamlet dizia a Horácio.
Com efeito, a ceia realizou-se numa noite memorável,
depois do teatro, durou até à madrugada
[141]
do dia seguinte e ficou marcando uma hora triste
de desvio moral na existência de Frederico. Aí
conheceu êle a mulher, a intrusa, que havia de
exercer uma influência nefasta na sua vida e no seu
sentimento. Chamava-se Branca, tinha vinte anos,
resplandecia duma beleza capitosa que o fogo dos
ósculos impuros ia queimando lentamente, era alta,
loura, notava-se-lhe no rosto uma candura, uma espécie
de
virgindade
que certas
criaturas
femininas
nunca perdem por mais baixo que desçam nos charcos
da miséria. Foi Paiva quem lha apresentou, exclamando
irónicamente:
―Aqui tens tu um regaço de sêda onde os
príncipes gostariam de dormir as suas séstas de
amor.
Infelizmente, pertence a um desgraçado país que
nem amar sabe e onde não há
príncipes... Tem de
contentar-se com os filhos da nossa virtuosa burguesia!
Mal empregada! Como o poeta célebre, esta
Musa da orgia chegou muito tarde a um mundo
muito vélho, caro amigo!...
Frederico apertou-lhe a mão friamente, rindo
da apresentação.
―Na Grécia antiga―continuou Paiva―os filósofos
da linhagem nobre e genial de Platão repousariam
e meditariam sob a luz doce dos seus olhos
com o respeito com que repousavam à sombra do Partenon.
Branca seria a inspiradora, a deusa. Até talvez
se lhe levantasse um templo, como à vaca Ísis,
no Egito!...
―Ora! O cavalheiro está a chuchar comigo!...―exclamou
ela, amuada.
―Agora, o que Branca desconhece, meu filho,
é a linguagem sonora e harmoniosa em que falavam
[142]
os Imortais...
«O cavalheiro está a chuchar
comigo!» Vê tu que
abominação. Se Péricles ouvisse
esta Xantipa, morreria com uma síncope cardíaca
ou correria a embriagar-se com o vinho das doces
colinas de Atenas. Perdoa-lhe tu, que és generoso...
―E que não sou Péricles!―atalhou Frederico.
A ceia correu tumultuosamente alegre, e os convivas
do «festim pagão», como havia anunciado
Paiva, beberam mais do que os deuses de Homero.
Frederico tinha ficado junto de Branca, que constantemente
o acariciava com a suavidade do seu
olhar cheio de promessas, que lhe floriu a botoeira
com uma rosa e que, durante tôda a noite, revelou uma
melancolia que mais vivo destaque imprimia à sua
graça
dorida. Alberto de Sequeira, toldado pelo alcool,
com as faces escarlates, agarrado a uma companheira
de Branca, a Eugénia, tam conhecida nas
garçonnières
da mocidade elegante, dava-lhe beijos e oferecia-lhe
os seus pergaminhos com a mão de marido. Ela,
rindo à gargalhada, recusava, dizia-lhe que não
tinha
vocação para espôsa.
―Vai para um convento, vai para um convento!―intimou
Paiva, de pé, ao lado da mesa, erguendo
o braço e apontando com o dedo.
―Sim! Talvez para um convento!―concordava
Eugénia, enroscando os braços à volta
do pescoço
de Alberto. E então?...
A tristeza de Branca no meio da jovial estúrdia
impressionou Frederico. Perguntou-lhe:
―Que tem?
―Nada! Estou hoje assim!... São dias.
―Tem «telha», é o que tem―afirmou uma
[143]
outra, Luísa, a quem Paiva fazia ardentes
confissões,
prometendo-lhe um scetro, uma realeza.
―Ou um scetro ou um poema. Escolhe―gaguejava
êle. E pode ser que, para a imortalidade,
te convenha mais o poema. Ainda não morreram
Beatriz, Laura, Virgínia. Ainda nem sequer
morreram aquelas loiras germânicas cantadas por
Goëthe.
―Quem são essas damas?―inquiriu Luísa.
―São umas senhoras das minhas
relações...
Não é verdade, Frederico?
―Beatriz, Laura... Certamente! E damas
muito finas!―asseverou Frederico.
Novamente se curvou para Branca, pegando-lhe
na mão, mirando-a nos olhos, interrogando:
―E foi sempre assim triste?...
―Para que quere saber?
―Porque me interesso por si... Aí está!
―Acredito eu lá nesse interêsse!
Na mesa, onde brilhavam ainda nos cristais restos
de vinhos e licores que pareciam pedras preciosas
líquidas, desfolhavam-se as flores. O dourado fulgor
da luz batia em cheio nos linhos, fazia reluzir o vidrado
das porcelanas. Os criados entravam o saíam,
cambaleantes de sono, coçando a cabeça, com os
guardanapos sôbre o ombro. O ambiente aquecido
pesava e sufocava. Frederico subiu uma vidraça que
dava para fóra, sentido-se reanimar por uma lufada
de ar frio. Sôbre a cidade, arqueava-se um céu
picado
de estrêlas, que
já empalideciam no cerraceiro da
treva que devorava tôda a vida. Por um momento,
Frederico, encostado ao peitoril da janela, julgou-se
aviltado. Experimentava a sensação desgostante de
[144]
ter caído numa imundície que o sujava, que o
invadia
dum nojo profundo; e mentalmente comparava
a frescura de impressões de que um amor
oculto e malfadado fizera vibrar a sua sensibilidade,
a ventura risonha entrevista em exaltações de
imaginação,
o sôpro de alegria eterna que respirou junto
de Júlia, com aquela torpeza, em que se afundava.
A solidão da rua que, em baixo, se escoava na sombra,
a frialdade do vento, tudo o que para êle havia de
novo, de desconhecido, naquela noitada iniciadora,
excitavam-no, sacudiam-no. Fumando, olhava as
alturas celestes que, no esplendor das
constelações
scintilantes lhe sugeriam arabescos de luz, uma estranha
feeria que ardesse, rutilasse na escuridão.
Dentro, os beijos arrulhavam. Branca, levantando-se,
aproximou-se de Frederico, encostou-se-lhe ao braço,
dizendo numa voz de mimo e de fraqueza:
―Estou tam fatigada!
Êle voltou-se bruscamente, irritado contra
aquela interrupção importuna que vinha
quebrar-lhe
o fio das lucubrações e fazê-lo
reentrar de repente
na realidade das coisas, mas logo se conteve diante
da desdita duma mocidade e duma beleza que tôdas
as brutalidades da luxúria iam contagiando e maculando;
e, do fundo da sua bondade, ascendeu a emoção
compassiva para tanta fragilidade e tanto infortúnio.
A delicadeza de alma de Frederico tornava-o
incapaz de ser grosseiro e violento com uma mulher,
fôsse ela quem fôsse: e Branca, alêm de
débil, tinha
a graça romântica duma formosura a suavizar-lhe
o rosto, o aspecto doentio, uma meiguice que parecia
nascer da humildade dolorosa da sua vida e da
escravidão do seu corpo. Isto amoleceu a dureza de
[145]
Frederico, apiedou-o. Pegando-lhe na mão que ela
abandonou, disse:
―Cansada, hein?
―Oh! Muito cansada e morta por me ver longe
dêste logar, acredite!―respondeu Branca.
―Então, não gostou, não se divertiu?
―Eu?!... Estou para aqui!...
Enquanto falava, Branca olhava-o com uma expressão
em que havia ternura e sofrimento. Frederico
pensou que aquela sensibilidade numa mulher costumada
a vender-se era exagerada. Talvez ela fingisse
uma dor que não sentia para o comover, para
obter certas complacências que lhe agradavam, por
cálculo ou por outra circunstância qualquer: mas,
fixando-a mais demoradamente, pareceu-lhe surpreender
nos olhos um sorriso que tremia e nos lábios
pálidos uma súplica que não ousava
denunciar-se
claramente, com mêdo de ser repelida, e que no
seu silêncio queria dizer:
―Leva-me contigo!... Sou uma companheira
ainda desejável para algumas horas. Porque não
experimentas? Farei tudo quanto me fôr possível
para te distrair, para ser amável!...
Esta suposição comunicou-lhe aos nervos uma
languidez sensual: e, avançando para Branca, que se
havia afastado alguns passos e que aconchegava uma
pele de repôsa à volta do colo friorento,
exclamou:
―Pois partamos. Eu acompanho-a...
Nesse momento
, Sequeira, com o
charuto meio
queimado na bôca, dormia com os braços apertados
na cinta de Eugénia; Luísa bebia café
com Paiva,
pela mesma chávena; outros convivas da ceia jovial,
espalhados pela sala, palravam, pesados e sonolentos.
[146]
Já através das vidraças se filtrava
uma claridade
matinal indecisa e o ar era mais penetrante e vivo.
Frederico anunciou que se retirava e que levava
Branca. Foi um alarido.
―O quê? Antes do nascer do sol?―interrogou
com estranheza o Andrade estrábico.
―Certamente―afirmou Frederico. Não nos
encontramos num estado de alma suficientemente
puro para compreendermos e sentirmos a poesia
da aurora.
―É uma perfídia!―gritaram muitas vozes.
―É sono! E eu tambêm me saio e levo
Luísa!―acudiu
Paiva.
―Mas, é o rapto das sabinas!...―exclamou o
Andrade.
―Oh! senhores, que chiste êste diabo tem!―aplaudiu
Paiva, enquanto os outros riam saborosamente.
Frederico vestiu o casaco, despediu-se, deu o
braço a Branca, que o esperava arrepiada e frioenta.
―Que Eros vos seja propício!―disse ainda o
Andrade, que nessa noite estava em veia.
Frederico, que descia, já o não ouviu. Ajudou
Branca a subir para o automóvel que o tinha trazido,
acordou o
chauffeur
que dormitava,
encostado ao
volante, e partiu velozmente, envolvido na carícia
tónica da brisa matutina que o refrigerava e que rescendia
às seivas de que se impregnava, adejando por
quintais e jardins. Quando entrou em casa, com Branca,
o sol elevava-se numa explosão de ouro, e uma
leve poeira de luz errava, ardia sôbre os telhados,
incendiava as vidraçarias, que relampejavam, irradiavam
súbitos clarões...
[147]
Às duas horas da tarde, ao despertar do seu profundo
sono, espreguiçou-se, bocejou. Prostrava-o uma
grande lassidão, desgostava-o interiormente um
tédio
como nunca havia experimentado, tinha mau
gôsto na bôca, sentia-se embrutecido. Branca dormia
a seu lado, fazendo um pequenino volume sob a roupa.
Olhou-a atentamente. Estava ainda mais pálida
do que na véspera; à volta dos seus olhos havia
um
grande círculo arroxeado, a mão que tinha
fóra da
roupa era exangue e tam magra que se lhe adivinhavam
todos os ossos. A pele da face e do colo, porêm,
era duma brancura, duma transparência que mostrava
nítidamente a rêde azulada dos vasos sanguineos;
e no seu perfil havia uma regularidade, uma
pureza, uma correcção de traços
incomparáveis. Frederico
esteve a considerá-la durante algum tempo,
com uma piedade que a narração da sua vida
atormentada
e dolorosa―que Branca lhe fizera com os
olhos rasos de lágrimas―mais aumentava. A essa piedade
mesclava-se conjuntamente um desgôsto muito
profundo e que êle não sabia explicar, uma
vergonha
íntima, uma humilhante sensação de
vèxame. Arrependia-se
já de ter compartilhado o seu leito com uma
criatura de acaso, que se alugava às noites, que nunca
tinha visto, por quem mal sentira um minuto de interêsse.
Fôra aquela a primeira vez! Resistira sempre
a trazer para casa as mulheres que na rua se ofereciam
passivamente aos seus beijos, por pudor, por
dignidade, por altivez de carácter. Que
alucinação o
afastara da honesta linha que traçara à sua
existência
[148]
de
homem? Que desvario lhe conturbara a lucidez
da razão, não lhe deixando ver o que no seu
procedimento
havia de sórdido, de inferior?... Outra vez
envolveu Branca num olhar vagaroso. Ela continuava
dormindo e arfando de leve no ritmo da
respiração.
Frederico novamente se enterneceu. Teria ela,
porventura, culpa de andar de mão em mão como uma
rosa a que se aspira todo o perfume e que depois se
abandona? Certamente que não. Era uma vítima do
egoísmo dos homens que lhe apeteciam, por momentos,
a beleza e a frescura da juventude e que em seguida,
enfastiados, saciados, a repeliam. Cumpria o
seu destino triste...
A obscuridade do quarto era cortada, de quando
em quando, por claridades inesperadas que se filtravam
através das frinchas das janelas. Frederico ouvia
o ruído que vinha do exterior, do ar livre, da
rua―murmúrios
de conversas, de risos, de disputas, rolar
de carros que passavam arrastando-se nas pedras
da calçada.
―Deve ser muito tarde...―pensou.
Espreguiçou-se com lentidão. Tinha na
cabeça
uma desordenada multidão de ideas que não
chegavam
a clarificar-se, a definir-se límpidamente. Ia
reconstituindo a scena da noite anterior, a alegria
da ceia com mulheres―um espectáculo inteiramente
banal para êle―os ditos humorísticos e picantes
do Paiva... Acudiam-lhe à memória os mais
apagados
pormenores dessa festa de rapazes.
―E como hei de desfazer-me desta criatura,
que tenho em casa, sem provocar curiosidades escandalosas
no bairro?―monologou de repente.
Aí estava, na realidade, uma coisa bem dificil!
[149]
Morava num
sítio muito povoado e muito indiscreto,
havia mesmo, em frente à sua
habitação, uma
outra com vizinhas bisbilhoteiras que passavam os dias
por detrás dos cortinados, espreitando, investigando,
devassando. Uma delas, bem galante no esplendor dos
seus vinte e quatro anos, direita como uma estátua,
com uns olhos negros e perturbantes e uns seios
que se arredondavam sob a macieza, dos tecidos
da blusa como os das patrícias romanas sob o
peplum
,
sorria-se com afabilidade sempre que o via
assomar à janela saùdando-a cerimoniosamente...
Durante muito tempo, Frederico contemplou-a com
encanto, como se quisesse surpreender-lhe no rosto a
revelação dum sonho de amor que, no seu
coração virginal,
se ia formando e desabrochando com a inocência
e a beleza duma flor. Depois, cansou-se e esqueceu-a...
Se ela visse Branca sair da sua vivenda, em
pleno dia, alarmaria a rua, daria, da sua varanda,
uma vasta publicidade àquela irreflectida aventura de
Frederico:―e, quando mais tarde passasse, tudo
seriam risinhos abafados e irónicos nas suas costas,
segui-lo-iam todos os olhares escarnecedores, durante
uma semana inteira a sua reputação constituiria
o tema obrigatório e fundamental da
eloqùência
da vizinhança!... Era um solteirão, era
independente,
tinha um desdêm absoluto pelos juízos e pelas
opiniões
que os outros formulassem a seu respeito:―no
entanto, a perspectiva de andar durante horas hilariantes
exposto ao ridículo público e cheio de grotesco,
vèxava-o. Precisava de ser prudente, de acautelar-se,
não por Branca, que nada perderia, mas por si. E
decidiu conservá-la em casa, até à
noite, comer, mesmo,
em sua companhia, um almôço que o Bernardo,
[150]
seu criado de confiança, iria buscar ao restaurante
que freqùentava e, assim que as sombras nocturnas
descessem, despedir-se dela com um beijo―e algumas
notas de Banco. Aborrecia-o, porêm, o facto de
ter de ficar uma tarde inteira fechado, diante duma
pobre rapariga que fôra o seu capricho dum instante
o que o não prendia nem pelas graças do
espírito,
nem pelos dons da inteligência e da cultura, nem sequer
por uma beleza que começava a fanar-se, queimada
pelo fogo da luxúria.
―Olha que estopada eu arranjei por minhas próprias
mãos!...―murmurava, desconsolado.
A inexprimível sensação de desalento e
de desgôsto
que o minava desde que despertou intensificava-se
na sua alma. Experimentava alguma coisa
de inconcebível; a sua vida interior acelerava-se e
fazia-o sofrer amargamente. Julgava-se com severidade:―ia
caindo de baixeza em baixeza. Até onde
chegaria?...
A certa altura das suas divagações, lembrou-se,
subitamente, de Júlia: e esta lembrança tam pura
era
como uma acusação muda, pela torpeza moral em que
principiava a debater-se. Se ela soubesse!... Se ela
adivinhasse algum dia, por uma extraordinária
intuição
amorosa, vulgar nas mulheres de sensibilidade
mais fina e de razão mais lúcida, que Frederico a
amava e que, quando êsse amor era uma alvorada
de poesia na sua alma, longe de o elevar, de o sublimar,
de lhe inspirar as grandes bondades e as grandes
abnegações, o impelia para os braços
de criaturas que
pertencem a todos e lhe fazia apetecer os beijos voluptuosos
de bôcas femininas que osculam os homens
que lhes pagam!... Se Júlia pudesse assistir em
espírito
[151]
ao
espectáculo do seu coração
devastado diante da
imagem luminosa dela e duma cortesã, que tôdas as
noites dormia em leitos sempre diferentes! Absolvê-lo-ia
dessa miséria? Não se sentiria ela salpicada
tambêm
pela lama em que Frederico se atolava?... Mas
Júlia viveria na perpétua ignorância
dos sentimentos
impuros que acordavam no seu organismo doente
e, mesmo que viesse a conhecer tantos desvarios,
não se consideraria traída porque não
queria dêle
mais do que uma estima fraternal... Por entre a névoa
das emoções opostas que o faziam vibrar,
Frederico
raciocinava ainda com certa clareza. A crise por
que estava passando sugeria-lhe palavras que um
dia tinha lido em Taine. Compreendia naquele momento
que a vida humana―a do corpo ou a da
alma―era infinita e de uma imensa multiplicidade:
mas que apenas certas das suas porções, certos
dos
seus instantes, mereciam subsistir, como expressões
conscientes superiores. Êsses instantes, essas
porções,
a que aludia o filósofo excelso, eram marcados pelas
atitudes morais que nobilitam o ser pensante. Fóra
disso, nenhuma grandeza existia!...
Levantou-se vagarosamente, para não despertar
Branca no seu sono. Ha quanto tempo―pensava
Frederico―ela não teria uma hora tam sossegada,
tam calma como aquela! Nem sempre encontraria
amantes condescendentes como êle!... Uma caridade
igual e tranqùila iluminava o quarto. Sôbre
uma cadeira, amontoado e amachucado, estava o vestido
da pobre flor de todos, tendo por cima o espartilho
de setim côr de rosa que êle lhe havia ajudado a
despir, na pressa violenta de aspirar o perfume de
amor que a sua carne exalava. Sôbre uma outra cadeira,
[152]
pousava uma pele de raposa
preta do Japão e
um chapéu de palha de Itália dum tom de ouro
fôsco
picado pelo colorido suave de dois ramos de lilases.
Deu alguns passos, com os pés nus, no tapête de
Bruxelas,
que espalhava uma nota de confôrto e de elegância
no compartimento; e, hesitante, voltou-se ainda
para olhar Branca. Sôbre a alvura do travesseiro,
destacava docemente a mancha fulva duns cabelos
louros desmanchados, emmoldurando um rosto sereno
e branco, de linhas muito finas. Uma colcha de sêda
escarlate bordada a matiz desenhava nítidamente as
formas correctas do gentil corpo adormecido. Como
Branca era linda e digna de piedade! E o que a vida,
com as suas impurezas e as suas terríveis
degradações,
fizera duma alma outrora virginal que poderia
ter sido a graça divina dum lar, uma adorável
espôsa,
uma admirável mãe capaz de todos os
sacrifícios e de
tôdas as exaltações da ternura!...
Passou ao quarto de banho, que ficava próximo,
mergulhou ávidamente na canôa de ferro esmaltado
que Bernardo enchera, duma água fria que o
tonificou, enxugou-se a um lençol felpudo e
começou
a vestir-se lentamente. Mais desanuviado, com a pele
cheirando ao perfume do sabão com que se lavara,
Frederico contemplou novamente Branca e observou
que uma série de sensações
antagónicas se sucediam
umas às outras na sua emotividade. A verdade
apresentou-se diante dos seus olhos. Afinal,
Branca não era mais do que uma criatura trivial
que se entregava a todos os que a desejassem. O seu
ventre estéril era conhecido de muitos olhos
lúbricos;
a sua bôca havia sido esmagada por milhares de
bôcas
masculinas, em beijos bestiais. Odiosas imagens fisicas
[153]
intermináveis
desfilavam diante dêle. Que
interêsse
poderia aquela mulher, profanada e ultrajada,
despertar-lhe? Como se arrependia de a ter trazido
para a sua habitação, para o seu leito! O
contacto
com ela manchara-o. E manchara igualmente a
limpidez do seu sonho, do seu ideal, deformara a
resplandecência
duma beleza vislumbrada que nunca
atingiria, de que não queria mesmo aproximar-se,
mas que, a-pesar disso, mesmo de longe o iluminava
e lhe causava orgulho! Esperava agora ansiosamente
a hora em que lhe fôsse possivel desembaraçar-se
de
Branca, para se dar com prazer à
recordação de Júlia.
Parecia-lhe que essa recordação o purificaria,
como uma água lustral...
A um movimento mais brusco de Frederico,
devorado por impaciências que o agitavam, Branca
acordou, abriu os olhos inchados de sono, sorriu-se
para êle, com um sorriso em que havia gratidão,
lassitude,
contentamento.
―Já a pé?... É curioso. E eu que
não o senti
levantar!...―murmurou ela, quebrada por uma fadiga
feliz.
―Pudera! Se dormias profundamente!...―respondeu
Frederico.
―Quantas horas são?
―Duas e meia!...
―Ih! meu Deus!... Que preguiçosa!―exclamou,
sentando-se no leito.
As longas tranças do cabelo envolveram-na tôda
até à cintura. Através da
ténue nuvem de ouro
que formavam, alvejavam brancuras da camisa de
bretanha fina, de rendas vaporosas. O bafo morno
que se emanava dos lançóis amolecia-a. Tinha as
faces
[154]
còradas pela circulação mais
apressada do sangue,
e os seus olhos azúis iam-se enchendo duma luz que
mais os azulava, quáse os espiritualizava. Frederico
aproximou-se da beira do leito, acariciou-a levemente,
passando-lhe os dedos pela face. Admirava-lhe
a formosura, qualquer coisa de virgíneo, de inocente
que ainda existia nela. Uma comoção estranha
perturbava-o. Ah! Aquela linda rapariga―uma
primavera em flor―erguendo-se do seu leito
que sempre fôra casto, que nunca agasalhara corpos
alheios, comunícava-lhe a impressão singular
dum noivado:―e esta ideia subtilizava-o, tinha
para o seu sentimento uma venturosa novidade,
fazia-o esquecer de que Branca era a noiva de
quem a queria.
―Ainda nem sequer me deu um beijo!―queixava-se
ela, prendendo as mãos nas mãos de Frederico...
Bons
dias!
Êle beijou-a, sorrindo tristemente, e notou a
delicadeza de Branca, que não ousara tratá-lo por
tu. Abraçando-o, suspirava.
―Estás triste?―inquiriu Frederico.
―Estou. E, no entanto, nunca nenhum outro
homem me tratou com tanta bondade...
―Então, como se explica essa tristeza?
Branca, repelindo-o brandamente, quis levantar-se.
―Responde!...
―Eu não sei responder... Queria ficar sempre
aqui, perto do senhor... É talvez por isto, por ter
de ir-me embora... Naturalmente, nunca mais nos
tornaremos a encontrar...
―Porque não?
[155]
―Eu sei lá!... É sempre assim. Os amantes
duma noite nunca mais se encontram...
―Mas, eu não sou como os outros―afirmou
Frederico
,
fixando-a demoradamente.
―Ora! Tantas vezes tenho ouvido isso!...
Nas palavras de Branca havia uma frieza misturada
de desalento que fazia mal a Frederico. Enquanto
ela se penteava, sorrindo-lhe sempre―num
sorriso cansado e automático―êle considerava-a
mudamente, sendo invadido, de repente, por uma
aversão instintiva, por uma repugnância
inexplicável.
E sob a influência de impressões opostas,
observava
a incoerência das suas sensações que
umas vezes
lhe tornavam apetecida aquela beleza que ia morrendo
como uma rosa cortada e outras o forçavam a uma
grande violência sôbre si próprio, para
a
não repelir
brutalmente, aos empurrões, causar-lhe sofrimento,
obrigá-la a chorar. De que razão
psicológica oculta derivaria
tudo o que nos seus sentimentos havia de ilógico,
de inconseqùente? Com mêdo de soffrer mais,
Frederico nem sequer ousava interrogar-se, procurando
definir a laboração tumultuária da sua
vida íntima.
Branca, acabando de vestir-se, sentou-se, extenuada,
numa cadeira. Frederico, acendendo um charuto,
passeava no quarto, a largos passos, enquanto
ela o seguia com o olhar inquieto. Esperava... O quê?
Naturalmente que êle a mandasse embora, pagando-lhe
o amor duma noite. Na sua atitude, na expressão
do rosto macerado, em que punham fundas manchas
escuras as olheiras de bistre, havia resignação e
melancolia. Frederico parou junto dela, encarando-a.
―Estás pronta, hein?...―perguntou.
[156]
―Estou pronta―repetiu Branca.
―Queres ir-te embora?... Mas, é que não pode
ser já! Tens de demorar-te até à
noite...
―Não tenho que fazer...
―Ainda bem! Almoças comigo, se isso te não
desgosta. Irás depois...
Um clarão de alegria, que Frederico surpreendeu,
faíscou nos olhos de Branca. Suspirou, fundamente,
murmurou como se falasse para a sua consciência:
―Tenho sido tam desgraçada!...
Este grito sincero duma alma que espontâneamente
se confessava chocou Frederico, que se sentou
junto dela, tomando-lhe a mão que Branca abandonou
o que êle efusivamente apertou entre as suas,
pensando nas criaturas que incessantemente corriam
atrás da ilusão duma felicidade sem nunca a
alcançarem.
Tambêm êle era desgraçado!
Tambêm êle
aspirava a uma irrealizável ventura que só um
amor
impossível poderia oferecer-lhe. Um destino malfadado
irmanava-os na tristeza e no infortúnio:―e,
talvez por isso, a sua piedade transbordou.
―Branca, queres ser a minha amante?―exclamou
de repente, aturdido.
―Quero!―acudiu ela prontamente e tôda
alvoraçada.
―Medita!... Se aceitas, serás só para mim... Na
tua
situação
,
isto não é
fácil. Mas, eu é que não
me conformarei com partilhas. Ouve bem!... Não
terei rivais.
―Aceito―afirmou ela, novamente, com firmeza
na voz.
E, como Frederico a envolvesse num olhar
[157]
perscrutador, que se demorava a investigá-la, Branca,
levantando-se, foi para êle, abraçou-o
esteitamente,
dizendo:
―Oh! meu filho, como eu te agradeço esta
hora de paz e de consolação que me vem da tua
oferta... Olha para mim... Assim, não!... Nos
olhos... Isso mesmo! Agora, repara... Juro-te que
serei só tua e que te não traírei,
enquanto tu me
quiseres!...
Enternecido, Frederico
beijou-a
longamente, como
se o seu beijo fôsse o princípio duma doce e
jubilosa
festa amorosa que principiava. Almoçaram e,
durante a refeição, Branca, que a intimidade que
se ia estabelecendo, tornava audaz, contou-lhe os
seus infortúnios e as suas amarguras, còrando
muitas
vezes por ter de ferir o secreto pudor da sua alma.
A sua história era inteiramente igual à
história de
tôdas as mulheres perdidas. Uma paixão absorvente
e cega em que se confia e a que tudo se sacrifica, a
queda, o abandôno, a miséria final duma
existência
passando de mão em mão, enquanto vicejam a
florescência
e a beleza da mocidade. Ouvindo-a, Frederico
compadecia-se, prometia-lhe daí para o futuro
uma vida serena e uma emoção pura que a
aurorizasse.
―Não me enganes!―suplicava Branca. Se
depois de tudo isso hás de deixar-me, então, o
melhor
é separarmo-nos de vez...
―Não crês na minha sinceridade?... Não
tens fé em mim?―interrogava Frederico.
―As desilusões teem sido tantas!...―respondia
ela, duvidosa.
E baixando os olhos, na voz humilde e baixa
[158]
de quem revela uma vida de vergonhas, foi dizendo
tudo o que deixara pelo mundo fóra:
―Em minha casa, quando eu de lá saí, havia
criancinhas pequeninas, que eram minhas irmãs e
que eram puras. Nunca mais as tornei a ver...
Ao baixar da noite, desdobrou-se sôbre a cidade
um denso lençol de sombra. Branca saíu contente,
com a esperança de que Frederico se encontraria com
ela, volvido pouco tempo, para a continuação dum
capricho
sentimental que ainda lhe parecia absurdo,
tanto a havia surpreendido a resolução inesperada
do
seu amante dalgumas horas; e êle, ficando só no
imenso casarão de treva e de silêncio,
experimentou
uma sensação de tédio mais fundo.
Tôda a vida lhe
parecia deserta, especialmente a vida emotiva; e,
recolhendo-se, a si mesmo perguntava se valeria a
pena vivê-la, sem encontrar nas almas e no mundo
exterior alegrias puras e interêsses morais. Sentado
numa cadeira de braços, junto duma mesa de pau
preto sustentando jarras com flores que Bernardo
tôdas as manhãs
substituía
,
ia sofrendo o seu permanente
suplicio. Verificava que, em certos momentos,
ideias claras, fáceis, luminosas, o obrigavam a
obedecer-lhes alegremente, e que, em outras, essas
ideias eram sombrias, indecisas, indecifráveis, e o
assustavam. Encontrava-se, precisamente, num dêstes
últimos instantes em que as
inquietações interiores o
consumiam, como as brasas se consomem no fogo
intenso. Justos céus! Como o seu desamparo era
grande! E cada vez a solidão mais pesava à sua
volta e mais insuportável lhe tornava a carga que
trazia sôbre os ombros. Naquela vivenda em que
nascera, erravam os espectros do pai, que não chegara
[159]
a conhecer, o da mãe, que morreu na sua infância,
o duma irmã, Maria das Dores, que era afilhada de
Nossa Senhora, com quem brincara na meninice e
que tambêm se sumira nos negros boqueirões da
morte. Da sua casta, que se extinguia, era êle o
derradeiro representante directo: e entrava no outono
da existência sem ter a coragem e a
abnegação
de criar uma família. Porque não procuraria uma
doce mulher que fôsse capaz de fazer um luar de
ventura à sua roda, de oferecer-lhe o peito para
êle
repousar a cabeça nas horas de angústia, em vez
de
levar para o leito criaturas que
transformam
o
divino
sentimento do amor numa mercadoria e numa
torpeza? Ah! como Nuno lhe era superior! Êsse
sim! Havia seguido, na sua marcha para os tempos
vindouros, o caminho da verdade e da beleza, de que
êle se afastara―de que se afastava ainda mais, de
dia para dia!...
Com a imaginação perdida na melancolia destas
evocações aflitivas, via novamente a imagem de
Júlia
erguer-se, radiante de luz, ante os seus olhos: e,
então, lembrava-se com infinita saudade do lar
inefável
e calmo de Nuno, da felicidade perene que o envolvia,
radiosa como uma nuvem dourada. Enquanto
êle para ali estava curtindo o seu padecimento, desgarrado
de tudo quanto fôsse humano, fecundo, produtivo,
sob o ponto de vista psíquico e material, Nuno,
no seu escritório, e depois de um dia fértil em
trabalho
útil, em inteligência, repousaria lendo um livro,
perto
de Júlia, que a claridade aureolava e que pousaria de
momento a momento a agulha da costura para colhêr
um beijo na bôca nobre e risonha do marido. E não
haveria acidez, cólera, impurezas, nos
corações dum e
[160]
doutro, unidos pelo mesmo afecto, nutrindo-se de idênticas
aspirações, enlevando-se numa
confiança ilimitada...
Ou talvez que Júlia, ao piano, no sossêgo
nocturno,
tocasse uma bela página em que vozes enigmáticas
narrassem, numa linguagem de som e de harmonia,
a ascensão dos espíritos subtis para a
purificação
e para a graça. Dentro do seu berço, o filho
de Nuno, ainda pequenino, dormiria inocentemente,
lindo como um botão de rosa, e tôda a casa
adormeceria
tambêm ao embalo suave da música. Isto sim!
Era viver! Mas êle, que com tanta ansiedade buscava
a ternura, não passava dum esquecido do destino,
dum foragido...
Fóra, na rua, começavam a acender-se os
candeeiros
de iluminação pública. A chama do
gás, torcendo-se
à ventania, projectava sôbre as
vidraças sombras
oscilantes e fantasmagóricas. O ruído afrouxava.
Bernardo, entrando de súbito na sala, perguntou:
―Para que horas quere V. Ex.
a
o jantar?
―Eu não janto hoje, criatura―afirmou Frederico,
erguendo-se e dirigindo-se ao criado.
―Santo nome de Maria! Não janta?
―Ou por outra, janto fóra. Arranjem-se lá
vocês, tu e a Rosalina.
―Então, está bem!―disse Bernardo, retirando-se,
sem estranhar já as excentricidades do amo,
desde que nessa manhã o vira almoçar com uma
mulher da vida airada, em sua própria casa.
Que fatalidade o perseguia!―pensava Frederico,
reatando novamente o fio das suas meditações.
A ambição duma família estava agora
para
sempre comprometida, porque êle não poderia
ligar-se
a uma mulher que não amasse, que havia de ser-lhe
[161]
odiosa, sempre que se lembrasse de Júlia, sua
única
e infeliz paixão... Nesse instante, Frederico via-a
bem real, duma personalidade bem determinada,
diante de si. A sua beleza era perigosa. Nos seus olhos
existia um ardor secreto que denunciava a amorosa.
Parecia-lhe que ela tinha uma dessas expressões
pensativas que nunca se definem com nitidez e que
tanto seduzem, porque denunciam almas de indizíveis
delicadezas. Frederico sentia-a em si, consagrava-lhe
a adoração perseverante, o culto absoluto, o
amor que se bastava a si próprio e que duraria,
veemente, vivaz, enquanto êle tambêm durasse. A
esta certeza, revoltava-se mais uma vez. Com efeito,
que maus fados o tinham levado para casa de Nuno!
E que fraqueza lamentável a sua, apaixonando-se pela
espôsa do seu melhor amigo, sem que reagisse violentamente
contra o amolecimento da vontade, o desfalecimento
do coração!
Júlia insinuara-se―sem querer, porque era honesta―na
sua admiração, no seu desejo, na sua carne,
em todo o seu ser de homem: e, sendo tam pura e
tam santificada de bondade, envenenara-o para sempre,
fizera dêle alguma coisa de vil e de abjecto que entrava
num santuário familiar não para purificar-se ao
contacto das grandes virtudes, mas para trair. Porque
já traía Nuno, não por actos
irreparáveis, mas pelo
sentimento!...
Sôb a influência mórbida dêste
raciocínio, exasperou-se.
Sufocava. Os olhos dardejavam-lhe um brilho
especial. Sentia a necessidade de aturdir-se, de
bestializar-se, de apagar tôda a claridade da
consciência.
Outra vez evocou Branca. Iria para ela, embora
se afundasse; havia de procurar nos ásperos
delírios
[162]
da sensualidade ou nas alucinações do alcool o
sossêgo
indispensável que lhe fugira, com o desespêro
com que Alfredo de Musset procurava nos copos de
absinto o reflexo verde dos olhos da Quimera! O
que êle pretendia era esquecer Júlia, por todo o
preço―mesmo à custa da sua dignidade...
Como as noites fôssem já frias, vestiu um
sobretudo,
pôs o chapéu, pegou nas luvas e na bengala
e saíu, mergulhando no movimento exterior,
que o acalmava. Ao chegar à porta da rua, viu, na
casa fronteira, as vizinhas que, por detrás dos vidros
da janela, o espiavam. Irritado, não as cumprimentou,
seguindo em passos nervosos pela calçada.
Tinha feito uma promessa a Branca. Ia cumpri-la,
com o coração tranzido e com a certeza de que se
dirigia para o mal e para uma nova dor...
VII
Certa manhã, ao entrar em casa depois de tôda
uma noite passada com Branca―já instalada numa
luxuosa e recolhida vivenda que Frederico para ela escolhera
numa rua solitária da Foz e onde reùnira tudo
quanto pudesse oferecer bem estar ao seu egoísmo e
encanto aos seus olhos saudosos de beleza
artística―encontrou
uma longa carta de Nuno que o correio
trouxera e que Bernardo solicitamente pousara sôbre
a larga mesa do seu gabinete de trabalho, num
sítio bem visível. Durante muito tempo
conservou-a,
hesitante, nas mãos, sem ter a coragem de rasgar o
envelope. Mirava-a, remirava-a, voltava-a entre os
dedos nervosos, estudava a letra miúda e firme do amigo,
como se quisesse perscrutar nas particularidades
exteriores o oculto sentido do que ela dizia, das
revelações
gratas ou dolorosas que iria fazer à sua
inquietação
de espírito cada vez mais violenta e que os
[164]
delírios da sensualidade carnal não apaziguavam,
ao
seu sofrimento moral de dia para dia mais veemente,
roendo-o com a lentidão com que um acido corrosivo
rói certos metais. Era a primeira vez que Nuno
lhe escrevia, desde que Frederico deixara a quinta
rural, afastando-se duma atmosfera mórbida que fazia
mal aos seus nervos, que lhe desgastava a energia,
que lhe amolecia a vontade, fugindo à permanente
adoração de Júlia―uma
adoração criminosa
que inutilmente se esforçava por abafar dentro do
coração e que subtilmente crescia sempre,
invadindo-o
todo, cegando-o, alucinando-o, vivaz como uma
planta daninha que se quere destruir e que constantemente
surge, com teimosia, à superficie da terra.
Que iria Nuno dizer-lhe? Inconscientemente, na
ignorância do seu amor impuro, o amigo trabalhava
contra si próprio, avivando coisas que Frederico pretendia,
em vão, esquecer para que mais de-pressa
curasse os seus nervos doentes, a sua alma enfêrma!...
Passeando agitadamente, com a carta apertada
na mão trémula, Frederico notava que, por uma
singularidade inexplicável, tôda a gente, mesmo as
pessoas que mais estimava, conspiravam, contra a
sua paz, contra a sua ventura. Nuno, por exemplo,
havia de falar-lhe da sua felicidade conjugal,
da ternura de Júlia, da sua perfeição
como mulher
e como espôsa, o que o atormentaria, agravaria
excepcionalmente
o padecimento que trazia consigo. Os
beijos de Branca, a graça, a formosura esplêndida
do seu corpo nú vibrando dos desejos voluptuosos
que êle acendia, só lhe avivavam na
imaginação ardente
o fogo da paixão alucinante pela outra, por
Júlia―uma complexa paixão em que havia
conjuntamente
[165]
delicadezas,
mimos, aspirações, purezas
quáse
místicas e as impulsividades grosseiras duma
luxúria
que maculava as emotividades mais castas. Vivia,
por isso mesmo, numa perpétua ansiedade, sobressaltado
de temores contínuos diante dos insignificantes
factos que pudessem recordar-lhe a mulher
que a todo o transe deveria olvidar para seu sossêgo,
por imposições da sua dignidade ainda
não totalmente
amolecida. Estava reduzido à necessidade
de procurar a calmaria interior, aturdindo-se nas orgias
sensuais com Branca, nas noitadas com os conhecidos
pelos teatros e pelas mesas dos restaurantes,
em que bebia até perder a lucidez da consciência,
ou
a fugir ao seu semelhante, acolhendo-se ao isolamento
da sua fria casa de solteirão, onde não
encontrava
nada daquilo que o sentimento imperiosamente
lhe reclamava e onde, frente a frente, o encarava o
seu pior inimigo, que era êle próprio. Estas rudes
emoções,
de que lhe era impossível emancipar-se, iam-lhe
aviltando o carácter, extenuavam-no físicamente.
A
fôrça, a resistência, a
saúde, escapavam-se-lhe do
corpo como a tranqùilidade se lhe havia escapado da
alma. Durante horas seguidas, nada mais sentia do
que o pêso esmagador do infortúnio que teimava em
acabrunhá-lo; e, se tentava reagir era para se crivar
de sarcasmos, de ironias cruéis e fulgurantes,
súbitamente
avassalado pelo prazer secreto de destruir-se,
de se afundar mais nas torpezas que dilaceram e matam,
de acabar, com um golpe feroz e rápido, aquela
contínua tortura de todas as horas, fermentando nas
impurezas emocionais, de que era feito o seu abjecto
sêr de homem. Em Frederico, exauriam-se as fontes
psíquicas de que brotam as seivas criadoras que engrandecem
[166]
e nobilitam as criaturas.
O seu aniquilamento
tinha começado: mas, por cobardia moral ou
por orgulho, evitava tudo quanto pudesse sobressaltá-lo
neste vagaroso trabalho de desagregação, e lhe
perturbasse a alegria feroz com que assistia à sua
devastação
desordenada...
Ao cabo de demoradas cogitações, aproximou-se
duma janela e olhou para fóra. A manhã corria
serenamente,
iluminada por um fulvo sol de inverno
que caía do alto sôbre a cidade como o
pólen duma
imensa flor de ouro. Na rua, curvada sôbre a carga do
seu gigo cheio de hortaliças frescas, passava uma mulher
lançando nos ares um pregão vibrante, com a saia
rôta embrulhando-se-lhe nas pernas. Bernardo entrou
de repente, perguntando a Frederico se tinha visto a
carta que o homem do correio trouxera.
―Vi. Tenho-a aqui. Vou lê-la―respondeu.
E, quando o criado saíu, fechando a porta,
Frederico, vencendo, por uma decisão súbita,
tôdas as
irresoluções que o alanceavam, rasgou com
desespêro
o envelope, desdobrou a larga fôlha de papel ennegrecida
de tinta e encetou a leitura. Logo às primeiras
palavras se lhe desenrugou a face que envelhecia e
se abaixou a curva das suas sobrancelhas contraídas.
Nuno narrava-lhe a labuta constante a que se entregava
na quinta, sob as soalheiras de verão, que lhe
tisnavam a pele, sob as chuvadas de outono, que lhe
enrigeciam a fibra, comunicando-lhe mais elasticidade.
As obras da vasta propriedade, alugada ao caseiro,
estavam quáse terminadas. Instalara o vélho
Mateus e a família num
«palácio», só para que
perto dêle não houvesse o espectáculo
dissolvente
da miséria humana; rompêra mais minas que, de
[167]
muito longe, da encosta dos montes próximos, traziam
em levadas uma água muito clara e cantante que,
pelos estios calcinadores, regariam as terras, levando
o alento e o vigor às culturas benéficas:
transformara
tudo. Entusiasmado, confiava-lhe os seus projectos
futuros. Andava com ideia de se fazer lavrador, de
abandonar para sempre a cidade, que só visitaria de
fugida, para tomar um banho de civilização,
regressando
logo à simplicidade do campo, à placidez
rústica.
Se esta vontade vitalizadora, que o galvanizava,
não viesse a esfriar, teria, mais tarde, em
estábulos
bem cuidados, manadas de vacas que lhe dariam o
bom leite, o queijo, a manteiga. Exploraria a indústria,
tam atrasada entre nós, dos lacticínios,
concorrendo
para a riqueza do país com uma parte da sua
fértil actividade...
Frederico interrompeu a leitura da carta, para
murmurar humorísticamente, como se conversasse
com o amigo:
―E nas horas vagas, como Vergílio, podes fazer
versos, escrever as
Geórgicas
ou as
Bucólicas
!...
Sorrindo com a sua observação, reencetou a
longa epístola de Nuno que ia desenrolando outras
empresas que lhe pareciam fabulosas, esquecido completamente
de que Júlia lêra aquelas linhas que lhe
eram dirigidas, que os seus olhos pensativos haviam
pousado em cada palavra, que ela fôra mesmo composta
a seu lado, num daqueles demorados e pacíficos
serões que constituiam um dos maiores encantos
da vida familiar do amigo. Nuno falava agora, sempre
com o mesmo júbilo, em granjas, espigueiros, eirados,
tulhas e celeiros para os cereais que colheria, adegas
para o vinho, apetrechos de lavoura.
[168]
«Quero―dizia êle―trabalhar para aumentar
assim a fortuna do meu filho―que está um
figurão,
um grande senhor de olhos espantados e cara
rabujenta, que se ri de tudo com uma alegria a que
as misérias da existência ainda não
comunicaram o
seu veneno e a sua dôr―de outros filhos que venham,
porque me não satisfaço com ter
únicamente
por descendente e representante um sêr pequenino e
frágil que a menor doença pode arrebatar ao meu
afecto. Júlia é da minha
opinião...»
Esta última frase transtornou Frederico como
um insulto à pureza do seu amor, como uma
maldição
que tornasse estéril o seu sentimento. Parecia-lhe
que Nuno o ofendia e o escarnecia, confiando-lhe
a esperança que alimentava de Júlia lhe dar mais
filhos―filhos que seriam seus, gerados no calor genesíaco
dum beijo profundo em que duas bôcas, que
se queriam, se transformavam numa só bôca, em que
dois corpos, latejantes e convulsionados pela febre
da fecundidade, se fundiam num só corpo! Uma
cólera
absurda subiu do seu coração por essa mulher
que se lhe apoderara da alma e que ao marido entregava
tudo e ao amante ignorado nada oferecia que o
tranqùilizasse. Para Nuno, para a sua
satisfação, para
a sua vaidade, para a sua felicidade completa, a vida
jorraria ininterruptamente do flanco de Júlia, o seu
ventre geraria os sêres quáse divinos pela
graça e
pela
inocência―sêres admiráveis em que
ambos,
através
do tempo, se prolongassem, se perpetuassem.
Para êle, que tanto a amava, e que, por isso tanto
sofria, não havia mais do que uma amizade certamente
sincera, mas que não bastava à sua ansiedade
dolorida e que repelia com amargura! Irritado por êstes
[169]
raciocínios, Frederico nada mais via em Júlia do
que o facto brutal que derivava da sua ligação
legítima,
com Nuno―facto que manchava a purificação
do amor impossível que lhe consagrava, sem
que ela sequer o soubesse. Considerava que o seu
drama passional se transmudava em comédia. Sentia-se
ridículo e exagerava o que na sua
situação havia de
grotesco, para conseguir desdenhá-la, já que a
não podia
olvidar. Estava, certamente, fóra da equidade, da
razão,
da justiça, mas achava que a sua revolta era natural...
Por fim, reagindo sôbre si próprio, reentrou
na realidade das coisas, monologando, revoltado:
―Já não haverá então
limites para a minha miséria?
Com que direito, efectivamente, se insurgia êle
contra a ternura de Nuno pela espôsa? E com que direito
tambêm a reclamava para si, como se ela lhe pertencesse,
sem se lembrar do que devia à sua dignidade,
á sua afeição fraternal, ao respeito
por um lar sagrado
onde entrara como um amigo e donde saíra enxovalhado,
ennodoado por um sentimento criminoso que
fôra impotente para sufocar, à
nascença, no coração?
Estaria por tal forma perdido para a vida moral sadia,
honesta, elevada, que não compreendesse a vileza
suprema da acção que praticava? Mas a sua
libertinagem―a
libertinagem em que esperava consumir-se,
matar a sensibilidade, endurecer, embrutecer―era
recente...
Arrependido, pedindo íntimamente perdão a
Nuno da sua loucura, pegou novamente na carta
que tinha pousado sôbre o peitoril da janela, continuando
a lê-la. O amigo anunciava-lhe que o inverno
havia chegado, com as suas intermináveis
[170]
noites de treva, os seus cinzentos dias de vento e de
chuva. As árvores do parque já não
tinham fôlhas, a
paìsagem dos arredores da quinta parecia morta ou
embebida num sonho inerte em que as vidas futuras
germinavam, preparando-se para ascender à luz.
Nuno e Júlia levavam agora uma existência mais
recolhida e monótona, porque não podiam sair de
casa. A água, descendo em torrentes das serras, alagava
a planície, transformava caminhos, córregos,
azinhagas,
barrocais
, em rios
lamacentos,
tornava intransitáveis
aquelas estreitas veredas, entre densos
silvados, que pelas primaveras românticas floriam e
se perfumavam com o aroma das madre-silvas e das
roseiras bravas e onde, nas manhãs de verão,
amadureciam
as negras amoras silvestres...
«Mas―concluia Nuno―eu tenho os meus livros,
que leio e releio para colhêr alguma humilde parcela
da verdade e da beleza que através dos séculos
os cérebros e as sensibilidades mais finas nunca deixaram
de perscrutar; Júlia tem o seu piano, o seu
Beethoven, o seu Liszt, o seu Schubert, o seu Debussy;
e ambos temos ainda, para prender a esta casa solitária
um encanto sempre novo, o nosso amor e o nosso
filho. E estamos com uma infinita curiosidade de passar
aqui todo o inverno, assistindo à
ressurreição
primaveril, à aleluia das fôlhas e das
florações... E
tu? Se te aborreceres por aí, com os teus teatros, os
teus romances de coração, mais
efémeros do que as
rosas de Malherbe, os teus conhecimentos, os teus tédios,
faz as malas e vem. Serás recebido com a afabilidade
e a alegria que, no vasto mundo, apenas
nesta cabana amiga encontrarás...»
As últimas linhas da carta enterneceram-no.
[171]
Bom, admirável Nuno! Como a sua afectuosidade
perene se recordava dêle e de tam longe o chamava!...
Havia ainda um
post-scriptum
.
Frederico, alvoroçado,
leu:
―«Júlia, que está aqui ao meu lado,
depois
de ter adormecido ao colo o nosso morgado, recomenda-se,
manda-te muitas saùdades e pede-te que
te lembres de nós. Anda a estudar, com interêsse,
uma sonata de Beethoven, que será para ti e que,
na tua volta à quinta, hás de ouvir...»
Por um momento, estas palavras tam naturais
e tam simples, conturbaram-no, excitaram-lhe a
imaginação.
Júlia pedia-lhe para se lembrar dela, estudava
pra êle uma das mais belas sonatas de
Beethoven
,
talvez inspirada ao maior poeta de música por
uma profunda, transfiguradora paixão, tinha consigo
delicadezas do que apenas são
capazes
as almas que
amam em silêncio. Quem sabe se essa doce mulher
fôra tocada pelo fluido invisível do amor que o
abrasava,
se tambêm o amaria em segrêdo, escondendo
êsse sentimento, ao mesmo tempo pecaminoso e divino,
bem no fundo do coração, para que nem Nuno
nem mesmo êle sequer o pressentissem? Quem poderia
adivinhar, decifrar o drama oculto naquela alma
tam requintadamente feminina?... Depois dalguns
minutos de reflexão, porêm, o seu desvairado
scismar
pareceu-lhe vão e sem sombras de realidade. Com efeito,
se Júlia lhe consagrasse um afecto que, por sua
essência,
tivesse de esconder cautelosamente, não pediria
a Nuno para acrescentar à carta que acabava de
receber um
post-scriptum
em que se
denunciaria. O
amor obrigado a esconder-se é sempre assustado,
supersticioso,
[172]
teme
mesmo os actos mais inocentes com
mêdo de revelar-se a olhos perspicazes. Não! Que
ideia
a sua! Júlia era, para êle, apenas uma
bôa, sincera
amiga, e nada mais do que isso. E esta virtude nobilitava-a
para Frederico!...
Sôbre a sua alma passou, nesse momento, uma
nuvem da tristeza que, por um instante, o deixara
para de novo voltar a deprimi-lo; no seu espírito
manifestaram-se
alternativamente as crises contraditórias,
a desilusão que o pungia pela secura e as
aspirações
indefinidas que sossegavam a intervalos o
seu mal estranho. Amarrotou nervosamente nas mãos
a carta de Nuno, atirando-a para cima da mesa, e,
concentrado e sombrio, recomeçou o seu passeio.
Voltar à quinta, ser uma testemunha da felicidade de
Júlia e do marido, tam estreitamente unidos por um
amor que incessantemente refloria, que ao fim de
dois anos mantinha a mesma febre, a mesma ansiedade,
o mesmo calor, a mesma infinita, inextinguível
adoração? Não tinha coragem para isso,
porque
não podia conservar-se impassível, ao menos,
diante
do espectáculo duma ventura que ardentemente
desejava para si e de que, conjuntamente, fugia como
fugiria dum pavoroso crime. O amor de Júlia e de
Nuno era sagrado pela sua pureza; no entanto, tomava-o,
no seu egoísmo, como um insulto, como um
sarcasmo de fogo que o queimava, como um escárnio
ao seu infortúnio. Não! Nunca mais!
Não queria
presenciar a florescência maravilhosa e suave duma
ternura que tam ardentemente apetecia para si e
que um outro, legitímamente, fruía. A sua pessoa
não era necessária em casa do amigo para que
êle
fôsse feliz: e Frederico, êsse carecia de estar
longe
[173]
de ambos para ser menos desgraçado... O que existia
de paradoxal no seu caso singular! Sabia que
Júlia e Nuno o estimavam fraternamente; que,
se a sua alegria de viver, a sua placidez interior,
dêles dependessem, seria absolutamente ditoso;
que não tinha, no tumulto vertiginoso da
existência,
mais seguros e nobres afectos; e, no entanto, era
justamente de Nuno e de Júlia que para si vinha a
maior dor, a mais intensa amargura!...
E o que tambêm havia de bizarro, de
incompreensível,
de insensato, no seu sentimento! Amando
Júlia alucinadamente, querendo-a acima de tôdas as
coisas, não odiava agora Nuno, que a possuía.
Pelo
contrário, a sua afeição crescia cada
vez mais por
êsse belo rapaz que a uma dignidade inquebrantável
aliava os brilhantes dons de carácter, de
inteligência,
de grandeza moral. Tudo aquilo lhe parecia
confuso, baralhado, incoerente, fóra da realidade
humana, obedecendo talvez a leis psicológicas ainda
ignoradas...
Cansado de se debater sem tréguas na mesma
agitação árida, nas mesmas
angústias e nas mesmas
perplexidades, chegava a desejar que uma catástrofe
se abatesse de repente sôbre êle e o aniquilasse
ou esclarecesse uma situação que não
podia
sofrer por mais tempo. Tudo o que viesse imprevistamente,
luminoso ou sombrio, irremediável ou ditoso,
suave ou amargo, seria preferível àquela tortura
lenta
em que o seu ser de homem se dissolvia aflitivamente.
A casa parecia-lhe deserta como nunca e duma solitude
apenas comparável ao ermo do seu
coração.
O silêncio constrangia-o. Queria o ruído, as
conversas,
a animação, o riso à sua roda;
desejava tudo o
[174]
que o aturdisse, que desviasse o rumo das suas
cogitações,
que o insensibilizasse por instantes. Tirou o relógio
do bôlso, viu as horas. Era ainda muito cedo
para o almôço. Daria uma volta pela cidade,
iluminada
por um sol pálido de inverno que ardia num céu
claro como se fôsse feito de cristal, almoçaria
mesmo
em qualquer restaurante onde houvesse gente, barulho,
tinir de louças e de metais, onde entrassem homens
apressados e respirando fortemente, ocupados
por uma actividade que os movimentasse, por um interêsse
que os impelisse para a frente, sem repouso.
Nesse logar, estaria melhor do que à sua mesa,
diante dum fresco ramo de flores orvalhadas, de
porcelanas, de esmaltes brilhantes, de pratas scintilando
à luz, de toalhas de linho muito branco,
tendo por companhia única o respeitoso Bernardo
que o servia com a solenidade de quem celebrasse
um rito e que respondia por monossílabos às suas
perguntas... Pôs de novo o chapéu, pegou nas luvas
e na bengala, dobrou a carta de Nuno, que
guardou na gaveta, e chamou o criado para dizer-lhe
que não almoçava.
―Mas, o almôço está quáse
pronto!―informou
Bernardo.
―Pois, come-o tu e que te saiba bem!...―atalhou,
risonho.
Bernardo considerava-o com espanto, envolvia-o
num olhar de surprêsa; e quando Frederico
saíu, descendo as escadas com rapidez, murmurou:
―Umas vezes não almoça, outras não
janta,
deu agora em ficar fóra de casa, como um vadio,
êle que era tam regular na sua vida... Está
estragado... Enfim,
eu nada tenho com isso. Sou servo,
[175]
êle
é patrão, tem dinheiro, tem
saúde... Adeus,
minhas encomendas...
Frederico, a quem a carícia do frio ar circulante
refrigerava e desoprimia, encaminhou-se para a
Praça da Liberdade, cortando ao acaso através de
ruas
ruidosas de multidão, coloridas, cheias de pitoresco,
exibindo uma fisionomia característica. Nos bairros
pobres, secava roupa atada em cordas por varandas
e trapeiras. Ranchos de crianças sujas e rôtas
erravam
nas calçadas, brincando. Criadas de servir regressavam
dos mercados e dos talhos com grandes cabazes
de vêrga enfiados no braço. As lojas estavam
apinhadas de compradores que, aos balcões, regateavam
com os caixeiros. Desfilavam soldados, aos
pares e de mãos dadas, com o
bonet
de vivos vermelhos
sôbre a orelha e um ar obtuso nas frontes
assimétricas
e inexpressivas.
Perto de mercado do Anjo, duas peixeiras,
de roupas descompostas e de gigas à cabeça,
jogavam
o braço furiosamente e insultavam-se nos termos
mais duros e obscenos, entre um enorme ajuntamento
de populares que riam, de bôca escancarada
e de face contraída e vincada de rugas. A tôrre
dos Clerigos subia na diafaneidade do espaço, projectando
uma esguia mancha de sombra no ambiente
luminoso e sereno.
Era a um sábado, véspera de festa. Para os lados
do Bomfim, sôbre os telhados em que o sol caía
a prumo, estralejavam foguetes que subiam, rechinando,
no ar e que ao explodirem deixavam pequenas
nuvens dum fumo branco e denso pairando na limpidez
da atmosfera, como novelos de algodão que se
esfiassem ao vento, sob o céu azul e fino.
[176]
Frederico marchava apressadamente, absorvido
em emoções e cuidados íntimos, sem
reparar na scenográfia
exterior. A vida envolvente com as suas
variadas formas, os seus coloridos, violentos ou ternos,
a sua particular expressão, passava-lhe inteiramente
despercebida, tam fundo era o recolhimento
do seu espírito no drama sentimental de que não
conseguia separar a personalidade psíquica. Sempre
aquela obcessão a persegui-lo, sempre a venenosa
flor dum venenoso desejo por Júlia―pela sua carne,
pela sua beleza física, pela sua candura, pela
sua graça fresca e luminosa―renascendo dentro
de si, perturbando-o, embriagando-o como um
perfume deletério! A luta―uma luta contínua
de tôdas as horas, de todos os dias―extenuava-o.
Já não podia, no desfalecimento de vontade que o
esmagava, conduzir-se com firmeza pela própria
razão
ou pela parte incorruptivel e intacta do seu sentimento:―era
conduzido pelo instinto sensual, sem
dispôr de energia para uma reacção
alacre e vitoriosa
que o emancipasse da tortura intensa, que lhe
restituisse à natureza espiritual o divino encanto
perdido e a pacificação deleitosa. Nuno,
ignorando a
sua agonia secreta, chamava-o de longe, colaborando
assim no monstruoso crime que pretendia evitar, concitando-o
a uma traição que Frederico, no seu
delírio,
julgava já consumada porque lhe ardia na alma o
lume dum amor impuro pela espôsa do amigo de tôda
a vida, do camarada de estudos, do irmão com quem
fizera, em plena concórdia, metade da jornada da
existência.
Era terrível! A fatalidade abatia-se inexoravelmente
sôbre êle, encarniçava-se contra o seu
infortúnio,
exacerbava-lhe a dor. Frederico notava, com
[177]
subtileza, a pequenez, a impotência do homem―mesmo
quando ele fôr culto e dipuser
duma sensibilidade―para
dominar-se, para conter-se em face do
mal, sempre que nesse mal houver a satisfação
áspera
dum gôzo, dum interêsse moral ou material.
Nestes momentos, que incessantemente se repetem, o
que no organismo humano, tam imperfeito, se impõe
é a revolta da animalidade grosseira, apagando-se
no ser consciente tudo quanto nêle há de
superior!...
Mas, Frederico tentava ainda lutar contra essa
animalidade, vencer a sua impetuosa paixão, conservar-se
num estado de alma que o tornasse digno da
afeição fraterna de Nuno, sem que tivesse de
còrar de
remorsos ou de vergonha, quando diante de Júlia
êle
lhe chamasse amigo e o apontasse como um exemplo
de lealdade. Como não tinha confiança em si
mesmo,
como suspeitasse de que junto da mulher adorada em
silêncio não pudesse esconder um amor que
não devia
revelar-se para poupar sofrimentos e afrontas, como
temia que um instante de fraqueza e de desvairamento
o levassem a cometer desatinos que não teriam
remédio, caminhando aceleradamente nas ruas, cada
vez se aferrava mais à ideia de não voltar a casa
de
Nuno e de esquivar-se a um encontro com Júlia.
Longe dela, o perigo seria menor.
Pensando assim, enquanto à sua roda a multidão
indiferente ria e palestrava, circulando activamente,
Frederico chegou à Praça da Liberdade e entrou
numa tabacaria a comprar charutos. À saída,
encontrou-se
face a face com alguêm que avançava para
êle, de mão estendida, que o saùdava
com uma
exclamação jovial.
―Oh! Frederico, oh! ladrão!... Que feliz
[178]
casualidade!... Há quanto tempo eu andava por estas
acidentadas e sujas ruas portuenses à procura
duma figura conhecida e sem a encontrar!...
―Oh! Duarte!... Duarte de Alarcão e Ataíde,
dos Ataídes do Alentejo! Como diabo vieste tu
parar mais uma vez a esta nobre cidade de tráfico e
de negócios?
―Coisas estupendas, quimeras... Cheguei de
Lisboa hoje, no correio da manhã e aqui me encontro.
Apertaram efusivamente as mãos, contemplaram-se
por alguns momentos com simpatia.
―Estás mais forte e mais moreno, digno Alarcão
e Ataíde!
―E tu mais corcovado e triste, D. Frederico!
―Que queres, amigo?―atalhou Frederico,
desalentado.
Ça ne marche
pas!
...
Duarte havia sido seu condiscípulo, no segundo
ano da Academia Politécnica, onde não concluira
o curso de engenharia por ter armazenado já, segundo
confessava, a quantidade do sciência suficiente
para viver saborosamente a vida, com a abundante
pecúnia herdada. Era, então, ruidosamente
alegre, brilhante de vivacidade, tocava na guitarra,
que gemia entre os seus dedos, o fado do Conde de
Vimioso, com que acordava os corações namorados
das trapeiras em noites de luar e de serenata e que,
no seu entender, constituia a página de música
mais
nacional e poderosamente expressiva que Portugal
havia criado, desde que entrara nos horizontes maravilhosos
da civilização.
―Verdadeiramente―asseverava êle, fazendo
a
blague
―a nossa Pátria
possue duas coisas grandes
[179]
e
de génio:―a descoberta do caminho
marítimo
para as Índias, que definiu os nossos compatriotas
como marinheiros e perseguidores de aventuras,
e o fado do Conde de Vimioso, que os definiu em
tudo quanto nêles existe de elegíaco, de
lírico, de
subjectivo. Estamos diante de duas epopeias, meninos!...
Aquele admirável Duarte! Caía do céu,
providencialmente,
no meio das tristezas de Frederico,
das suas derrotas, dos seus desconsôlos, para os dourar
com uma réstea de alegria transitória como o sol
doura uma paìsagem, depois da chuva.
―Tens estado sempre em Lisboa, desde que
abandonaste o Pôrto?
-Não, criatura! De vez em quando, sempre
que o país me satura de enfado, e, com as suas eternas
farças, o seu entremez permanente, me comunica
um fastio de Tibério exausto, faço as malas,
viajo, desbestializo-me, tomando um banho de elegância,
de lucidez mental, por essas bemditas nacionalidades
cultas da Europa. E tu? Que fazes? Que
tens feito?
―Nunca saí de Portugal, Duarte! Vou murchando,
por patriotismo, no nosso torrão natal,
como uma couve tronchuda. Sou assim patriota...
―E selvagem!... Tambèm razoávelmente
selvagem.... E
agora, para onde te dirigias, a passos
largos, encurtando o caminho da sepultura, como
afirma o
Eclesisastes
?...
―Deambulava por aí fóra, à procura
dum
sítio onde almoçasse sem escândalo.
Porque não vens
comigo, Alarcão e Ataíde? Faríamos um
pequenino
ágape, celebrando êste acontecimento festivo!
[180]
―Pois, aceito!... Que diabo, estou com debilidade,
com fome. E nem sequer me lembrava!...
Atravessaram, lentamente, a Praça da Liberdade,
em direcção à rua de Sá da
Bandeira, parando
a cada instante para relembrarem episódios passados,
incidentes humorísticos da mocidade há muito
olvidados. Os carros eléctricos corriam velozmente
sôbre os
rails
, num
incessante retinir de campaínhas
de alarme, os automóveis fugiam no fio do vento, entre
nuvens de fumarada, atroando os caminhantes
com as suas
sirènes
; das
tílias altas que, nos dias
ardentes de verão, espalham sôbre a
calçada
nódoas
rôxas de sombras afagadoras, desciam as derradeiras
fôlhas. Duarte, enfiando o braço no de Frederico,
evocava scenas hilariantes dos anos extintos.
―Tu ainda te lembras do Martinho, homem
terrível da Beira e da batota, que numa noite de
azar, vendeu a alma ao Diabo por dez tostões?
―Perfeitamente!... Foi para a África. Nunca
mais se soube dêle.
―Por sinal que o Diabo, cansado de comprar
almas inúteis para os seus fins de regenerar o mundo
pelo espectáculo da tortura, não aceitou a oferta
em condições excepcionais de preço, e
Martinho,
despeitado, pregou-lhe a maior descompostura que êle tem
apanhado, desde Santo Agostinho!
Riram com satisfação, na beleza gloriosa da
manhã
que os remoçava.
―Pobre camarada!―continuou Duarte. Ao dr.
Fausto, o Diabo deu ainda, com a juventude, a virgindade
e a beleza de Margarida. Ao nosso companheiro,
não deu nem dinheiro para cigarros. Era por isso que
êle dizia, com rancor, que Satanás, depois que
Goëthe
[181]
o descobriu oculto na consciência, tinha perdido todo
o prestígio... E que é feito de Nuno,
êsse encantador
conviva das ceias de S. Mamede de Infesta, com bacalhau
e guitarras?
―Está casado... E já tem um filho.
―Oh! O sórdido burguês!... E talvez feliz, hein?
―Enormemente feliz.
―O animal!... Tu, solteiro.
―Sim, homem! Solteiro...
―Como eu!... Como os heróis de Tyrso de Molina,
sempre à caça de rôlas assustadas.
Fazes bem. É
assim, justamente, que procedem os homens decentes.
Tinham chegado à esquina do Café Portuense.
Duarte estacou, exclamando:
―No meu tempo, havia aqui uma fonte e um tanque.
Uma noite, o Andrade,
o de medicina
,
quis
afogar-se
nesse tanque, porque acabava de saber que a costureira
que amava o traíra com um oficial de barbeiro.
Suicidava-se não por orgulho ofendido, mas por
estética.
Tive um trabalhão para evitar que êle se
molhasse...
O que foi feito de tôda essa água?
―Secou, desapareceu.
―Como a fé nas almas!... Oh! os tempos modernos
são iconoclastas.
Frederico, afagado por todo êste riso que se irisava
de jovialidade como uma espuma ténue e branca se
irisa à luz, sentia-se desoprimido das suas
inquietações
anteriores, e abençoava aquele encontro inesperado,
que o distraía, que lhe tornava mais leve e desanuviada
a vida. Por momentos, tudo lhe esquecia, tudo adormecia
na sua memoria e no seu sentimento:―a carta
de Nuno, o amor de Júlia, a luxúria em qu
Frederico, afagado por todo êste riso que se irisava
de jovialidade como uma espuma ténue e branca se
irisa à luz, sentia-se desoprimido das suas
inquietações
anteriores, e abençoava aquele encontro inesperado,
que o distraía, que lhe tornava mais leve e desanuviada
a vida. Por momentos, tudo lhe esquecia, tudo adormecia
na sua memoria e no seu sentimento:―a carta
de Nuno, o amor de Júlia, a luxúria em que se
afundava
com Branca. Do fundo do seu coração subia o
reconhecimento
[182]
para
aquele bom Duarte em quem a jovialidade
era perene e espontânea...
Em frente do teatro Sá da Bandeira, ainda se detiveram.
Frederico, riscando gestos no ar com a ponta
do dedo enluvado, dizia:
―Na parede dêste edificio já havia aquele mesmo
buraco, quando eu era estudante. Caíram tronos
depois disso, morreram dois Papas, houve três guerras
fulgurantes, o Império Celeste mudou as suas
instituìções
políticas, nasceram-me na cabeça os primeiros
cabelos
brancos e o buraco lá está. Só
êle não evolucionou
porque é um documento histórico e representa o
amor, o carinho, com que o Pôrto defende a sua fisionomia
secular.
―Não zombes, Duarte―atalhou Frederico. Essa
tendência conservadora do Pôrto é uma
das suas
primaciais virtudes.
―Mas, não zombo! Primeiro que tudo, o amor à
tradição. Só êle engrandece
os povos, no sábio e verídico
dizer de Fustel de Coulanges...
Foram andando vagarosamente, meteram pelas
ruas próximas, dando uma volta, porque Duarte tinha
curiosidade em ver certos logares que lhe evocavam
os dias distantes da mocidade, que lhe relembravam
certos factos, determinados acontecimentos. A
cada instante, chamando a atenção de Frederico,
lhe
fazia revelações, dizendo:
―Tive antigamente por aqui um namôro. Ela chamava-se
Faustina e eu considerava-me o seu Marco
Aurélio... Bons tempos!
Mas Duarte, nas suas vagas observações, ia
verificando
que a cidade envelhecia, que a idade a deformava,
lhe comia a côr e o viço, como se
fôsse um
[183]
rosto feminino em que a beleza da juventude fôsse
morrendo.
―Tudo envelhece, afinal―murmurava tristemente―o
corpo humano e as próprias pedras inertes
que fendem, ennegrecem, se cobrem de musgos parasitários.
Que formidável poder de destruição, o
da
morte! Nada é eterno!...
Voltaram, novamente, à Praça, entrando por fim
num restaurante. Duarte, enquanto Frederico, depois
de tirar as luvas e o sobretudo, escolhia na lista os
pratos, coçando a ponta do queixo numa grande,
embaraçosa
irresolução, lamentava-se por não ter
encontrado
mais nenhum dos seus condiscípulos ou dos seus
conhecidos doutrora. A vida era uma infatigável dispersadora
de almas. Mesmo num país tam pequeno
como Portugal, os que uma vez se separam, geralmente
não tornam, a falar, a não ser por acaso.
―Homem, aí tens a lista. Vê se preferes algum
cozinhado―exclamou
Frederico.
―Não quero ver a lista! Escolhe tu, Brillat-Savarin.
Mas, mete no festim alguma iguaria bem portuguesa,
bem portuense, por causa da côr local, sempre
necessária
a românticos como eu sou, como tu eras...
Ao passo que esperavam, esfregando os garfos e as
facas nos guardanapos, diante dos copos vazios e das
porcelanas que reluziam sôbre a toalha da mesa,
continuaram
a conversa.
―Ora, tu pelo Pôrto, Duarte!... Que bela surprêsa!
―É verdade. Por aqui me trazem, durante algumas
horas, os meus pecados...
―Aventuras amorosas, aposto...
―Efectivamente, trata-se duma mulher que amo
[184]
e que me quere. O marido teve a triste lembrança de
vir ao Norte, nesta ocasião em que Lisboa está
tam bonita,
o trouxe-a com ele, para amenizar a jornada.
―Oh! devasso!...
―Que remédio! O coração humano
é assim... E
nada de lições de moral, porque não me
convertes.
Lições de moral! E com que autoridade?―meditava
Frederico. Tambêm êle amava profundamente a
espôsa do seu maior amigo, pensando nela constantemente
como se Júlia fôsse o centro de tôdas as
suas
recordações, da sua própria
existência. Quem tinha ensinado
a essa mulher o caminho do seu coração? Por
êsse amor sofria, por êle se via condenado a viver
num
permanente sonho doloroso, na agitação
contínua das
lutas indomáveis e estéreis, oscilando entre o
desejo,
a noção do dever a cumprir, a agonia e o
desespêro.
―Não tens dêstes saborosos casos na tua
história
lírica, Frederico?―atalhou Duarte.
―Eu?... Que ideia!―respondeu êle, perturbado.
O criado surgiu, de repente, com uma travessa de
peixe frito na palma da mão. Serviram-se, encetaram
o almoço vagarosamente. Tentando desviar o fio duma
conversa que lhe desagradava, avivando-lhe sentimentos
amargos, Frederico, suspendendo o garfo e voltando-se
para Duarte, inquiriu:
―Tens viajado muito, não é assim?
―Bastante. Sou mesmo uma espécie de Judeu Errante
muito razoável para uma nação do
tamanho da
nossa. De resto, as viagens são os melhores mestres.
Só
elas nos ensinam essa fina sciência de sociabilidade
tam útil na nossa época.
[185]
―Sabes que estou resolvido a viajar tambêm?
Vieste despertar-me o apetite.
―Ainda bem que te forneci uma ideia excelente.
A cada momento entravam na sala homens com
as golas dos
pardessus
erguidas
até às orelhas roxas
de frio, que respiravam com fôrça, tossiam, se
punham à vontade, abancando pelas mesas e comendo
com sofreguidão, por entre o ruído
monótono das conversas
e o barulho dos talheres e da louça, entrechocando-se.
Êste tumulto irritava Frederico, já desgostoso
com a promiscuidade. Curvado sôbre o mármore
côr de rosa do mostrador, um empregado pachorrento,
gordo, vermelho, com uma calvície enorme e
a cara tôda rapada à navalha de barba, que lhe
deixara
na face uma sombra azulada, olhava maquinalmente
a rua, através dos vidros das portas.
―Só viajando, a gente se instrue―afirmava
Duarte, devorando o seu
beef
com
ovos... Diabo,
êste vinho é uma peste...
Ouvindo o amigo, Frederico ia pensando, a sério,
num longo passeio pela Europa, numa viagem de esquecimento
e de purificação em que sarasse o seu
coração
enfêrmo e acalmasse a sua imaginação
exaltada.
As grandes capitais, com os seus vibrantes espectáculos
desconhecidos, as suas multidões, as suas sumptuosidades,
as suas ardentes, imperiosas solicitações
a pouco e pouco lhe comunicariam a tranqùilidade espiritual
que tanto desejava. Porque não? Veria outros
povos, outros costumes, outras civilizações,
misturar-se-ia,
contente, à onda duma vida complicada que faria
por analisar e compreender na sua essência e na sua
expressão; encontraria, por alguns meses, uma
ocupação
que lhe enchesse a alma, o distraísse, lhe serenasse
[186]
a febre que o queimava. No isolamento em que se confinara,
o seu amor por Júlia, longe de dissipar-se, havia
de precisar-se mais, de difinir-se, de fortificar-se, por
influxo da paixão que o devastava e que o esgotava de
tôdas as fôrças vitais, sem deixar-lhe
sequer o cuidado
pelas banalidades práticas... Talvez que noutros
países,
noutras cidades, longe de Nuno, longe da sua
adoração,
esta violência sentimental que o pungia diminuisse,
pela multiplicidade de diversões e de interêsse
em que se absorvesse...
Tinham chegado à sobremesa, e Duarte, estranhando
o silêncio de Frederico, perguntou:
―Em que profundos problemas cogitas tu, criatura?
―No problema de atulhar o estômago. A minha
animalidade assim o reclama.
―Estás na verdade cartesiana. Comes, logo existes...
Sempre que no seu sentimento despertava o amor
por Júlia―amor que não podia adormecer
perpétuamente―Frederico
verificava que êle lhe transmitia
uma extraordinária abundância de
impressões novas e
intensas que terminavam por fatigá-lo, por deprimi-lo
até à tristeza e ao desalento. Precisava
subtraír-se a
êste trabalho interior em que o seu ser se abismava.
Viajaria, pois, e levaria Branca.
―Está decidido, Alarcão e Ataíde...
Dentro em
breve, terás um servo humilde para a Europa.
E voltando-se para o criado, pediu a conta que
pagou.
Levantaram-se, acenderam os charutos, calçaram
as luvas e saíram para a rua, aspirando consoladamente
o ar vivo.
[187]
―Demoras-te por esta óptima cidade, D. Duarte?
―Não, menino. Parto ainda hoje à noite. As doces
exigências do coração cumpriram-se. De
novo me
afasto.
―Que pena!
―E até peço desculpa, por te abandonar tam
cedo, depois do almôço e do afecto. Enfim, outro
poder
mais alto se levanta, como disse o nosso épico.
Pararam um instante na rua, apertando as mãos.
―Quando vires êsse Nuno, dá-lhe um grande
abraço,
por mim.
Au revoir!
...
Até à noite, Frederico vagabundeou pela cidade,
detendo-se diante das
vitrines
,
seguindo com a vista
alguma linda mulher que passava, num forte e aristocrático
rumor de sêdas. A tristeza que de manhã, com
a carta de Nuno, o invadira, acentuou-se, adensando-se
cada vez mais. Que suplício!... Por muito que quisesse
alhear o pensamento de Júlia, surpreendia-se
constantemente a reconstruí-la na fantasia, a recordar
os seus suaves olhos langorosos e profundos―uns
olhos que diziam tudo o que dentro dela se passava...
A lembrança dessa mulher renovava-lhe incessantemente
o sofrimento, mas era-lhe muito grata.
Cansado da sua interminável vadiagem, meteu-se
num carro eléctrico com destino à Foz, maldizendo
a
esterilidade do seu dia sem uma emoção de beleza
moral
superior, sem um acto nobre.
―Como isto acabrunha! ― monologava, sentado
em frente duma inglesa esgrouviada, alta e sêca, com
uns cabelos dum louro sêco e uns óculos de ouro na
ponta do nariz, que lia um jornal de Londres.
Foi nessa noute, jantando com Branca, que Frederico
lhe disse:
[188]
―Sabes? Ando com vontade de ir até Madrid, até
ao inferno.
―E então eu? Deixas-me?―perguntou ela com
voz de mimo.
―Não! Levo-te comigo, para nos aborrecermos
ambos. O tédio, dividido por dois, deve ser menos pesado...
VIII
O inverno tinha chegado, com efeito, à quinta onde
Nuno e Júlia ainda permaneciam, sem pressa de regressarem
à confusão e ao alarido da cidade, de que se
esqueciam na paz, na beatitude da sua vida de recolhimento
e de simplicidade, no enlêvo cada vez maior
da sua ventura. Como viviam únicamente um para o
outro, sentiam-se bem naquele isolamento de que nenhum
sobressalto exterior quebrava o ritmo. Parecia-lhes
que os seus pensamentos e as suas emoções
ganhavam,
na solitude, maior nitidez e mais intensidade
e que um amor, de instante para instante mais forte,
os aproximava tanto pela beleza moral como pela beleza
física, enriquecendo os matizes afectivos da sua
intimidade espiritual.
A hostilidade do tempo retinha-os quáse sempre
dentro de casa. Grossas cordas de água fustigavam
com violência as janelas, escorregando lentamente nos
vidros, alagavam o jardim, davam, um aspecto lúgubre
[190]
a paìsagem que
se divizava ao longe, através
duma
cortina de névoa cinzenta e triste. Dos montes
próximos,
onde densos pinheirais ondulavam e ramalhavam
à ventania furiosa, despenhavam-se as torrentes, descendo
entre cachões de espuma até ao vale. Por vezes,
dos telhados dos casebres, que donde a onde branquejavam
na desolação campestre, subiam, colunas de fumo
que se torciam, se esfarrapavam, dissipando-se na
atmosfera baça. Grandes nuvens negras corriam no ar,
do sul para o norte, impelidas pela rajada dos furacões.
No cume das serranias havia uma claridade mais límpida
do que nas encostas e nas colinas onde um espêsso
vapor se acumulava. As árvores sem fôlhas do
parque
rangiam, gemiam ao vento. De noite, especialmente,
o barulho que faziam era sinistro e assustava Júlia.
De quando em quando, um pedaço de céu azul
rasgava-se
no alto, muito puro e translúcido, e uma pálida
claridade de sol derramava-se docemente, como uma
bênção divina, por tôda a
aldeia, dourando a verdura
das relvas humildes e rasteiras que vestiam a terra negra.
Nestas horas, parecia que a natureza tinha uma
alma de bondade e meiguice a comunicar-lhe o encanto
supremo duma poesia indizível, e duma infinita piedade
pelos desgraçados. Mas em breve o ambiente de novo
se toldava e a obscuridade dilatava as perspectivas.
Em certas manhãs, Nuno, com o charuto na bôca,
as mãos nos bolsos das calças onde tilintavam
chaves,
bem agasalhado pelas roupas quentes, assomava à varanda
envidraçada, espreitando através dos vidros
embaciados,
e logo se refugiava junto de Júlia, murmurando:
―Que invernia brava hoje vamos ter!...
Ela olhava-o demoradamente, com êsse olhar em
[191]
que se reflectia tôda a pureza e tôda a ternura do
seu
coração e que tanto o comovia, dizendo:
―Fizemos talvez mal em nos deixarmos ficar
aqui. Devíamos ter partido nos fins do verão...
Mas
essas obras que nunca terminaram...
―Partir para quê?―inquiria Nuno, parando
diante dela. O inverno é tam fastidioso na aldeia como
na cidade. E nota! É mesmo curioso ver cair a chuva
entre estas árvores, pelos flancos destas montanhas.
Ao menos, temos horizontes largos, desafogados, respira-se.
Estamos a assistir a um espectáculo inteiramente
novo para nós...
―Mas, na cidade...―contrariou Júlia, com timidez.
―Eu sei. Na cidade, há os cafés, os
cinematógrafos,
os teatros, outras diversões. Mas ela apenas se torna
indispensável para os que não teem
família ou para
os que não fazem vida familiar. Para mim, que passo as
noites perto de ti, tanto me importa estar aqui como
num centro imensamente populoso...
Ela agradecia-lhe fervorosamete aquela doce
devoção,
aquela constância de afecto que nunca afrouxava,
e experimentava um calor de ventura que a penetrava
tôda, que amaciava à sua roda as asperezas da
vida. A confiança de ambos no futuro aumentava
constantemente.
Tinham olvidado tudo o que se passava
para alêm da história lírica da sua
paixão―que havia
começado anos antes e que ainda não terminara;
nem
um nem outro se lembravam de ter padecido algum
dia. As recordações dos seus tempos antigos
diluiam―se,
apagavam-se, fundiam-se na fluidez original. Uma
nova fôrça, uma energia prodigiosa, pulsava nos
seus
sêres, renovando-os a cada momento. Dentro de casa,
[192]
nas alvoradas hostis ou nas tardes tempestuosas, ocupavam-se
na infinidade de coisas gratas que os cuidados
da habitação oferecem. Júlia, com o
saco de costura
no regaço, bordava, cosia, enquanto Nuno lia as
suas revistas e os seus jornais ou cortava as páginas
dalgum livro recente que da cidade o seu livreiro lhe
mandava. No abandôno íntimo dêstes
saborosos instantes,
se se contemplavam, subiam-lhes da alma à
memória as longínquas
recordações da sua adoração
revivida, com extraordinária lucidez. Encontravam,
então,
um fino prazer emotivo em relembrar tudo o que
mais de perto com essa adoração se prendia:―os
logares
idílicos em que ela tinha nascido, certos objectos e
certos episódios que lhe imprimiam relêvo. A
elaboração
interior destas lembranças emmudecia-os longamente,
abismava-os numa espécie de silêncio que temiam
interromper e que voluntáriamente prolongavam,
para que o seu gôzo espiritual fôsse mais
duradouro.
Nuno conservava tam nítidamente na memória
êsses
acontecimentos, que podia reconstituí-los com facilidade,
sempre que quisesse. Não lhe esquecera ainda,
o mínimo detalhe do seu primeiro encontro com
Júlia, que chegara certa manhã a um hotel de
Vizela,
com o pai, a mãe e o irmão, o excelente Roberto,
que fôra educado em Londres, que tinha nas maneiras,
na franqueza, na correcção do porte e no
córte
do vestuário, acentuados traços
britânicos e que
partira para a America do Norte, como empregado
superior duma casa bancária, dois meses depois do
casàmento de Júlia. Viram-se a primeira vez no
parque,
por uma tarde de luz e de alegria. Ela trazia
um vestido de fustão branco muito justo que lhe desenhava
claramente as formas plásticas, ondulantes
[193]
e de linhas puras. O seu busto era perfeito de curvas
e de contornos: a sua mocidade tinha a graça subtil
duma flor plenamente desabrochada. O seu chapéu
de palha côr de ouro com duas rosas vermelhas presas
por uma laçada de gaze de sêda branca, fazia-lhe
uma discreta sombra sôbre a testa, suavizava-lhe
mais a luz dos olhos suaves, iluminando-lhe o rosto
dum oval delicado, imprimia-lhe maior destaque à
pele das faces e do colo, que parecia alumiada por
uma claridade interior e que não tinha um vinco, uma
ruga. Nas suas mãos, que eram magras, pequeninas
e de dedos delgados, fulgiam pedras de aneis.
Cruzaram-se no passeio, trocaram um simples
olhar e foi como se ficassem compreendendo-se
para sempre―porque o amor casto dá aos olhos
uma inteligência especial, um admirável poder de
entendimento
e de expressão. Daí em diante, nunca
mais Nuno deixou de a seguir dócilmente para tôda
a parte, indo aos chás a que Júlia se associava,
às excursões,
em grandes ranchos, às serras próximas, para
a contemplação dos panoramas que se vislumbram
dos píncaros mais altos:―a ondulação
ininterrupta
e irregular do dorso das cordilheiras, que evocava um
colosso fulminado, tocado a espaços por manchas de
folhagem verde, alteando e deprimindo a sua ossatura
monstruosa na base, elevando-se bruscamente
em saltos e galgões de terreno. Em baixo, ao fim da
escarpa abrupta dos montes, a natureza rebentava
numa torrencial explosão de arvoredos, de milharais,
de pomares, de videiras de compridos braços,
enroscando-se nos troncos de olmos e de cerejeiras,
como as serpentes no coração do Lacoonte, subindo
até às copas e vergando de cachos.
[194]
Uma frescura e uma abundância de écloga latina,
que Vergilio cantaria, em estrofes immortais,
corriam alacremente nos fundos vales que se almofadavam
de ervaçais e sombras; e em tôda a
extensão
panorâmica, as serranias sucediam-se umas às
outras
constantemente, como um mar de enormes vagas terrosas
que a tormenta açoutasse. As senhoras, assustadas
com a grandeza do espectáculo, sentiam deslumbramentos
e davam gritinhos de susto; os homens
riam. E Júlia e Nuno, um pouco afastados dos grupos
palradores, teciam as horas de sêda e ouro do seu
amor que começava e que, não sendo já
segrêdo para
ninguêm, provocava risinhos maliciosos, ditos picantes
ou de despeito.
Ao cair da tarde, quando regressavam ao hotel
para jantar, nos olhos de Júlia havia uma
extraordinária
fascinação e, Nuno trazia uma alvorada na
alma. Depois, à noite, no
salão, organizavam
danças, enquanto os homens de idade se reùniam
às
mesas dos jogos improvisados, para as suas fastidiosas
partidas de
bridge
, e as damas,
sentadas pelo salão,
se emaranhavam em banais conversações sem
fim:―e Júlia era sempre o par de Nuno, nas valsas...
Uma vez por outra, a colónia da estância balnear
levava mais longe as suas digressões, ia até
Guimarães,
visitando as vélhas igrejas que resplandeciam
das talhas douradas, até às Taipas,
até Braga, seguindo
em automóveis através de estradas cortando
campos onde crescia o milheiral e os feijões se cobriam
de flor, onde verdejavam os linhos tenros, onde
um murmúrio de aragem passava nas messes já
maduras,
procurando as tiras de sombra veludosa e mole
[195]
caindo das árvores que, duma banda e doutra, orlavam
o macadame. Era uma festa para a vista e para
o sentimento dos excursionistas tôda essa larga e
incomparável
paìsagem do Minho, túmida de seivas,
de fôrça, de vigor e duma tam rara e prodigiosa
vegetação. A cada instante se detinham
à beira
duma fonte que gorgolejava no jôrro cristalino das
suas linfas, oferecendo fresquidão e consôlo pelos
dias
tórridos, perto duma levada de água de rega vinda
de longe, rolando pedrinhas alvas, grossos saibros
reluzentes, cantando misteriosamente nas espessuras
discretas dos musgos ou das ervas e transmitindo
uma gloriosa vitalidade às raízes.
Incessantemente
topavam, trotando no cascalho da calçada, as
características diligências que rangiam aos
solavancos,
levando nas imperiais abades rubicundos com
guarda-sóis de paninho vermelho entre as pernas e
dentro tôda uma população em trajos
domingueiros.
No meio do estrépito das ferragens, o cocheiro praguejava,
fazendo estalar o chicote sôbre o lombo dos
cavalos cansados. Os melros assustavam-se pelas
balsas floridas, voando para longe; erguiam-se nuvens
sufocantes duma poeira cáustica e mordente. Às
portas
dos casais que davam para as estradas, sob ramadas
onde as uvas amadurciam, iam acudindo, ao
ruído dos automôveis que fugiam no fio da aragem,
mulheres com grosseiras mãos escondidas debaixo
dos aventais de riscado, crianças em camisa, com ventres
enormes e a palidez de doença na cara suja.
Cães ladravam, ameaçadoramente, por debaixo dos
portões vermelhos das quintas: e a ranchada jovial
dos excursionistas continuava a sua marcha, rindo,
palrando distraídamente. Nuno lembrava-se de que―numa
[196]
destas escapadas
encantadoras, por um meio-dia
de soalheira abrasadora em que foram ver o castelo
de Guimarães, com a sua tôrre de menagem,
os seus fossos cheios de ervas parasitárias, as suas
seteiras,
os seus travejamentos carcomidos―Júlia,
ao passar por um quintal onde um alto damasqueiro,
esgalhando ramagens para todos os lados, mostrava
os seus frutos dourados e penugentos, teve de repente
um desejo guloso de comer damascos; e logo êle, mandando
parar o carro, bateu à porta da granja, pedindo
que lhos vendessem. Imediatamente, uma voz de
mulher veio de dentro, convidando-o a entrar, a escolher,
a fartar-se, porque aquela fruta não se vendia:―dava-se.
―Não quero isso, não quero. Venda-ma...
―Oh! meu senhor, graças a Deus não precisamos.
Olha agora levar dinheiro por uma miséria assim!...―teimou
a aldeã, que era linda e ainda nova,
acudindo ao limiar. Entre, entre...
E reparando em Júlia, que tinha ficado com o
irmão no autómóvel,
a mulher acrescentou:
―E a menina e outro senhor tambêm!... Com
tôda a franqueza!
Por fim, entraram alegremente e merendaram,
com delícia, sob o damasqueiro acolhedor, enquanto
a aldeã, sorridente e com uns dentes brancos brilhando
no seu esmalte entre uns lábios muito vermelhos,
os incitava a comerem mais.
―E podem levar, se quiserem!―oferecia ela.
Chamava-se Maria da Luz, era casada havia
seis anos com um lavrador abastado e já três
criancinhas,
de olhos muito espantados, belas como a
mãe, se lhe agarravam às saias. Nuno, enlevado,
deu
[197]
uma moeda de prata a cada uma, para comprarem
doces.
―Não! Isso é que não!―acudiu a
aldeã, tôda
còrada. Ficava-lhe por bom preço a fruta, meu
senhor!
―Ora essa!―atalhou Nuno. Coitados dos pequeninos,
que são tam simpáticos. Deixe, deixe...
As crianças estenderam a palma das mãos
côr
de rosa, apertaram, muito contentes, as moedas,
enquanto a mãe lhes gritava:
―Então, como se diz?!... Como se diz?!...
Êstes mafarricos que me consomem, não aprendem
a bôa educação nem à
mão de Deus Padre!...
Todos êstes inefáveis episódios duma
época
distante e bem feliz se tinham gravado fundamente
no cérebro de Nuno; e diante de Júlia, que era
sua
espôsa, que era mãe do seu filho, sentia um prazer
infinitamente doce em reavivá-los. O casamento
fôra
combinado ainda em Vizela, ao fim dum curto namôro,
com grande desespêro de Frederico que tambêm
estava nessas termas, que ia espairecendo os seus tédios
entregando-se a um meigo
flírt
sempre novo em
cada dia e que julgava severamente a imprevista evasão,
do amigo, da vida despreocupada de solteiro...
Nas longas horas que agora passavam sós, dentro
de casa, Nuno e Júlia gostosamente evocavam o seu
passado, que era de dois anos―porque apenas começaram
a viver uma existência séria desde que se
conheceram
e se ligaram por laços que nenhuma dor ou
nenhuma fatalidade romperiam―e que lhes pareciam
do dia anterior, tam rápidamente o tempo lhes fugia
sem que êles o percebessem e sem que na sua
emoção
deixasse resíduos de amargura e de tristeza.
[198]
―Tu lembras-te?―perguntava êle, fechando o
livro que tinha nas mãos, enquanto Júlia esquecia
sôbre o regaço a agulha do bordado.
―Lembro!―afirmava ela com um sorriso que
a espiritualizava e transmitia maior encanto à sua
beleza. Lembro-me, como se tudo isso fôsse de
ontem...
―Frederico não queria que eu casasse, dizia-me
horrores da vida conjugal, procurava afastar-me
de ti por todos os processos, teimava em que eu o
acompanhasse numa viagem que tencionava fazer.
Creio mesmo que chegou a ser teu inimigo, o pobre
rapaz...
―Meu inimigo?... Que ideia! E porquê?
―É claro, não te tinha ódio,
não te queria mal,
mas não perdoava à mulher que lhe arrebatava o
amigo de sempre, o camarada, o companheiro... Era
só por isto!
Ah! êsse bom Frederico! Ambos pensavam
um pouco nêle―Nuno com saùdade e com uma
secreta pena daquela vida tam fecunda pela inteligência
e pelo carácter, que se esterilizava, que era
improdutiva, como um pragal áspero em que nunca,
por acaso ao menos, caísse uma semente fértil;
Júlia,
com o encanto, com a afeição que lhe merecia o
homem tam idêntico ao marido pelo
coração, e de
tanta grandeza de alma, de tanta finura de espírito...
―O que fará êle por êsse
Pôrto, neste desabrido
inverno?―interrogava ela.
―Aquilo que todos os rapazes, livres de responsabilidades
caseiras, fazem, naturalmente. Êle
não quis estar connosco, havia coisa que o chamasse,
[199]
que o seduzisse... Mas, ouve! Não sei que singularidade
descobri em Frederico nos últimos dias. Parecia-me
mais desalentado, mais triste do que o costume,
amava a solidão, quáse que me fugia... Apenas
despertava da sua melancolia quando tocavas, no
piano, essas páginas de Schubert que sempre admirou.
―Êle não tinha, para estar alegre, as mesmas
razões que nós temos, bem sabes. É
só, não
ama, não é amado, anda á procura dum
destino que
ainda não encontrou...
―E que não encontrará jàmais.
Aparentemente
enérgico, é um fraco de vontade, sofre de
preguiça
de sentimento, tem os defeitos da raça a que pertence...
―Oh! Nuno! Que severidade!
―Não! Que amizade! Porque eu estimo profundamente
Frederico. Não há alma tam leal como
a dêle, dedicação mais capaz, de
sacrifícios pelas pessoas
a quem se devotar! Mas, minha filha, é incompleto
como eu, como todos nós...
―Como tu?
―Como eu, não digo bem... Frederico foi mais
infeliz...
As horas deslizavam apressadamente, nestas
conversas em que ambos se entretinham e em que
melhor se estudavam... Por vezes, discutiam juntos
o mesmo romance, o mesmo poema, ou então Júlia
ia para o piano e Nuno, de pé proximo dela, ia-lhe
voltando as fôlhas do caderno de música. Nos
momentos de repouso, enquanto a chuva caía,
monótona
e aborrecida, chamavam a ama, que acudia
com a criança ao colo e um grosso grilhão de ouro
[200]
ao pescoço. Júlia pegava no filho, com ternura e
delicadeza,
beijava-o num transporte, amimava-o, passava-o
ao marido, que o embalava nos braços. O pequenino
sorria, com a face cheia de covas, agitando
as mãos, galrando, espalhando por tôda a casa uma
grulhada infantil. Depois, Nuno beijava-o tambêm
longamente, picando-lhe a carinha tenra das faces
com a barba crespa, o que o fazia chorar.
―Dá-o cá! Coitadinho!... Tem mêdo dos
teus
bigodes de turco―dizia Júlia, sorrindo.
―Não! É que é já mais teu
amigo do que meu,
o ingrato...
À noite, em seguida ao jantar, quando a treva
temerosamente afogava todos os aspectos na mesma
confusa massa negra e o sossêgo envolvia a vivenda
com as vidraças douradas pela luz, o criado, o
Manuel, soltava os cães de fila durante o dia amarrados
a fortes cadeados de ferro; as portas do
rés-do-chão
fechavam-se com estrondo; a Francisca, uma
vélha cozinheira, arrumava a cozinha, que ficava
em baixo, que era revestida de azulejos e que se iluminava
com a fulguração dos metais e dos esmaltes
faíscando, relampejando sob o clarão da fogueira.
Os molossos, de afiados colmilhos saíndo-lhes da
bôca babujada como pontas de punhais, latiam, uivavam
no jardim e no parque, à ventania que sacudia
vertiginosamente as árvores; outros latidos ouviam-se
ao longe, vindos das granjas e das herdades;
o pequenino adormecia ao peito farto da ama, ainda
com o bico rosado do seio que o amamentava
na bôca sem dentes, e era levado com mimos e cautelas
para o berço, aquecido antecipadamente com
botijas de água a ferver: e Nuno e Júlia
continuavam
[201]
ainda
os seus serões, conversando, lembrando-se
piedosamente dos pobres que não teriam roupa
nos leitos, por aquele frio, enregelado, hostil inverno,
e experimentando uma ternura doce e secreta no
isolamento rural em que se confinavam com a sua
felicidade―almas satisfeitas e contentes que nada
mais queriam da vida...
Uma vez por outra, o céu desanuviava-se, as
manhãs raiavam límpidas como uma imensa e pura
flor azul que desabrochasse iluminada por um sol
muito louro que dourava os outeiros, os cimos dos
montes, tocava as altas ramarias dos arvoredos dum
fulgor vivo que parecia arder, scintilar no esplendor
da atmosfera. Então, a alegria ressuscitava na
paìsagem soturna como uma ave que, pela primavera,
é de repente surpreendida pela alvorada gloriosa
entre os ramos floridos e começa a cantar sob
o mistério celeste de que vitoriosamente desce a luz.
Envolvidas pelo banho fulvo da claridade, as próprias
coisas inertes pareciam impregnar-se de alma,
davam a ilusão de serem dotadas de movimento. Errava
no ar uma beleza esparsa; as perspectivas, na
nitidez do ambiente, prolongavam-se indefinidamente,
cheias de poesia e de vago. A vivenda, elevando-se
no meio do jardim, com as suas grossas paredes,
as suas varandas, os seus telhados de largo beiral
onde as pombas arrulhavam em certos instantes, as
suas escadas de pedra com grades de ferro pintadas de
verde, em que as roseiras de trepar se enroscavam,
animava-se tambêm com o júbilo triunfal daquela
festa da natureza. Mais satisfeitos e expansivos, os
criados palravam na cozinha, à volta da mesa do
almôço.
[202]
Uma temperatura morna que fazia inchar os
gomos das árvores e das madre-silvas dos valados―que
em maio se cobriam de florações e ofereciam
embalo e perfume aos ninhos inocentes―convidava
aos lentos, agradáveis passeios. Nuno, sentindo o
coração desopresso e ligeiro, corria a levar a
Júlia a
bôa nova, em palavras comovidas e risonhas, interrompendo-a
no seu trabalho.
―Que linda manhã, meu amor!―exclamava
êle. Vem daí! Faremos uma pequena
digressão pela
quinta... Até nos abrirá o apetite e nos
renovará a
saúde. Ao mesmo tempo, desentorpeceremos as pernas
emperradas por tôda uma semana de cativeiro.
―Pois vamos!―concordava ela com júbilos
e ingenuìdades quáse infantis. Gosto tanto de
passear matinalmente!
Animada e sorridente, Júlia vestia a tôda a pressa
um casaco de agasalho, calçava as galochas sôbre
os pequeninos sapatos de verniz, punha na cabeça
um gorro de lã branca, feito por ela nos seus
serões,
e saíam ambos, de braço dado, aspirando o cheiro
acre da terra molhada, internando-so pelas sombrias
e ermas alamedas do parque onde as mimosas começavam
a florir na pompa dos cachos de ouro pálido, tremendo
brandamente à aragem e a que o sol imprimia
mais brilho e côr, desciam, por caminhos empedrados,
às terras de cultivo já verdejantes de pastos
para
o gado, dos trêvos, torneavam as extensas vinhas que
enchiam tonéis, em setembro, dum vinho aromático
e leve, passavam pelos vergeis bem tratados onde,
em abril, as pereiras, os pessegueiros e as macieiras
vergavam de florescências multicôres que lembravam
irisados enxames de borboletas levantando vôo, e
[203]
paravam, enfim, diante da habitação destinada ao
caseiro e que era o orgulho de Nuno.
―Vês tu o que se fez, hein? E a planta foi
minha. Para alguma coisa havia de servir-me o curso
de engenheiro. O vélho Mateus está aqui
óptimamente
instalado com a sua gente―dizia êle. Não
parece?
Júlia aprovava, com um gesto afável da
cabeça,
enquanto Nuno minuciosamente lhe ia fornecendo
mais indicações:
―Aqui―explicava êle―é a casa de moradia;
alêm, ficam os estábulos para os bois, os currais
para os porcos, os alpendres para a guarda dos
apetrechos de lavoura... Dêste lado, mandei construir
as adegas, a eira, o espigueiro e os celeiros. Que me
dizes a tudo isto? Olha que foi obra minha!
Na graça luzente da manhã, as paredes caiadas
de branco alvejavam sob o tom vermelho dos telhados.
Ao fundo, para lá dos terrenos agricultados,
rumorejavam pinheirais e cresciam os matos aromáticos
que o rosmaninho, no estio, pintalgava de manchas
rôxas. Júlia, enlevada, contemplava o marido
com ternura, afagava-o com o olhar.
―E agora―continuava Nuno, depois de terem
avançado mais alguns passos―aqui está o grande
tanque que me deu que entender e em que tanto
te falei, durante todo o verão findo, não sei se
te
recordas.
―Recordo!―afirmava ela.
―Servirá de reservatório das águas de
rega
que fui buscar longe, por meio dum cano, à encosta
daquele monte de pinheiros. Oh! é uma água
maravilhosa,
muito pura, filtrada por camadas sobrepostas
[204]
de rocha, e saibro grosso. Quando, nos dias quentes,
a colhia para beber, o copo ficava logo nevado. É saborosa
e frigidíssima. Porque não mandas a Francisca
buscá-la à bôca da mina para o nosso
chá? Ando há
tanto tempo para dizer-te isto e esquecia-me sempre!...
―Está bem, mandarei―prometia Júlia.
―Pois, essa água corre para êste tanque. Quando
se quiser regar, é só soltar a levada e ei-la por
êsses campos, fluindo, fecundando, dando alento às
plantações e às sementeiras!
―O que tu sabes já das lidas agrícolas,
Nuno!―exclamava
ela com admiração.
―Minha filha, tem-se estudado um pouco o
pelo processo prático, que é ainda o
melhor―respondia êle,
jovialmente. O meu verão, êste ano, foi
útil!
O caseiro, o tio Mateus, se os pressentia, vinha
logo para êles, de chapéu na mão, com o
seu rosto
enrugado que o bom riso sadio, vindo da alma, espiritualizava
de bondade, cumprimentando-os respeitosamente.
Nuno correspondia ao cumprimento,
murmurando:
―Olá! É você, Mateus?
Então, como vão os
trabalhos, homem?
―Crédo, meu senhor! Com êste inverno de
desgraça
e de castigo, nada se pode fazer. Tudo parado.
As terras estão encharcadas, são lama...
―Não que tambêm nós nunca nos
contentamos
com o que temos. Se o bom tempo e o calor se prolongam,
pede-se, implora-se chuva com preces, orações,
lágrimas. Afinal, chega ―Não que tambêm nós nunca nos
contentamos
com o que temos. Se o bom tempo e o calor se prolongam,
pede-se, implora-se chuva com preces, orações,
lágrimas. Afinal, chega a chuva, e a humanidade
sempre insatisfeita de novo deseja sol. Deus deve
[205]
ver-se e desejar-se com pedidos tam contraditórios,
não é verdade, tio Mateus?―perguntava Nuno
alegremente.
―Deus é sábio, é justo, sabe o que
faz, meu senhor―replicava
o caseiro, rindo. Mas tudo se quere
em conta. Nem muito ao mar nem muito à terra.
Assim é que é...
―E a doente está melhorzinha?―inquiria
Júlia.
―Melhor, coitadinha?... Vai vivendo!... As
melhoras dela só na cova. E tanto tem sofrido!...
―Não fale dêsse modo, tenha
esperança...
―Pois esperança tenho eu. Esperança e
paciência,
que ela tudo merece―concluía êle, com voz
enternecida e trémula.
Comovida, Júlia fitava-o; e êle, para desviar o
rumo da conversa, que o fazia sofrer, acudia:
―Então, hoje a passear?
-Com êste bom sol, não podíamos ficar
fechados―dizia
Nuno.
―Está de rosas, meu senhor, de rosas!...
Demoravam-se ainda a tagarelar por alguns
instantes e depois; vagarosamente, regressavam a
casa, na imensa paz que envolvia a natureza e que
baixava sôbre árvores, lameiros, casais e selvas,
como
uma bênção. Voltavam joviais, traziam a
alma dilatada
de encanto. Como o inverno era lindo na aldeia!
Na cidade, os grandes espectáculos naturais passavam-lhes
despercebidos na agitação das atormentadas
aglomerações humanas, nas atmosferas toldadas
de fumo.
―Aquele Frederico, aquele doido!―bradava
Nuno. Podia ter ficado aqui connosco, a fazer um
[206]
severo exame de consciência, a rejuvenescer. Era
uma companhia e purificava o sentimento que agora
talvez traga pelos boeiros citadinos!...
―Jesus, Nuno! Que expressões tam duras!―repreendia
Júlia.
―Sim! Pelos boeiros, pelas sargêtas. É assim
mesmo. Hei de dizer-lho com esta ferocidade, numa
carta terrível... Enquanto que aqui era a luz, era a
pureza...
Lavavam-se, almoçavam com saborosas lentidões,
conservavam-se à mesa por muito tempo, conversando.
E à tarde, ainda tornavam a sair, atravessando
pousios, congostas entre sebes, visitando a
aldeia próxima, com um interêsse, uma curiosidade
que nunca findava...
Um dia, logo ao romper da manhã, a ama foi
tôda aflita bater à porta do quarto, chamando
Júlia.
―Que quere?―perguntou, ela, de dentro.
―Era para contar à senhora uma coisa a respeito
do menino, que não está bom.
―Que diz você, mulher?...―gritou Júlia,
com voz angustiada. Tu ouves isto, Nuno?...
Saltou da cama, vestiu um roupão, calçou as
chinelinhas de setim côr de rosa, bordadas a branco
e ouro, que estavam sôbre o tapête, e correu logo,
assustada, inquieta, enquanto o marido, alarmado, se
levantava tambêm, vestindo-se atarantadamente.
―Que tem o menino?―perguntou Júlia, abrindo
a porta da alcôva. Onde está êle, onde o
deixou
você?
[207]
―Deitado no berço... Está um pouco
desassossegado...
Júlia dirigiu-se ao quarto da ama, que ficava ao
lado do seu, entrou desvairadamente, fóra de si, sacudindo,
com irritação nervosa, as madeixas do cabelo
solto que lhe caíam sôbre a testa, ajoelhou junto
do berço da criança que ergueu carinhosamente nos
braços. Encostou-lhe a cabecinha inocente e desfalecida
à sua face, amimou-a, passando-lhe levemente
as pontas dos dedos pela carne tenra do rosto, murmurando
com indizível ternura:
― Está doentinho, o meu amor?... Está?!...
Afastava-o de si, amparando-o com as mãos
amorosas, para melhor, mais demoradamente o observar,
espreitando, comovida, os seus olhos amortecidos
com um círculo arroxeado à volta, e achava-o,
na verdade, mais pálido, mais abatido.
―Oh! minha Mãe Santíssima! Mas isto que
será? Como notou você a doença do meu
filho, ama?
―É que, durante a noite, tossiu algumas vezes,
minha senhora.
―Tossiu?―perguntou Júlia, aflita. E a tosse
era rouca?
―Pois era!...
―E porque nâo foi logo avisar-me?
―Pensei que não seria nada!...
Nuno, que tinha acudido tambêm, curvou-se
sôbre o ombro de Júlia, envolveu o filho num olhar
de inquietação e de meiguice, inquirindo:
―Afinal, o que tem? Parece-me tam tranqúilo!...
―De-pressa, Nuno! Manda já um criado a
Guimarães, a procurar um automóvel fechado.
[208]
Que vá a cavalo... E que se não descuide. Temos
de
partir imediatamente para o Pôrto.
―Um automóvel?... Partir imediatamente
para o Pôrto?―interrogava Nuno, maquinalmente,
Mas espera!... Dize...
-Depois te digo... O criado que vá sem pêrda
de tempo... O nosso filho tem uma tosse rouca. Sabes
o que é?... Não sabes? É a difteria,
é talvez a
morte...
Nuno, empalidecendo, abalou, enfiado, pelo corredor,
desceu a quatro e quatro os degraus da escada,
gritou:
―Manuel! Manuel!... Onde estás tu?
―Aqui, patrão!―respondeu o servo, saindo
dum canto e trazendo nas mãos um pedaço de
camurça
com que estava limpando e polindo metais.
―Pousa o que estás a fazer, monta na égua e vai
a Guimarães, onde procurarás um
automóvel fechado,
por todo o preço. Que venha a tôda a velocidade.
É
um caso urgente.
―Sim, meu senhor.
―Mas vai! Deixa-te de cumprimentos, de
mesuras, que diabo! Se te estou a dizer que é urgente!...
O criado desapareceu de pronto, e Nuno, desorientado,
ficou na cozinha, passeando agitadamente, a
largos passos, sôbre os mosaicos. Justos céus! A
difteria!
O seu filho tinha a difteria. Êle havia de assistir,
impotente, longe de todo o socorro da sciência, ao
lento agonizar dum corpinho sem culpa em cujas
veias corria o seu sangue, em cuja alma inocente se
fundia tambêm a sua alma! Havia de vê-lo asfixiar,
com o rosto congestionado, os olhos saltando
[209]
fóra das órbitas, sacudido por
convulsões horríveis
e sem poder acudir-lhe! Era terrível, terrível!
Do seu coração de pai subia urna grande,
avassaladora
cólera, contra tudo e contra todos. Que mal faria
aquele pobre sêr de castidade e de luz que nem
sequer conhecia a vida e que tam cedo começava a sofrer
dos seus males inevitáveis para que fôsse
submetido
a uma tal tortura?... Esquecia-se de Júlia que
em cima soluçava, andava dum lado para o outro,
mudo, sombrio, puxando as barbas, arrepelando-se.
―Que foi, meu senhor? Que desgraça aconteceu?―perguntou
a cozinheira, que o contemplava,
assustada, encostando-se ao fogão ainda apagado.
―Um horror, Francisca. Um verdadeiro horror.
O menino está muito doente.
―Santo Deus!―exclamou ela.
―E temos de ir já para o Pôrto, a senhora,
o doente, a ama, eu e tu. O Manuel e as outras criadas
ficam ainda a pôr tudo em ordem, e seguirão mais
tarde. Arranja as coisas, despacha-te.
Subiu, novamente, a escada como um autómato,
governado mais pelo instinto do que pela
inteligência. O padecimento alheio sempre o tinha
perturbado; mas agora o de seu filho era-lhe atroz... Sentada
numa cadeira de braços, com a criança aconchegada
ao peito, Júlia chorava silenciosamente. As
lágrimas caíam-lhe fio a fio dos olhos. Perto
dela, a
ama repetia sem descanso:
―Uma destas, uma destas!...
Nuno parou diante da espôsa, revolvendo com
as mãos chaves que tinha no bôlso, entalado, sem
poder
articular as palavras, sem saber como havia
de consolar aquela dor inconsolável.
[210]
―Que desventura a nossa, que desventura!...―gaguejava
Júlia.
―Mas tranqùiliza-te, por Deus! Pode ser que
a doença não valha nada, que te enganes―acudiu
êle, por fim.
―Tenho um pressentimento funesto! E olha
que as mães nunca se enganam.
E voltando-se para a ama:
―Pegue no menino, mas com cuidado... Vou-me
arranjar. E veste-te tambêm, Nuno, para estares
pronto.
-Sim, menina!...
Uma hora depois, um automóvel parava, em
baixo, junto do portão do jardim. Nuno chamou as
criadas, deu-lhes ordens para elas transmitirem a
Manuel, mandou que, depois de tudo arrumado, seguissem
para a casa do Pôrto e entrou no carro com
Júlia―que conduzia o filho ao colo, muito embrulhado,
agasalhado em lãs quentes―com a ama e com a
cozinheira, dizendo ao
chauffeur
que, até Guimarães,
largasse com a maior velocidade.
Estava uma cinzenta e fria manhã ameaçando
chuva. Pelos altos montes, por vales tristes e planícies
monótonas, a paìsagem azulava-se no ar
baço. Um
vento glacial sacudia os ramos das árvores. Nuno e
Júlia nem sequer olhavam para fóra,
através das
portas de vidro do automóvel, concentrados como
iam no seu sofrimento.
Em Guimarães, procuraram alvoroçadamente um
médico, que logo os tranqùilizou, com um sorriso,
acabando de observar o pequenino enfêrmo. Não era
caso para sustos―afirmou.
―Oh! doutor! Quanta alegria nos dá!...―interrompeu
[211]
Nuno, avançando
para êle e
apertando―lhe
efusivamente a mão.
―Mas não é a difteria?―perguntou
Júlia,
ainda duvidosa. Êle tem tosse rouca!
Não! Não era a difteria―asseverou o
clínico,
já vélho e ageitando os óculos de aro
de ouro sôbre o
nariz. Uma simples bronquite sem complicações que
a tornassem de mau carácter. Curava-se com resguardo,
num compartimento em que não houvesse
oscilações
de temperatura, e com a aplicação de revulsivos
externos.
―Vês, Júlia?―disse Nuno. Não
é nada de
cuidado. Eu bem o dizia.
―O alarme desculpa-se nas mães... É tam
natural!―exclamou o médico.
―E até podíamos voltar para trás,
continuarmos
a nossa estada na aldeia.
―Não!―replicou Júlia com firmeza. Para
trás, não voltaremos. Já que estamos
aqui, seguiremos
para o Pôrto. Não ficaria sossegada.
-Pois, como quiseres...
O médico receitou, deu instruções;
Nuno pagou
a consulta generosamente. Despediram-se e reentraram,
mais calmos, no automóvel, continuando a
viagem―através
de estradas, de campos melancólicos,
de bosques que rugiam à ventania―para o Pôrto,
onde chegaram de tarde e já com uma chuva desabrida
fustigando as casarias, alagando, encharcando
as ruas negras duma lama viscosa, quáse líquida.
Moravam em Costa Cabral, numa vélha casa
apalaçada
de dois andares feita no gôsto arquitectural das
antigas vivendas portuguesas, e que todo o verão estivera
fechada. Foi um reboliço na habitação
deserta
[212]
e cheia de treva. O automóvel largara velozmente,
e, enquanto Júlia, com o filho nos braços,
procurava,
no átrio imerso em escuridão, uma cadeira para
sentar-se, Nuno, a ama e a cozinheira, abriam portas
e janelas com alarido, para que a luz diurna entrasse
e desse vida e alegria ao casarão ermo.
Outros médicos vieram e receitaram, nesse
mesmo dia, serenando temores sem motivo. A pouco
e pouco renasceu a confiança na alma de Júlia e
de
Nuno que, todo ocupado com a sua reinstalação
inesperada
no palacete da cidade, não saía, lidando
activamente,
dando ordens, substituindo na vivenda a
espôsa que não deixava, ainda atribulada, o leito
da
criança. E agora, outra vez no Pôrto, outra vez na
sua morada citadina, sentia-se bem, entre mobiliários
que conhecia e que considerava como amigos vélhos,
entre paredes a que se afeiçoara, no meio dum ambiente
de quietação em que vivera desde a
infância,
em que morara, a que tantas recordações
inolvidáveis
andavam presas. Novamente a felicidade entrava
na sua alma, na alma de Júlia, que assistia amorosa
e risonha à convalescença do filho. A nuvem
agoureira
passara, dissipara-se inteiramente. Já se encontravam
outra vez reconciliados com a vida que, por
momentos, os amargurara.
―É verdade, Júlia―dizia uma noite Nuno.
Sabes de quem me lembrei agora, repentínamente?
Foi de Frederico! Ainda nem sequer apareceu!
―Pois tu não tens saído, nem sequer lhe
escreveste!
De-certo que ignora o nosso regresso. Ninguêm
o sabe, alêm dos vizinhos... E pode ser até que
não
esteja no Pôrto...
―Ah! não! Não deixaria a cidade sem me avisar...
[213]
E estou zangado
com êle―concluiu Nuno,
risonhamente. O coração dum verdadeiro amigo
devia
adivinhar. Serei duro, quando o aviste. Há de
ouvi-las bonitas...
Fóra, na rua, os candeeiros de
iluminação pública
chamejavam ao vento, sob um céu acarvoado.
A patrulha da guarda deslizava como uma sombra,
sem ruído. A aglomeração das casarias
ia adormecendo
no silêncio nocturno...
IX
Frederico sentia-se cada vez mais esgotado de
energias, mais fraco de vontade, à medida que se gastava
nos delírios da paixão carnal, nos desvairamentos
duma existência que nem sequer procurava já
equilibrar,
porque a vida, para êle, perdera todo o interêsse.
À sua excitação física, de
dia para dia mais
intensa, correspondia um desfalecimento moral que
constantemente se agravava, debilitando-lhe o carácter,
secando-lhe as fontes criadoras de sensibilidade.
Convencido da sua própria impotência, trazendo no
peito um coração árido, invadido por
uma dolorosa
melancolia que só os acessos da sensualidade, em horas
letais de luxúria, conseguiam dissipar por momentos,
levava uma existência desregrada de prazeres de
tôda
a sorte, em que a luz da sua própria inteligência,
tam
lúcida outrora, principiava a vacilar. Contudo,
conservava-se
no seu sentimento alguma coisa que não
[216]
queria morrer, que era vivaz, persistente, que se
obstinava em persegui-lo, empurrando-o violentamente
para as maiores loucuras:―o seu amor por
Júlia. Era uma obcecação, uma ideia
fixa que o aguilhoava
sem repouso, por mais que pretendesse esquecê-la.
Temendo que o isolamento, a solitude, exacerbassem
essa adoração perversa e abominável,
que o
enxovalhava sempre que espreitava, espavorido, a
própria consciência, freqùentava os
teatros e o jôgo
assíduamente e perdia grossas quantias com absoluta
indiferença, porque apenas desejava aturdir-se: arranchava
a comesainas tumultuosas com os amigos e ía
depois, exaltado pelo alcool, passar a noite com Branca,
que definitivamente se apossara dêle e que Frederico
considerava como um mal necessário ao apaziguamento
da sua tortura, como uma ilusão mentirosa
de que derivava, para a sua inquietação
permanente,
um pouco de tranqùilidade. Os seus nervos enfermos
careciam daquela mulher, como certos doentes
carecem de venenos para adormecer uma dor
fulgurante que os angustia. Consagrava-lhe por isso
reconhecimento em vez de ódio. A casa em que a tinha
instalado, com riqueza e luxo, era para êle, nas horas
de maior atribulação, o logar que uma
graça consoladora
habitava. Nestes momentos devastadores, submisso
como um crente, pousava sôbre a fronte doce e
pálida de Branca um beijo quáse religioso, que
ela
lhe agradecia com um sorriso inexpressivo.
Em certos instantes mais calmos, porêm, quando
podia observar-se com lucidez, julgava-se serenamente,
acusava-se de se estar aviltando e praticando
uma infâmia, procurando apagar com a febre
duma lascívia brutal a recordação dum
amor puríssimo.
[217]
Alarmado,
cheio de remorsos, entregava-se
a longas cogitações, tentando encontrar uma
explicação
para aquela anormalidade. Que natureza vulgar
ou grosseira era a sua que, em vez de ter uma
origem de inspirações divinas na
paixão amorosa mais
elevada que até aí o fizera vibrar, tinha nela,
afinal,
só um estímulo que o impelia para as
abjecções
deprimentes? Como é que o amor por Júlia
não iluminava
a cegueira da sua alma, o não sublimava de
tôdas as imperfeições terrestres? E
seria, na verdade,
amor o que por ela sentia ou apenas um desejo bestial:―o
desejo do seu corpo tam perfeito, da sua
carne esplêndida, da sua beleza perturbante? Duvidava
da sua sinceridade, e sofria mais amargamente
por esta dúvida.
O entusiasmo que a ideia duma demorada viagem
pelo estrangeiro nêle despertara, em breve arrefeceu.
Não manifestava curiosidade por nada: a
alegria de viver havia fugido do seu espírito: e pensava,
com terror, na perspectiva de sair de sua casa,
do seu país, para meter-se, com um monte de malas,
em combóios que rolassem monótonamente por terras
desconhecidas, para viver na barafunda dos hoteis,
entre multidões indiferentes e egoístas. Que
enorme alteração tudo isto representaria para os
seus hábitos rotineiros, que fadiga mesclaria ao seu
cansaço e que tédio juntaria ao seu
aborrecimento!
E, afinal, para quê? Que lucro positivo tiraria êle
duma vagabundagem a outras nacionalidades habitadas
por povos diversos do seu? Não lucraria nada!
De resto, só se deve viajar em absoluta serenidade
espiritual, em pleno contentamento de alma: e Frederico
não possuia nem essa serenidade nem êsse
[218]
contentamento essencial. Não! Não abandonaria o
Pôrto. Neste burgo se iria definhando, consumindo,
aniquilando!...
Às vezes, Branca, abraçando-o, amimando-o,
com carícias em que se não escondia o frio, a
secura,
o desinterêsse, relembrava-lhe a promessa que Frederico
lhe fizera de a levar ao estrangeiro. Gostava tanto
de ir a Paris! Ai! Paris era a sua ambição! E,
para o convencer, apontava-lhe exemplos de rapazes
com dinheiro que tinham ido com as amantes,
numa jovial jornada, por essa Europa fóra.
―O Gusmão, por exemplo! Levou a Adriana.
―O Gusmão?―inquiria Frederico. Quem
é êsse Gusmão?
―Ora! Tu conheces!... Um trigueiro, de grandes
bigodes, que tem um lindo automóvel e que vive
aí para os lados de S. Roque. Há quantos anos
êle
pôs a Adriana por conta! É como se
fôssem casados.
Aquela sim. Está de grande!...―terminava Branca,
fazendo beicinho.
―Pois tambêm tu hás de ir ver a Europa, sossega.
Mas mais tarde... Por enquanto, não posso.
Preciso primeiro de deixar umas coisas em ordem―afirmava
êle, sentando-a nos joelhos e passando-lhe
um braço à volta de pescoço.
―Sim, sim! Bem acredito eu nisso!...
―Não acreditas!... Olha para mim... Mas olha
bem de frente. Dize lá. Eu tenho cara de quem mente?...
―Não quero dizer que mentes...
―Então, que queres dizer?...
Ela não respondia, fazia-se mais amáv
Ela não respondia, fazia-se mais amável entre
os seus braços, pousava-lhe a cabeça no ombro,
muito
[219]
terna, muito quebrada, com geitos estudados e pieguices;
e Frederico, perturbado, beijava-a furiosamente,
exclamando:
―De resto, para sermos felizes, não precisamos
de sair daqui...
Uma noite, de volta do teatro Sá da Bandeira,
onde fôra ver uma revista deplorável, sem
vivacidade,
sem espírito, sem arte, maculada por ditos e
situações
lúbricas, encontrou na rua o jovial Paiva que passava,
muito embuçado, rente às paredes.
―Pára aí, criatura―bradou Frederico.
Há
quanto tempo te não vejo!...
―Oh! menino! Pois és tu?―respondeu Paiva.
Cumprimentaram-se, trocando um demorado apêrto
de mão.
―Para onde diabo vais, a esta hora e com
tanto mistério, Paiva magnífico?
―Vou para o namôro.
―Para o namôro?...
―Sim! Um caso de sentimento, uma inclinação
irresistivel, com diálogos de janela, noite alta―porque
o pai é austero―com estrêlas que se contemplam
tristemente, com suspiros. Coisa muito
séria.
―Oh! Paiva! Tambêm tu?
―É verdade, grande Frederico. Tambêm eu!
Que queres? Assim acabam todos os românticos.
E adeus, filho. Não posso demorar-me. Já vou
tarde. A pequena espera-me... Olha! Aparece qualquer
dia, para conversarmos. Depois te direi tudo.
―Vai! Sê pontual como Romeu. Não faças
sofrer com a tua ausência os corações
ingénuos.
Partiram cada um para o seu lado, em sentido
[220]
oposto;
mas, apenas Frederico tinha dado alguns
passos, Paiva, voltando-se de repente, chamou-o
aproximando-se novamente dêle:
―Ouve lá, ó Frederico... Ia-me esquecendo...
Tu sabes quem está no Pôrto, chegado há
seis ou sete
dias?
―Não sei. No Pôrto está tanta gente!
―Pois, é Nuno, o teu amigo Nuno.
―O quê?―bradou Frederico, sobressaltado.
Nuno? Não pode ser.
―E porque não pode ser? Se eu te estou a dizer
que está! Vi-o esta manhã na Praça da
Batalha.
Vinha do correio... Parámos um momento a palestrar.
Até êle me perguntou por ti.
―Essa agora! Nuno no Pôrto! E sem me dizer
nada!
―Como não te disse nada? Tu é que lhe foges,
ao que parece. Já te procurou em casa e não te
encontrou.
Deixou-te uma carta urgente e não lhe
respondeste! Foi o que êle me asseverou, e até um
pouco ressentido... Aparece-lhe! Escreve-lhe... E
adeus!
Com efeito, havia uma semana que Frederico
não ia a casa. Branca retinha-o, no seu leito de amante,
uma parte da noite e uma parte do dia, porque
só muito tarde, às vezes de madrugada, lhe batia
à
porta, de regresso das estúrdias ou das bancas de
tavolagem com a roupa em desalinho, o olhar vago
e ardendo dum brilho especial, numa secreta e áspera
revolta contra si próprio. Ficava tôda a
manhã
deitado, dormindo com as mãos fechadas junto da
cara, a pele humedecida por uma transpiração
álgida,
agitado de sonhos pavorosos. Quando o sol ia já
[221]
muito alto, entrando no quarto em feixes de raios
difusos e rutilantes e inundando móveis, cortinados e
tapêtes com a sua dourada cabelugem que faíscava,
lampejava nos espelhos, Branca acordava-o, sacudindo-o
com fôrça, chamando-lhe dorminhoco, tirando a
roupa da cama, entre gargalhadas. Frederico espreguiçava-se,
bocejava. Ela, de
robe-de-chambre
de
sêda,
cabelos soltos e despenteados caindo-lhe pelas costas,
um ar petulante e vicioso que punha uma desagradável
mácula na sua meiguice mas que a tornava
mais picante, aninhava-se nas tapeçarias que alcatifavam
o soalho, rolava a cabeça na beira do leito com
lentidões de gata amimada, ria-se da moleza de Frederico,
fazendo-lhe momices que êle repelia, enfastiado.
Sempre que despertava dos seus desvairos
sensuais, sentia um desgôsto muito fundo pela
miséria
moral em que ia resvalando rápidamente, sem
coragem para romper com torpezas o reentrar numa
existência honesta. Branca amuava, dizia-lhe que
êle já a não amava, que estava morto
por desfazer-se
dela, falava em morrer.
―Mas, vê lá! Se me queres deixar, confessa-o
francamente!―acrescentava.
Frederico irritava-se, chamava-lhe douda, saltava
do leito, tomava banho, vestia-se, reconciliando-se
com Branca; e, então, volvidas horas de
repouso que êle aproveitava para ler os jornais, para
folhear revistas estrangeiras ilustradas, almoçavam
muito juntos na pequenina sala de jantar que as jarras
de flores aromatizavam, o papel claro das paredes
alegrava e a que os mobiliários caros davam
confôrto,
elegância e beleza ornamental. Pelos aparadores
scintilavam pratas e reluziam porcelanas; de
[222]
grandes pratos cheios de fruta madura exalavam-se
arômas aperitivos; os cristais irisavam-se à luz;
e
Frederico achava então um certo enlêvo naquela
vida
comum, parecia-lhe que tinha um lar, uma companheira
solícita, que possuia no mundo uma alma para
quem a sua personalidade não era estranha. Muitas
vezes, jantava mesmo com Branca, saindo à noite
para as suas vadiagens, que se prolongavam até horas
mortas. Seis dias seguidos assim foram deslizando,
sem que êle se lembrasse, sequer, de ir a sua casa.
E por isso Nuno o não encontrara, por isso não
tivera,
mais cedo, notícias do imprevisto regresso do amigo ao
Pôrto―regresso de que só por acaso havia sido
informado...
Enquanto caminhava pelas ruas já desertas
e cheias de sombra, perdia-se em suposições. Nuno
dissera-lhe que passaria o inverno na aldeia, quando
se separaram, e voltara a afirmar-lhe, em carta, êsse
propósito. Que facto, grave certamente, o teria feito
mudar de tenções? Aborrecimento da monotonia
rural,
da solidão rústica? Saudades da
animação, da
sociabilidade citadinas? Não! Nuno não era
mundano,
abominava as exibições, os convívios
banais.
Taciturno, misantropo, já na sua mocidade só
estava
bem com uma ou duas amizades mais íntimas à
sua roda. Depois que se casara, meteu-se dentro da
sua vivenda e da sua felicidade, sequestrou-se de todo,
gostosamente, às curiosidades indiscretas da rua e das
salas. Que razão forte, que motivo imperioso, o teriam,
pois, desalojado da solitude campestre, obrígando-o
a refugiar-se no Pôrto?
―E se Júlia adoeceu?―monologou Frederico,
invadido por um sobressalto repentino.
[223]
Uma comoção dolorosa apoderou-se de todo o
seu ser; sentia um fundo mal-estar interior, uma angústia
que o atordoava, que lhe apertava o coração,
que o constrangia. Com efeito, aí estava a
explicação
da volta de Nuno ao Pôrto. Não podia ser
outra! Naquele momento, a mulher que êle amava
com infinita doçura, sofreria, queimada pela febre,
ir-se-ia fanando na sua beleza viçosa, na gentileza do
seu encanto supremo, enquanto Nuno, apreensivo,
assistindo transido a uma dor que não podia sarar,
nem ao menos tinha ao seu lado alguêm que o confortasse,
que lhe desse esperança.
―Com certeza que Júlia está doente!―pensava
Frederico.
Um relógio dava, ao longe, duas horas. Era-lhe
impossível correr a casa de Nuno, bater-lhe à
porta,
alarmar tôda a vivenda, para saber o que havia;
mas êle tinha-lhe escrito e, naturalmente, nessa carta,
contava-lhe tudo. Então, dominou-o, espicaçou-o o
desejo de chegar de-pressa à sua
habitação, que ficava
ainda distante. Acelerou o passo. Ao dobrar duma esquina,
um vulto de mulher sumido dentro do chaile
cruzado no seio, saindo repentinamente da sombra,
disse-lhe em voz baixa e ofegante qualquer coisa que
não entendeu. Tirou do bôlso uma moeda de prata e
meteu-a numa lívida e magra mão que para
êle se
estendia com um gesto rapace de garra. Mais adiante,
um polícia embuçado no seu capote fumava
encostado
a um candeeiro. Sôbre as casarias pairava
uma ligeira névoa. A cidade dormia profundamente...
Uma tipóia surgiu, rolando lentamente na calçada.
Frederico fez um sinal ao cocheiro, que esticou
as rédeas e se endireitou na boleia, exclamando:
[224]
―Pronto, meu patrão!...
Os cavalos, extenuados e de cabeças pendentes,
estacaram. Frederico abriu a portinhola, entrou de
salto.
―Para onde quere que o leve?―perguntou
ainda o cocheiro.
Indicou o bairro e o número do prédio em que
residia e o carro partiu logo, mais velozmente, ao estalar
sêco do chicote. As ferraduras dos cavalos, batendo
violentamente nas pedras, levantavam faúlhas
de lume que scintilavam um momento para
em seguida se apagarem. Devorado de impaciência,
Frederico, de quando em quando, espreitava através
das vidraças e apenas via ruas esgueirando-se na
sombra, fileiras monótonas de casas, algumas ainda
com luzes agonizando por detrás de
stores
descidos
nas janelas dos segundos andares.
―Como é triste uma grande cidade erma a horas
avançadas da noite! E essa tristeza envelhece a
gente!―meditava.
E o maldito carro sem chegar ao fim daquela
corrida que o estava atormentando! Batia nos vidros
da frente, com os nós dos dedos para que o cocheiro
fizesse galopar os cavalos mais apressadamente. Parecia-lhe
que já há muito tempo rolava, aos solavancos,
dentro daquela caixa fechada e sem ar, através
do burgo solitário, e isto excitava-lhe os nervos... Por
fim, o carro deteve-se de repente. Frederico,
olhando para fóra, reconheceu o seu retiro, a sua vivenda;
saltou para o passeio, deu uma gorda gorgeta
ao cocheiro que tirou o chapéu agradecendo, sacou do
bôlso um mólho de chaves niqueladas, abriu a porta
e sumiu-se na treva. Depois, raspando um fósforo,
[225]
subiu ligeiramente a escada, procurando não fazer
barulho para não despertar o criado que dormia, entrou
no seu escritório, acendeu o gás que ardeu num
leque de luz dentro da tulipa de cristal, sibilando em
surdina, e olhou para cima da larga mesa de pau preto
em que escrevia. Lá estava a carta de Nuno, efectivamente.
Logo a reconheceu pela letra que negrejava no
enveloppe
―uma letra de
traços finos e firmes em que
se denunciava alguma coisa do carácter do amigo―a
sua franqueza, a sua energia, a sua vontade sem
hesitações. Rasgou o sobrescrito com frenesi,
como
se êle representasse um forte obstáculo com o
poder de
lhe demorar ainda durante muito tempo o conhecimento
duma verdade que queria saber imediatamente
e logo encetou a leitura. Nuno, como pensara, dizia-lhe
o motivo do seu regresso à cidade, informava-o,
com pormenores, da doença do filho, já curado, do
susto que tiveram, êle e Júlia, na aldeia, quando
julgaram a criança atacada de difteria e da sua
viagem por um hostil, bravio dia de chuva açoutando
em bátegas o automóvel. Terminava, pedindo-lhe
que o fôsse ver, que lhe désse ao menos
notícias
suas.
«―O Porto―escrevia Nuno
irónicamente―é
uma terra tam pequena que tôda a gente se conhece
uma à outra. Pois bem; há três dias que
te procuro
por praças e cafés, logares onde se dá
à língua,
no boletim mundano dos jornais, e―parece impossível!―ainda
te não encontrei, como se tu fôsses
la Belle au bois
da lenda e se da lenda e se
tornasse necessário penetrar
numa vasta floresta encantada para chegar
junto de ti! Aparece. Tanto eu como Júlia, que
está mais nutrida, que lucrou imenso com a sua
permanência
[226]
na aldeia, gostaríamos de ver-te por
esta
casa que é tua.»
Acabando de ler a carta, Frederico respirou.
Júlia não estava doente, não ocorrera
na existência,
tam calma, tam feliz, tam igual do marido, nenhuma
fatalidade irremediável, nenhum perigo ameaçava
criaturas a quem a sua alma era dedicada. Fez-se a
paz no seu sobressalto emotivo. Dobrou a larga fôlha
de papel que Nuno para êle escrevera e atirou-a
para cima da mesa, sentando-se numa poltrona estofada
em que o seu corpo molemente se enterrou; e
por muito tempo entregou-se a um longo scismar.
Branca, que naquele momento o estaria esperando
com um chaile de lã pelas costas, estirada num
fôfo
divan da sala em que passava os seus serões, lendo
romances sentimentais ou conversando com Amélia,
sua criada de quarto e sua confidente, esqueceu-lhe
completamente. A sua recordação estava cheia da
imagem de Júlia, da sua beleza, da sua bondade, da
sua maravilhosa graça de mulher, que queria adorar
com uma emoção purificada de desejos inferiores,
venerar
como um crente, no ardor do seu misticismo,
venera as coisas de Deus e que afinal amava, para
seu tormento e sua angústia, com um amor lúbrico
que lhe acendia a febre no sangue, que lhe toldava
a lucidez do espírito, que maculava de crápula os
puros lirismos da sua paixão a princípio casta e
que
depois, pelas solicitações carnais que
não pudera
conter, se transformou em criminosa. Como era que
essa mulher, em vez de o tocar com o alvor da sua
santidade, de tudo o que nela havia de superior, de
elíseo, de admirável, de astral, só
lhe comunicava
uma estranha volúpia que o alucinava?
[227]
―A culpa não é dela, com certeza, mas da
impureza
da minha organização!―monologava.
E ali estava ela no Pôrto, perto dêle, chamando-o
para junto de si com uma voz de amizade que Frederico,
no seu delírio voluptuoso, julgava carregada
do fluido magnético da atracção
voluptuosa. Um
espírito oculto e maléfico impelia-o para
Júlia, incitava-o
a loucuras, a infâmias. Aterrado com a própria
consciência―em que germinava a flor vermelha
dum impulso mau―fugiu-lhe, afastou-se dela,
para a esquecer. Em vão. O destino enigmático
aproximava-os novamente, e desta vez com a particularidade
de se conhecerem de perto, de não serem estranhos
a um afecto que em Júlia era digno e enternecido
e que nêle degenerara em sensualidade animal;
de haverem vivido sob o mesmo teto, de se terem confessado
as suas simpatias e as suas predilecções, de
se fazerem mútuas confidências em que notavam,
rindo,
um gôsto idêntico, uma inteligência que
tinha pontos
de contacto, modos de ver em que havia semelhança.
Iria a casa de Nuno? Não iria? Flutuava entre
estas duas hipóteses, sem se decidir. Tinha
mêdo...
―Deve ser já muito tarde!―pensou.
Viu as horas. Eram quatro. De fóra não vinha o
menor rumor. Tôda a vida parecia suspensa, perdida
no silêncio e na treva nocturna. Então, novamente
se
lembrou de Branca, mas esta lembrança súbita
inspirou-lhe
uma repugnância secreta. A lubricidade excitante
que essa mulher acordara nas profundidades do
seu ser, apagava-se repentinamente como uma brasa
sob a água e dela nada ficava―nem memória
afável
nem doce recordação. Júlia
apoderava-se outra vez
dêle, com o mesmo império, com a mesma
intensidade,
[228]
impregnava-se
da sua substância nervosa, do
seu sangue, da sua carne, dominava-o. Não tinha pensamento,
nem desejo, nem aspirações que não
fôssem
para ela: e a exaltação que o sacudia era por tal
forma enérgica e absorvente que Nuno ou lhe esquecia
e lhe aparecia inteiramente desligado da espôsa, como
se fôssem duas personalidades sem nada de comum,
inteiramente separadas moral e corpóreamente uma
da outra. Era-lhe necessário empregar um grande
esfôrço
para os associar de novo, para entrar na realidade
das coisas, para compreender com nitidez que Nuno
era o seu amigo, o seu sincero camarada e que, em
vez de traí-lo, lhe devia comovidos respeitos, lealdades
fervorosas.
Êste fenómeno psíquico decidiu-o.
Não! Não iria
mais a sua casa, enquanto não pudesse estar diante
de Júlia com a serenidade com que estaria diante
duma irmã. Desculpar-se-ia, inventaria uma piedosa
mentira com que pudesse justificar-se, cometeria
mesmo grosserias, contanto que a sua dignidade de
homem consciente ficasse intacta―ainda que para
isso tivesse de romper abertamente com Nuno. Saíria
do Pôrto sem delongas, para Lisboa, para o estrangeiro,
para tôda a parte onde se soubesse longe de Júlia,
embora a tivesse sempre presente na sua saùdade
e na infinita sêde de amor do seu
coração. De
Branca fugiria tambêm com a alegria com que se
quebram cadeias tirânicas e se recupera uma liberdade
durante muito tempo perdida. O seu sentimento,
agora divinizado pela sagrada lembrança da mulher
mais que tudo amada, tornava-lhe insuportável
a presença da impura, que apenas lhe apagava as
ardentes solicitações da animalidade carnal e que
lhe
[229]
não apaziguava as inquietações da
alma, que acelerava
a vibração da sua febre voluptuosa sem
lhe fazer ascender no espírito uma pura, ideal
aspiração.
Oh! de-certo que ela choraria, que o ameaçaria
com suicidar-se, com provocar clamorosos escândalos:
mas enxugar-lhe-ia as lágrimas com um farto
punhado de ouro que a tranqùilizasse no seu
desespêro
artificial. De resto, nada lhe devia, a não ser a ternura
de algumas horas, uma ternura que ela costumava vender
a todos os homens e que Frederico tambêm comprara,
pagando-a por excessivo preço. Tinha-a encontrado
numa ceia com amigos, simpatizara com ela―porque
a sua beleza e a sua desdita o impressionaram
e o comoveram―levara-a para casa, pedira-lhe não
inspirações mas luxúrias que o
atordoassem. Reconhecido
pela relativa tranqùilidade que Branca comunicara
à sua dôr, indemnizou-a generosamente.
Não
podia ir mais longe. Bem sabia que ela empregava
todos os recursos e toda a sciência da sua
coquetterie
para lhe agradar com mais intensidade, para se
tornar mais desejada―não movida por impulsos
amorosos mas por cálculos. Era amável; mostrava,
mesmo, nas suas relações com Frederico,
delicadezas
que eram meramente superficiais. Por debaixo delas
traía-se sempre a indiferença ou a secura, o
automatismo,
a inconsciência. A castidade das
emoções
que iluminariam a sua paixão primitiva não podia
mais renovar-se em Branca. Nos seus carinhos balbuciados
havia qualquer coisa de convencional, de estudado;
nos seus beijos havia frio. Era apenas um
corpo sem alma―um lindo corpo, certamente,―que
se entregava por dinheiro. E, nos primeiros tempos,
[230]
a posse dêsse corpo chegou a interessá-lo por
determinadas
afinidades físicas.
Mas agora, Júlia ressurgia; os cuidados de que
era alimentada a adoração que lhe consagrava
reclamavam
todo o seu ser; uma luz nova o alumiava, invadia-o
a tortura dum amor sem finalidade, que lhe
era amargo mas em que tambêm os seus sentidos encontravam
uma particular doçura. Sentia-se renascer,
não para uma vida nobre de esperanças, de
júbilos
futuros, de graças aurorizantes, mas para
preocupações
e para comoções que lhe eram, conjuntamente,
deleitosas
e aflitivas. A sua excitação sensual arrefecia,
extinguia-se―e por isso Branca desaparecia das suas
impulsividades orgânicas. Na sua intimidade moral e
afectiva resplandecia apenas a imagem aliciante do
único amor sério da sua existência de
homem apaixonado
e consciente: e Júlia assumia aos seus olhos o
esplendor de certas figuras maravilhosas e místicas,
que andam nas lendas sagradas com um fulgor de
ouro à volta da fronte. Queria entregar-se inteiramente
à veneração silenciosa e oculta dessa
mulher, devotar-se-lhe―mas
de longe, procurando evitar que
esta devoção, êste culto, se
transformassem em crime.
Era a fatalidade! Estava, portanto, decidido. Iria
a casa de Branca, pela última vez, trocaria com ela o
derradeiro beijo, deixar-lhe-ia, delicadamente, sôbre o
leito, um
enveloppe
fechado. Depois,
escreveria a Nuno
uma longa carta e seguidamente partiria ainda não
sabia para onde. Esta ideia calmou-o um pouco: mas
em breve, tudo o que na sua natureza havia de tímido,
de indeciso, de incaracterístico, imprimiu-lhe um
rumo diferente aos pensamentos. Não! Não romperia
com Branca asim de repente. Dir-lhe-ia que era forçado
[231]
a sair do Pôrto
por alguns meses, por causa
de
negócios que se prendiam com a
administração da sua
fortuna, mas que voltaria logo que isso lhe fôsse
possível e que então, como dois noivos,
realizariam
essa prometida viagem à Europa. Só de longe lhe
comunicaria
a resolução duma ruptura inevitável,
poupando-se
por esta forma ao espectáculo, doloroso para
a sua sensibilidade doentia, de prantos, de soluços
sufocados, de recriminações sem fim.
Com Nuno, usaria do mesmo processo, servir-se-ia
de igual subterfúgio. Havia de dizer-lhe que
apenas em Lisboa, em Madrid, em Paris, recebera a
sua carta―que lhe fôra mandada por Bernardo―e
que por isso não pudera correr, como a sua alma desejava,
a dar-lhe um abraço. Anunciar-lhe-ia até um
breve regresso, para que êle se tranqùilizasse e
não
procurasse saber da sua vida e das suas aventuras.
Dêste modo, sofreria menos!...
Já pelas frinchas da janelas se filtrava uma
fresca e pura claridade matutina, quando uma quebreira
o invadiu, serenando as suas violentas agitações.
As pálpebras, pesadas de sonolência,
cerravam-se-lhe;
uma doce lassidão prostrava-o. Levantou-se na ponta
das botas, foi buscar ao quarto um
couvre-pieds
e deitou-se,
mesmo vestido, sôbre a
chaise-longue
que estava
na sala, no ângulo formado por duas paredes,
para repousar por algumas horas. Lentamente adormeceu,
perdendo a noção das coisas que o rodeavam, da
sua própria situação
equívoca. Só acordou quando
Bernardo, entrando no escritório com o sol já
alto,
abriu uma persiana, por onde a luz festiva e clara
entrou a jôrros. Frederico sentou-se indolentemente,
esfregando os olhos, bocejando com fôrça, chamando
[232]
a atenção do criado, que se voltou espavorido no
receio
de que um desconhecido tivesse entrado em casa,
para roubar.
―Sim, sou eu, homem! Que diabo de espanto
é êsse!―exclamou êle para
Bernardo
que o contemplava,
intrigado.
―Crédo, patrão! Que mêdo me meteu!
Até
pensei que eram ladrões. Estava tam longe de o saber
por ca!... E não admira! Não o senti entrar.
―Vim tarde, com efeito... Olha, desce à cozinha
e diz à criada que me faça o
almôço para o meio-dia.
Por agora, quero
uma
chávena de
café... Mas
bem forte.
―Então, o senhor hoje almoça?
―Pois é claro que almoço―atalhou, rabujento...
―Está bem!
Enquanto Bernardo cumpria as ordens, Frederico
ergueu-se, entrou no quarto de vestir para mudar
a roupa, que estava amachucada e cheia de vincos,
para lavar-se... Que desordem, a da sua existência!
Como é que êle se emmaranhara em tanto tumulto,
enxovalhando-se, perdendo a noção da
decência,
do alinho exterior, da rectidão moral, de tudo quanto
pode nobilitar o ser consciente! Ai! dêle que não
conseguira encontrar uma actividade útil e um ideal
dignificador, derivava todo o mal―considerava Frederico,
enquanto banhava, regalado, a fronte em água
fria. Não acusava ninguêm. O culpado era
êle, exclusivamente
êle e da sua culpa amargamente se arrependia.
Estaria ainda a tempo de recomeçar uma
experiência,
de regenerar-se? Não haveria na sua alma, no
seu sentimento, estragos
irremediáveis
?
Consultava-se,
[233]
analizava-se
minuciosamente e notava em si uma
ausência de coragem, uma falta de incentivos renovadores,
que o apavoravam. Com a face branca da espuma
do sabonete, que exalava um leve arôma de narcisos
em flor, levantou um instante a cabeça diante
do espêlho e teve a noção
lúgubre de que estava vélho e
morto para todos os actos elevados. E como tudo, igualmente,
envelhecia e morria à sua roda, sem um lampejo
de beleza, numa desolação que mais ennegrecia
o seu desconsôlo... Remergulhou, furiosamente, na
água: e, depois, enxugando as mãos e a cara a uma
toalha felpuda bem sêca, maldizia-se
por não ter
sabido construir uma outra vida nobre e fecunda, por
se haver deixado arrastar sem reacções, ao sabor
das
correntes do acaso ou do destino... Mas agora,
implacávelmente,
reagiria, limpar-se-ia de impurezas, tentaria
ganhar o tempo perdido, trabalhando sem repouso
para rejuvenescer-se, para ressuscitar, para se
emancipar duma apatia amolecedora. A resolução
anterior
fortalecia-lhe o coração. Apegava-se a ela com
desespêro.
Mais algumas horas, que lhe eram necessárias
para pôr em ordem vários papeis, para dar algumas
instruções aos criados, para escrever a Branca,
para arranjar as malas, e uma outra existência se
iniciaria para êle... A esta ideia, avivou-se-lhe o
sofrimento
interior. Ia afastar-se, talvez para sempre, de
Júlia, que era a sua saùdade, a sua
doçura e a sua dor.
Idealizava-a mais uma vez. Ela tinha o encanto altivo
unido a uma simplicidade encantadora. A palidez
espiritual das suas faces e a meiguice dos seus olhos
boiando numa luz que brilhava, tocavam-lhe a alma.
A sua bôca apaixonada, que a mentira nunca maculara,
tinha a dupla sedução do silêncio e da
palavra―como
[234]
as
mulheres cantadas em sonetos de ouro por
Dante Rossetti. E deixava-a, porque no coração de
Júlia, transbordante dum outro amor, não cabia o
seu,
que era um intruso...
Mas Frederico, que ainda momentos antes se julgava
com tanta energia para a separação,
começava
a vacilar. Como poderia viver sem ela e longe dela?
Que novas formas de tortura atingiria o seu padecimento?
A tristeza e o desespêro, que já o pungiam,
davam-lhe a medida exacta da paixão que por Júlia
sentia.
Acabou de vestir-se mais deprimido, mais acabrunhado,
e voltou ao escritório, murmurando entre
dentes:
―Embora! Não retrocederei!...
Bernardo bateu à porta, perguntando se poderia
entrar.
―Entra!―ordenou Frederico.
O criado entrou, trazendo uma chávena de café,
quente e aromático, numa bandeja de prata, que
pousou em cima da mesa, informando:
―Está lá em baixo uma senhora ainda nova.
―Uma senhora?
―Sim, patrão. Uma senhora, que chegou de
automóvel. Diz que lhe quere falar sem demora. É
um caso urgente.
―E porque lhe não afirmaste que eu não
estava?―gritou Frederico, irritado, na suspeita de
que Branca o procurasse.
―Pois eu afirmei, meu senhor...
―E então?
―Então, ela duvidou das minhas palavras,
asseverou que bem sabia que o senhor estava, que
[235]
era escusado eu negar. E falava alto, parecia agastada...
Diz que é um momento...
―Olha que estopada!―bradou Frederico. Bem!
Passa-me o café, e manda-a entrar para a sala de
visitas... Lá irei ter daqui a pouco.
Que audácia! Não faltava mais nada
senão essa
criatura―flor do vício―a agarrar-se com ansiedade
aos seus braços, a colar-se ao seu corpo, a
manchá-lo
com uma nódoa, a fazer scenas públicas da sua
paixão, como se Frederico lhe devesse
reparações,
como se de si tivesse partido o lôgro que a despenhou
para sempre no lôdo e na desgraça! Com que direito
vinha ela procurá-lo a casa, denunciá-lo
à criadagem
como seu amante, sair dum automóvel à sua porta,
em pleno dia, diante de tôda a vizinhança rindo
sarcásticamente? E que lhe quereria? Talvez pretendesse
queixar-se pelo abandôno duma noite, lamentar-se,
mostrar as suas lágrimas e os seus ciúmes.
Ah! não! Isso, não lho permitiria...
Tomou à pressa o resto do café que esfriava na
chávena de porcelana fina, acendeu um cigarro, soprou
algumas baforadas de fumo e encaminhou-se
para a sala de visitas. Logo de entrada reconheceu
Branca, que se sentara numa cadeira sem mesmo erguer
o espêsso véu preto que lhe cobria o rosto. Com
as mãos esquecidas no regaço, estava pensativa. O
seio arfava-lhe apressadamente.
―Então, que loucura é esta? Para que vieste
aqui?―interrogou Frederico, de mau humor.
―Ah! és tu!...―respondeu ela.
Ergueu nervosamente o véu,
dirígiu-se para êle
de braços abertos. Tinha os olhos vermelhos de chorar.
―Pensei que te não tornava a ver, que me tinhas
[236]
fugido,
que estavas
fatigado de mim. Porque
não apareceste ontem, como de costume?―interrogou
ela.
Falava sacudidamente, muito excitada. O seu
rosto pálido rosava-se duma ponta de sangue mais vivo.
―Não apareci porque não pude.
―E porque não pudeste? Dize! Tiveste outros
amores, outras mulheres? Não sou já nada para ti,
então?... Responde!... Mas responde!...
Frederico deteve-se um momento a considerá-la
com um olhar mau, de rosto sombrio e contraído.
Branca teve mêdo e acudiu logo, para se desculpar
da sua impertinência:
―Não
repares
nas
minhas palavras, que eu
não sei o que digo. Não dormi nada em
tôda a
noite. Só chorei! Se conhecesses os meus tormentos,
até tinhas pena... Mas, porque não apareceste,
Frederico?
Outra vez a impertinência! Aquele inquérito
exaltava-o, enchia-o de cólera. Tinha vontade de
conclui-lo repentinamente, pondo Branca fóra de
sua casa, com imprecações duras e
empurrões brutais.
E, azedado por uma súbita fúria, atalhou:
―Se tu me vens com êsses ares de que eu sou
uma coisa que te pertence e de que tenho de dar-te
conta dos meus menores actos, não te respondo...
Que tal está a petulância? Não apareci
porque não
quis. E olha! Nunca mais apareço... Acabou tudo
entre nós! Tudo, entendes?
Atirou violentamente a metade do cigarro que
ainda ardia entre os seus dedos para um cinzeiro, e
começou a pessear excitado, des
Atirou violentamente a metade do cigarro que
ainda ardia entre os seus dedos para um cinzeiro, e
começou a pessear excitado, desvairado pela
irritação
sempre crescente. Branca abateu-se sôbre o sofá,
[237]
vencida, ofendida, soluçante, abafando o chôro no
seu lenço de rendas.
―Agora temos prantos!... É escusado. Não me
comoves!
Mas olhou-a novamente, viu-a enrodilhada,
ennovelada, destroçada sôbre o sofá,
emmudecida na
sua dôr, teve dó daquele pobre corpo
frágil, daquele
coração que todos calcavam, comoveu-se.
Aproximou-se
dela, impressionado, chamou-a carinhosamente:
―Branca!
Ela fitou-o na humildade dum olhar que implorava
e que as lágrimas tomavam mais brilhante,
murmurando:
―Eu vim aqui porque me parecias diferente dos
outros, porque me trataste com alguma bondade,
porque julguei que tinhas piedade de mim. Bem sei
que nada me deves, que não tenho direito de ser exigente
e de meter-me nos segredos da tua vida...
Mas que queres? Costumaste-me mal. Pensei que não
me empurrasses com violência... Desculpa-me!... Eu
vou já embora. Deixa-me sossegar um instante...
―E quem é que te empurra?―exclamou êle,
comovido. Escuta... Eu é que te peço
perdão da
minha brutalidade... Mas, minha filha tu ignoras as
minhas crises íntimas, os desgostos que me enfurecem.
Fui arrebatado, é certo. Mas, se soubesses a
razão
do meu arrebatamento, absolvias-me.
Branca enxugou os olhos, levantou-se vagarosamente
do sofá, foi para êle com um sorriso dolorido e
risonho, já esperançada.
―O quê? Pois não me repeles? Queres
então
um pouco a uma mulher como eu, que se devota
[238]
como os cães e que todos enxotam, queres? Então,
que Deus te pague!... Mas que tens? Que desgostos
são êsses em que falas? Oh! se não
podes dizê-los,
guarda-os para ti só, que eu não fico
ressentida...
―Pois é o diabo, filha... Maçadas...
Gaguejava, sem saber o que havia de dizer,
muito confuso, temendo que ela descobrisse as suas
mentiras, incapaz duma atitude resoluta.
―Até estava agora para ir a tua casa, dizer-te
tudo, explicar-te tudo...
E de repente, o subterfúgio que procurava iluminou-se-lhe
na inteligência. Concluiu, perturbado e
contente:
―Tenho de sair do Porto, hoje, infalivelmente.
―E demoras-te?
―Algumas semanas. Imagina! Ontem à noite,
inesperadamente, recebi um telegrama de Lisboa
chamando-me a tôda a pressa para junto duma tia
minha que está a morrer!...
―Ah! então!...
―Pensa na minha angústia! Esta tia, é a
única pessoa
que me
resta duma família que se extingue...
E nem sequer posso levar-te comigo... Bem vês! É
caso de gravidade... Mas volto. Volto logo que seja
possível, para a continuação do nosso
amor.
―Se eu pudesse acompanhar-te, Frederico!―exclamou
ela resignada.
―Mas não podes. Como queres tu?...
―Não! Estou doida, efectivamente... Mas não
me deixas?... Não estás zangado comigo?
―Zangado, eu? Que ideia... Espera um momento.
Foi dentro, ao escritório, abriu o cofre, tirou um
[239]
maço de notas, felicitando-se pelo ardil encontrado,
satisfeito na sua covardia por cortar com Branca mais
suavemente do que pensava; e, reentrando na sala
meteu-lhe o dinheiro na saquinha de mão, murmurando:
―Leva! Podes ter precisão dêle, enquanto eu
não regresso...
―Mas!...
―Nada de recusas. Ordeno eu. E agora vai, e
sê-me fiel. Mandar-te hei noticias minhas. Dá-me
um
beijo e adeus!
Quando Branca desceu a escada e entrou apressadamente
no automóvel, que largou numa corrida
vertiginosa, Frederico soltou um suspiro de alívio...
X
Dois, três vagarosos meses decorreram com uma
lentidão cruel para Frederico, que sentia por vezes a
impressão do tempo se ter imobilizado, de tudo
cair
à sua volta numa inêrcia que o apavorava,
inspirando-lhe
um terror mais forte pela vida, exaurindo-o
totalmente de vontade. Saíra do Pôrto na
intenção
de partir para o estrangeiro, de se demorar por
lá, em cidades ruidosas ou sossegados logarejos onde
encontrasse algum repouso, até que o seu amor impuro
se lhe apagasse no coração como se apaga uma
luz que muito tempo espalhou claridade; mas, desde
que chegara a Lisboa, encontrou-se mais só, mais
desalentado e mais inquieto, arrependendo-se amargamente
de haver deixado
a rua
em
que vivia, a casa
em que nascera, perseguido por um mêdo absurdo e
quáse infantil, por uma cobardia deplorável, e
por
uma fraqueza de alma que o envergonhava...
[242]
As sensações sucediam-se-lhe com rapidez
assombrosa
no sentimento. Na capital, parecia-lhe que
entrara numa região de imensa solitude―uma solitude
que o oprimia, que lhe constrangia, apertava o
coração. Como se tinha enganado! Imaginava que a
distracção das viagens lhe curaria ou, pelo
menos, atenuaria
o extraordinário mal que tanto o fazia sofrer:―e
agora nítidamente via que, quanto mais se afastasse
de Júlia, mais êsse mal se agravaria. A
doença estava
inteiramente dentro de si:―na sua imaginação,
nos seus nervos, na sua sensibilidade, no seu
sangue! A dor que o atormentava nada mais era do
que um dos variados aspectos do padecimento humano,
a eterna miséria dos sêres conscientes. Provinha
das tiranias
implacáveis da carne, da animalidade, da tristeza
infinita dos destinos, das fatalidades a que
ninguêm pode eximir-se! Fugir para onde? Esconder-se
em que sítio? A sua tortura permanente havia de
acompanhá-lo para tôda a parte, como certas
enfermidades
que não perdoam e que sem descanso, noite e
dia, devoram o organismo de que se apoderam...
Pensando constantemente em Júlia, formara no
espírito uma imagem dessa doce mulher muito mais
viva do que a personalidade real. Dêste fenómeno
derivava a sua excitação, o seu frenesi. Era essa
imagem,
precisamente, que nêle activava a luta entre a dignidade,
a elevação moral e o desejo lúbrico,
entre
a noção do dever e o cego instinto. Considerando
como
absolutamente inútil para a sua paz―a paz de que
tanto carecia―a vagabundagem pela Europa em
que durante dias pensara, decidiu ficar em Portugal,
conservar-se em Lisboa, envelhecer a um canto do
seu país, respirando o mesmo ar que vivificava
Júlia,
[243]
alumiar-se
com a luz do sol que tambêm a iluminava
a ela. Para a infinita melancolia do seu amor,
havia um grande encanto nestas pequeninas coisas.
Aquela adoração sem esperança
comunícava, em todo
o caso, a radiação da sua beleza
intangível a tudo o que
o cercava, penetrava-o de suavidade, tinha o condão
misterioso de lhe ressuscitar na memória figuras queridas
em que lhe era grato meditar. O vulto de Júlia
andava íntimamente ligado, na sua
recordação,
às paìsagens rústicas que ambos tinham
contemplado
num mudo êxtase, a certas páginas de
música que Frederico
lhe ouvira tocar ao piano, aos plácidos serões
na casa de campo onde vivera dias inefáveis, antes da
tempestade emotiva em que agora se debatia. Lembrar-se
dela era lembrar-se tambêm dos episódios
ocorridos durante as horas iniciais duma paixão que
começara, insidiosamente, por
admirações comovidas
de virtudes e de bondades que a ennobreciam e
que, depois, sem saber por que secretas
elaborações
de sentimento, se transformara em delírio, em loucura.
Fôsse para onde fôsse, havia de
aguilhoá-lo
a agitação que lhe não dava um minuto
de
tréguas, continuaria a queimá-lo a febre em que
se gastava, se consumia, como os troncos secos se
consomem numa fogueira. Afastar-se ainda mais
para quê? Separava-o já de
Júlia uma grande distância
e nem por isso a sua angústia afrouxava. Não
dispunha de coragem para atravessar a fronteira,
correr nacionalidades estranhas, observar outros povos,
outros costumes, outras civilizações. No seu
presente estado de alma, nada veria, nada compreenderia.
Em Lisboa, estava entre a sua gente, tinha
relações, poderia conviver, procurando o
esquecimento.
[244]
Foi-se
deixando ficar, num dissolvente abatimento,
sem formar projectos de vida futura, incapaz
de resoluções, de actos enérgicos em
que a sua
vaga individualidade se afirmasse. Fechava-se dias
inteiros no quarto do hotel em que se instalara, ruminando
o seu tédio, folheando livros que se arrastavam
indefinidamente por cima das mesas e das
cadeiras, fumando. À noite, ia aos teatros, encontrando
uma vez por outra algum conhecido com quem
se entretinha em palestras sem interêsse. O seu
gôsto
era estar só, para relembrar, no silêncio, coisas
que
lhe eram inefáveis. Reentrar na sua paz antiga, sentir
de novo a alegria de viver, seria a libertação:
mas, para isso tinha de esquecer, e o esquecimento
era-lhe impossível. Bastava o facto mais insignificante
para lhe despertar na emotividade as sensações
da sua primitiva ternura, para lhe dilatar amorosamente
o coração. A depressão constante e
progressiva
da vontade que em si desfalecia levava-o a acusar-se
duma fraqueza que o aviltava: mas não
empregava esforços para reagir. Deixava-se governar
dócilmente por uma atracção
misteriosa.
Em certos momentos, julgava-se pueril. Com
efeito, porque sofria êle tanto? Que crime havia praticado?
Que falta grave era a sua, para que assim se
entregasse passivamente a um desespêro que o devastava?
Não poderia
êle amar
Júlia, a espôsa do seu
maior amigo, sem se manchar de ignomínia, sem se
envilecer? Talvez. Mas, se o corpo, a grosseira matéria
de que era constituido, o empurravam para êsse
amor, a sua alma, que era a essência, que representava
a porção de divindade que cada homem digno traz
dentro de si, opunha-se tenazmente. Êste antagonismo
[245]
entre a carne e o
espírito que dentro dêle se
fazia
não era uma nítida prova da sua nobreza moral?
Pecava
pelos sentidos mas purificava-se pela razão. E o
seu pecado todos o absolveriam. Experimentava alguma
doçura em relembrar Júlia, porque não
podia
viver sem a recordação saùdosa dum
amor de que
só êle sabia e que representava o facto dominante
da
sua existência. Ninguêm conseguirá,
fácilmente, desabituar-se
da felicidade―e amando Júlia em segredo,
considerava-se relativamente feliz. Na desolação
duma existência sem outro ideal, essa
adoração
tinha a graça duma flor e mergulhava-o na beatitude
dum quimérico sonho que lhe dava a ilusão da
ventura. Mas não iria mais alêm, não
ultrapassaria os
limites estreitos em que a sua desgraçada paixão
se
confinara. Para que havia de atormentar-se com tam
sombrio ardor?
A primavera veio, outra vez, cobrir os arvoredos
de folhagens tenras e verdes, reflorir os jardins,
tocar as paìsagens de maravilhosas tintas. A luz era
já mais límpida e vibrante; o sol trespassava o
azul
da atmosfera como uma enorme flecha de ouro. Uma
vida mais jovial renascia. Nuno, que contínuamente
escrevia a Frederico, na ignorância das mentiras por
êle inventadas para se afastar e do conflito moral e
sentimental em que se debatia, anunciou-lhe, numa
longa carta, o propósito em que estava de regressar
à
quinta novamente, ficando por lá a fortalecer e a
renovar-se,
entre a beleza rural e as coisas simples,
até que o filho crescesse e o obrigasse a residir na cidade,
[246]
para lhe vigiar de
perto a educação.
Preparava
tudo para uma longa ausência do Pôrto, onde
só voltaria,
em rápidas visitas, de fugida, quando negócios
urgentes a isso o forçassem. E pedia-lhe que se
não
demorasse mais, que não prolongasse um afastamento
inexplicável que justificava com pretextos
sempre fúteis e que o intrigava.
―«Com efeito―acrescentava Nuno―eu e Júlia
temos pensado muitas vezes que existe na tua
vida um segrêdo. Qual? Não o sei nem quero
sabê-lo,
pois se na verdade me não iludo e tu o escondes,
é porque me não julgas digno de o conhecer. Mas,
seja como fôr, vem daí assistir, na aldeia,
à ressurreição
das flores e à aleluia da graça!...»
Esta carta despertou violentamente tôdas as ideias
e reminiscências que existiam no seu cérebro.
Outra
vez viu iluminar-se-lhe diante dos olhos deslumbrados
aquela tarde em que a beleza de Júlia pela
primeira vez o impressionou vivamente, quando ela,
debaixo da mosqueteira que vergava de corolas, se
cobria das florações que caíam de alto
como uma
chuva loura e lhe evocavam docemente a lenda pagã
de Júpiter, descendo num orvalho dourado sôbre o
corpo branco de Danae. Outra vez recordava a angústia―que
nunca mais deixou de pungi-lo―com
que fizera a descoberta dum amor que devia morrer,
porque era impuro; a noite de perturbação e de
terror que se seguiu a esta revelação singular; a
ansiedade
com que, logo ao raiar da alvorada, fugiu
para o Pôrto à procura duma serenidade, duma
pacificação
que nunca mais encontrou―recriminando-se
pelo facto de haver-se abrigado sob um teto, que
afectuosamente o acolhera, para manchar uma honra,
[247]
para trair uma amizade, para roubar uma ventura
que a outro legítimamente pertencia, para violar no
seu próprio santuário
emoções castas, para cometer,
na alucinação da sua luxúria, um
sacrilégio. A intensidade
da veneração consagrada a Júlia
tornava-o
excessivo na fúria com que se acusava: e as
evocações
eram por tal forma nítidas que o seu padecimento
agravava-se, excitando-lhe a cobardia, aumentando-lhe
o temor de voltar a aproximar-se duma mulher
que, por muito respeitar, não queria tornar a ver.
Sofria duplamente pela certeza evidente da sua paixão
e pelo enfraquecimento duma dignidade que sentia
escapar-se-lhe, deixando-o à mercê de impulsivos
desatinos.
A própria alma se lhe dissipava a esta
recordação.
Perdia a confiança em si mesmo. A sua
situação
surgia-lhe perante a consciência como um abismo―cheio
de idêntica sombra, de idêntico
mistério, de
igual silêncio enigmático. Outrora, pensava que
todos os homens podiam dominar-se, mesmo no
confuso turbilhão das emoções
desencadeadas, porque
para isso dispunham da fôrça que deriva do
raciocínio
e da sua superioridade de conscientes; e agora,
pretendendo exercer sobre si próprio êsse
domínio,
não o conseguia, por mais que o tentasse. E
porquê?
Porque a sua vontade não era íntegra e
suficientemente
enérgica? Porque as paixões eram mais fortes
do que o carácter, tendo o poder de comunicar à
razão, à inteligência, aos sentimento
elevados, o seu
fogo criminoso? Parecia-lhe que sim. E tambêm lhe
parecia que apenas os homens que saíssem vencedores
das lutas em que êle impotentemente sucumbia,
deviam ser considerados os verdadeiros heróis...
Sucedesse, porêm, o que sucedesse, estava decidido
[248]
a nunca mais entrar em
casa de Nuno. Ao cabo de
pacientes e dolorosas análises, pressentia que, em
face de Júlia, não se conteria, deixaria
transparecer
o seu drama oculto, se denunciaria. A fuga era a
salvação!
Mas regressaria ao Pôrto, certamente, agora
que Nuno o informava da sua mudança para a aldeia
onde ia instalar-se durante anos. Lisboa enfastiava-o
já até à fadiga. Julgava-se
estrangeiro dentro
dessa cidade, entre uma população tam diversa
da do norte, pela índole, pela origem, por
diferenciações
de casta. Tinha-se libertado definitivamente das
complicações que a episódica e
transitória ligação com
Branca trouxera à sua atribulada existência.
Rompera
para sempre com ela, embora se separassem como
amigos que, juntos, correram atrás duma ilusão
irrealizável
e de cujo encontro ficaria alguma coisa de
doce. Como era um fraco de temperamento, um indeciso,
pensou em prolongar com ela uma triste mentira
que seria cómoda para o seu egoísmo e para a
sua indecisão. Temeu, porêm, as futuras
consequências
dessa mentira e sentiu a necessidade do mostrar-se
sincero. O mais leal, o mais concordante com uma
bondade que o nobilitava era desenganá-la com uma
franqueza resoluta:―e assim procedeu, penalizado
com a lembrança das lágrimas que a sua
deliberação
provocaria. Mas era preciso! Branca aparecia-lhe
como uma atroz mancha na sagrada brancura
do seu único e verdadeiro amor. Não podia mais
aceitar-lhe os beijos sem repugnância instintiva, sorrir
às suas carícias sem um desejo muito fundo de
repeli-la com rancor, com ódio. Perguntava mesmo
como esta incompatibilidade carnal entre êle e a sua
amante dalguns meses só agora se definia claramente,
[249]
sem encontrar uma
explicação para
êsse fenómeno...
Escreveu-lhe, de Lisboa, anunciando-lhe o fim
duma aventura que tinha de acabar, pedindo-lhe
que lhe não quisesse mal, que dêle conservasse uma
lembrança afável:―e quando, perturbado,
inquieto,
imaginava que Branca não aceitaria a ruptura
sem clamorosos escândalos, soube que ela se resignara
inteiramente, procurando e encontrando logo
outras ligações. Esta certeza desanuviou-o.
Um domingo, por acaso, passeando tristemente
na Avenida da Liberdade, onde já floriam as olaias
sob a doçura e o afago da luz primaveril, deparou,
inesperadamente, o jovial Paiva, que descia o passeio
em sentido oposto, fitando com enternecimento as
belezas femininas que passavam na festa esplêndida
do sol. Foi para êle cheio de contentamento, apertando-lhe
efusivamente a mão, interrogando-o com
afabilidade:
―Oh! scelerado!... Tu por aqui?
―Oh! admirável Frederico! Que feliz encontro!...
É verdade, por aqui, nesta doce e morena
Lisboa.
―E êsse Pôrto, êsse namôro?...
―O Pôrto, creio que está no mesmo
sítio, com
a sua monotonia, a sua tristeza de burgo histórico
inamovível. Quanto ao idílio, findou como tudo
finda:―Roma, Bizâncio, Cartago!...
E pousando a mão magra, em que fulgia a pedra
fina dum anel, no ombro de Frederico, acrescentou,
sorrindo:
―
Tout casse, tout lasse et tout
passe!
Os franceses
teem razão.
[250]
Deram uma larga volta, conversando, recordando
episódios esquecidos, espairecendo. Paiva
achava que as mulheres de Lisboa eram lindas e perturbantes,
com uma graça, uma distinção, um ar
encantador:
―Vê a elegância com que elas pisam, menino!
E que corpos, que harmonia de formas, que ritmo!
Sobretudo, que ritmo!...
―Tu vens obsceno do Pôrto, homem―comentou
Frederico.
―Pois como diabo querias tu que eu viesse?
Sim! Como querias?!...
Voltaram ao Rocio, entraram no Martinho,
sentaram-se a uma mesa, pedindo cerveja; e então,
Paiva informou Frederico do desfêcho grotesco do
seu curto romance com Branca. Estava agora com
um capitalista―o Luís Tavares―que há muito
cobiçava a sua formusora, o seu encanto decadente.
―Um capitalista, hein?―perguntava Frederico,
bebendo o seu
bock
.
―De-certo. Um capitalista... O Tavares...
Tu conheces. Ora! Não conheces tu outra coisa.
―Com franqueza, não me ocorre... Mas
estimo! Coitada da pequena. Tam bôa rapariga!...
Um anjo.
―É gentil, da tua parte, esse desejo de fazê-la
entrar nos córos celestes. Mas não vás
mais longe,
não a metas entre as Onze Mil Virgens...
Paiva, acendendo um charuto, deu mais esclarecimentos:
―É babadinho por Branca, o Tavares. Oferece-lhe
quanto ela quere.
[251]
―Estás óptimamente informado!
―Foi Luísa que me contou tudo.
―É verdade:―ainda dura essa paixoneta?
―Não, caramba! Eu gosto da variedade. A
igualdade assusta-me... Luísa tambêm se colocou―e
entre a magistratura. Está por conta dum desembargador
que, no seu doce regaço, esquece as leis, os
códigos,
pousa a severa espada da justiça e humaniza-se.
Mas, é claro, encontrâmo-nos de vez em quando.
Às vezes, por fantasia, por capricho―ela é
caprichosa―sobe à minha trapeira romântica de
boémio,
como uma Musa... E narra-me, entre beijos,
a crónica mundana dos amores envergonhados.
―Que progresso, o dessas damas! Uma com o capital,
outra com a jurisprudência, ambas influindo,
talvez, na vida nacional, governando-a como Aspásia
governava Atenas!
―Meu rico! Ambas nos devem muito. Fomos
nós que as ensinamos a ter linha. Praticamos uma
acção meritória―acrescentava Paiva,
cínicamente.
Frederico bateu as palmas, pagou a despesa. Levantaram-se,
saíram.
―Queres tu hoje jantar comigo, ó Paiva
magnífico?
Ando tam só, tam desalentado!...
―Não posso. Muito que lidar, uma tia rica e
vélha de quem sou o melhor dos sobrinhos e o mais
necessitado dos herdeiros, outros casos de consciência.
Jantar contigo era uma bela ideia. Mas não posso...
Não sei mesmo quando poderei. Acho que tenho
de seguir com minha adorável tia para o Alentejo,
onde vamos visitar uns domínios territoriais que
virão
talvez a pertencer-me!...
Separaram-se. Paiva enfiou pela rua do Ouro,
[252]
soberbo de petulância, fitando insistentemente as
mulheres que passavam, e Frederico, mais aborrecido
e mais triste, reentrou no hotel, fechando-se no seu
quarto e estirando-se num sofá, farto até
à saciedade
de Lisboa, onde nada o prendia, e ansioso pelo regresso
ao Pôrto, donde tantas recordações o
chamavam.
O seu terror, a sua inquietação moral
desvaneciam-se,
pois que Nuno e Júlia iam partir―talvez
mesmo já tivessem partido―para a aldeia. Fumando
uns cigarros atrás dos outros, entregava-se com mais
subtileza crítica à
observação do caso singular que o
trazia em alvorôço permanente, que de-certo
derivava
da exaltação nervosa, duma violenta
paixão―mais
lasciva do que espiritual―insatisfeita, das
ásperas solicitações da carne bruta,
da infinita miséria
física do amor, de tudo o que faz do homem um
animal vivendo pelo instinto grosseiro e não pelas
finuras, pelas delicadezas da alma. A sua análise escolhia
de preferência os sentimentos da intimidade
moral, porque as imagens da vida exterior exasperavam-no.
Começava a achar ridícula aquela desvairada
fuga diante da mulher para quem um ardente
desejo e uma invencível simpatia o impeliam e de
quem a razão e a dignidade o afastavam, intimidando-o
como se êle fosse uma criança, um
irresponsável,
e não dispusesse duma inteligência. Reconheceu, no
entanto, que perdera a confiança em si mesmo, que
era mais um autómato, dirigido por
fôrças ocultas,
do que um ser moral, governado por ideias e
emoções
próprias...
Levantou-se, caminhou para uma janela aberta,
curvando-se um momento sôbre o peitoril. A
população
atulhava as ruas que o sol dourava; os carros
[253]
eléctricos desfilavam uns atrás dos outros,
abarrotados
de gente; pelos passeios erravam janotas ociosos,
e oficiais do exército arrastavam espadas nas
pedras. Era a scenografia de todos os dias, que já o
fatigava; surpreendeu-se a apetecer, mais do que
nunca, o isolamento da sua casa do Pôrto, longe de
tôdas as curiosidades, como um cenobita, entre livros
e entre recordações suaves. Com que prazer
começou
a fazer as malas, para abalar no dia seguinte, sem
mesmo prevenir os criados da sua volta! E como foi
consoladora para a sua saùdade a hora em que reentrou
na vivenda pacífica e cheia de lembranças
familiares
que o enterneciam! Tinha a ilusão de que em
tudo o que o rodeava havia uma parte da sua personalidade,
alguma coisa do seu coração, uma beleza
indecifrável que para êle se iluminava. Bernardo,
que o recebeu com um riso satisfeito e que o achava
mais magro, mais mirrado, pareceu-lhe um amigo
venerável. As árvores do jardim, cobertas de
fôlhas
que o sol tocava de luz, ramalhavam alegremente à
aragem, saùdando-o.
―Venho arrasado, Bernardo, arrasado!―disse
êle para o criado.
―Pois assim, sempre nessas idas e vindas, nem
pode medrar, meu senhor.
―Tens razão. Tu é que tens razão.
Não posso
medrar, dizes bem. Oh! mas agora, vais ver. Vou repousar,
recuperar o perdido. Engordarei, não saírei
de casa, como os gatos.
―Santo nome de Maria, com que o patrão se
compara!...
―E então? Haverá porventura nada mais caseiro,
mais apegado ao borralho, do que um gato?
[254]
Nos primeiros tempos, com efeito, Frederico, todo
ocupado no arrumo das suas coisas, passava os dias
encerrado na habitação, saíndo apenas
de noite, depois
do jantar, quando a cidade começava a ficar deserta
e êle não corria o perigo de encontros importunos.
Dava longos passeios, como se pretendesse extenuar-se,
acalmar a agitação permanente do seu
espírito.
Foi precisamente numa destas caminhadas nocturnas
que uma vez, insensivelmente, se surpreendeu defronte
da morada de Nuno, mergulhada em sombra e mudez.
Parou a olhá-la como se quisesse lobrigar nas
vidraças
reflexos de luz interior que denunciasse a presença
de sêres vivos. Não viu nada e êste
facto
comunicou-lhe alegria e tranqùilidade. Depois, como
uma polícia se aproximasse a passos lentos, mirando-o
com desconfiança, reencetou a marcha, murmurando:
―Bem! Já cá não está!
E sentia contentamento pela sua descoberta―um
contentamento quáse infantil. A ausência de
Júlia e de Nuno garantia-lhe uma quietude relativa.
Isto animou-o. Absolutamente certo de que o amigo
estava agora longe, começou a aparecer de dia, a
freqùentar os centros de conversa, a mostrar-se. Reatou
convivências durante muito tempo interrompidas,
para se distrair, para atenuar a violência do seu
mal, que, no entanto, ia crescendo com o desalento
que o minava. Mas, uma tarde, ao descer os Clérigos,
vago, alheado, viu-se inesperadamente diante dalguêm
que gritava o seu nome, que para êle avançava,
de braços estendidos, berrando:
―Ora ainda bem que te encontro. Que diabo
tens tu feito? Por onde tens andado? Que mal te fiz
eu? Dize!...
[255]
Era Nuno! Frederico estacou, empalidecendo
um pouco, muito comprometido, gaguejando desculpas,
interrogando-o:
―Pois, estás no Pôrto?
―Justamente! Estou no Pôrto. Tive de vir
aqui a tôda a pressa, buscar coisas que nos eram essenciais,
a mim e a Júlia, ao nosso brando retiro.
―E ela como está, tua espôsa? E êsse
querido
herdeiro?―perguntou Frederico, já mais sereno.
―Magníficos. Gozam duma saúde de ferro.
―Como já te disse em carta, só em Lisboa tive
conhecimento da doença de teu filho e tu
tranqùilizavas-me...
Nuno contemplava-o com interêsse. Estava mais
abatido, mais gasto, havia fundos vincos na sua face,
cabelos brancos na sua cabeça, tristeza no seu rosto
e era cansado o riso da sua bôca.
―Demoras-te por cá?―inquiriu Frederico.
―Não. Sigo daqui a horas, em automóvel. Ah!
Já me esquecia dizer-te... Tenho agora automóvel
na quinta, introduzi no meu viver pacato esta comodidade.
E era preciso. Não estamos livres duma súbita
doença, do imprevisto... E é verdade:―essa
visita? Quando te resolves? A não ser que a nossa
companhia te desgoste...
―Oh! Nuno! Pois acreditas?...
―Não afirmei nada. Exprimi apenas uma dúvida.
E olha que, na realidade, tanto eu como Júlia
te temos estranhado... Para que hei de esconder-te a
nossa surprêsa?
―Tolices... E podes crer que não falto... Mas
mais tarde. Ainda tenho prisões. Hei de ver...
[256]
―Não hás de ver nada. Quero saber o dia, a
semana,
ou então o motivo dessas hesitações...
―Bem! Por todo êste mês, contem comigo...
Para onde vais?
―A Carlos Alberto, fazer umas encomendas.
O meu automóvel deve lá estar. Acompanhas-me?
―Não posso. Desculpa. Coisas urgentes a resolver...
Mas, espera-me em breves dias.
―Esperarei.
―E recomenda-me lá em casa... Beijos ao
morgado.
Despediram-se, seguindo em direcções opostas.
Nuno, ágilmente, Frederico, mais acabrunhado.
Santo Deus! O facto que tanto temera sempre, dera-se,
afinal. E agora? Como poderia fugir mais uma
vez, libertar-se, sem levantar suspeições? Como
julgaria Nuno uma nova fuga, que já não poderia
justificar honestamente? Era-lhe impossível prolongar
por mais tempo uma tam cómoda mentira,
continuar iludindo. A fatalidade empurrava-o, definitivamente,
para o desconhecido e com uma fôrça
a que não conseguiria resistir. O que iria acontecer?
Que rudes formas de tortura adquiriria o seu
desespêro? Vacilava, sem encontrar uma evasiva
tam profundamente desejada.
Tudo o que no seu ser existia de tímido, de
cobarde, de dúbio, despertava, exacerbando-lho o
terror. Deambulando na rua, a largos passos, falava
sòzinho, em voz alta e numa tal
excitação que
parava gente intrigada a observá-lo.
―Com certeza que não vou!―afirmava.
Mas se não fôsse, o que pensaria Nuno? Que
desastrada ideia tivera em deixar Lisboa, em não
[257]
ter ido para o estrangeiro, para tôda a parte onde
a vida lhe oferecesse um pouco de sossêgo! Para
que voltara ao Pôrto? Recordava-se de haver lido
em Dostoiewsky que os criminosos andam à roda do
seu crime―de que não podem afastar-se―como as
borboletas à roda da chama em que se queimam.
Era êsse fenómeno psíquico que se dava
com êle,
naturalmente...
Cruzou com um carro que fugia na calçada. De
dentro, uma graciosa cabeça de mulher inclinou-se,
espreitando e sorrindo irónicamente. Frederico reconheceu
Branca
.
Até aquela o desdenhava. Que
vida, que miséria! Encontrava-se numa encruzilhada,
completamente desnorteado. Que caminho tomaria?
Apressou a marcha, aguilhoado por uma inquietação
muito íntima e muito funda. Passavam-lhe
na mente tentações tenebrosas.
Únicamente de
si próprio, duma instantânea
fulguração de coragem,
dependia a quietação perpétua. A
solução pareceu-lhe
bôa, por instantes; mas logo, raciocinando mais
detidamente, monologou:
―Era a mesma coisa, a mesma denúncia...
E, depois, sou um poltrão...
Nesta dúvida permanente, que tornava mais
cruel o seu sofrimento, viveu Frederico todo o resto
do mês, caído numa misantropia que o assustava,
nos raros momentos em que lúcidamente podia reflectir.
Tinha-se outra vez encerrado em casa, fechando
a porta a tôdas as curiosidades importunas,
e levava os dias num desespêro que apenas a imagem
serena de Júlia a espaços lúarizava. A
sua irresolução
era maior, mais tormentosa a sua angústia.
Sentia a necessidade duma fé religiosa que lhe iluminasse
[258]
o espírito
árido, que o apaziguasse.
Assaltava-o
o receio de enlouquecer. Bernardo aterrava-se. com
a fixidez do seu olhar em que brilhava alguma coisa
de bizarro e de mau...
Um dia de manhã, o correio trouxe-lhe uma
carta―a carta a tôdas as horas esperada. As mãos
tremiam-lbe, quando lhe pegou. Rasgou o
enveloppe
,
abriu-a e leu, com um rubor de vergonha na face,
estas linhas sêcas e curtas de Nuno:
«Na verdade há uma razão secreta que te
afasta
desta casa, da minha amizade, da minha confiança.
Desconheço-te e a tua atitude inexplicável
preocupa-me. Existe entre nós um equívoco que
não
deve continuar por mais tempo e de que tu, francamente,
me informarás. O teu procedimento, que me
intriga, parece mais uma provocação do que outra
coisa; e o nosso antigo afecto de tôda uma mocidade
dá-me o direito de exigir-te
explicações.»
A carta terminava com mais algumas palavras
que a humanizavam, lhe atenuavam a rispidez. Então,
tôdas as indecisões de Frederico se dissiparam.
Efectivamente,
reconhecia a sua culpa. Nuno tinha
motivos para estar magoado, para o recriminar. Que
homem era êle?―pensava Frederico, espreitando,
espavorido, a consciência. Queria furtar a sua dignidade
de amigo a atracções que a manchariam, e
comprometia únicamente as suas
afeições mais puras.
E tudo isto porquê? Pelo temor absurdo de praticar
uma acção vil. Mas, não dispunha
êle duma inteligência
capaz de compreender os eternos problemas
[259]
do Bem e do Mal e duma energia capaz de resistir às
alucinações criminosas?
Chamou o criado na electrização duma vontade
que o vitalizava, mandou encher uma grande
mala de madeira, recoberta de couro, com roupa e
calçado, ordenou que lhe fôssem buscar um
automóvel,
e sem pensar, sem calcular as conseqùências da sua
carreira cega e vertiginosa para o amor e para a vergonha,
ou para a libertação e para a morte, partiu.
Ainda confiava numa coisa:―a sua timidez. Nunca
teria a audácia de revelar a Júlia o seu
segrêdo. Se
ela o perscrutasse e o aceitasse sem cóleras fulgurantes,
talvez a sua natureza imperfeita sucumbisse;
mas, pura, como era, ignorando as torpezas do
coração
humano, nunca ela o adivinharia. A sua adoração
continuaria, portanto, oculta, fazendo-o sofrer apenas
a êle...
Volvidas horas duma impaciente correria por
estradas que cortavam através de espraiadas veigas,
de descampados, de terras de cultivo, de pinheirais
rumorosos, Frederico parava diante do portão da
quinta, tam seu conhecido, ao latir furioso dos cães de
guarda. Já pelas grades pintadas de verde floriam as
roseiras de trepar, e tôda a aldeia reverdecia, como
numa festa, sob as aragens perfumadas e o ouro dum
sol criador e maravilhoso de luz, descendo dum céu de
esmalte azul. Nuno que estava à varanda olhando
distraídamente
as montanhas que ao longe se esfuminhavam,
na vaga névoa, vendo deter-se um automóvel,
desceu apressadamente ao jardim, sem esperar
pelo criado e atirando uma saùdação
amigável ao viajante,
que sacudia a roupa empoeirada. Abraçaram―se
com efusão. Frederico repreendeu-o:
[260]
―Que estúpida carta foi aquela, Nuno?
―Não foi estúpida, foi estimulante. Se me
não
zangasse sériamente, não vinhas. E olha que
começava
a não saber o que pensar... Mas vieste. Tudo se
esclareceu. Esqueçamos êsse
desagradável incidente...―explicava
êle, dirigindo-se a casa.
Trémulo, transtornado, esforçando-se por
conservar
a tranqùilidade aparente, tôda superficial,
Frederico
acompanhava Nuno, que cruzava o jardim a
passos largos. Ia tornar a ver Júlia perto de si.
Há
quanto tempo a não via! Quáse um ano―uma
eternidade
para quem ama como êle amava―tinha decorrido,
desde que se separaram. A sua perturbação
aumentava,
o coração pulsava-lhe com violência, o
sangue
circulava-lhe apressadamente nas veias.
―Júlia, Júlia!―bradou Nuno, ao subir, com
Frederico, a larga escadaria de pedra, sob as glicínias
brancas e rôxas, que conduzia ao primeiro andar.
Ela apareceu logo, à porta de entrada, com o filho
ao colo, muito risonha, muito còrada e afàvel.
―Cá está o pródigo!―zombou Nuno.
―Que volta ao calor das vélhas amizades,
arrependido da sua prodigalidade―concluiu Frederico,
apertando a mão que ela lhe estendia, aberta e
leal, e beijando a criança com ternura, quáse com
devoção.
―Pensei que nos tinha esquecido...
―Oh! minha senhora... E como pôde supôr...
Ergueu, a cabeça e fitou-a pela primeira vez
mais demoradamente, muito perturbado, tentando
sorrir. Ela encarou-o tambêm, satisfeita, com uma
grande alegria no rosto. Os seus olhares cruzaram-se.
[261]
―Se lhe parece! Que devíamos pensar, então?...
Mas perdoamos-lhe, pelo muito que o estimamos, não
é verdade, Nuno?
Êle fez um gesto de assentimento, muito contente.
―Só por esta vez... Para a outra, não
haverá
perdões!―ameaçou Júlia.
Enleado, sem saber o que responder, Frederico
refugiou-se todo na inocência do pequerrucho, que
sorria enlevado, agitando as mãozinhas côr de
rosa.
―E cá o figurão? Admirável,
não é assim?―perguntou
êle, tocando-lhe com a ponta do dedo
levemente, afagando-o.
―Está excelente, agora. Mas inspirou-nos um
susto!...
―Eu sei, eu sei. Nuno contou-me tudo.
―Oh! menino, deixa as expansões para logo―atalhou
Nuno. Teremos muito tempo de tagarelar,
durante esta deliciosa primavera. Porque deliberei não
te deixar evadir daqui tam cedo. Agora és meu prisioneiro...
Vai-te arranjar. O quarto é o mesmo do
ano passado... Cá em casa nada mudou. Amamos
as tradições.
Frederico aproveitou a ordem providencial do
amigo, que vinha libertá-lo duma
situação de momento
a momento mais penosa para êle, exclamando:
―Então, se V. Ex.
a
dá
licença, minha
senhora...
―Pois não, pois não!...―declarou
Júlia.
Entrou no quarto para onde os criados tinham
já levado a mala, lavou-se e vestiu-se. O silêncio
envolvente
apaziguava-o, tranqùilizava a sua
perturbação.
Aquela casa, que a luz inundava, era feliz: e a felicidade
foi sempre recolhida e pacífica. Mas, cheio de
[262]
desconsôlo, invadido por um desgôsto imenso,
Frederico
perguntava a si mesmo para que viera, porque
não tinha resistido tenazmente às
solicitações de
Nuno. Que leviandade! E como, por irreflexão, havia
concorrido para agravar o seu mal!
Os dias foram passando num desespêro cada vez
maior para Frederico. O seu delírio atingia uma
violência
terrível de instante a instante. Surpreendia-se
muitas vezes a contemplar Júlia em êxtase, quando
à noite, ela, sentada ao piano, interpretava uma dessas
páginas de música que parecem falar da
aspiração
irrealizada das almas para a beleza e para a ventura.
A luz do candeeiro, que lembrava um hálito dourado,
derramando-se no ambiente, batia-lhe em cheio na
massa dos cabelos enrolados no alto da cabeça gentil,
nos ombros, nos lóbulos das orelhas, onde fulguravam
as pedrarias dos brincos. Frederico, sentado
numa cadeira de braços, absorvia-se na sua graça,
no
seu encanto, idealizava-a, considerava como devia ser
infinitamente doce o seu amor e setinosa a sua pele
tam branca, opalizando-se na claridade difusa, enquanto
Nuno, fumando um charuto, vagarosamente
folheava um livro. No fundo do seu coração havia
agora um inexplicável ressentimento, quáse
ódio
por
aquele homem que tirânicamente se interpunha entre
êle e a divina mulher da sua ardente paixão, em
nome dum afecto a que a sociedade―e talvez a
lealdade do seu carácter!―impunham obediência
passiva. Como a influência desta
adoração infindável
se tornasse mais imperiosa e dominadora de
[263]
hora para hora, Frederico, temendo o irremediável,
evitava tôdas as ocasiões de se encontrar
só com Júlia.
De dia, se Nuno descia à quinta, êle
acompanhava-o,
procurava interessar-se por coisas que não entendia,
demorava por tôdas as formas o regresso à
vivenda. O tempo estava esplêndido e a scenografia
era, realmente, maravilhosa. Todos os arvoredos do
parque agitavam no ar, brandamente, as ramarias
cobertas de folhagens novas, que os pássaros vestiam
de asas. As acácias douravam-se duma flor que, trespassada
pela luz, dava a impressão duma espuma
de ouro; altos castanheiros da Índia balouçavam
pingentes de florescências brancas e rosadas. As
fôlhas
densas formavam um docel duma côr verde e
tenra. Por vezes, flechas de sol, filtrando-se por entre
os ramos, mosaicavam a areia fina do chão de
manchas luminosas. Ao lado, o jardim enflorava,
exalando-se em perfume. Mais para alêm do muro
que circundava a vasta propriedade, ondulavam em
galgões as dobras de terreno, espraiavam-se os campos
cultivados, os ferregiais, os lameiros em que a
erva crescia, branquejavam casais pequeninos donde
aonde, verdejavam os pastos, subiam na atmosfera
os campanários em que, aos domingos, os sinos,
convocando os fiéis, espalhavam por todo o vale a
música festiva e mística dos seus claros sons. E
ao
fundo, subia a mole colossal das serras, mais fecundas
na base, mais áridas nos cimos, com a sua
decoração
de matagais cheirosos, de pinheirais, de rochedos
cortados em escarpa.
―Que beleza!―murmurava Frederico, enlevado.
―Não é verdade?―inquiria Nuno. Onde
é
que tu encontras êstes espectáculos, esta poesia,
na
[264]
cidade, em que tudo é tam pequenino, tam mesquinho,
tam banal?
Depois, levava-o até ao fim da quinta, para
que êle visse os grandes melhoramentos em que
consumira a actividade de todo um estio. Nas terras
de pão, as sementeiras eram prometedoras. Vigorosamente,
os milhos miúdos «viam-se crescer»―como
dizia o velho Mateus, agora mais feliz, bem instalado
na sua granja que devia à generosidade do senhor;
os centeios e os trigais, impando de seiva, arrepiavam-se
à ligeira aragem que sôbre êles corria,
ágil
como um sôpro, fazendo-os encrespar; ramadas e vinhedos
lançavam pâmpanos; todo o vergel se estrelava
de floração. E sobre aquela alegria da leiva
fértil,
caía a luz pura como uma
bênção de Deus.
―Isto é uma verdadeira maravilha, Nuno!―exclamava
Frederico, diante do caseiro que sorria,
agradecido.
―O tio Mateus trata-me a propriedade com
amor.
―Faz-se o que se pode... Mas o patrão é um
santo!―dizia êle para Frederico.
―Oh, homem, olhe que só o Vaticano é que pode
fazer canonizações. Santo, eu? Pecador,
pecador...
―O que tem feito por mim e pela pobre doente
e pelos filhos é mais do que de santo, pois não
é?
Ai! devo-lhe muito, devo-lhe muito.
―É verdade, e como está sua mulher?
―Na forma do costume, a infeliz.
―Alguma doença?―perguntava Frederico,
condoído.
―Uma paralisia... Coitada!
Muitas vezes, saíam para fóra da quinta, pela
[265]
porta que servia a parte alugada ao caseiro, davam
grandes passeios através dos prados, internavam-se
nos caminhos sulcados pelas rodas dos pesados carros
de bois, coleando-se entre sebes já floridas, e
só
recolhiam quando se aproximavam as horas do jantar.
Era êste o momento mais doloroso para Frederico,
que tinha de sofrer, diante de Júlia, o seu
suplício
atroz, ouvindo-lhe a voz de ouro, afagando-lhe
com os olhos a beleza a que a maternidade e a certeza
dum amor constante imprimiam mais serenidade e
mais graça, desejando-a com febre e temendo-a, ao
mesmo tempo, por êste desejo impuro que ela, sem
querer, comunicava aos seus sentidos, à sua carne,
à
sua animalidade. Uma noite, durante o serão, a conversa
entre os três animara-se. Discutia-se a incapacidade
dos homens para saberem procurar a sua felicidade.
Os que a encontravam não eram nunca orientados
pela inteligência ou pela finura psicológica,
mas pelo acaso, observava Frederico.
―Sai-lhes a ventura, como lhes poderia sair a
sorte grande, num bilhete de lotaria...
―Essa agora!―atalhou Júlia. É então
a inconsciência
que preside à vida consciente?
―E porque não?―afirmava Frederico. A humanidade
é ainda tam imperfeita!...
―Oh! menino, concede ao menos alguma sagacidade
ao instinto, que poucas vezes se engana.
―Engana-se quáse sempre, porque está submetido
a influências nefastas.
―É levares muito longe a tua furiosa vontade de
negar... Mas, aí tens tu as mulheres, por exemplo.
São duma argúcia!... Sobretudo em
questões de sentimento.
[266]
―Pobres delas!―riu Frederico.
―Pobres porquê?―perguntou Júlia, interessada.
―Porque nunca verão claramente as almas.
A sua análise não ultrapassa as
exterioridades―insinuou
com intenção Frederico, em voz apressada
e viva.
Júlia olhou-o demoradamente, enquanto Nuno
comentava:
―São opiniões, pontos de vista.
Sob o olhar penetrante de Júlia, Frederico
baixou a cabeça, perturbado e arrependido de ter
ido tam longe, arrebatado por um impulso que não
pudera dominar. A fixidez da vista dessa doce mulher
cravada nêle inquietava-o. Que queria ela
dizer, comunicar? Ter-se-ia denunciado? Adivinharia
Júlia, há muito, por uma dessas
intuições que certas
criaturas possuem, o segrêdo que êle trazia
escondido
no coração? Atarantado, acrescentou, como
se quisesse desculpar-se, furtar-se àquela
espécie de
interrogatório mudo:
―É claro, há excepções.
Falei dum modo genérico...
E sorrindo lívidamente, com os lábios muito
brancos, uma imperceptível tremura nas mãos,
disse
ainda, voltando-se para Júlia:
―Não pense V. Ex.
a
que eu envolvi
tôdas as
mulheres na minha afirmativa...
―Eu fui uma das exceptuadas?―interrogou
ela alegremente. É uma amabilidade de amigo.
O incidente esqueceu, a palestra derivou para
outros assuntos que iam surgindo, mas Frederico
não pôde recuperar a sua serenidade de
espírito. Estava
doido, ia perdendo a noção das
conveniências e,
[267]
se permanecesse por mais tempo naquela casa, perto
de Júlia, vergado à tirania da sua
fascinação, viria a
praticar loucuras. Não via, não ouvia, deixava
muitas
vezes sem resposta perguntas de Nuno, que tinha de
o chamar à realidade, exclamando:
―Que diabo de abstracção é essa?
E foi, na verdade, um grande alívio para êle o
instante em que Júlia se levantou, sorrindo de fadiga,
despedindo-se e dirigindo-se ao seu quarto.
Êle e Nuno ficaram ainda no gabinete, à volta da
luz. Havia luar e uma claridade branca batia em
cheio nos vidros da janela. Fóra, tudo adormecia em
sossêgo, na pacificação nocturna.
Quebrando a cinza
do charuto no cinzeiro, Nuno sorria enlevado, e o
amigo, surpreendendo-lhe o sorriso, disse:
―Em que coisas alegres pensas?
―Na minha felicidade. Imagina...
Calou-se, como se se arrependesse, de repente,
duma revelação que ia fazer.
―Imagino o quê?
―Não sabes nada? Não vês nada?... Bem
dizias tu, há pouco, que os homens são rombos de
compreensão, teem embotada a ponta da subtileza.
Frederico observava-o, intrigado, batendo sôbre
a mesa com os nós dos dedos.
―Tu és um amigo, um irmão. Não
és, nesta
casa, uma pessoa estranha. Pertences à família.
Pode,
portanto, dizer-se-te tudo... Júlia está outra
vez
grávida! Assim mo revelou esta manhã... Vou ter
outro filho... Talvez uma filha, para a felicidade
ser completa...
Grávida! Júlia estava grávida! Que
horror!
E como essa certeza brutal o amachucava, o transtornava.
[268]
A garganta
constrangia-se-lhe. Fazia esforços
para falar, e não conseguia articular as palavras.
―Mas não me dizes nada, não me felicitas,
não
me abraças por esta ternura que me envolve e que eu
agradeço ao meu doce destino?...
―Ah! de-certo que és bem feliz!...―exclamou
Frederico, por fim.
―Não é verdade?―interrogava Nuno, com a
face banhada de riso e de satisfação.
―Um amimado da sorte!...
Retiraram, por fim, da sala. Um criado veio
apagar a luz e arrumar os móveis.
A noite tempestuosa que Frederico passou!
Que terror e que desalento geravam, para a sua alma
pávida de espanto, as sombrias larvas do delírio?
E que futuro entrevia, sem um ideal, sem um sentimento
mais puro que lhe enchessem a vida e lhe dessem
esperança e coragem! Tôda a doçura que
sonhara
findava repentinamente como uma flor que se
desfolhasse ao vento. Compreendia ágora
nítidamente
que falhara na existência. Na hora de agonia
que atravessava, tôdas as dúvidas se esclareciam
para
a sua inteligência conturbada. Nada ousaria tentar
para fugir a uma condenação fatal, para
reconquistar
uma paz que perdera. A sua consciência era uma
abjecção.
Estava endemoninhado dum pensamento mau,
que não podia arrancar dos sentidos como quem
arranca o ferro duma ferida sangrenta e profunda;
estava possesso do crime em que se envilecera e o espicaçava
como um remorso. Para viver tranqùilo,
seria necessário redimir-se da fúria cada vez
mais
ardente duma diabólica paixão insaciada.
Estendido sôbre o leito, arquejante, Frederico,
[269]
de vez em quando, insurgia-se contra o curso das suas
meditações, contra si próprio; mas a
sua revolta era
inútil, não vingava desviar a
atenção concentrada naquela
absurda tortura. E que abismo de torpeza era o
homem! Odiava Nuno fulgurantemente, desejava
que tôdas as desgraças, todos os
infortúnios, se abatessem
sôbre a sua cabeça, que a amargura de
tôdas as
misérias o punisse implacavelmente. Com que vitorioso
grito de triunfo êle lhe anunciara a gravidez de
Júlia! E com que punhalada varara o seu
coração!
Essa nova maternidade sagrada da mulher que amava
era uma suja mácula na santidade da sua
adoração―mácula
bestial. Nuno, fecundando-a entre ásperos
beijos de luxúria e de fogo, na
vibração suprema
do seu organismo físico, poluira o sentimento que na
sua alma abrira puro como uma flor virginal. O filho
que viesse, que já fazia estremecer o ventre de
Júlia,
enxovalharia a mulher para quem a sua veneração
subia como o incenso subia dum turíbulo, na
nave dum templo. E fôra para assistir a esta vilania
que o amigo o convidara para casa, arrancando-o
irónicamente ao seu isolamento. Mas quem o impediria
da vingança, procurando Júlia, revelando-lhe
aquele doloroso segrêdo que trazia dentro de si e
que o sufocava?...
A esta ideia, que por um momento lhe pareceu
justa, encolheu-se, espavorido.
―Que canalha! Que canalha eu sou!―murmurava.
Não, que pavor! Júlia devia ignorar tudo. Era
em saber guardar o mal que o atormentava, que residia
a beleza real do seu sacrifício. E com que direito
criminava êle aquela doce união conjugal em que
tudo
[270]
era graça, constância, virtude, pureza? Para que
havia de espalhar a lama no caminho de Júlia e de
Nuno, tam dignos um do outro e da ventura, pela sua
bondade, pela sua abnegação, pela sua lealdade?
Confessar-lhe um amor criminoso, que seria repelido
sem piedade, era dar a conhecer os aspectos mais torpes
da sua alma, que não hesitava em traír o amigo,
disputando-lhe a espôsa, o tálamo, em
ultrajá-lo, ofendê-lo,
humilhá-lo na dignidade do sêr consciente.
De-certo que um dêles era de mais na vida―pensava
Frederico. Mas quem? Nuno, que tam dedicado
lhe fôra sempre, que lhe queria como a um irmão,
na ignorância da serpe do desejo que se lhe enroscara
no corpo e o despedaçava, o comprimia até
à
tortura, que confiadamente lhe abrira as portas do
seu lar―que se fechavam para tôda a gente? Seria
aquela a vítima que o seu egoísmo, a sua loucura
sensual, escolheria? Estas interrogações
passavam-lhe
no cérebro como a fulguração dum
sinistro relâmpago.
Depois, recuperando a lucidez, podendo raciocinar
com mais clareza, Frederico monologou:
―Eu, eu é que sou de mais!...
Ainda não tinha descido tanto no pântano em
que se afogava que não visse, acima da sua perversidade,
alguma coisa de sublime, de luminosamente
grande. Que Nuno, continuasse a viver para o amor,
para a felicidade, para o futuro. Que o seu sonho de
ventura nunca se interrompesse! Êle desapareceria,
já que lhe era honrosamente impossível amar
Júlia
sem incorrer no absoluto desprêzo de si próprio e
sem
traír um afecto mais santificado, e já que
tambêm não
conseguiria viver sem essa adoração. Morreria!...
Por um instante, na solitude nocturna que o rodeava,
[271]
pensou em matar-se ali
mesmo, dando um
tiro na cabeça. A detonação alarmaria
tôda a casa,
Júlia acudiria, aos gritos, pousaria, talvez, o primeiro e
último beijo na sua fronte ainda morna e lívida,
levaria
para a cova o encanto, a revelação, o perfume
dêsse
beijo derradeiro que lhe aurorizaria a morte. Fechou,
porêm, os olhos horrorizados. Êsse
suicídio naquele
logar, alêm de ser uma denúncia, depois da scena
do
serão, macularia com uma nódoa sangrenta a
ternura
infinita de Nuno e da espôsa―uma nódoa que
nenhuma
água, nenhum esquecimento, nenhum arôma
purificaria, como a das mãos de Macbeth. Não!
Viveria mais umas horas, umas horas apenas! Só o
tempo de chegar ao Pôrto...
A luz da manhã veio surpreendê-lo ainda vestido,
rolando-se no leito desmanchado, pálido, os cabelos
revoltos. Abriu a janela vagarosamente. O ar vivo e
balsâmico entrou a jorros. Aspirou-o com volúpia.
Em baixo, passava o criado. Pediu-lhe que fôsse a
Guimarães buscar um automóvel.
―E não te demores. É um caso de
urgência.
Banhou o rosto em água fria, tirou da mala a
pistola que meteu no bôlso das calças, e quando
sentiu
Nuno a pé, correu para êle em
alvorôço. Ao passar
pela porta do quarto de Júlia, fitou-a com um
olhar em que ia todo o seu adeus, todo o seu desgraçado
amor, todo o seu perdão. Dirigindo-se ao jardim,
onde Nuno descera, como fazia sempre, para
gozar o encanto idílico das manhãs, bradou de
longe:
―Sabes? Tenho de ir já ao Pôrto.
―O quê? Estás doido! Não sais daqui,
não te
deixo.
[272]
―Se eu te digo que tenho de ir! Mandei até o
Manuel a Guimarães, buscar um automóvel... Mas
volto hoje mesmo. Nem levo a mala... Preciso de ir
pagar umas letras que se vencem. É uma coisa
séria,
como vês!... Só esta noite me lembrei, de repente.
―Oh! Frederico!... Porque não recorreste a
mim!... E não tinhas o meu automóvel?...
―Não me ocorreu... Mas é uma questão
rápida.
―Nesse caso, vai...
Uma hora depois, o automóvel chegava e Frederico,
impaciente, ao portão, despediu-se do Nuno,
saltou para dentro, dizendo ao
chauffeur
:
―Larga e com velocidade.
Estava com pressa de pôr fim, por uma vez,
àquele tormento que fôra a angústia
pavorosa de todo
um ano de sofrimento! Fechou os olhos. Não queria
ver nada, para que um súbito arrependimento, um desmaio
de coragem, o não prendessem à vida. Ia como
numa embriaguez, concentrado na sua ideia fixa e fúnebre.
O automóvel rolava, fugia no fio do vento.
Era uma carreira para a morte, um paroxismo...
Quando mais tarde entrou em sua casa, pagou
generosamente ao
chauffeur
, subiu a
escada rápidamente.
Bernardo acudira, perguntando-lhe se desejava
alguma coisa.
―Nada, homem. Podes ir para baixo. Se eu precisar,
chamarei.
Encerrou-se no seu escritório, sentou-se á
escrivaninha
e durante algum tempo esteve escrevendo.
Admirava a sua serenidade em face daquele acto terrível
e necessário que preparava. Seguidamente, fechou
a carta e tocou a
campaínha
.
O criado veio,
ligeiro:
[273]
―Leva já esta carta ao correio. Mas não te
demores.
E, quando ficou só, serenamente, como quem
cumpre com honra um dever contraído, tirou a pistola
do bôlso, encostou o cano à cabeça sem
que um
músculo da face se lhe enrugasse e desfechou. Um
jacto de sangue brotou, salpicando o papel das paredes;
um pedaço de massa encefálica fôra
projectado
violentamente contra a porta. Frederico caíu de
bôrco
no chão, sem um estremecimento, esvaziando-se de
tôda a seiva da vida sobre o tapête...
Na manhã seguinte, Nuno, que passara a noite
inquieto por aquela súbita fuga do amigo, não
sabendo
a que atribuí-la, recebia uma carta.
Reconhecendo no
enveloppe
a letra do
Frederico,
abriu-a nervosamente. Que teria acontecido, para êle
escrever em vez de voltar, como prometera? Leu, apavorado,
estas palavras sombrias, gravadas numa letra
firme:
―«Nuno:―Vou matar-me, em plena consciência,
e foi justamente para isso que deixei a tua companhia,
a tua afeição, a tua nobre e grande alma. Nem
a paz, a consolação imensa do teu lar tam belo,
puderam
reter-me por mais tempo num mundo em que
sou um intruso. Não posso viver mais. A vida para
mim é um suplício e por isso me liberto dela. O
homem
dispõe da força augusta que lhe permite aniquilar
a obra de Deus.
Porque me mato? Porque há, realmente, na minha
existência um segrêdo terrível, o
segrêdo de que
[274]
um dia suspeitaste e que te não posso dizer, porque
me não pertence inteiramente. Oh! não
faças suposições
inconsideradas! Julga-me com equidade. Não
penses por um momento só que deixei, por um crime
atroz e sem perdão, de ser digno do teu afecto. Morro
em beleza espiritual... Mas o meu segredo tortura-me
sem repouso e é-me impossível sofrer mais.
Para que prolongar uma dôr incurável? Sou
só, o meu
acto, longamente meditado, não terá
conseqùências e
apenas fará padecer as poucas criaturas devotadas
que me estimaram e que hão de curvar-se, em
lágrimas,
sôbre o meu túmulo.
Sê tu feliz, entre os teus, bom amigo! Que sempre
à volta da tua vida tam pura e da tua bondade
tam comovida, pousem a graça, o encanto e a
doçura!
Pensa em mim com um pouco de carinho e de mágoa.
Afinal, amei-te e desapareço inteiramente merecedor
da tua afeição―inteiramente merecedor dela,
ouve bem! Um beijo para teu filho e outro para tua
mulher―um beijo de irmão, o beijo dum
cadáver.
Adeus!―Frederico!».
Ao concluir a leitura, Nuno ficou petrificado,
no jardim, alheado de tudo, como se a inteligência
inesperadamente lhe fugisse e êle se encontrasse num
logar desconhecido. Estava branco, os dedos tremiam-lhe.
Tinha a carta entre as mãos, e os seus olhos,
por uma alucinação dos sentidos, viam nela
manchas
sangrentas... Depois, fundos soluços abalaram-no,
chorou com desespêro, correndo para casa. Abriu
nervosamente a porta do quarto. Júlia ainda estava
no leito, com o filho que ria e galrava.
―Tu queres saber?―exclamou êle. Uma desgraça
horrível, um pavor!
[275]
―Que foi, santo nome de Jesus?―exclamou
Júlia, sentando-se na cama.
―Pois, foi uma fatalidade, filha! Frederico
matou-se, ontem, no Pôrto.
―Matou-se?...―perguntou, num grito.
―Sim, matou! Aqui está a carta dêle,
anunciando-me
a sua resolução, a sua loucura. Pobre amigo!
Antes de morrer, pensou em mim, pensou em nós!
―Oh! meu Deus!―murmurou ela, levando
as mãos fechadas á cabeça. E porque
foi, porque
foi?...
―Não o diz... Olha! Lê tu! Eu nem serenidade
tenho para nada.
Júlia leu, com os olhos vidrados de pranto, aquela
carta para ela reveladora―só para ela!... Uma
dúvida
que por muito tempo a sobressaltou, esclareceu-se-lhe
de repente no espírito. Admirou a grandeza de
alma de Frederico―uma grandeza que se denunciava
ainda no beijo supremo e sublimado que o seu cadáver
lhe mandava da beira da sepultura. Mudamente
entregou a carta a Nuno, e as lágrimas correram-lhe
em fio dos olhos.
―E então? Que te parece? Que julgas?...
―Era um nobre coração!―exclamou ela, chorando
sempre.
Nesse mesmo dia, Nuno partiu para o Pôrto, a
assistir ao entêrro do homem que, diante da
traição,
optou pela morte, para não deixar de ser leal aos outros
e a si próprio.
Miramar, 9 de novembro de 1916.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
A acentuação foi mantida de acordo com o original.