The Project Gutenberg eBook of A Influencia Europea na Africa perante a Civilisação e as Relações Internacionaes This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A Influencia Europea na Africa perante a Civilisação e as Relações Internacionaes Author: Carlos Testa Release date: May 29, 2008 [eBook #25635] Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A INFLUENCIA EUROPEA NA AFRICA PERANTE A CIVILISAÇÃO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAES *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) A INFLUENCIA EUROPEA NA AFRICA perante a civilisação e as relações internacionaes Considerações ácerca do tratado de 30 de maio de 1879 denominado de «LOURENÇO MARQUES» POR Carlos Testa Capitão de mar e guerra--Lente da escola Naval Rationem juris gentium magistram, sequamur. BYNKERSHOEK. LISBOA Typographia Universal De Thomaz Quintino Antunes, Impressor da Casa Real Rua dos Calafates, 110 1880 I Dos grandes continentes que compõe o denominado velho Mundo, é certamente a Africa aquelle cuja exploração hoje em dia se tornou de preferencia o objecto da attenção geral dos governos das nações civilisadas, e isto por tão variados titulos, como os que podem dizer respeito ás investigações geographicas, ao conhecimento da importancia de seus productos, ás condições da sua população, e á influencia que lhe póde caber no futuro movimento commercial do Mundo. É na Africa que teve séde uma das mais antigas civilisações que a historia recorda, a egypcia, testemunhada pelas ingentes pyramides e collossaes esphinges, que por muito tempo causaram a desesperação dos archeologos. A Lybia, onde os phenicios levaram suas colonias á fundação de Carthago, deixa vêr a vetustidade d'aquella parte do globo, que já para o grande poeta do Lacio fornecia inspirações, tiradas de factos coévos de Dido e dos exules do cêrco de Troya. Mas esse continente onde a historia antiga vae descobrir o ancião dos povos, e remontar a epocas remotissimas, é aquelle que ainda hoje, apoz os progressos da moderna geographia, deixa mais vasto campo para estudo e indagações, e cuja maior porção ainda se acha mal conhecida, inexplorada, e povoada por tribus tão variadas, como varios são seus caracteres mais ou menos selvagens, e na maxima parte, ainda estranhos aos effeitos da civilisação. Notaveis coincidencias nos deixa vêr a historia. Milhares de annos se interpõe decorridos desde que a Africa é n'ella mencionada. De pouco mais e pouco menos de quatro seculos datam, o começo das explorações do até então desconhecido littoral do occidente africano, e o descobrimento do limite austral d'aquella velha parte do Mundo. A esse tempo, as duas Americas eram entidades desconhecidas, quando Colombo e Cabral d'ellas deram noticia. Haverá um seculo apenas, que Cook descobria regiões austraes até então ignotas. E hoje as Americas e a Australia, esses vastos continentes apenas conhecidos de tão recente data, apresentam-se na sua maxima parte povoados de cultas sociedades, em todos seus extensos littoraes, e deixando vêr n'aquellas regiões transatlanticas, novas nacionalidades e estados florescentes, oriundos da civilisação europea, para alli transplantada, e onde a par da importancia d'aquelles, se alarga a esphera d'acção d'esta. E a Africa? Ainda um denso véo encobre em grande parte a sua intima condição da existencia e modo de ser; ainda no maximo numero a sua população vive vida selvagem e feroz, sem que o facho da civilisação viesse alumiar as trevas do seu primitivo estado. É pois na Africa que o geographo, o geologo, o naturalista, e o estadista, encontram os mais variados assumptos para estudo e especulação, na delimitação do seu territorio, nas feições do solo, de seus variados productos, seus extensos rios, vastos lagos, espessas florestas e até inhospitos desertos. D'ahi o empenho, e as tentativas que tornaram em nossos dias como o pensamento e proposito de todos os governos das nações cultas, a exploração e civilisação da Africa. Cousa notavel! Uma parte do globo que ha menos de quatro seculos ainda era desconhecida, a America, hoje já se distingue, contribuindo com a velha Europa no empenho de explorar as regiões não desbravadas d'aquella outra parte, a Africa, aliaz não ignorada desde a mais remota antiguidade! No decurso dos acontecimentos, de que o Mundo é o grande theatro, e em que a humanidade é o actor, difficil cousa seria o pretender designar e precisar taes acontecimentos como subordinados a uma regra invariavel, de modo a sujeitar seus effeitos a causas precisas. Elementos contingentes influem de modo que as causas só podem conhecer-se pelos effeitos. Na contemplação pois do que possa haver contribuido para o atrazo em que a Africa ficou perante as outras regiões do globo posteriormente descobertas, podem talvez apontar-se, a influencia de um clima em grande parte deleterio e adusto; as difficuldades materiaes de transpor suas aridas planicies e suas asperas cordilheiras, e mais talvez do que isso, a natureza selvagem e em grande parte feroz dos seus povoadores; e a influencia que a escravidão e seu trafico entre taes povos barbaros podiam ter, no desvio das praticas mais conducentes á util exploração d'aquelle vasto continente. Uma população assim embrutecida e sem laços sociaes que lhe elevem o nivel moral, constitue necessariamente um obstaculo, uma difficuldade á realisação de quaesquer emprehendimentos no sentido de desbravar aquellas regiões. Esta feição ethnologica poderia considerar-se como uma das que muito tem influido e ainda influe, quando outras causas não houvessem, para estorvar a realisação do grande pensamento em que a humanidade está empenhada, qual o de civilisar a Africa, pensamento que o espirito do seculo reclama, e que as nações cultas se interessam por conseguir. Perante povos selvagens, é a acção do missionario o meio mais conducente a abater seus instinctos ferozes ou brutaes, meio este que lançando o germen da civilisação, mediante a influencia das crenças que actuem no homem pelos estimulos da consciencia e pelas noções do dever, e que tomando a moral por base da familia, institue assim esta molecula social, por onde se chega á formação de uma sociedade cujo bem estar reclama novas aspirações, e d'aqui vem como resultado a necessidade do aproveitamento do solo, de augmentar seus productos, effectuar permutações, e activar o commercio, obtendo-se assim vencer os obstaculos que ainda hoje se apresentam para realisar aquella tão apetecida obra, pois é civilisando o africano, que se conseguirá civilisar a Africa. O conseguimento pois do fim a que as nações cultas se propõem na Africa, depende de taes elementos que são a cathechese, que desbrave a fereza do selvagem e entre elle estabeleça os laços sociaes; o commercio, que obrigue ao trabalho util e ao desenvolvimento da riqueza natural do solo; e por ultimo, de estabelecer o predominio que resulta da força, como meio indispensavel para manter o prestigio da civilisação sobre a barbarie, e para conter em respeito aquelles que por indole indomita ou instinctos brutaes se tornem ameaçadores e aggressivos, em vez de doceis e submissos á acceitação dos meios tendentes a regenerar a sua existencia social. Como tem sido, ou como conviria que fossem aproveitados estes meios, e a quem de preferencia compete attender aos seus desejados effeitos, é assumpto que se presta a algumas ponderações. A historia da humanidade, assim como nos revella as variadas tendencias de suas differentes épocas, tambem nos deixa vêr exemplos de nações, ás quaes parece que a Providencia commetteu uma ou outra missão a cumprir, em virtude de caracteres peculiares de sua existencia e condição. Se por entre as exorbitancias a que as rudezas da edade media deram logar, pretendermos discernir os commettimentos dignos de ser acatados, é mister para isso destacar aquelles, nos quaes se possa descobrir um cunho ou feição, por onde se revelle justiça no procedimento, ou conveniencia geral no seu effeito. Coube tambem a Portugal uma boa parte e um importante papel a desempenhar nas evoluções sociaes pelas quaes o Mundo tem passado. Paiz pequeno, mas situado na orla mais occidental onde a Europa é banhada pelo Atlantico, foi a elle que competiu a missão de alargar os horisontes da geographia, rompendo aquelle limite além do qual tudo era desconhecido. No desempenho de tal encargo, não faltou aos dictames que a justiça lhe podia impor, assim como tambem não deixou de mirar a um objectivo que significava uma conveniencia geral, a bem da humanidade. Assim foi, que quando ao deslisar da edade media D. João I conduziu suas hostes á conquista de Ceuta, levando a guerra á Africa, obedecia ainda áquelle impulso que vinha dictado pelo antagonismo de crenças e resentimento de armas. Não estava ainda de todo extincto aquelle espirito religioso, que quando levado até ao fanatismo, formára o ideal do heroismo cavalheiroso das cruzadas. A guerra aos inimigos da cruz como proseguimento das conquistas operadas sobre o crescente, e que fôra o principio em que se baseára a monarchia fundada em Ourique, estava apenas diferida mas não finda. A guerra levada á Africa era pois o proseguimento da conquista sobre terras de mouros, tão justificada d'além, como o fôra nos Algarves d'aquem mar. Esse pensamento de dilatar na Africa tal conquista como territorio de Portugal e não como feitoria colonial, quando proseguido e mantido, poderia ter dado logar a uma phase politica de grande alcance futuro, e que haveria formado de Portugal um grande estado europeu africano. Mas outros enlevos, outras ambições, outros calculos de interesse vinham unir-se ao primitivo movel moral, qual o da fé religiosa, desde que outras vistas mais positivas, embora menos enthusiastas, impelliam ao empenho de procurar novas regiões, transpondo o mar, alargando os limitados dominios em que a geographia se achava contida. Ceuta, o primeiro baluarte da Mauritania, foi o posto avançado para assegurar o ponto de partida e franquear o caminho, que o immortal infante D. Henrique preparava, aos que largando de Sagres, haviam de explorar as costas desconhecidas, desde o occidente, e a seguir para o sul, no continente africano. A obra a emprehender era tal, que n'ella devia predominar ora o valor do soldado, ora a coragem do marinheiro. Á consciencia da justiça que auctorisava a guerra, ligava-se tambem a perspectiva e resultados grandiosos para a sciencia, bem como de um alcance mais subido, desde que redundavam em vantagem da humanidade. N'esta ardua, mas gloriosa tarefa, se ao cabo Tormentoso, vencido por Bartholomeu Dias, se seguiu o caminho do Oriente ser aberto pelo Gama; se á escola de Sagres se deveu o que era o resultado do arrojo e denodo dos nautas, tambem é certo que a escola de Ceuta, Tanger e Arzilla foi a que preparou e alimentou aquelle valor guerreiro, que durante quasi um seculo tanto contribuiu para illustrar, por seus feitos no Oriente, o nome portuguez. Em toda esta obra grandiosa, Portugal, procedendo em harmonia com o espirito da época, soube desempenhar-se nobremente da missão que lhe competiu. Adquiriu para si uma gloria immorredoura, e alcançou uma época de prosperidade, que havia de ser ephemera; mas tambem preparou os elementos de uma das maiores revoluções que na ordem social, economica e politica o Mundo viu. Foi talvez mais longe do que lhe poderia ser moralmente exigido, ou do que o seu exclusivo interesse lhe aconselhava. O Oriente absorveu suas attenções e seus recursos; e por isso a Africa, ficando revelada em suas costas e no seu limite austral, deixou então de ser o objecto de mais aturados empenhos e esforços, quanto á exploração das regiões internas de seu vasto continente. II O final do seculo XV deixa vêr um conjuncto de acontecimentos tão importantes e tão extraordinarios, quão vastos e transcendentes foram os seus resultados. A passagem do cabo da Boa Esperança, o descobrimento da America que se lhe seguiu; depois a nova derrota aberta para os mares da India, e em seguida o percurso que Magalhães emprehendeu circumdando o globo, foram os grandes feitos que o Mundo contemplou, e que vinham dar nova face ao commercio e á navegação. Os portuguezes tendo em devida conta as consequencias de taes feitos, tiraram d'ahi todo o partido não só scientifico, mas tambem commercial e politico. Elles não se limitaram a descobrir e a conquistar; prestaram tambem valiosos serviços á sciencia, descrevendo novos mares, seus littoraes e suas ilhas, tirando a geographia do cahos em que se encontrava, visto que ella se limitava a descrever porções de terras e mares, mas sem nexo e sem medição, e de modo que se substituia por supposições, o que a ignorancia occultava quanto ás regiões desconhecidas. Pelo lado commercial, o trafico das especiarias, drogarias e outras preciosidades do Oriente, tão appetecidas na Europa, passou a tomar o novo rumo e direcção, mais conducentes a generalisal-os e a tornal-os accessiveis. Albuquerque, fundando o dominio portuguez oriental, tomando Goa por séde de administração e apossando-se de Malaca e de Ormuz, assenhoreava-se do emporio do commercio das Molucas, da feira universal da Aurea Chersonesa; assim como expugnando Ormuz, apossava-se do entreposto por onde se effectuava d'antes todo o trafico, que tomando pelo mar Vermelho ou golfo persico, seguia depois até ao Nilo ou pelo valle do Euphrates, em cafilas, aportando no Mediterraneo, concentrando-se depois em Veneza, então rainha do Adriatico e emporio europeu de todo aquelle vasto commercio. A nova derrota maritima pelo cabo da Boa Esperança, veiu não só estabelecer um desvio d'aquella rotina, pela comparativa facilidade, desde que o carregamento de um só navio com productos da India, excedia o valor da maior caravana da Asia, e evitava seu trafego; mas tambem, outra razão peremptoria tornava essa derrota obrigada, qual era a imposição que monopolisava o commercio nas mãos dos novos descobridores, já dominantes n'aquelles mares, visto que a arabes e indios só com salvoconducto era permittido um limitado e precario trafico costeiro; assim como sob pena capital se prohibia a estranhos a navegação d'aquelles mares. Era o que consignavam as ordenações do reino no livro 5.º «Assi natural como estrangeiro, ditas partes, terras, mares de Guinéa e Indias, e quaesquer outras terras e mares e lugares de nossa conquista, tratar, resgatar, nem guerrear, sem nossa licença e autoridade, sob pena que fazendo o contrario moura por ello morte natural, e por esso mesmo feito perca pera nos todos seus beens moveis e de rays». Nem as ameaças do grande soldão do Egypto, o poderoso inimigo da christandade, nem os manejos da republica dos doges, que via cortado o nervo do seu poder e de suas riquezas, acobardaram os novos dominadores em seus intentos. O monopolio do commercio e o exclusivo de navegação ficou em poder dos portuguezes, cujas frotas navegavam nos golfos da Arabia e Persia, para cortar outro transito que não fosse a derrota do cabo, por onde tudo vinha a Lisboa, tornada assim o grande e unico emporio do Oriente, para d'alli se espalhar pelos portos da Europa, tanto do Oceano como do Mediterraneo. Tal era o systema, que o interesse aconselhava, que a politica e o espirito da epoca dictava, e que as outras nações toleravam, com aquella differença que lhes podia resultar, onde só viam não um prejuizo proprio, mas apenas uma alteração no ponto de abastecimento, e isto a troco de vantagens de uma ordem geral, desde que procedendo d'esta forma, Portugal tomava a si o encargo de desviar no Oriente a attenção do poder sarraceno, já altivo e ameaçador contra a Europa. Pode pois dizer-se que Portugal trabalhava para si, mas tambem lidava a pró da humanidade. Talvez que o interesse da humanidade, fosse mais do que o proprio attendido em todos estes procedimentos! Effectivamente Portugal foi mais longe do que a prudencia e o proprio interesse lhe aconselhava. O Oriente era o sonho dourado de todas as especulações a que o seu descobrimento e posse haviam conduzido os animos. A Africa, ficava como que abandonada a meio caminho, á semelhança do que acontece com o viandante que em demanda de aventuras busca longiquo thesouro, fascinado pelo qual, esquece outros valiosos attractivos com que topara no caminho. O Oriente era tudo, e pelo Oriente se deixava tudo o mais. Era elle o campo favorito para as especulações e aventuras, e para todos os engodos que podessem ser fantasiados pelo bello idéal, e pelo que o amor do maravilhoso deixava contemplar n'aquelle longiquo dominio. Mas um dominio, uma prosperidade que se baseava no exclusivo da navegação e no monopolio commercial, não podia ser perduravel. Havia uma desproporção mui grande entre os recursos da metropole e a immensidade d'aquelle desenvolvimento de possessões longiquas. Não é mister ir buscar a causa da declinação d'esse poderio portuguez, á corrupção de costumes que como diz J. de Barros «tinham alterado a modestia e parcimonia antigas»; antes attribuil-o como o P.e Antonio Vieira «ás injustiças e culpas de que Portugal foi réo»; nem mesmo se póde dar por causa de tal descobrimento a carencia d'aquelle valor que illustrára tanto o nome portuguez. Ainda quando este fosse de egual tempera ao dos Albuquerques, Almeidas, Castros, Athaydes e Mascaranhas, elle por si só não bastaria para manter pelo futuro um predominio, fundado em principios de direito que então se toleravam, mas que o progresso da humanidade havia de banir, mais cedo ou mais tarde, por isso que significava a negação do grande principio da liberdade dos mares. Um seculo não era decorrido desde que o Oriente vira monopolisado o seu commercio e dominados os seus mares, quando a monarchia de Portugal, perdido em Alcacer Quibir o fructo de suas anteriores victorias, passava ao regimen do rei castelhano. Esta phase politica, por si só não alterava as condições anteriores do paiz com relação aos seus distantes dominios. Deixava alli ainda de pé o simulacro d'aquelle grande poderio, pelo prestigio que o nome portuguez havia adquirido indisputadamente. Mas desde que Filippe de Castella nas suas luctas com os hollandezes prohibiu a estes o virem como d'antes ao porto de Lisboa, emporio do commercio do Oriente, era obvio o recurso que restava áquella nação de marinheiros e commerciantes ousados. Trataram de ir elles áquelles mares orientaes, fazer por sua conta um commercio do qual até então só indirectamente tiravam vantagem. Ao findar do seculo XVI, Hautman e Van Neck dirigem as primeiras expedições hollandezas, em menoscabo das prohibições de navegar nos mares do Oriente. Era para elles uma necessidade o irem procurar á origem, o que lhes era vedado no interposto que Lisboa d'antes lhes offerecia. Não iam ao Oriente renovar aquellas denodadas e cavalheirosas proezas que tinham assignalado as conquistas realisadas pelos portuguezes entre remotas gentes. O seu fito todo mercantil, era apoderar-se de um commercio já existente, procurando estabelecer-se em pontos que facilmente servissem de nucleo para dirigir aquella missão menos gloriosa, talvez mais lenta, mas mais segura, explorando em seu favor o animo das populações, e especulando com aquelles meios que facilmente occorrem a um novo dominador, quando se apresenta a povos já fatigados de um jugo mais antigo. A guerra que a Hollanda declarára contra Castella e Filippe, veio em seus effeitos affectar politicamente Portugal, como dependencia que era então d'aquelle monarcha; assim como o affectou economicamente, desde que por ella foi iniciado o desmoronamento d'aquelle edificio grandioso na apparencia, mas precario na essencia, e que por isso á falta de bases solidas cahiu com a mesma facilidade com que fora erguido. O valor portuguez, com quanto não esmorecido, não bastava para acudir a tão vasto dominio e aos calculados manejos dos seus aggressores europeus e asiaticos. Os navios da carreira da India que escapavam do naufragio eram victimas da pilhagem; a decadencia de recursos d'ahi resultante, dava áquelles novos pretendentes o ensejo de se irem apoderando da maior parte das possessões que á custa de tanto valor, cabedal e vidas, os portuguezes tinham conquistado. Era este o estado de cousas, que ao despontar do seculo XVII este herdava do seu predecessor. A Inglaterra ainda não tinha elementos que a fizessem aspirar ao grande poderio naval, quando Filippe II contra ella expediu a grande armada, mal cognominada «Invencivel». Mas a destruição d'esta imponente força naval e militar, enfraquecendo tambem Portugal que para ella contribuira com os valiosos restos da sua marinha, deu margem a que as primeiras expedições inglezas, no anno de 1601 sob o mando de Lencaster, partissem para os mares da India, conseguindo fundar em Surate e em Madrasta feitorias britannicas, que foram o germen d'esse grande dominio no Indostão, para cujo desenvolvimento tanto concorreu depois a amigavel cessão de Bombaim que passado meio seculo se estatuira no tratado entre Portugal e a Grã-Bretanha, tratado que nos valeu a sua alliança e auxilio na recuperação da independencia nacional. Algumas phases notaveis apresentam as complicadas lutas d'aquella epoca, pelas quaes se explicam as evoluções operadas nos dominios europeus no Oriente. A revolução de 1640, pela qual Portugal proclamou a sua emancipação da Hespanha, deu logar á guerra com esta potencia, que já a tinha tambem empenhada com a Hollanda. Perante o adversario commum concluiram Portugal e Hollanda no anno seguinte uma convenção, estipulando uma acção combinada na Europa, pelo auxilio reciproco de 20 navios de guerra. Mas os hollandezes, interessados n'essa acção na Europa, proseguiam no Oriente e na America a conquistar as possessões portuguezas, e assim se apossaram do Cabo da Boa Esperança e Ceilão, e de parte do Brasil. Pelo tratado de Munster de 1648 entre Hollanda e Hespanha, esta reconheceu a independencia d'aquella, cedendo-lhe não só as conquistas já feitas nas possessões portuguezas, ao tempo que estas eram dependentes da monarchia hespanhola, mas dando-lhe além d'isso o direito sobre as que de novo fossem adquirindo na India e Brasil. Por outra parte, a paz celebrada entre a França e Hespanha em 1659 pelo tratado dos Pyrineos, deixou est'ultima potencia livre e desembaraçada de inimigos para activar a guerra contra Portugal. N'este tratado o rei de França obrigava-se a não dar ao reino de Portugal auxilio ou soccorro de especie alguma, publico ou secreto, directa ou indirectamente em homens, armas, navios, viveres ou dinheiro. Abandonado Portugal aos seus unicos exforços, succumbiria perante o poder d'Hespanha. Foi então que se negociou o tratado d'alliança e casamento com a Inglaterra em 1661, cedendo-lhe Bombaim e Tanger, e recebendo auxilio de tropas e navios. N'esse mesmo anno negociava Portugal a paz com a Hollanda, estatuindo que as possessões de parte a parte ficassem ao actual possuidor na epoca da publicação do tratado. Os hollandezes demoraram tal publicação, para no intervallo effectuarem novas conquistas, e ainda nos dois annos seguintes se apoderaram de Canganor, Cananor e Cochim. D'este procedimento resultou que só em 1669 se concluiu a paz definitiva entre Portugal e Hollanda confirmando a ésta a posse de todas as conquistas, menos Cochim e Cananor, quando Portugal désse tres milhões de florins. Foi d'este modo que as possessões que Portugal adquirira por obra do seu valor, foram tomadas pelos hollandezes que mais pelo diante as haviam de perder a favor de outra potencia. Effectivamente, os ciumes e rivalidades entre as nações maritimas que de novo disputavam a primazia commercial, deu causa ao systema de reciproca exclusão. Assim foi que o acto de navegação de Cromwell, estatuindo restricções em favor da navegação ingleza, originou a guerra que a Inglaterra moveu á Hollanda. Foi no decurso d'esta, que a Inglaterra tomou aos hollandezes, as possessões que haviam sido portuguezas. Foi pois esta nova posse realisada em resultado da conquista pelo direito de guerra, não pelo roubo, como vulgarmente se insinúa, com mais espirito de sanha do que de verdade. Retrocedendo porém ás phases da guerra que os hollandezes sustentaram com tanto empenho para se apossar do que fora obra portugueza, é digno de ser notado, que a lucta foi travada não só materialmente pelas armas, mas tambem moralmente pelo meio da argumentação e controversias dos publicistas. A questão entre liberdade ou restricção, entre força ou direito, deixou de ter por unicos arbitros a violencia e as armas. Era submettida pela primeira vez a outra prova, em que a logica e a razão universal era chamada a exercer o seu ascendente salutar, constrangendo a prepotencia a ser julgada e processada na arena da discussão. Tal foi o effeito da obra publicada em 1609 pelo celebre philosopho e publicista hollandez H. Grocio, e que tendo por titulo _Mare Liberum_, compilou todos os argumentos com que a logica d'aquelle genio superior, soube demonstrar a injustiça, a inconveniencia, a lesão de direito universal d'aquella pretenção dos portuguezes ao dominio do mar, cuja liberdade o autor proclama, não só para os seus conterraneos mas para todos os povos, quando depois de appellar para os recursos da placida e austera discussão do assumpto, exaltava a justiça da guerra, que tinha tal liberdade por objectivo, e concluia com emphase egual á convicção--_Si ita necesse est, perge geris mare invictissima, nec tantum tuam sed humani-generis libertatem, audaciter propugna._ III A irresistivel tendencia que tinha levado todas as attenções e actividades por aquella inebriante senda do Oriente, deu causa como se disse, a deixar a Africa esquecida e abandonada. Mais do que isso. A Africa não só ficou desprezada como objecto que se ladeia e para o qual nem se lança a vista, mas até passou a ser como que exhaurida em auxilio e proveito de novas especulações, que eram o resultado de outro acontecimento notavel entre aquelles com que a edade media fechava a sua época. Colombo, o ousado genovez ao serviço de Castella, e que na escola de Sagres podéra aperfeiçoar-se na sciencia da nautica e da cosmographia, em sua mais feliz do que talvez directa insistencia de ir ao Oriente pelo Oeste, engolfando-se n'este rumo havia encontrado, não o Cathay de Marco Polo, mas as ilhas que, n'essa supposição, denominou Indias Occidentaes. Era a America, com a qual poucos annos mais tarde Cabral tambem topára em latitude mais meridional, quando se afastára para o Oeste em busca da melhor monção, para demandar o já devassado Cabo da Boa Esperança. Parece que o destino patenteava aquelle ignoto hemispherio para dar nova expansão á humanidade; mas contrabalançava uma tal vantagem, associando-a a outras consequencias que importariam a desgraça da Africa, desviando d'ella as attenções e cuidados, em homenagem ás exigencias d'aquelle novo Mundo que Colombo dava á Hespanha. Se Portugal tinha no Oriente um campo vasto para façanhas, conquistas e explorações, era por sua vez a Hespanha a nação á qual se offerecia identica área, para no Ocidente d'além mar alargar seus vôos no caminho de aventurosas emprezas. Uma differença porém sobresahia na missão e na tarefa que a estas duas nações cabiam. Emquanto que no Oriente os portugueses acharam regiões habitadas por povos cujo commercio já era tradiccional e florescente, e para se asenhorear do qual lhes bastou dominar as costas, e apossar-se dos mais ricos mercados impedindo a estes outras sahidas, os hespanhoes á sua parte iam encontrar na America, ilhas só habitadas por selvagens nus, ignorantes das artes, sem historia e sem commercio conhecido ou explorado; e passando ao continente, n'essas immensas florestas virgens, onde a natureza ostentava sua magnificencia n'uma vegetação luxuosa opulenta e variada, só mais tarde é que as minas de ouro e prata do Potosi e de Zacatecas poderam offerecer uma fonte de riqueza para attrair a attenção da metropole, pois as extorsões nos desgraçados indios, e a pilhagem dos templos de Cusco e do Mexico, serviam mais para locupletarem os invasores, do que de proveito ao governo do paiz em cujo nome se apresentavam. Mas uma raça inerte, fraca e enervada, não podia fornecer a estes novos occupantes os meios de explorar vantajosamente as riquezas a extrair do seio da terra. As violencias que soffreram os indigenas, as crueldades n'elles exercidas dizimavam a população trabalhadora. Para sanar este mal recorreu-se a outro meio apparentemente mais plausivel, mas não menos deshumano, e tão depravado, qual foi a importação dos negros d'Africa, trafico este para o qual, a torpe especulação mercantil queria achar pretextos que o justificassem, mas onde o engodo do ganho fazia calar a voz da consciencia dos especuladores d'este mercadejo de corpos opprimidos pelo trabalho e soffrimento, e de almas embrutecidas pela servidão; mercadejo infame no qual ao ganho realisado pelo trabalho do negro, se accrescia o ganho realisado sobre o proprio negro como cousa ou artigo de mercancia, e objecto de regulamento. Tal foi a origem do trafico de escravos, que desfalcando a Africa de seus braços em vez de os convergir em seu proveito, afastou d'alli a attenção da Europa, para tudo quanto não fosse sacrifical-a ás especulações egoistas e inhumanas de que a America era causa e objectivo. Esta origem ignobil de fortunas adquiridas á custa de miserias e aviltamento da especie humana, ainda tomou outra feição não menos abominavel, desde que com ella se especulou, reduzindo-a a um monopolio official adjudicado a contratadores, que tambem punham a preço a distribuição d'esta mercadoria de carne humana com que a Africa contribuia como adubo, do qual se fazia depender a prosperidade das colonias do novo Mundo. Já na primeira decada do seculo XVI, o tribunal de commercio de Sevilha prefixava em 4:000 o numero de escravos annualmente reclamados para as Antilhas. O monopolio do trafico foi primeiramente concedido por Carlos V aos flamengos, assim como mais tarde o foi por Filippe II aos genovezes, como retribuição de serviços, sendo sempre com o caracter de fonte de receita que taes adjudicações se concediam a prazos, por contratos denominados _assientos de negros_. N'estes contratos ou _assientos_ se regulava o numero de escravos a transportar, designando-o por cabeças, por peças de India e até por toneladas, como se consigna no _assiento_ com a companhia portugueza de Guiné, de 1696 a 1701, obrigando-se ésta a fornecer 10:000 toneladas de negros! É notavel que á proporção que augmentavam os lucros d'este trafico, os contratos tomavam a fórma mais solemne de tratados entre potencias. O tratado de 1701, concedendo o monopolio do trafico á companhia franceza de Guiné, estipulava que as corôas de França e Hespanha ficavam interessadas, cada uma, na quarta parte dos lucros. E depois o tratado celebrado entre Hespanha e a Grã-Bretanha em 1713, estabeleceu em favor d'esta a adjudicação do monopolio d'este trafico com as colonias hespanholas da America, para durante o praso de 30 annos n'ellas importar 144:000 negros peças de India de ambos os sexos, sendo 4:800 em cada anno, e podendo os assentistas empregar n'essa conducção os navios propriedade de Sua Magestade Britannica. É certo, todavia, que muitas vezes a grandeza do mal marca a hora da reacção tendente a cohibil-o. Assim, as importantes lutas internacionaes do fim do ultimo seculo e começo do actual, em que se debatiam grandes questões de supremacia maritima e commercial, influiram para que variasse a politica até então seguida por varias nações com relação ás colonias. Erguiam-se vozes auctorisadas nas regiões da diplomacia, lançando stygmas sobre o trafico de negros. As tentativas generosas de Clarckson e de Wilbeforce, que ainda no começo do seculo eram no parlamento britannico apenas secundadas pelo echo de suas vozes, pouco tardou que não fossem coroadas de exito durante o ministerio de coalisão de Fox e Granville, em que a politica ingleza se declarou e se fixou decididamente pela repressão da escravatura. Proclamados estes principios no congresso de Vienna, e acceite a doutrina pelas nações cultas, em breve passou a ser sanccionada internacionalmente pelo direito convencional dos tratados. Justiça deve ser feita a Portugal, que apezar da immerecida reputação de ter sido um dos fautores d'aquelle trafico reprovado, foi todavia o que menos tardou em acceitar todas as medidas e pactos que á restricção do mesmo se propunham. Era com razão que o ministerio Passos-Sá da Bandeira, publicando o decreto de 10 de dezembro de 1836, que prohibia a escravatura nas possessões portuguezas da Africa, consignava no relatorio que o precedia, que «o infame trafico de escravos é certamente uma nodoa indelevel na historia das nações modernas; mas não fomos nós os principaes, nem os unicos, nem os peiores réos. Cumplices que depois nos arguiram, tambem peccáram mais, e mais feiamente.» Nos periodos de transição é frequente darem-se attritos e levantarem-se dificuldades em superar os effeitos de inveteradas praticas, e mais ainda quando uma nova ordem de coisas vem affectar interesses systematisados. Não é de admirar portanto, que não sómente nos especuladores, mas até d'entre funccionarios locaes, partissem exemplos que dessem logar a suspeitas, de ser o engodo do lucro um movel superior ao sentimento do dever. D'ahi surgiram desconfianças e azedumes, que deram logar áquellas pressões menos razoaveis e insolitas, com que a politica de lord Palmerston se tornou exigente e insoffrida para com Portugal até ao ponto de ter tanto de oppressiva como pouco de generosa e justa; politica excepcional, que mais devia servir de labéo á prepotencia do homem de estado, do que ao caracter de uma grande nação. Foi essa effectivamente uma politica individual, caracteristicamente prepotente, e da qual tambem outras nações sentiram a acção; e tanto assim que Portugal teve no parlamento britannico vozes em seu favor, entre as quaes, a do illustre guerreiro da peninsula, o duque de Wellington. Mas nas condições actuaes tudo é diverso. Então era a apresentação de um bill, lesivo da dignidade de uma nação, e que a feria no seu direito de independencia. Agora é a negociação de um tratado, em condições de reciprocidade e mutuas franquias, o que em principio é mais do que o reconhecimento; é a garantia e confirmação da sua independencia e direito de egualdade. Então sim que toda a repulsa era nobre e digna; agora toda a reluctancia e desdem, são injustificados. Os resentimentos e aggravos que n'aquelle periodo anormal se seguiram, foram pouco depois habilmente sanados pela celebração do tratado de 1842 entre Portugal e a Gram-Bretanha, tratado que desde logo em direito, embora só mais tarde de facto, veiu tornar uma realidade o decrescimento e quasi total extincção do trafico de escravos nas possessões portuguezas da Africa. O trafico deixou de existir como regra estabelecida e tolerada, limitando-se a dar amostra de si apenas como excepção furtiva e condemnavel. Mas, o ultimo passo para se chegar á sua completa extincção, está nas leis mais modernas, que abolindo a condição de escravo e o estado servil, consignáram o que o direito natural prescreve, isto é, a liberdade do homem, sem attender a côr, condição ou logar. Foi este decerto o golpe final n'aquella aberração social e depravada pratica, a escravatura, que foi um dos grandes obstaculos á civilisação da Africa. IV Quatro seculos encerram um periodo, cujo começo se assignala pelo descobrimento da America e determinação da orla maritima até aos limites austraes da Africa, mas cujo termo nos deixa vêr em nossos dias as vastas regiões centraes d'esta velha parte do Mundo, em condições que pouco se avantajam áquella, em que as deixaram os primeiros que lhes demarcaram os contornos, emquanto que na America vemos um novo continente explorado e colonisado em todo o littoral e interior da sua vasta extensão nos dois hemispherios. As transições pelas quaes passou esta grande parte do Mundo, segundo a tendencia e indole das nacionalidades que a si vincularam sua exploração e posse, por longo tempo a amoldaram ás feições que taes elementos e systema da colonisação lhe imprimiram. Mas as grandes luctas de predominio e de interesses em que a Europa andou empenhada desde o ultimo quartel do seculo passado e durante o primeiro do actual, dando logar a vicissitudes e modificações na politica e na economia de varias potencias, foram causas, que prepararam a emancipação de todos aquelles dominios. As frotas annuaes dos galeões de Cadix e das Philippinas, que combinavam suas derrotas pelas Antilhas até Porto Bello, ou de Manilha até Acapulco, para monopolisar o commercio d'aquellas regiões e o transporte das riquezas do Novo Mundo, deixaram de ter a sua epoca. O trafico do Brazil restringido todo a convergir em Lisboa, cedeu o logar á concorrencia, pela abertura dos portos ás nações consumidoras de seus productos de tão geral procura e consumo. Na America septentrional, a formação de um grande estado maritimo e commercial, actuou nas relações internacionaes, desde que deu força aos principios favoraveis á bandeira cobrir mercadoria, e a garantir os direitos dos neutros. A independencia politica successivamente proclamada e firmada de norte a sul das Americas, constituindo novos e robustos estados com todos os elementos de uma civilisação adiantada, e com todas as vantagens de um solo fertilissimo em productos de ampla procura, teve em resultado acabar com todas as restricções e exclusões, para dar logar a um commercio extensissimo, sempre crescendo em importancia e actividade, com prodigioso desenvolvimento da navegação, e contribuindo não só para o augmento das relações com as antigas metropoles, mas tambem com os grandes mercados e centros de consumo, tornando cada vez mais firmes e garantidos, pela solidariedade de interesses resultantes, os principios de direito maritimo internacional, e de economia social, em vantagem de todos os povos. O quadro que fica exposto, como resultado da abolição do systema restrictivo, abrange em seus traços o que se observa percorrendo todos os mares e regiões da Asia e Oceania até aos confins do Globo. Nas costas e portos das Indias, da peninsula Malaia, dos imperios Birman, China e do Japão, e até da Australia e Nova Zelandia, e ainda em volta até ao Pacifico, se encontram não só emporios commerciaes mas tambem pontos de escala de uma navegação prodigiosa, entretida por numerosos e explendidos navios, onde a architectura naval, a sciencia do engenheiro, e a industria do ferro, nos deixam ver maravilhas da arte, em typos de magnificencia, solidez e segurança, estabelecendo pela livre concorrencia e pela rivalidade no serviço, aquella activa, permanente e admiravel rêde de communicações, que o telegrapho auxilia, e que o caminho de ferro ramifica pelos continentes. Vae-se hoje aos antipodas, e quasi se faz o circumgiro do globo, com a mesma rapidez, e com maior segurança e conforto, do que ha apenas meio seculo se ia de um ponto a outro da Europa. A propria Australia e a Nova Zelandia que ha apenas um seculo eram, aquella povoada de tribus antropofagas, e ésta ainda desconhecida, partilham hoje dos mesmos resultados, deixando ver, como em paragens onde ha pouco só havia a floresta virgem, ou banquetes canibalescos do Gunya ou do Maori selvagem, ao presente se ostentam cidades florescentes onde a colonisação, a indole e o genio da raça anglo-saxonia, implantou todos os progressos que a civilisação opéra, e onde todos os estabelecimentos e recursos que o commercio reclama e a industria anima, rivalisam com os que se encontram nas mais opulentas cidades europeas. Isto que ha um seculo pareceria um sonho phantastico, e ha meio seculo uma utopia de visionarios, é hoje uma realidade. Por visionario e utopista seria tido, quem exaltando o alcance d'este grande resultado de um systema menos egoista do que o então seguido, ousasse condemnar a frota dos galeões, os monopolios de trafico, o trabalho servil, os exclusivos de bandeira, a vedação de portos, e as theorias do _mare clausum_. Infelizmente nem as theorias nem os exemplos poderam ainda conseguir, que deixasse de haver uma excepção bem frisante n'aquelle quadro geral e progressivo do movimento commercial do Mundo. Mais infelizmente ainda é ter de reconhecer, que uma tal excepção, que bem destôa da regra, é a que se encontra na Africa, alli onde o dominio portuguez mantém com uma teimosia ferrenha aquelle systema de restricção, de ciumes e de formalidades prohibitivas, cujas ruinosas consequencias não podem achar desculpa que lhes attenue a causa. A questão importante e que hoje interessa a tantas nações e governos, qual é o empenho na exploração da Africa para aproveitar os seus recursos ao commercio e industria, e abrir alli novos mercados e centros de consumo, não têem referencia ás regiões septentrionaes d'aquella parte do Mundo, cujos estados desde Marrocos e Argel até ás dependencias suzeranas da Porta, se por um lado estão em communicação com o Mediterraneo, por outro encontram o grande deserto impondo uma barreira impeditiva ao caminho para as regiões centraes. A attenção fixa-se pois sobre a orla das costas occidental e oriental africanas, que circundam o grande continente, e atravez das quaes, pelo aproveitamento de seus accessiveis portos e extensos rios, é que pode estabelecer-se a communicação que de ingresso ás regiões, cujo accesso o commercio disputa, e a civilisação reclama. V É fóra de duvida, que dos occupantes do littoral do Oeste e Leste da Africa é que está dependente o franquear o transito que deve conduzir á realisação de um grande fim, que a humanidade reclama e que a justiça sancciona. Observando qual seja ainda hoje a feição predominante na administração d'estes dominios, embora elles tenham já conhecido melhoria de riqueza publica desde a abolição do trafico d'escravatura, ali encontraremos ainda a ausencia d'aquelles elementos que mais eficazmente contribuiriam para a grande obra da civilisação da Africa. Assim, procurando qual seja a acção da catechese pelas missões, veremos que é nulla, desde que se descura e se repelle esse meio tão efficaz para tirar o preto boçal da sua brutal condição, e tão facil de crear amigos, de estabelecer influencia e alargar o dominio. Em fins de 1876 consignava o governador geral de Angola na sua allocução á junta geral da provincia, o seguinte: «Que ali estava uma enorme provincia immersa em um profundo obscurantismo, sem ainda sonhar com o dia em que a libertaria das cadeias da mais estricta animalidade.» Em todo o sertão de Angola e Moçambique, nada ha que se assemelhe na fórma nem nos effeitos, ao que se observa de proficuidade na missão franceza do Gabão, bem como n'essas outras que proseguem auxiliadas pelos proprios governos heterodoxos, na sua obra civilisadora em differentes estancias do interior da Africa. Obra humanitaria e civilisadora, cujo empenho é dar ao indigena uma religião, um inicio de perfeição no estado social, e o amor do trabalho, constituindo os laços da familia. Nada d'isto se encontra nos dominios portuguezes. Ha o culto do fetichismo, e do milongo, entre os pretos. Ha indifferentismo na população de origem europea. Perpetua-se a tal animalidade que o governador d'Angola notou. E como não ha de assim acontecer se o missionario não for ligado ao preceito da obediencia, e movido por aspirações mais ricas de desprendimento, por estimulos que se bazeam na abnegação, e na coragem até ao proprio sacrificio. Tudo que isto não seja, o missionario isolado, e sem regra de consciencia a que obedeça, e só ligado por qualquer interesse mundano, será sempre como o soldado, que se pretendesse tornar elemento de força militar, mas sem chefe e sem disciplina, livre em seus actos, e livre para deixar o serviço quando lhe aprouvesse. Não se faz guerra sem tropa de linha; não ha missões proprias sem a milicia religiosa. Segreda-se que é indispensavel, mas em publico nega-se. A verdade é esta. Não ha, como n'outros paizes, os elementos para uma efficaz e proficua missão ultramarina. Substitue-se essa falta, enviando todos os mezes uma leva de missionarios de differente cunho, que partem de outra especie de convento onde se professam outras regras, qual é o presidio do Limoeiro, para irem com o seu exemplo e sua doutrina civilisar os pretos! A colonisação europea na Africa portugueza, alimenta-se principalmente com os facinoras, cujos crimes na metropole, por horrorosos que sejam, só tem por punição, não o que serviria de terror salutar para cohibir outros crimes, mas sem transportar o criminoso, ás vezes a seu contento, de um para outro territorio! Na epoca dos descobrimentos abandonavam-se alguns condemnados nas plagas inhospitas da Nigricia, como por commutação de pena, a fim de que por meio d'esses entes assim degradados da sociedade que haviam ultrajado, se obter eventualmente informações dos povos indigenas. Era então um correctivo, e ao mesmo tempo um aproveitamento. Hoje perpetua-se o systema; o que era excepção motivada, conserva-se como regra, mas em condições mui diversas quanto ás causas e quanto aos effeitos. Pretende-se estabelecer a pena appellando para a morte lenta por effeito de um clima deleterio! Nem a moral, nem a justiça, nem a conveniencia pódem sanccionar tal versão. Mas não é tudo. A força publica que deveria ser o elemento de prestigio da auctoridade, do predominio europeu, da manutenção da ordem, do respeito ás leis, e da segurança publica, é composta d'aquelles mesmos criminosos, que os tribunaes condemnam e que a metropole por castigo envia, para onde outros vão sem fazer por merecel-o; n'uma palavra, a força publica é composta d'aquelles elementos, para cuja repressão ella tem razão de ser. Singular anomalia ésta, que por outra parte se pretende corrigir com a monstruosidade de uma disciplina, que consiste em despedaçar creaturas humanas, com milhares de golpes de chibata, dando-lhes a morte sem processo, sem lenitivo espiritual, e entre torturas tão horrorosas, que o consideral-as deixa a perder de vista as scenas de horrores que se narram de povos mais barbaros. Quanto ao commercio e communicações, mantem-se a restricção como systema, a ficticia protecção em logar da livre concorrencia. Classifica-se como cabotagem o commercio maritimo para longiquos dominios, n'um percurso nautico de milhares de legoas, dando em resultado afastar aquella concorrencia com que lucraria o trafico, e reduzir quasi á nullidade a navegação nacional, a não ser a que é entretida pelas escassas linhas favorecidas. Estas são taes, que quando, n'uma só carreira mensal entre Angola e Lisboa, se completa uma viagem que não exceda de 30 dias, aponta-se esta como notavelmente rapida, quando aliás a quasi dupla distancia entre o canal Britannico e o cabo da Boa Esperança, é _semanalmente_ percorrida, sem que as viagens excedam a vinte dias, e sem prohibição ou obstaculo para quem egualmente as queira percorrer. Obrigam-se a escala forçada por Lisboa, os productos da Africa vindo sob bandeira privilegiada; e impede-se o trafico sob qualquer outra bandeira, embora a frete mais barato, e portanto mais vantajoso para o commercio. Annunciam-se linhas de navegação que de outros paizes demandam os portos d'Africa, tocando em Lisboa; mas a legislação é tal, que obriga a que conjunctamente tambem se annuncie: é _prohibido levar carga para os portos portuguezes_. Isto que deveria ser incrivel, é todavia a realidade! A navegação dos rios por vezes sujeita a contractos de exclusivo, impedindo a concorrencia, tem limitado a exploração ao capricho ou interesse dos concessionarios. É este o conjuncto de formulas, que representam o estado social e economico dos dominios portuguezes nas costas de Africa, embora n'estas se achem os melhores portos, e n'ellas desaguem os mais extensos e navegaveis rios, que a Providencia destinou como para serem os meios de communicação desde o Oceano até ás regiões centraes. Medeiam entre estes dominios, as possessões inglesas do Cabo, e as da colonia do Natal. O estado de prosperidade d'estas pode ser avaliado, notando que no espaço de quarenta annos, a actividade da raça anglo-saxonia, e o seu systema de administração, alli formou uma cidade como Durban, povoada por milhares de europeus, e notavel em belleza e explendor, pela regularidade de suas praças e ruas, onde se encontram luxuosas lojas, sumptuosas egrejas, magnificos parques, numerosos hoteis, escriptorios e armazens, e onde a par de um movimento activo e ruidoso de toda a especie de vehiculos, já se ouve o silvo da locomotiva, e se observa o bulicio das estações dos caminhos de ferro. Que triste é a confrontação com o que se vê no nosso velho Moçambique! Mas alli, onde os esforços da arte e o aproveitamento dos recursos naturaes, operou taes milagres da civilisação, a natureza por outro lado não foi prodiga em conceder portos ou bahias em local adequado para servirem de grande avenida para a Africa central. Estes, e em taes condições encontram-se na costa mais oriental, na provincia de Moçambique, sobresaindo Lourenço Marques como aquelle que por sua capacidade e situação mais limitrophe das possessões inglezas, offerece a perspectiva de ser destinado para o melhor e mais accessivel emporio do commercio com o Transwaal, Orange e outras regiões centraes, tornando-se assim o interposto pelo qual se encaminhará o commercio, que para a Africa será um dos meios mais conducentes á obra da civilisação, e que tão louvavel é de promover e auxiliar, como seria crime de lesa humanidade o pretender estorval-o. Se a confrontação do estado d'aquellas differentes possessões europeas, deixa tão desagradavel impressão, por outra parte se compararmos entre si os dominios portuguezes das costas occidentaes e orientaes, ahi encontraremos identicas condições da existencia intima, variando porém n'um ponto aliás importante. Na costa occidental, o nosso dominio territorial termina com o sertão do gentio, e não com estados reconhecidos pelo direito publico como fazendo parte de nações constituidas. Alli portanto, a administração, boa ou má, e as praticas com os visinhos, são até certo ponto questões domesticas ou de direito privado, que só reflectem nos dominios d'este, e não affectam os interesses de outras potencias, nem as relações de direito externo. Na costa oriental são diversas as condições, pois se por uma parte temos por confinantes os regulos ou chefes de tribus africanas, por outro lado temos por visinhos limitrophes os territorios sujeitos á soberania de uma potencia europêa, a Inglaterra. É pois ésta uma circumstancia mui attendivel, por isso que d'ahi resultam direitos e deveres reciprocos, que para serem mantidos e respeitados, é mister que não se falte aos dictames das praxes usadas internacionalmente entre estados constituidos, e impostas pelo que recommenda a solidariedade das nações cultas. VI Desde que a politica, que se póde dizer europea com relação á Africa, se empenha pela exploração d'esta como sendo uma perspectiva de abrir novos centros de consumo para as industrias, e vasto campo para o commercio, o instrumento d'esta louvavel politica encontra-se unicamente nas duas nações alli dominantes, mas que fazem parte da communhão europea, e taes são Portugal e a Inglaterra. Fóra d'estas, só ha as tribus da negreria, e quer sejam Cetewayo, Secocoeni ou Bonga os seus chefes, não podem haver compromissos internacionaes que d'elles fiquem dependentes. Haverá alli tribus e hordas, mas não ha alli estados reconhecidos. Compete pois áquellas duas nações a honrosa e importante obrigação, de serem as mais activas e empenhadas no emprehendimento d'esta moderna cruzada, pelo mutuo accordo n'esta benemerita missão. A parte que n'esta devem tomar estas duas nações, ambas independentes, e portanto com regalias identicas perante o direito de egualdade, deve ser commum e accorde, porque commum é o interesse material e moral que d'ahi lhes resulta. Portugal e Gram-Bretanha são estados amigos e alliados de antiga data na Europa; mas ainda que o não fossem bastava-lhes o serem unicos no dominio, e visinhos em territorio na Africa Oriental, para moralmente serem mui especiaes as suas condições em diplomacia no continente africano. Mas além d'esta consideração moral, tambem a sua posição de confinantes, faz com que nada possa obstar a que sejam visinhos limitrophes; e desde que assim é, nada póde tornar recommendavel, que em vez de n'essa qualidade irem sempre em harmonia e desprendidos de egoismos e rivalidades, tornassem n'um systema de desconfiança, o que só deve ser cooperação leal, no accordo mutuo de serem os representantes da civilisação europea perante a barbaria. Para o conseguimento pois da grande empreza que d'estas nações depende, não basta que de sua iniciativa partam expedições de viajantes que vão explorar as regiões ainda não conhecidas. Feitos são estes que revelam coragem individual, e que tambem significam colheita para a sciencia geographica, geologica ou anthropologica; mas a par d'isto tambem dão a conhecer que o mal existe e carece de remedio, mas não constituem por si o remedio para o mal que denunciam. É preciso mais. É preciso abrir as avenidas por onde as communicações se estabeleçam e o commercio se encaminhe. Estas avenidas, estes focos de proficua actividade, é mister serem franqueados, sem restricções e sem exclusivismo. Somos senhores territoriaes de mais de 300 leguas de costa, onde dominamos; mas por isso que somos os donos, não devemos ser os monopolisadores. Já passou a epoca do _mare clausum_. A missão agora a cumprir nem é exclusiva de Portugal ou da Inglaterra; é da acção combinada e accorde d'estas duas nações como unicos e solidarios representantes alli, da civilisação e do direito publico europeu, e como sendo as nações que mais directamente n'isso interessam, conciliando a vantagem propria com a reciproca, e com as exigencias das nações cultas. A hesitação em compartilhar d'esta empreza e de tomar ésta feição no campo da diplomacia com relação á Africa, seria da parte de Portugal procedimento analogo a recusar-se na Europa em adherir a um Congresso de potencias, negando-se a ser solidario com as suas decisões. O congresso no caso actual, cifra-se ao accordo e ás decisões de Portugal e Inglaterra. Não annuir a uma tal versão seria para Portugal, o mesmo que desprezar uma phase que lhe daria importancia no conceito das outras nações; significaria não querer saír do marásmo, a troco de escrupulos infundados sobre a sorte dos padrões de suas glorias, considerando os restos de suas antigas conquistas como quadros de familia nos quaes não se póde bulir. Mas visto termos padrões de glorias passadas, tanto mais razão para que éstas se não offusquem ou occultem. Para isso é necessario amoldal-os ao que o espirito da epoca recommenda, e a humanidade exige. Gloria não é guardar intactos e fechados em carunchosa arca, os quadros de familia, em vez de os dispor, sacudidos da traça do passado, em vistosa galeria onde se admire o merito dos que os adquiriram, e o bom juizo dos que os sabem conservar com aproveitamento. Gloria é mostrar-se digno herdeiro de preteritos feitos, sabendo aprecial-os pelo presente, e tornal-os fecundos para o futuro. Foi gloria navegar por mares não d'antes navegados, usando do astrolabio e da balestilha, vencer a moura resistencia a golpes de lança e de adaga. Não seria hoje gloria deixar o sextante pelo astrolabio, nem o fuzil pela partazana, desde que com os novos instrumentos e armas, melhor podemos servir a causa do progresso e da humanidade. Estas considerações são as que resultam apenas da apreciação generica do assumpto. O principio é applicavel como these a quaesquer que fossem os Estados constituidos, e com soberania reconhecida na Africa. Passando porém da thése á hypothese, ainda mais valor e cabimento ellas tem, desde que se dá n'esse caso a circumstancia de serem applicaveis a duas nações, taes como Portugal e a Gram-Bretanha, entre as quaes existem outras affinidades e uma reciprocidade de interesses commerciaes e politicos, que a par de uma tradicional camaradagem na paz e na guerra, torna natural e justificada a manutenção da melhor harmonia, lealdade e confiança nos seus mutuos procedimentos. As simples regras estabelecidas pelo direito das gentes, natural ou primitivo, limitam-se a regular os procedimentos entre nações, consideradas como entidades moraes collectivas, e só para não faltarem entre si, aos principios que a justiça natural ensina, e a razão dicta. Não são porém sufficientes quando no trato internacional se pretendem ampliar e desenvolver outras relações, além d'aquellas que se referem meramente ao respeito e guarda dos mutuos deveres e direitos. É mister então recorrer ao direito secundario ou positivo, pelo qual se estipulam pactos ou convenções mutuas, cujo fim é ampliar e regular em condições de reciprocidade os direitos e deveres communs que d'ahi se originam. Tal é o _direito convencional_, resultante dos tratados internacionaes, o qual constitue uma das phases mais importantes no direito publico de todas as nações civilizadas. Os tratados publicos são pois pactos solemnes, celebrados em nome do principio da soberania, e cujo fim é estreitar relações, e crear interesses entre differentes Estados, fazendo desapparecer as restricções que n'outros tempos eram impedimento ao commercio, á navegação, ás communicações, e até ao ingresso nos territorios, e á reciproca usufruição de seus productos ou attractivos. É por elles que se baniu o _jus naufragii_, o confisco da propriedade estrangeira por successão, e outras praticas, restos da edade media, que Montesquieu já qualificava de _direitos insensatos_. Sem o direito convencional, as nações da Europa estariam bem longe do estado de civilização e d'aquelle progresso material que d'ella são o resultado. É em harmonia com esta doutrina, de si indisputavel, que na actualidade e com relação á Africa oriental e austral, um tratado entre Portugal e Inglaterra constitue uma phase de direito convencional, tão imperiosamente reclamada, que para o desmentir seria mister ir de encontro a todas as theorias que as sciencias sociaes recommendam, que o bom senso indica, e que o exemplo aconselha. Duas nações europeas, dominantes na Africa, representam, ainda que o não quizessem, a homogeneidade da civilisação perante a barbarie de póvos incultos. Regular as relações reciprocas d'estas duas nações, e assim promover os interesses de um caracter mais generico e nobre, que devem resultar da sua acção e accordo commum, é não só uma conveniencia reciproca, mas até uma necessidade absoluta e indeclinavel, de grande alcance material e moral. A Inglaterra possue territorios cuja prosperidade lhe impõe a necessidade de alargar e facilitar as communicações com as regiões centraes da Africa. Faltam-lhe, porém, os portos espaçosos e os rios navegaveis como os que Portugal possue nos seus dominios limitrophes, n'um extenso littoral, e os mais adequados para um grande desenvolvimento de commercio. Deixárem-se ficar nas áctuaes condições, seria, para uma e outra nação, perder o que uma e outra poderiam ganhar. Equilibrar uma tal desegualdade tornando extensivas e communs a ambas o goso e as vantagens resultantes da sua acção combinada, é quanto o direito convencional se incumbe de realisar pelas estipulações dos tratados internacionaes. Tal é o procedimento que compete a todo o paiz, que em taes circumstancias queira proceder ajuizada, patriotica e humanitariamente, e de modo a não desmerecer do conceito de nação culta e esclarecida. Na governação dos estados, os procedimentos que regulam as relações externas carecem de ser reflectidos, sensatos, e não subordinados a opiniões sem criterio, ou a logares communs, que partindo de um desdem muitas vezes ignaro, o vulgo acceita e repete como sentença, quando aliás não teem outra significação, nem merecem outro conceito que não seja o de phrases gratuitas e banaes, que resentimentos partidarios ás vezes exploram, para armar a um falso sentimentalismo patriotico. Pois com que fundamento, com qual criterio se póde allegar em these que uma nação pequena, como Portugal, não deve celebrar tratados com uma nação mais poderosa, como a _orgulhosa_ Inglaterra? A Inglaterra é, sem duvida, uma nação poderosa; e não o é somente pelo dilatado dominio e pela preponderancia no systema politico do Mundo, mas tambem pela seriedade do seu caracter nacional, seu amor á liberdade, espirito de tolerancia e respeito ás leis. Talvez que seja orgulhosa, mas porque terá razão de o ser. Outros haverá tambem que com menos razão o sejam. É orgulho impor-se a si proprio; mas tambem o é, o desdem pelo alheio. O orgulho nos poderosos será desvanecimento; nos pequenos é jatancia. Ser discreto é tão nobre n'aquelles, como é decoroso n'estes. O direito convencional não se estabelece tomando a medida da maior ou menor força material dos contratantes, pois é preceito de direito internacional, que ás nações assiste o direito de _independencia_, bem como o de _egualdade_, qualquer que seja a extensão de seu territorio, forças, recursos ou riquezas. Seria, pois, uma utopia absurda a pretensão de que os tratados só devem ser celebrados com nações menos poderosas. Seria admittir o perigoso principio, de que só a força suppre o direito. Esta é que seria a pessima doutrina para as nações pequenas. Seria tambem curioso o processo para obter o dynamometro politico que désse a medida de taes forças relativas. O certo é que muitos tratados celebrou Portugal com nações poderosas, e por isso tambem occupa um logar conhecido na communhão d'ellas. Nem é indecoroso para os pequenos o merecer a alliança dos mais fortes. Os póvos selvagens é que não conhecem tratados, nem são por elles conhecidos. Com a Inglaterra foram celebrados differentes tratados notaveis, entre os quaes o de 1661 com Carlos II, tratado este denominado de alliança e casamento, e que foi o que contribuiu para firmar a independencia do paiz, á custa de condições onerosas certamente, mas que bem valiam o conseguimento d'aquelle fim. Os anteriores tratados, de 1642, com Carlos I, e de 1654, com o protectorado de Cromwel, já tinham por objecto, aquelle o auxilio a Portugal na luta contra a Hespanha, e este ultimo é um dos primeiros tratados em que se consignou a doutrina de que a bandeira cobre mercadoria. Os tratados, de Methuen de 1703, e o de 1810, que foram considerados como prejudiciaes ás industrias fabris pelos sectarios da escola prohibitiva, são differentemente avaliados em seus resultados por varios economistas e historiadores. É certo que favoreceram notavelmente o commercio dos productos vinicolas, e deve notar-se em que circumstancias politicas da Europa elles foram concluidos; aquelle, por occasião da guerra da successão de Hespanha, e que obrigou Portugal a tomar parte na liga europêa contra as pretensões da França sobre a peninsula; o outro, na época em que Napoleão dictava a lei ao continente, e tinha pelo decreto de Milão, dois annos antes, lançado sobre Portugal uma contribuição de guerra de cem milhões, a titulo de resgate da propriedade! Dos tratados de 1842, um deu o benefico resultado da cohibição da escravatura na Africa; o outro elevou o commercio entre os dois paizes a um grau de desenvolvimento tal em importação e exportação, que em valor quasi equivale ao que todos os outros paizes teem com Portugal. É a estatistica que assim o affirma. E apezar das theorias já caducas da balança mercantil, o commercio internacional não é outra coisa senão a applicação da divisão do trabalho a todo o genero humano. VI Os pontos sobre os quaes póde versar a apreciação de um tratado, são os que dizem respeito ás formalidades essenciaes para a sua negociação, e á natureza das estipulações n'elle consignadas, isto é, o que é relativo á fórma e á essencia. Um tratado publico, sendo uma relação de estado a estado, tendente a ampliar ou modificar direitos primitivos, e a estabelecer novas concessões ou obrigações reciprocas, constitue um facto solemne entre nações, que, como entidades collectivas são n'este caso e para effectuar a conclusão de tal facto, representadas pelos seus magistrados supremos como aquelles que tambem são os representantes do principio da soberania, qualquer que seja a fórma de governo das nações contractantes. Estas entidades pessoaes, na impossibilidade ou difficuldade de se pôrem em contacto, delegam poderes amplos n'aquelles seus funccionarios aos quaes se incumbe a negociação, e que por isso se denominam plenipotenciarios. São condições de validade para um tratado, segundo todos os publicistas, os poderes para o negociar, o consentimento reciproco, e a possibilidade da sua execução. N'estes pontos, as formulas e praxes prescriptas pelo direito consuetudinario, foram seguidas, no tratado de 30 de maio de 1879, e por tanto o que mais interessa na analyse d'este, é quanto diz respeito á sua essencia, no que concerne ás suas disposições e clausulas. Convém notar que tambem são accordes todos os publicistas, em que os tratados publicos só são realisados entre nações independentes e constituidas, regidas por um direito publico. É pois d'isto uma consequencia, que a conclusão de um tratado como este, é uma implicita garantia de independencia, e não um perigo ou lesão para ésta. O estado de guerra entre duas nações, faz cessar o effeito de quaesquer tratados entre ellas existentes. As pendencias entre nações passam em tal caso a ser decididas pela força e não reguladas pelo direito. Tem pois os tratados por unico objecto o regular os procedimentos entre nações durante as suas reciprocas relações pacificas, por amisade ou por alliança, e tendentes a promover n'esse sentido os interesses e vantagens communs. D'ahi resulta a praxe consuetudinaria de se consignar no preambulo ou no texto de taes documentos, a confirmação d'essas relações amigaveis, e o desejo e tenção reciproca de as manter e estreitar. Ha pois nos tratados uma parte que diz respeito a formulas, ou á confirmação de relações já preexistentes; outra parte, a mais importante é a que diz respeito a estatuir novos direitos e deveres reciprocos, mediante as concessões ou clausulas com que o direito secundario vem affectar ou ampliar os principios do direito primitivo, e assim dar amplitude ás relações internacionaes de um modo positivo, e tendente a um fim que haja em vista de conseguir. Seria assás prolixa a transcripção na sua integra do tratado de 30 de maio de 1879, conhecido por «tratado de Lourenço Marques» a fim de avaliar de um modo absoluto e comparativo as suas condições genericas, e mais especialmente aquellas a respeito das quaes se tem manifestado as mais meticulosas apprehensões. Bastará portanto transcrevel-o em extracto; e a fim de o fazer de um modo insuspeito, será elle o mesmo que se apresentou n'um jornal, que usando de um titulo que significa competencia, manifestou sempre opinião tão adversa ao tratado, a ponto de o qualificar de _monstruoso_ e _iniquo convenio_. Entre-se pois na analyse do assumpto, começando pelo artigo 1.º do tratado. «Concede aos subditos das duas nações contratantes reciprocidade de direitos nos dominios da Africa do Sul e da Africa Oriental, para residencia, transito, _posse de terrenos_ e commercio». Este artigo não contém doutrina nem concessões que não estejam já consignadas e ainda com maior latitude, no tratado de julho de 1842 celebrado pelos plenipotenciarios Duque de Palmella e Lord Howard de Walden, tratado cujas disposições ainda vigoram e tem vigorado sem o menor inconveniente, antes com grande utilidade. N'aquelle tratado de 1842 (art. 1.º, 2.º e 3.º) não só se consignou a reciproca faculdade para os subditos das duas nações poderem nos dominios da outra gosar de todos os privilegios, immunidades e protecção, mas tambem viajar, residir, occupar casas e armazens, dispôr de bens allodiaes, e emphyteuticos, e de qualquer outra propriedade legalmente adquirida, por venda, doação, escambo, ou testamento, ou por qualquer outro modo, sem o mais leve impedimento ou obstaculo. Estabeleceram-se egualmente as isenções de emprestimos forçados, e de contribuições extraordinarias que não sejam geraes; e as de todo o serviço militar; e consignou-se que as suas casas de habitação, armazens, e todas partes e dependencias d'elles sejam respeitadas, e não sujeitas a visitas arbitrarias ou a buscas; regularam-se as condições reciprocas de impostos, estabelecendo livre exercicio da sua religião, a liberdade de enterrar seus mortos em terrenos comprados para esse fim, e finalmente garantiu-se a liberdade de testar e de succeder e dispôr dos bens individuaes possuidos no territorio, e de livremente agenciar seus negocios, fazerem-se substituir e representar, nomear commissarios e agentes; e liberdade de compra e venda, de abrir armazens e lojas a retalho, sem pagar tributos ou importes maiores do que os nacionaes, etc. etc. Em vista do exposto, os escrupulos patrioticos que podessem originar-se do art. 1.º do tratado de Lourenço Marques, só poderiam ter logar na mente de quem ignorasse as disposições do dito tratado de 1842. O artigo 2.º «Franqueia os portos e os rios dos referidos dominios aos subditos de ambas as nações para commercio e navegação nas condições estabelecidas para os respectivos subditos.» Toda a doutrina e disposições d'este artigo na sua integra, estão consignadas amplissimamente nos art. 4.º e subsequentes do tratado de 1842, onde se diz que haverá reciproca liberdade de commercio e navegação entre os subditos das duas altas partes contratantes, e que os respectivos subditos não pagarão nos portos, bahias, enseadas, cidades, villas ou logares quaesquer que forem nos dois reinos, nenhuns outros ou maiores direitos, tributos, contribuições ou impostos, por qualquer nome, que se designe ou entenda, do que aquelles que forem pagos pelos subditos da nação mais favorecida; egualmente estatue que nenhum direito de alfandega ou outro imposto seja carregado nos generos de producção de um dos dois paizes, que seja maior que os impostos carregados sobre eguaes generos importados de outro paiz, e nenhuma restricção será imposta na importação e exportação de um para outro paiz dos generos de respectiva producção. Consigna-se mais no tratado de 1842 a permissão de irem os navios de uma nação ás colonias da outra com generos da respectiva producção e bem assim de exportar das colonias da outra nação os generos de producção d'estas com egualdade de direitos, e por ultimo foi regulado o modo de avaliar os direitos quando forem _ad valorem_ e egualmente estabeleceu a faculdade de exportar fazendas em armazens de reexportação, com isenção de direitos de consumo. O art. 3.º «Declara livre a navegação do Zambeze e seus affluentes, e não sujeita a monopolio ou exclusivo algum.» As disposições d'este artigo são uma homenagem aos principios não só de direito natural, mas até ao que o direito consuetudinario tem adoptado, em vista de estipulações de tratados, e das declarações de congressos internacionaes. Os rios são como as grandes estradas que se movem, são os grandes conductos que a natureza estabeleceu para facilitar as communicações pelo interior dos continentes. Impedir, dificultar e empecer o seu uso e a liberdade d'este, é proceder contra os dictames da natureza, e affrontar os dons da Providencia mais aptos para estabelecer as communicações entre differentes povos. Partindo da consideração generica para o caso especial do Zambeze, se Portugal pretendesse monopolisar e impedir a navegação d'este rio, seria proceder, não de accordo com as praxes das nações cultas, e em harmonia com a indole da epoca; seria retrogradar até aos tempos em que a exclusão, e a restricção eram o systema tendente a afastar e não a conciliar os interesses de todos os povos. Politica e internacionalmente considerado, nunca se justificaria o monopolio da navegação de um rio como o Zambeze, que se presta a ser o meio de communicação para o interior da Africa; assim como economicamente são mais para attender as vantagens que nos resultarão do desenvolvimento do trafico n'elle estabelecido, do que a apathia a que este ficaria condemnado, pelo systema impeditivo da restricção. Com relação ao que o direito secundario pode estabelecer a tal respeito, é doutrina hoje admittida por todas as nações, a que estabelece como principio a liberdade da navegação dos grandes rios, quando em seu curso não se limitam a um só paiz, mas banham differentes estados pondo-os em communicação com os grandes Oceanos. O tratado de paz de Paris de 1814, consignou já o principio da liberdade da navegação do Rheno, Escalda, Meuse e Moselle. No congresso de Vienna em 1815 n'uma memoria do barão d'Humboldt apresentada a uma commissão _ad hoc_, se enunciou como um principio para ser geralmente acceite o mesmo principio da liberdade da navegação fluvial. As discussões ácerca da navegação do Mississipi, e do S. Lourenço, bem como do Danubio, discussões concernentes a interesses de estados marginaes, e ao desenvolvimento do commercio universal, todas vieram corroborar a doutrina. Wheaton, o notavel publicista americano diz a tal respeito: «Les réglements, les stipulations des traités de Vienne et d'autres stipulations semblables, ne doivent être regardées, que comme un hommage rendu par l'homme au grand législateur de l'Univers en affranchissant ses oeuvres des entraves auxquelles elles ont si souvent été arbitrairement soumises». Se em vez de recorrer a argumentos de uma ordem tão generica, quizermos achar exemplos no proprio direito convencional expresso em tratados que nos dizem respeito, encontraremos no tratado de 31 de agosto de 1845, entre a rainha a senhora D. Maria II e a rainha de Hespanha D. Christina, ácerca da livre navegação do rio Douro, as seguintes estipulações: «Declara-se livre para os subditos de ambas as nações sem restricção alguma, e sem condição especial que favoreça mais aos de uma que aos de outra, a navegação do Rio Douro em toda a sua extensão que fôr navegavel agora, ou que o possa vir a ser para o futuro. «As duas altas partes contractantes obrigam-se a não conceder nenhum privilegio exclusivo para o transporte pelo Douro, de generos ou pessoas, e a deixar sempre aberta a competencia». Não vale a pena pois insistir na demonstração de que quem condemna o tratado de Lourenço Marques, por n'elle se consignar a liberdade da navegação do Zambeze, está em opposição não só com actos de soberania externa da legislação patria, com o direito secundario que se deriva das decisões dos congressos internacionaes, e do direito consuetudinario, mas até se revolta moralmente contra um poder mais alto, qual o do grande legislador do Universo. Outro artigo do tratado de Lourenço Marques concede, «1.º isenção de direitos e encargos de qualquer natureza sobre as mercadorias em transito do porto de Lourenço Marques para a fronteira britannica e vice-versa;--2.º o direito da Inglaterra embarcar e desembarcar tropas, petrechos, munições de guerra e livre transito d'essas tropas, munições e petrechos para os dominios de sua magestade britannica. É este certamente um dos artigos que mais tem incitado as susceptibilidades economicas e brios patrioticos dos impugnadores do tratado, que mostrando-se assás meticulosos, dizem ser isto não só uma vantagem toda em beneficio dos portos aduaneiros inglezes do Transwaal, mas que tambem estabelece uma isenção vergonhosa, chegando a inculcar-se de _lesa nação_ e _lesa magestade_. Antes porém de entrar na sua analyse convém ter presente os artigos seguintes 5.º, 6.º e 7.º que com aquelle tem correlação e dependencia. «O art. 5.º estabelece uma commissão mixta que estude e orce um caminho de ferro do Transwaal ao porto de Lourenço Marques, devendo este ser o _terminus_ d'elle; fixa os meios para a sua execução e cria _postos aduaneiros mixtos_ nas raias. N'estas convenções compromettem-se os interesses aduaneiros do districto de Lourenço Marques (!) e os da parte portugueza do caminho. O deficit será pago pelos governos em partes proporcionaes. «O art. 6.º trata da exploração e construcção de uma linha telegraphica paga na fórma adoptada para a construcção do referido caminho de ferro. «O art. 7.º prevê o caso de que os melhoramentos a effectuar no porto de Lourenço Marques sejam mais devidos á parte ingleza do caminho de ferro, que á portugueza, cabendo á commissão mixta decidir se essa despeza deverá ser por conta da parte britannica». Como se disse, estes art. 5.º, 6.º e 7.º, são derivados ou amplificativos do art. 4.º, o qual tem duas feições por onde ser avaliado; a feição economica ou aduaneira e fiscal, e a feição politica, se assim a quizerem denominar, e tal é a que diz respeito á concessão da passagem de tropas. Ficará ésta para ser depois considerada, visto ser a que mais sobresaltos causa, e mais melindres provoca; mas pode desde já attender-se ao outro ponto. A isenção de direitos nos artigos de transito, e _não de consumo_, em nada prejudica os rendimentos aduaneiros de Lourenço Marques. O commercio de transito, sendo dos artigos não destinados ao consumo do paiz pelo qual transitam, logo que não haja essa faculdade de transitar, deixarão esse caminho, é evidente; mas nem por isso dará mais proventos aos pontos aduaneiros do paiz pelo qual deixará de transitar e para os quaes se não destinava. É uma doutrina curiosa aquella, que estabelece como sendo prejuizo proprio, aquillo que é para bem alheio, embora da negação d'esse bem nos não resulte vantagem. No caso actual porém, deve attender-se que todo esse transito _gratuito de direitos_, e que a não ser tal não existirá, e procurará outra via, ainda assim é proficuo indirectamente em razão do movimento e actividade que vem crear em localidades, aliás condemnadas á inacção actual. As restricções n'este caso seriam tão pouco plausiveis, como se o dono de um terreno inculto que nada produz, preferisse assim conserval-o, antes do que ter d'elle algum provento, quando este tivesse por unico inconveniente o ser aproveitavel ao terreno de um visinho, melhor e mais laborioso cultor! A isenção de direitos no commercio de transito é hoje materia corrente, entre paizes limitrophes, não só pelo que se refere á navegação dos rios mas tambem ao movimento pelas linhas internas de caminhos de ferro, fiscalisando-se nas fronteiras, mediante estações aduaneiras mixtas, e por isso é de accordo com esta doutrina sensata, e com ésta pratica em nações cultas e adiantadas, que ella se estabelece no tratado, com relação ao proposto caminho de ferro; melhoramento este, bem como o do telegrapho, que será ocioso demonstrar que se torna hoje uma necessidade impreterivel, attentas as condições do Transwaal, e os tratados que já se haviam ratificado com aquella parte das possessões inglezas, e que, como assumpto de direito internacional, não caducou perante a annexação d'aquella republica. Mas para convencer do pouco ou nenhum fundamento com que tanto se assustam os que accusam o tratado de lesivo, de ruinoso, e de insolito, é conveniente lembrar o que se consigna no tratado já referido entre Portugal e Hespanha sobre a navegação do Douro. Alli é imposta a reciproca obrigação de crear depositos de porto franco, tanto no Porto como na fronteira, para receber isentos de direitos, os generos que em transito navegarem pelo Douro tanto em barcos portuguezes como hespanhoes. Continuando na analyse: O art. 8.º «uniformisa a pauta aduaneira para os productos importados de ambas as nações, e quando por ventura tenha de ser alterada, em termos a crear os fundos necessarios á construcção do caminho de ferro, essa alteração será reputada temporaria e cessará logo que as causas que a originaram deixem de existir.» O art. 9.º auctorisa «uma commissão mixta a organisar uma pauta para ser adoptada pelos governos.» Ha n'estes artigos o desenvolvimento pratico das duas differentes medidas; uma a da uniformisação de direitos nas fronteiras, adoptando-se uma pauta permanente, e podendo sómente ser augmentada por excepção, e para satisfazer os encargos do caminho de ferro; outra a que se refere ao modo de confeccionar a pauta de accordo entre os dois governos. Na verdade, quando outros estados, em mui differentes condições de vida, de industria e de producção, tem procurado formar as ligas aduaneiras, tendentes a supprimir, pela egualdade de direitos, as alfandegas fiscaes da fronteira, é irrisorio que se queira ter nas possessões d'Africa um systema de alfandegas de raia e de postos fiscaes, com pessoal organisado e mantido para impedir o trafico, como se tal trafico podesse existir sob taes peias, e como se tal fiscalisação fosse possivel em terras onde tanto abunda o elemento do contrabando, como escasseia o pessoal adequado para montar essa immensa e complicada machina fiscal. A uniformidade de direitos está tambem consignada no tratado de navegação do Douro, onde se estabeleceu a obrigação reciproca de fazer as obras necessarias á facilidade da navegação, bem como que os direitos de navegação seriam fixados por uma tarifa e regulamento, _elaborado por uma commissão mixta_, cujas disposições fossem uniformes e perfeitamente eguaes para os subditos de ambas as nações. Com relação á conservação da pauta actual, sem augmento senão excepcional e temporario, para o fim de occorrer ás despezas do caminho de ferro e obras do porto de Lourenço Marques, póde dar-se como resposta aos impugnadores o seguinte: Em 1877 foi promulgada a pauta da alfandega da provincia de Moçambique, reduzindo enormemente os direitos de importação, e fixando-os em grande parte _ad valorem_, pauta formulada de accordo com principios que não são da escola prohibitiva. Soaram vozes alarmantes, profetizando o desfalque dos rendimentos da provincia, pelo supposto motivo de que minguaria o rendimento aduaneiro. Os factos porém vieram dar o desmentido, que deveria convencer os espiritos menos seguros na influencia de reformas d'esta ordem. As alfandegas da provincia, cujo rendimento anterior á reforma não ia alem de 80 contos, em 1877-78 que foi o primeiro anno em que vigorou a nova pauta, renderam mais de 96 contos. E em 1878-79, subiu o rendimento a mais de 111 contos, isto é quasi 40 por cento de augmento! Se para os terroristas, a quem o Tratado amedronta, valessem citações de exemplos, e a auctoridade dos economistas e publicistas, poderia ser-lhes apresentado o que se lê n'uma obra do sr. Vicente Ferrer Netto de Paiva, intitulada _Elementos do Direito das Gentes_, e publicada em Coimbra desde 1843. É provavel que a doutrina liberal sustentada n'aquella data, tenha maior cabimento hoje. Com relação aos tratados de commercio, diz-se n'aquella publicação: «§ 107. Ha muito tempo que a Economia politica tem demonstrado com raciocinios os mais proprios a convencer os espiritos, que a melhor politica que os governos deviam seguir nas relações commerciaes entre nações, era renunciar ás prohibições e adoptar a maxima _deixar obrar_, á qual se deve acrescentar est'outra _dae saída aos productos da industria, protegendo por estações navaes o commercio em paragens distantes_. E § 27. _Se todas as nações adoptassem os verdadeiros principios de economia politica nada de prohibições, liberdade plena de commercio, seria consequencia necessaria a liberdade de transito de mercadorias estrangeiras. Porém vigorando infelizmente o systema contrario, forçoso é ás nações restringir muitas vezes esta liberdade de transito em favor da industria nacional._» Venha á authoria outro artigo do tratado. É o artigo 10.º authorisa os governos a estabelecer um «accordo sobre a importação e commercio de armas e munições de guerra nos dominios respectivos.» Este artigo é um mero regulamento que se pode dizer policial e preventivo, com applicação ás condições especiaes das localidades, e das populações visinhas e indigenas. O seu fim é conter dentro dos limites que a prudencia aconselha, e a segurança commum reclama, uma especie de commercio, que sem taes restricções poderia tornar-se perigoso, e ser conducente a favorecer rebelliões, quando se manifestassem. Desde que é tão razoavel, prudente e bilateral em seus effeitos e garantias, não póde soffrer impugnação; e quando esta lhe fosse feita, nem mereceria ser discutida. Proseguindo com o tratado, vejamos o outro artigo que é: O artigo 11.º «permitte a extradição de criminosos em condições que serão previamente estipuladas.» Este artigo em vista da notavel differença que se dá na doutrina penal dos dois paizes, podia merecer reparo, se não ficasse dependente de uma convenção em separado, a fim de designar as circumstancias e condições de sua applicação. Essa dependencia está n'elle expressa. Estão hoje generalisados os tratados de extradição de criminosos que ainda não ha muito eram olhados com um certo desfavor. Mas as causas que os determinam são a segurança mutua das sociedades constituindo nações, desde que a facilidade e rapidez das communicações, auxiliariam a perpetração de crimes, uma vez que para ficarem impunes, bastasse conseguir o ingresso no territorio d'outro Estado. Ainda assim Portugal concluiu não ha muitos annos um tratado de extradição com a Hespanha, que vae tão longe, que até o seu principal resultado é favorecer o recrutamento da nação visinha, por isso que é extensivo ao crime de deserção. Se isto acontece em dois paizes limitrophes da Europa, mais razão de ser se encontra para elle nos dominios d'Africa. Não é este portanto um assumpto sobre o qual possa haver increpação de valor, e tanto mais, desde que os atritos que podessem haver na mutuidade das condições, ficam prevenidos na clausula inclusa de _jure constituendo_. Outro ponto do tratado, que tem servido para thema das increpações dos seus impugnadores, é o que diz respeito ao artigo 12.º Estatue o mutuo auxilio dos dois governos, em termos de acabar de vez com o trafico de escravos na costa oriental d'Africa, obrigando-se o governo portuguez a authorisar o governador de Moçambique a permittir que os vazos cruzadores inglezes operem livremente nas agoas territoriaes portuguezas nos portos das costas de Moçambique que não estejam occupados por habitantes brancos e aonde não estejam presentes empregados portuguezes. Os mesmos poderes serão dados, se necessarios forem para esse fim, aos governadores inglezes do sul da Africa.» Para se avaliar a importancia d'este artigo, é necessario considerar que a abolição do trafico da escravatura, é moral, politica e humanitariamente um empenho e um compromisso a que Portugal está obrigado, e do qual não ha razões que o possam desviar. A civilisação da Africa assim o exige, a humanidade o impõe; e a politica interna e externa do governo portuguez está n'isso tão consubstanciada, que seria uma affronta aos seus precedentes e ao decoro nacional, se ousasse desviar-se de tal proposito. Se na costa occidental o trafico está extincto, infelizmente não acontece outro tanto da banda oriental, onde elle encontra incentivos na especulação dos traficantes, no auxilio dos regulos, e nas condições locaes de uma costa extensa e abundante em pontos e angras menos vigiadas, e até escassas de população, e portanto privadas de authoridades que possam velar pelo cumprimento das leis e tratados que prohibem o infame trafico. Taes disposições legaes e prohibitivas não são só as que resultam do nosso direito interno, mas tambem as que são impostas internacionalmente, e já de ha muito pelo outro tratado com a Gram-Bretanha de julho de 1842, tratado cujo fim e disposições se referem exclusivamente á abolição do trafico. No dito tratado já se encontram disposições, que se fossem conhecidas pelos terroristas, que veem agora nas presentes clausulas uma offensa á dignidade nacional, certamente não dariam tão gratuita qualificação, a uma acção commum de forças alliadas, tendentes a desempenhar um fim tambem de commum intento e interesse. Foi pelo tratado de 1842 declarado acto de pirataria o trafico, e como tal d'ahi resulta, que todo o navio n'elle incurso, está perante as nações contratantes, fóra da lei das gentes. Estipulou-se mais n'aquelle tratado, que as duas nações consentiam mutuamente que os navios cruzadores das suas respectivas marinhas, podessem visitar e dar busca ás embarcações das duas nações suspeitas de se empregarem no trafico, ou esquipadas com esse intento, fazendo excepção a este reciproco direito de busca, quando o navio suspeito se achasse fundeado em qualquer porto ou ancoradouro pertencente a qualquer das duas partes contratantes, ou ao alcance do tiro das baterias de terra; mas ainda n'este caso de se achar fundeado o navio suspeito, em portos ou ancoradouro das aguas territoriaes, far-se-hia representação ás authoridades do paiz para tomarem as medidas tendentes a não serem violadas as estipulações do tratado. Se remontarmos mais longe para considerar a applicação d'esta mutua concessão, veremos que ainda antes do tratado de 1842, foi celebrada pelo governador d'Angola vice-almirante Noronha, com o commandante Tucker das forças navaes inglezas, uma convenção tendente a tornar effectivas as disposições do decreto de 1836 pela qual foi prohibido o trafico; e n'essa convenção se estipulava que os navios de guerra inglezes e portuguezes se coadjuvariam mutuamente quando em vista, para o fim de capturar qualquer navio ou navios com carga de escravos. Praticamente, ninguem ignora qual a simultaneidade de acção que desde taes epocas sempre foi exercida nas costas d'Africa pelos cruzadores inglezes e portuguezes, e principalmente desde que a firmeza, coragem e energia de um bravo official portuguez, o commandante Gonçalves Cardoso, soube manter a dignidade nacional, e estabelecer a confiança na mesma, quando antes de existir o tratado, elle se oppôz pela demonstração da força, ás pretenções illegitimas de um official inglez, que desconhecendo o direito alheio, ou abusando da sua missão, pretendia visitar um navio dentro do porto onde elle se achava fundeado, e onde por tanto havia quem representasse a authoridade da soberania local. Um tal acto de energia, acompanhado de outros procedimentos que eram uma garantia da boa fé e da lealdade no cumprimento das obrigações internacionaes, foi motivo de se estabelecer então uma confiança e intelligencia reciproca; e não é menos digna de menção a circumstancia, de que o proprio governo inglez não duvidou elogiar o procedimento brioso do valente official portuguez, que assim soube honrar a bandeira do seu paiz. A sobranceria infundada, é aborrecida. A altivez com fundamento e dignidade, é acatada. _Noblesse oblige_, tem um grande alcance no trato internacional. No actual tratado, este direito commum de visita, tendente ao mesmo fim, é confirmado, e não é portanto uma novidade. Ha porém uma ampliação ao seu exercicio, desde que se estabelece a fortuita faculdade de formar expedições mixtas para cooperarem de accordo, podendo as forças navaes de qualquer das nações, ter liberdade de acção nas agoas territoriaes, mesmo separadas das outras, mas tudo isto é subordinado ás condições de reciprocidade, e alem d'isso limitado a serem empregadas de _tempo a tempo_, conforme recrudescer o trafico, e _só em quanto durarem taes expedições_, de mais a mais dependentes estas de _authorisação resultante de plenos poderes_ conferidos ao governador de Moçambique, que o habilitem a _authorisal-as_. Ainda a caução vae mais longe, por isso que essa _acção independente_ com taes formalidades auctorisada, é só extensiva aos pontos da costa _não occupados por habitantes brancos_, e onde não estejam presentes auctoridades portuguezas. Bem se deixa ver, que o fim de taes expedições e de taes auctorisações é motivado pelas condições locaes da costa deserta e inhabitada, onde o dominio é sómente nominal, onde o trafico portanto se acouta, e onde a acção repressiva não é prejudicial senão ao mesmo trafico prohibido. Pois que receio póde haver d'essa acção assim auctorisada para um fim que é reciprocamente desejado? Se uma tal acção fosse para um fim illegal ou propotente, não se pactuava o accordo, mas procedia-se differentemente. Ortolan, publicista moderno, tratando do direito de asylo, e da immunidade das aguas territoriaes dentro da linha de respeito, baseiando-se na auctoridade de outros publicistas, chega á seguinte conclusão: «On conçoit que les opérations militaires d'une nation maritime ne comportent pas une précision mathématique aussi rigoureuse, que l'officier commandant, lorsqu'il n'a eu vue qu'une côte inculte, inhabitée, denuée de tout signe de la puissance territoriale, ne puisse se laisser entraîner au delà de la règle précise, et qu'il soit évident qu'il n'a pas eu l'intention d'offenser l'État neutre ni de violer son droit d'empire.» A circumstancia de uma costa maritima pertencente a um estado, ser ou não ser habitada, é tão attendivel nas questões de immunidade de aguas territoriaes, que auctores ha que opinam, que ao belligerante perseguindo o seu inimigo no alto mar, é licito de entrar em sua perseguição nas aguas territoriaes, continuando o combate _dum fervet opus_, embora esse inimigo procurasse refugio nas aguas territoriaes, quando for em costas deshabitadas. Se nos pontos controvertidos em direito internacional é conveniente fixar sua interpretação quando se fórmam convenções, ninguem poderá negar que no caso actual o tratado foi previdente. A circumstancia das costas não occupadas por habitantes brancos, isto é, costas selvagens, serem o valhacouto de negreiros, tornava recommendavel a fixação de um ponto de direito, pelo consentimento reciproco, e reciproca applicação, e do qual resulta a desejada vantagem de mais facilmente perseguir o trafico, sem desvantagem ou lezão para os habitantes d'aquellas costas, desde que ellas ou não tem habitantes, ou só são povoadas pelo preto selvagem, e não por gente branca nem por empregados que sejam o symbolo e representação da auctoridade territorial. Qualquer pois que fosse a feição de immunidade ou soberania das aguas territoriaes, todo o escrupulo deve cessar desde que, além da reciprocidade das condições, fica justificada a mutua concessão pelo conseguimento do fim, sem desvantagem nem desdouro pelo emprego dos meios. Contém por ultimo o tratado mais dois artigos e são: Art. 13.º e 14.º «Referem-se ás communicações que se deverão estabelecer entre as auctoridades dos dois governos com respeito ao comercio de escravos e á approvação e ratificação do tratado.» São estes artigos de natureza a não soffrerem impugnação ou discussão, desde que tem o caracter de explicativo um, e de regulamentar o outro. Concluiriam pois aqui as observações sobre o que o tratado estipula, se não restassem ainda para analysar as disposições do art. 4.º na parte que se refere ao embarque, desembarque e passagem de tropas, desde Lourenço Marques até ás fronteiras britannicas do interior, e do livre transito de taes tropas pelo caminho de ferro que deverá facilitar e tornar effectivas taes concessões. Analyse-se pois esse ponto, para elucidação dos illudidos, e para tranquillisar os amedrontados. VII Se os publicistas, em questões de direito das gentes tem conseguido homologar opiniões que estabelecem doutrinas e principios acceites internacionalmente, egual homogeneidade de pensamento não se encontra nos criticos, que talvez por sentimentos louvaveis, mas nem sempre justos, se occupam em apreciar a seu talante certos factos, com aquella facilidade que frequentemente acompanha quem tem a liberdade da censura, sem ter a responsabilidade da acção. Não admira portanto que n'essas apreciações tão faceis como gratuitas, se encontre uma variedade notavel de pensamentos, não só na condemnação das obras alheias, mas até na graduação com que de preferencia se fulmina mais este do que aquelle inconveniente entre os tantos que lhe notam. D'ahi vem que para descriminar qual seja o ponto mais negro do carregado horisonte que os amedronta, fica-se perplexo, desde que, para uns o nucleo da tempestade com que o tratado nos ameaça, está na faculdade das expedições mixtas; para outros está no livre commercio de transito com fiscalisação reciproca; para alguns na livre navegação do Zambeze, para outros o grande perigo, o grande compromettimento, o grande desaire nacional, a grande quebra de independencia, está na _concessão_ do transito de tropas e munições, effectuado mediante o aproveitamento do caminho de ferro de Lourenço Marques á fronteira dos dominios britannicos. Vejamos qual seja a gravidade do facto. A passagem pacifica de tropas, ou de munições atravez de um território, desde que é feita por uma _concessão_ e não por uma imposição ou violencia, tem na propria expressão que a enuncia, a prova de que se reconheceu no consentidor, o direito que teria de negar ou facultar tal _concessão_. Esse direito de negar ou facultar, quando versa sobre um acto ou procedimento alheio, e em referencia a um objecto possuido, é implicitamente a confirmação do direito de propriedade sobre o tal objecto. Assim é que a _concessão_, que o tratado consignou da parte de Portugal, para o transito no seu dominio, é a confirmação e o reconhecimento do direito de propriedade sobre o territorio que constitue tal dominio. Ora a confirmação de um tal direito por acto publico e solemne, será tudo excepto a negação d'esse direito. Portanto em vez de um perigo para a posse, é uma garantia moral que a esta se dá. Ha um principio que a razão natural apresenta, que a conveniencia dicta, e que a lei internacional estabelece, qual é, que toda a nação constituida e independente deve ter um territorio proprio, sobre o qual exerça um direito de plena propriedade no sentido collectivo. Desde que existe a propriedade resulta d'ahi como consequencia o direito de exclusivamente usar d'esse territorio, bem como de restringir ou de facultar o seu uso. É isto, conforme Vattel, o que constitue o _dominio_ e a _soberania_ (Liv. I, § 204.º). Mas segundo o mesmo publicista (Liv. II, § 117.º), o direito de posse territorial não deve destruir um direito natural e primitivo que constitue uma restricção tacita d'aquelle, qual é o do transito de pessoas no interesse geral do genero humano, toda a vez que d'esse transito não resulte risco ou prejuizo. O desejo de evitar numerosas citações, não deve impedir que fique consignada tambem a opinião do sr. Netto de Paiva, pois no seu _Elemento de direito das gentes_, já citado (§ 26), se confirma plenamente esta doutrina, dizendo: «A propriedade não tem podido tirar ás nações o direito geral de correr a terra para o commercio e outras communicações que os homens hão mister. Este interesse geral do genero humano abrange todos os povos e individuos, e faz com que qualquer soberano não deva refusar o _transito de homens_, isto é, a passagem dos estrangeiros pelo seu paiz, não lhe resultando d'ahi risco ou prejuizo.» Segue-se portanto, que o direito de propriedade que toda a nação exerce sobre seu território lhe permitte negar o _transito ás pessoas quando conheça que lhe resulta um damno_; mas implicitamente impõe o dever de o não impedir quando seja innocente; e por isso Vattel (Liv. 3.º § 119.º) estabelece «que o transito inoffensivo (innocente) é devido a todas as nações com as quaes se vive em paz e este dever é extensivo tanto ás tropas como aos particulares. É porém ao dono do territorio que compete decidir se tal transito é innocente, e é difficil que a passagem de um exercito o seja.» E accrescenta n'outra parte (Liv. 2.º § 128.º) «Este direito de uso innocente, não é um direito perfeito como o da necessidade, por isso que é _o dono quem julga_ se o uso que se quer fazer do que lhe pertence, lhe causará damno ou incommodo.» É pois evidente, segundo esta doutrina, que n'um estado de paz, não só é licito a uma nação conceder o transito pelo seu territorio, mas até que só o poderá negar quando d'ahi lhe resulte prejuizo proprio. Applicando as theorias de direito ao ponto em questão e no que diz respeito ao transito de tropas de Lourenço Marques atravez do territorio portuguez, e em condições de paz, conclue-se que nada obsta a que a soberania territorial tenha o direito da _concessão_. Poderia oppôr-se se o julgasse prejudicial. Mas o que é uma faculdade não é uma obrigação. Fica pois sendo uma questão incidental aquella que diz respeito á _conveniencia ou inconveniencia_, na perspectiva de prejuizos ou damnos que causaria a passagem de um exercito. Trazendo o assumpto para o terreno pratico, qual será o damno, o prejuizo, o incommodo que resultará para o districto de Lourenço Marques, se o caminho de ferro que para o Transwaal passar atravez do seu territorio, tiver que augmentar em certas occasiões a extensão de seus comboyos, ou a força de suas locomotivas, a fim de dar passagem a soldados inglezes? Que mal, que desfalque, que risco correrão as estações intermediarias ou terminaes da via ferrea, quando um pessoal militar disciplinado; passe em simples transito em frente d'ellas, ou n'ellas se abasteça de artigos de consumo? Que principio de direito interno ou externo é n'isto violado, ou offendido? Pois se ha o direito de o permittir, se não ha obrigação de o prohibir, e se até em vez de prejuizo houver vantagem para o trafico e exploração, que razão plausivel se póde invocar para condemnar tal concessão? Bem pelo contrario, tal _concessão_, implicitamente corrobora o direito de posse territorial, bem como tem por effeito outras vantagens locaes, que são as resultantes dos interesses auferidos pelo augmento de trafico e de mercadejo. E se em confirmação do principio procurarmos exemplos de outra ordem, mas de genero analogo, quantas vezes se tem visto desembarcarem forças navaes em paiz estrangeiro, e mesmo no nosso porto de Lisboa, para exercicios, para apparato funebre, ou para outros fins, mediante uma simples permissão e annuencia da auctoridade local? É porque a concessão reconhece o direito, assim como o uso d'aquella não prejudica este. Quanto fica exposto subentende-se ser applicavel a um estado de paz, por isso que se trata de um transito innocente, sem intenção hostil, ou acção oppressiva, ou que affecte os direitos d'outra nação. É certo porém que no estado de guerra entre nações, a questão do transito de tropas pelo territorio de um paiz, está subordinada a outras considerações; que são as que resultam das relações entre belligerantes e neutros, e que são reguladas pelos direitos e deveres reciprocos de uns e outros. Desde que dois estados se acham em guerra, elles são _belligerantes_; mas outro estado que fique estranho á luta; continuando em relações pacificas para com um e outro belligerante, é considerado _neutro_. D'ahi lhe resulta o _dever_ de proceder imparcialmente para com os belligerantes, assim como o _direito_ de ter o seu territorio immune e isento de quaesquer actos de hostilidade em que aquelles estão empenhados. Em tal caso, a passagem de tropas pelo territorio do neutro, que fosse concedida egualmente a ambas as nações belligerantes, embora parecesse uma concessão reciproca; e portanto uma neutralidade passiva, não o será, por isso que por condições geographicas poderia tornar-se mais aproveitavel e vantajosa para uma do que para outra das nações em guerra. Seria este o caso de _não ser innocente_ o transito de forças, e d'ahi resulta para os neutros o dever de o não permittir pelo seu territorio, como sendo a reciprocidade do direito que tem á inviolabilidade d'este. É esta uma doutrina corrente e clara, e sobre cuja essencia não ha discordancia entre os publicistas, pois se funda em razões tão logicas como concludentes. Não é pois o _damno_ ou _prejuizo_ que causariam as tropas em transito no territorio, o que obsta á sua passagem, mas sim a _falta de imparcialidade_ que d'ahi resultaria para com os belligerantes. É pois ésta uma condição referida a tempo de guerra, e não em condições de paz, como aquellas a que o tratado se refere. Estes principios, que regulam o procedimento dos neutros, teem applicação principalmente entre estados cujos territorios são confinantes com um ou outro dos belligerantes; pois é evidente que quando esta circumstancia não se apresentar, não póde praticamente dar-se tal applicação. Além disso e em vista do exposto, se nas phases politicas internacionaes da Europa, o transito de tropas sería uma falta de cumprimento dos deveres da neutralidade, egual alcance não póde ter quando applicado ao caso especial da Africa; pois ainda que a Inglaterra estivesse empenhada numa guerra europea e Portugal fosse neutro, tal transito não affectava em nada os direitos das nações belligerantes. A neutralidade é um estado todo relativo. Ella póde sómente dar-se n'uma nação, perante outras duas ou mais nações em guerra. Não ha estado neutro sem que hajam belligerantes. Aquelle singular a par d'este plural, tem como consequencia, que a neutralidade é uma phase internacional, derivada das relações reciprocas entre, _pelo menos, tres nações differentes_; isto é, duas em guerra e uma terceira estranha á guerra. Esta phase que se observa frequentemente na Europa, e que póde occorrer na America, continentes onde existem muitas nações constituidas, não póde dar-se de egual modo onde as relações entre estados constituidos são limitadas ás duas nações contratantes do tratado, isto é, entre Portugal e Inglaterra, e com relação aos seus dominios do sul e oriente da Africa. Quaesquer que possam ser as relações entre estes visinhos territoriaes, não ha alli uma _terceira nação_ reconhecida e constituida, perante a qual Portugal ou a Inglaterra possam ter a condição de neutro, e portanto claro está que não póde haver violação de neutralidade desde que esta não tem existencia. Não é mister recorrer a um esforço de imaginação para se perceber que não ha alli senão duas nacionalidades. As tribus mais ou menos selvagens, sujeitas a regulos ou chefes, quer estes sejam Cetewayos ou Bongas, não constituem estados reconhecidos pelo direito publico internacional. D'ahi provém que as guerras na Africa não apresentam aquelle caracter nem o alcance politico que ellas teem na Europa. Alli, quer sejam contra zulus, cafres, ou outra negreria, não tomam tanto a feição de guerra publica, como de um expediente activo para reprimir aggressões, suffocar revoltas, ou submetter rebeldes, inflingindo-lhes castigo. Por isso taes luctas não affectam as relações internacionaes, nem o equilibrio das potencias, que de longe as contemplam com aquella indifferença, que só póde ser modificada pela tendencia a preferir o predominio da civilisação européa, sobre a barbarie africana. É só sob este ponto de vista, meramente moral, que se não ha neutros tambem não haverá indifferentes. É o caso em que o genero se antepõe á especie. Finalmente na questão sujeita só restaria uma hypothese a considerar, e que sería o caso de guerra entre as duas nações contratantes. Quando tal acontecesse, caducaria _ipso facto_ o tratado, e portanto os seus effeitos; pois é uma consequencia do estado de guerra entre duas nações, que todas as pendencias deixam de ser resolvidas pelas regras do direito, desde que se appella para a força que as decida. _Inter arma silent leges._ Em tal caso, o transito _não pacifico_ de tropas já não seria uma concessão, nem se pediria licença para o effectuar. Cessava a inviolabilidade e não havia que respeitar a independencia territorial, que o tratado serviu para garantir na paz, bem como para auferir as vantagens reciprocas que d'esse estado resultam. Portanto a doutrina acima exposta, explica, autorisa e justifica tudo quanto o tratado estabelece e garante a tal respeito. VIII Se houver de se considerar ainda o tratado não já pelas especulações de theorias, e rasões de direito, mas pelo lado pratico, e pelo aspecto das reciprocas vantagens, a apreciação desapaixonada de suas estipulações, e dos resultados que d'estas se devem seguir, levará facilmente á convicção, de que elle é não só d'uma conveniencia indisputavel mas de uma necessidade impreterivel. Elle é não só uma medida de grande alcance debaixo do ponto de vista internacional das duas nações contratantes, mas tambem considerado como a satisfação a uma exigencia da civilisação. A Africa precisa de ser explorada e aproveitada como manancial de riquezas e como centro de novos mercados, em beneficio do commercio e da industria de todas as nações civilisadas. Ha alli só duas nações da Europa, ás quaes portanto incumbe facilitar os meios, e combinar a acção commum n'esta grande obra. Contrarial-a, seria crime de lesa humanidade. Essas duas nações são Portugal e Inglaterra. A Inglaterra tem alli dominios importantes e prosperos, que podem e devem ser o foco donde parta a luz que vá illuminar as densas trevas do continente negro. Portugal possue um extenso littoral, onde se encontram os elementos geographicos e hydrographicos mais adaptados para tornar pratica a acção d'aquelles elementos, que devem conduzir á realisação do grande fim. A acção commum das duas nações torna-se um meio indispensavel. Unidas, o resultado será util e glorioso para ambas. Desunidas e desaccordes, será contrariar e difficultar esse grandioso e necessario empenho. Mas toda a teimosia em querer persistir n'aquella inacção, n'aquelle marasmo, symbolisado e causado pelo systema de restricções, e de leis prohibitivas, seria querer affrontar as leis do progresso, seria querer perpetuar no seculo XIX o systema do _mare clausum_, ou aquellas condições da existencia exclusivista, que teriam rasão de ser no seculo XVI, mas que hoje em dia para a nação que a ellas se aferrasse, seria um motivo de desconceito entre as nações civilisadas e cultas. É frivola a invocação de passadas glorias de seculos já decorridos, toda a vez que para prestar-lhes culto, se deixa perder seu resultado, não as illustrando no presente por procedimentos que mostrem ser dignos d'ellas, os que ao invocal-as as aproveitam de accordo com as tendencias, indole e necessidades do seculo em que vivemos. Para isso, é urgente entrar n'uma situação de _collaboradores_, e não de impecedores, em tudo quanto é concernente ás aspirações do progresso, não só no regimen interno, mas nas praticas que tem mais longiquo e vasto alcance. Na communidade de interesses que tornam as nações solidarias, não se póde apresentar a mão espalmada para conter a onda, e apresentar tão inutil barreira com o fim de conter as tendencias do progresso. Cada epoca tem suas aspirações, e é baldado esforço o querer arrostar com ellas, desde que a civilisação exija caminhar. Quando o proprietario de um terreno o deixa inculto, reservado e impeditivo, em prejuiso manifesto dos visinhos ou da communa, ha no direito interno de cada paiz, os meios de o expropriar pela rasão de utilidade publica. Não convem, que pelo apego a certas praticas que destoam do systema harmonico em que todas as nações são interessadas, se dê motivo a que hajam de nos considerar como o proprietario impeditivo e retrogrado, nem pretexto para pedirem sentença de expropriação por utilidade internacional. O tratado entre Portugal e Inglaterra, de 30 de maio de 1879, para _fomentar e alargar as relações commerciaes_ _entre os seus dominios limitrophes na Africa, promover a completa extincção do trafico d'escravos e auxiliar-se mutuamente a fim de cooperar na obra da civilisação da Africa_, tem n'estas invocações da sua causa e de seus fins, um titulo honroso para ambas as nações contratantes. Qualquer que fosse a nação com a qual Portugal em identidade de condições o negociasse, ella tinha no seu titulo a sua justificação. Mas cresce de ponto o valor d'esta, quando o seu alcance politico e commercial é compartilhado e cooperado pela nação, com a qual Portugal está vinculado pelas mais activas relações commerciaes, ligações politicas, e inveterada alliança, como se dá com a Gram-Bretanha. É esta a nação cujo commercio com Portugal é de uma tal importancia, que só poderia comprehender-se sua valia quando elle deixasse de existir activo e assiduo. É a Inglaterra a potencia com a qual Portugal não póde deixar de manter relações as mais amigaveis. Se suas antigas allianças são um penhor de mutua vantagem, tambem seus passados feitos na historia tem pontos de assimilação, que as deveriam tornar sempre solidarias na mutua amisade. Portugal devassou o Oriente, e abriu o passo á Inglaterra n'aquellas regiões onde ésta ostenta um dos mais vastos imperios do mundo. Portugal fez o Brazil, a Inglaterra fez os Estados-Unidos d'America. Portugal e Inglaterra foram o fulcro da alavanca que serviu para derribar o maior potentado, que no começo d'este seculo dispoz dos destinos da Europa. Portugal é hoje um estado pequeno em extensão e em preponderancia politica; a Inglaterra é uma grande potencia. O tratado é a união do fraco com o forte. Que importa? Se o forte póde ser altivo quando se julgue offendido pelo fraco, tambem saberá ser leal quando lealmente considerado. O forte será austero quando o fraco é indiscreto, mas tambem usa ser cordato e discreto quando no fraco encontra lealdade e dignidade. Não se contraponha pois como em argumento contra o tratado, a expressão trivial de que o _direito do mais forte prevalece sempre_. Isto é meramente falso, porque então em vez de direito haveria a prepotencia, e éssa não se estipula nos tratados. Se tal affirmação valesse, seria a negação do direito convencional, não haveria tratados nem convenções entre nações, porque sempre haveria differença de poderios; seria a negação do direito publico europeu; seria implicitamente sanccionar o uso da força, elevando ésta a unico arbitro que houvesse de prevalecer entre nações; seria proclamar as insidias na paz e os latrocinios na guerra como a feição permanente das relações entre estados. N'uma palavra, seria a negação de todas as idéas de progresso e de fraternidade dos povos, e seria voltar ás epocas antigas da historia, quando as regras do direito das gentes se limitavam áquella barbara simplicidade, de considerar synonymas as qualificações de _barbaro, estrangeiro, inimigo_. A uma tão retrograda doutrina, ou ás tendencias que para ella conduzissem, poderia antepôr-se outra, mais razoavel, mais justa e mais conforme aos dictames que o direito publico consigna e que a civilisação proclama, e tal é, que os tratados são para as nações pequenas, uma garantia moral e effectiva da sua _independencia_, e do seu direito de _egualdade_ internacional, desde que os tratados publicos são phases, que só se dão entre nações independentes e como taes reconhecidas. Uma nação que vivesse isolada, como os papuas da Nova Guiné, ou como outr'ora os estados do Dey d'Argel, ou os piratas Tunesinos de Barbaroxa, não mereceria entre as outras, uma consideração superior áquella que um individuo merece, quando bisonhamente se encerra no domicilio e não tem trato nem cortejo com os visinhos com quem vive desconfiado. Se a razão de prepotencia é tão inconvenientemente invocada como regra, tambem é extemporaneamente chamada a terreno no actual procedimento entre Portugal e Inglaterra. A bahia de Lourenço Marques já esteve em parte em poder d'aquella nação. Disputada em pleito, foi acceite a arbitragem de uma terceira potencia. A Inglaterra, se quizesse ser prepotente, e se valesse o argumento da possibilidade de o vir a ser, não teria de certo acceitado tal arbitragem, como tambem acceitou ácerca de Bolama. Ceder perante as razões de direito quando tal cedencia é da parte mais forte e já occupante, é acto e procedimento que não authorisa a que se chame prepotente quem assim procede. Nem se diga que a acceitação do principio da arbitragem, estatuido como tal no congresso de Paris de 1856, fosse n'estes casos obrigatoria. Para o não ser, bastava seguir o precedente usado pela França em 1859, quando tres annos depois d'aquelle congresso europeu effectuado na sua capital, recusou a Portugal, o sujeitar á arbitragem a questão do negreiro «Charles & George.» Durante a campanha dos inglezes na Africa austral, contra as tribus zulus, uma diversão de força que desembarcando em Lourenço Marques os atacasse de flanco, teria sido operação tactica de grande vantagem para a Inglaterra. Para assim o conseguir, alem de outros meios, teriam aquelle tão inculcado, o da prepotencia. Mas qual foi a prepotencia usada pelos que, tendo aberto mão de Lourenço Marques, nem mesmo beliscaram o melindre dos novos occupantes, com o solicitar a _concessão_ para effectuar tal transito? É necessario ser justo para merecer justiça. No tratado entre Portugal e Inglaterra não ha pois para os espiritos despreoccupados, e imparciaes, nem _lesão de independencia_, como gratuitamente allegam seus impugnadores, nem _quebra de dignidade nacional_. Pelo contrario, ha a confirmação e reconhecimento formal de posse e soberania territorial, com usufruição reciproca das vantagens commerciaes, que da boa harmonia e acção commum devem resultar. Ha mais ainda; e é o honroso encargo de contribuir para a civilisação da Africa, em homenagem ás aspirações, e com direito aos applausos, de todas as nações cultas. Não é isto obra da prepotencia do forte, mas sim do reciproco accordo entre duas nações, ás quaes a Providencia preparou os meios de decidir do futuro da Africa. Estabelecer as regras de mutuos procedimentos, estipular as concessões bilateraes, e annuir a taes compromissos, não é _quebra de dignidade_. É seguir o exemplo do que as potencias europeas tem praticado e estatuido nos grandes congressos internacionaes, quando se tem pretendido definir principios e regular assumptos, não de interesse especial, mas sim de vantagem internacional. Assim n'aquelle congresso de Paris de 1856, onde se consignou o recurso da arbitragem, tambem se estatuiu, com adherencia de todos os estados alli representados, a abolição do corso maritimo, a immunidade dos carregamentos neutros sob bandeira inimiga, a notificação e effectividade dos bloqueios, etc., e ninguem se lembrou de affirmar, que a annuencia ou sujeição a todos estes principios assim definidos, importasse _quebra de dignidade_ nem offensa de nacionalidade para qualquer das potencias que os acceitavam _collectivamente_, embora differentes fossem os interesses resultantes da sua plena e indivisa acceitação. Tem alguma analogia o que o congresso de 1856 fez relativamente á Europa, com o que representa o tratado de Lourenço Marques com relação á Africa. Então as principaes potencias da Europa, concordavam em assumptos que mais ou menos interessavam a politica europea. Agora Portugal e Inglaterra, as unicas nações reconhecidas com dominio n'Africa austral e oriental, submettem-se reciprocamente ás estipulações, em que concordaram para interesse d'aquelles dominios, que exclusivamente possuem n'aquella parte do Mundo, que não deve ficar fora da lei do progresso. Portugal não perde porque póde lucrar a Inglaterra, e esta não perde porque lucra Portugal. Ambas lucrarão materialmente; e muito lucrará tambem Portugal moralmente quando a par e em condições de _egualdade internacional_ com uma das primeiras nações do Mundo, poder ufanar-se da gloria de haver contribuido para a obra grandiosa da civilisação da Africa. IX Ao contemplar a situação que a Portugal cabe n'este assumpto, e a perspectiva das vantagens ou desdouros que d'ella podem depender, conforme a politica e procedimentos que forem adoptados, quaesquer reflexões que nos animos desejosos do bem e da boa reputação do seu paiz poderiam originar-se, estão bem definidas n'aquellas palavras de uma authoridade digna do melhor conceito, pelo seu conhecimento do assumpto, e pela sua comprovada illustração. Tal é a do sr. Augusto de Castilho, digno official da armada, que durante varios annos governou com superior intelligencia o districto de Lourenço Marques. N'uma memoria a tal respeito recentemente publicada, diz elle entre outras cousas, o seguinte: «No assumpto (de Lourenço Marques) somos tão directamente interessados, que devemos tirar partido das circumstancias, e prepararmo-nos da maneira mais vantajosa para promover a prosperidade do districto de Lourenço Marques. «Lembremo-nos de que persistindo nós na politica de _isolamento e inacção que nos teem distinguido_, estamol-o criminosamente conservando agrilhoado a um revoltante estacionamento; _fica inutil para nós e inutil para os outros_. «Lourenço Marques sem o caminho de ferro não passa do que tem sido ha 300 annos; não porque não tenha em si os recursos para o seu desenvolvimento; mas porque não ha entre nós o genio colonisador, não ha iniciativa e não ha capitaes. «A Africa felizmente é grande bastante, e tem logar para muita gente; está porém ainda n'um tal estado de atrazo e mesmo tão pouco conhecida em geral, que ha alli muito campo para que todos trabalhemos sem nos acotovelarmos e incommodarmos mutuamente. «Concorra cada um segundo suas forças para o concerto geral e unisono, e veremos que os beneficos resultados se não hão de fazer esperar muito. Pelo facto de sermos nós os possuidores do melhor porto de toda a costa da Africa austral e oriental, desde o cabo da Boa Esperança até Moçambique, _não é licito já hoje que conservemos fechado esse porto_, e o territorio adjacente ao nosso e os territorios estrangeiros que com elle confinam, privados dos beneficios civilisadores que elles teem direito a exigir da nossa dominação de tantos annos. «A politica das nossas auctoridades na costa oriental deveria ser uma politica de _cordura_, de _intelligencia_ e de _conciliação para com os nossos visinhos, attenuar em vez de avolumar, umas mesquinhas e mal entendidas rivalidades_ que nascem em alguns individuos pouco instruidos, ou mesmo mal intencionados, e a que só uma imprensa que falseie a sua missão, pode dar importancia e corpo. «E antes de mais nada, lembremo-nos de que em assumptos africanos, _parar é retroceder, é demolir o que está feito_, é ser inevitavelmente atropellado. Trabalhar é a civilisação, é o engrandecimento do nosso bom nome, é a perpetuação das nossas passadas tradições. «Trabalhemos pois, cada um no seu tanto, cada um conforme as suas forças, cada um por seu modo, mas todos com a mira no grande lábaro sagrado que se chama a patria». Com aquelle enthusiasmo que nasce da convicção profunda, assim se expressava o sr. Castilho, pouco antes da nova feição que o assumpto tomou, em vista do addiamento da sua solução, pela recusa da camara electiva do parlamento portuguez em ratifical-o; addiamento votado em 7 do corrente junho, um anno depois da negociação concluida, como se um anno não fosse prazo demasiado para pensar na importancia de uma convenção, que por seu caracter de internacional não deveria estar sujeita áquellas contingencias comesinhas, a que se subordinam as questões concernentes ás ninharias de regimen interno. Os escrupulos sobre attribuições, aliás claramente estatuidas, podem n'um caso d'estes ser taxados, não de acto de consciencia, mas de pretexto frivolo. O addiar é ás vezes peior do que o rejeitar. Este póde ser consequencia de um estudo mal comprehendido; aquelle por tardio e capcioso dá logar a ser interpretado como desattenção e indifferença, menos de esperar para com os que aguardam uma decisão, nunca presumindo que ésta seja uma extemporanea evasiva, como ás vezes se usa para com os mendigos importunos. Addiar não é somente, como diz o sr. Castilho, _parar, retroceder, demolir_; é tambem dar plausibilidade áquella imputação que nos fez Sir C. Napier na sua historia da guerra civil da successão, quando affirma ser o caracter predominante dos portuguezes, mesmo nas occasiões urgentes, _não fazer hoje nada do que se pode deixar para ámanhã_, accrescentando que como nação nada poderemos _emquanto não riscarmos aquella palavra «ámanhã» do nosso diccionario_. Addiar, é sempre mau, pelo que significa em absoluto; e mais ainda no caso especial, em que a pachorra no proceder e a evasiva no decidir, dão causa a provocar para o acto, uma qualificação publica de falta de cortezia, o que entre nações póde ser interpretado como a reserva de outra designação, que nem é lisongeiro pensar n'ella, nem nas possiveis consequencias. É sempre mau o addiamento do que é urgente de resolver; mas peior é ainda a pretenção de o impôr aos que não seguem o culto do _ámanhã_ de que falla Napier. Para alguns a dilação de um dia, é menos indifferente do que para outros a de um anno. Por isso os assumptos internacionaes, em que é necessario sair da politica domestica, difficilmente pódem estar subordinados á rotina caseira que pode prejudical-os. Nem as questiunculas de politica partidaria podem sanar quaesquer faltas, mediante a acrimonia das recriminações. Poderão éstas significar justos desabafos, mas nada com estes lucrará a causa do Paíz. Se existe o mal, a todos cumpre desejar-lhe o remedio e procural-o, de preferencia a apontar os culpados. Se peccar é mau, peior é ser impenitente. Não foi para estes que Metastasio disse: «Cangianno i sagj secondo il lor miglior consiglio.» Consignando estas ponderações ácerca do tratado de 30 de maio de 1879, sua importancia e conveniencia, ha um ponto ácerca do qual não resta duvida, e tal é a persuasão de que, nem o desassombro e franqueza com que ellas são expressas, nem a convicção mais intima e leal que as dicta, poderão poupar a quem as redige, de ser apodado de antipatriotico. Quem assim fôr peremptoriamente sentenciado no tribunal dos impugnadores do tratado, terá como attenuação, o lembrar-se de que ficará em boa companhia. Em todo o caso basta-lhe a consciencia de não merecer tal sentença. É aquelle o argumento, ou antes o recurso de que se servem, os que encontram menos difficuldade em o dizer, do que de facilidade em o provar; mas julgam assim acobertar a injustiça do dito, escudando-o com a invocação de um sentimentalismo, que para ter valor deveria pelo menos não ser deslocado. Haverá quem de boa fé esteja illudido nas suas apreciações pró ou contra; haverá quem obedeça ás influencias de qualquer logar commum muito vulgarisado; outros porém terão menos desculpa, e taes são os que impugnam o tratado ainda antes de o ter lido, ou aliás sem o ter comprehendido. O patriotismo não está sómente nas vãs declamações. Os que sinceramente desejam para Portugal uma posição honrosa e distincta, e a sua elevação no conceito das nações cultas, não podem ser indifferentes a tudo quanto haja de contribuir para que, mediante a sensata apreciação das cousas, a atilada conducta dos homens de estado, e o bom juizo dos poderes publicos, um tão importante e melindroso assumpto internacional, obtenha prompta solução, condigna d'elle, e das nações n'elle empenhadas, de cujo accordo, harmonia, amisade, e leal cooperação, estão dependentes, não só os seus reciprocos interesses, como tambem outros de tão vasto alcance, quaes são os do progresso e da civilisação de uma grande parte do Mundo. Lisboa. Junho de 1880. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A INFLUENCIA EUROPEA NA AFRICA PERANTE A CIVILISAÇÃO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAES *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. 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