The Project Gutenberg eBook of Sonetos de Anthero This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Sonetos de Anthero Author: Antero de Quental Release date: August 16, 2008 [eBook #26326] Most recently updated: January 3, 2021 Language: Portuguese *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK SONETOS DE ANTHERO *** SONETOS DE ANTHERO EDITOR--STÉNIO. COIMBRA Dezembro 1861. IMPRENSA LITERARIA. DO EDITOR _Pela mão vos trago um vate:_ Amigo Anthero, Aproxima-te á machina: o retrato Quero fique a primor. Eia! Arrepela-me Essas bastas gadelhas côr das messes Lá quando ao largo foge em tarde estuosa O grande _Moribundo_! Ergue essa fronte! Fita-me com esse olhar tão sobranceiro De vivo lume cheio e puro aféto! Inclina mais ao lado o teu sombrêro, E assenta no quadril a mão segura Do braço firme e leal. Estende a perna... Deixa ficar-te assim, que estás famoso. Dezembro 1861 STÉNIO A João de Deus Como ha para cada latitude uma estrela, para cada estrela uma luz sua; ha para cada evolução da Arte uma forma propria, unica, perfeita. A forma compteta do lirismo puro é o Soneto. A _Ode_, como a flor esplendida do cátus, abre aos quatro ventos do entusiasmo as suas petalas brilhantes, fortes, ardentes como os voos altivos, mas seguros, do genio que julga o espaço seu e tenta avassalar o mundo. Aquela pompa deslumbra: mas quando o vento da tarde passar, talvez vá achal-a pendida sobre os espinhos da áste, semimorta, sem que do esplendor da manhã lhe reste mais que a túnica de purpura ja desbotada, em que se envolve como uma rainha decaída no manto da sua antiga realeza. Imaginação luxuriante, profusão de ideas, babel confusa de mil elementos encontrados--como reduzir tudo isto á unidade, ao simples? Impossivel. Aquela forma veste uma substancia: é manifestação verdadeira e exáta d'uma evolução da Arte: mas reduzil-a á simplicidade, ninguem o pode fazer, por que a substancia d'aquela forma é complexa, como o mundo que a gerou. Não é o lirismo _puro_. Entre o Mosteiro da Batalha e essa selva gigantesca de colunas, ogivas, abobadas, portáes, chamada Catedral de Strasburgo, ha toda a diferença que vai do simples ao complexo, do belo ao grandioso. Ora o lirismo--o lirismo puro e estreme--vive do belo e não do grande, de simplicidade e não de profusão: o sentimento é _um_--simples--por que é a parte eterna, imutavel, divina do homem: o olho com que vemos a Deus, a mão com que lhe palpamos o seio. A inteligencia, a fantatasia, são complexas, profusas, multiplas, por que são o mutavel, o progressivo, a porta por onde nos entra o mundo, o pulmão com que aspiramos e respiramos o universo, o imenso. A Catedral de Strasburgo é a grande obra da arte humana, o trabalho de mil inteligencias, o pensamento da humanidade n'uma época da sua vida; um Faust d'estrofes de marmore. O Mosteiro da Batalha é a tocante tradução do sentimento eterno da alma, da aspiração imutavel a Deus, ao Amor-unico, um Evangelho escrito a escopro e buril: uma é ainda a terra; o outro é ja o ceu. Pois bem: a _ode_, o lirismo de cabeça, aonde se espelha o universo, será a Catedral da Meia-Idade: mas o _soneto_, o lirismo puro da alma, a idea que traduz o eterno sentimento, é o Mosteiro da Batalha. * * * * * Por que? Por que ha uma forma para cada idea; por que o vestido deve ajustar-se ao corpo, por que cada estatua tem o seu molde diferente. Qual será a forma do simples? A unidade. O que corresponde ao sentimento? O simples. Atiremos com uma peça de pano aos hombros d'este _nú_ e vejamos o que sáe... O Sentimento não se define: é indefinido; vago; misterioso; aspira, e não sabe o que quer; sonha, e não vê as visões do sonho; chóra, e mal sabe o que são lagrimas; corre, e não conhece a terra que pisa; ora, e não sabe que Deus lhe escuta a prece; exulta, ri, entristece, sisma, e não conhece quem lhe dêo tristeza ou alegria. Eil-o aí o _nú_, vergonhoso e timorato, fugindo a luz e o ruido, ocultando-se no fundo da alma, como em abrigo profundo o desconhecido. D'aqui, até que apareça á luz do dia, vestido e um pouco proprio para a sociadade, ainda timido e saudoso de retiro, sim, mas, finalmente, ja um tanto desafrontado e senhor de si; desde que o tirem do seu abrigo, até o trazerem para a assemblea dos homens, por quantas transformações, por quantas fases, por quantas mãos não passará ele?!.. Vejamos como se veste o _nú_, para conhecermos que vestido lhe vai melhor. Assim: O Sentimento é o que há em nós de mais irrefletido, mais fatal (ainda que, por outro lado, mais livre) na alma do homem, é--o instinto da alma--Quando o poeta sentiu, na primeira noute em que ergueu ao céu os olhos do espirito, agitar-se-lhe dentro o hospede estranho, ficou como que alheio ao mundo e a si, e mal soube da visita do desconhecido. Mas, quando uma e outra vez e muitas vezes, sentiu tomarem-lhe a mão e levarem-no pelos espaços ideaes a novos e estranhos mundos, olhou em roda, por ver a face ao guia misterioso. Não o vio; mas, no silencio da noute ouvio dentro de si um sussurro brando e sumido como o da agua entre os arbustos, como confidencia d'amores dita baixinho e em segredo. E então prestou o ouvido e escutou. * * * * * O que significa isto? o que é este inclinar-se do poeta sobre o fundo da sua alma, interrogando-lhe os écos, escutando-lhe as vozes que lá dentro murmuram mal-distintas? É o homem que começa a ter consciencia do sentimento: É a inteligencia querendo penetrar n'alma: É o dedo que se põe sobre o coração, para lhe sentir o pulsar: É o poeta que se interroga. E o _nú_ oculta-se, disfarça-se, foge, não se deixa apanhar; mas o olhar prescrutador segue-o por toda a parte, vai-lhe em cima a cada retirada, fita-o nos cantos mais obscuros, e não podendo segural-o, ao menos _estuda-lhe_ as feições, _toma-lhe_ os modos, aprende-lhe os geitos, escuta-lhe as falas e, juntando tudo isto, forma um todo, mais ou menos semelhante, mais ou menos disforme, mas, em todo o caso, retrato que vai pendurar na camara mais bela, mais escolhida da casa, como no melhor lugar do oratorio se guarda a reliquia mais sagrada. Primeira transformação, pois, do sentimento. O poéta toma conhecimento do que lhe vae n'alma: estuda-se no intimo: tem consciencia dos fátos instintivos do espirito: e a inteligencia retrata, como póde, esse estranho que lhe entrou em casa, a quem quer por força conhecer. A inteligencia forma _idea do sentimento_. * * * * * Eis aí o nosso _nú_ trazido á praça. Desde que se apossou d'ele a inteligencia, não parece o mesmo: assaltam-no estranhas veleidades, caprixos desconhecidos. Ele o _sismador_, o _solitario_, recorda-se do _vae soli_ e lembra-se de comunicar com o mundo, de se mostrar um pouco á luz do dia. Caro lhe custa o: caprixo! Quanto não perdeu ele ja com passar de sentimento ao estado d'idea! Quanto não perderá agora passando d'idea a fáto! O seu belo _todo_ ja o vimos desfigurado no retrato que inabil fotógrapho lhe tirou: d'esse pouco, que lhe resta, lá vai ainda perder o melhor, la se vai envolver na _forma_, la vai cobrir-se com vestido... ele... o _nú_.. Por que é preciso vestil-o; e toda a questão está n'isto. Vestil-o! pois o que tinha ele de melhor senão a sua nudez, a liberdade de movimentos, tão indefinidos, tão vagos, tão belos?!.. Tudo isto lhe vai cobrir o detestavel vestido. O sentimento é o misterioso, o escuro, o vago: A inteligencia, o claro, o preciso, o definido. Para combinar estes dous termos, quanta dificuldade e, o que é piór, quanto perdido! Mas ao menos a idea, sendo ja tão má, pode, ainda assim, existir denudada: mas a forma! a forma! não só é clara, precisa, mas, mais que tudo, é _vestido_. Procuremos pois ao sentimento, pelo menos, vestidura que o não tolha, que lhe não encubra as belezas, que o deixe senhor de si; finalmente, vestido que lhe vá bem, e esse só pode ser _um_--Escolhamos: * * * * * Aí temos pois o sentimento reduzido a idea, á procura de forma. Vejamos as transformações por que passou para, em vista d'elas, lhe escolhermos uma propria. A inteligencia, tomando conhecimento do sentimento, caminhou gradualmente; primeiro um lado, depois outro; agora esta face e logo aquela: assim se foi a idea desenhando até que juntas essas partes se formou um todo, a _unidade_. Comtudo essas partes são homogeneas, como homogeneos são os ramos que se ajuntam n'um tronco commum: é como se um pintor estudasse uma cabeça--ora de perfil, depois de face, o olhar, o rir, o labio, a fronte, tudo por sua vez, e ultimamente então fizesse o retrato. Assim, pois, a forma deve ser tãobem uma só; talhada de uma unica peça; da mesma natureza; mas que comece por cobrir bem cada parte, e depois cubrao todo e o envolva. * * * * * E que ha no soneto? Uma unidade perfeita: desenha-se cada idea parcial de per si, mas não tão independente das outras que não haja entre elas relação, até que a final, juntando tudo n'um só se apresenta por todos os lados simultaneamente, como em resumo, o fecho--_chave d'ouro!_-- Daí, unidade. E simplicidade? Toda: as partes conservão estreito laço entre si: é só um sentimento, só uma a idea; não são varias, mas varios lados: a unidade final funde-os n'um todo. Resumindo; O sentimento desenha-se de perfil, aos poucos, gradualmente; A forma acompanha essa evolução: segue-o em cada manifestação parcial. Desenha-se, por fim, todo e forma-se d'ele idea percisa ou, pelo menos, completa; A forma amolda-se a esta reconstrução, e resume-o igualmente, como que fundindo as partes no todo. O sentimento é _um_; Á forma, pela precisão, a que apresenta maior unidade. É _simples_; Ainda a estreiteza d'ela não permite abraçar mais que o preciso: tudo o que for estranho, regeita-o por que o não póde conter. * * * * * Esta é pois, a forma lirica por excelencia: o manto alvo e casto com que tem de se envolver, para ver o dia, aquelas partes mais pudicas, mais melindrosas, mais puras da alma. Fazer do soneto o molde aonde o cérebro _só_ despeje o que concebe independente da alma; as visões da fantasia, apenas; é desconhecer-lhe a natureza, é dar á boémia das praças publicas o vestido, a cintura da virgem. Esta é a forma superior do lirismo do coração. N'ela tem vindo todos os grandes poetas vasar o que tinham de mais puro na alma, quando, muita vez, cançados, talvez exautos d'imaginação e de idea, sentiam, todavia, transbordar-lhe o coração, como se tivesse, semelhante ao lago que recebe e nunca vasa, muito e muito ainda para dar, mas que, á falta de quem lh'o receba, guardasse secreto em si. Recebeu-lhes, então, o balsamo mais puro de suas almas esta forma generosa e profunda. Dante, Miguel Angelo, Shakspeare, Camões, admiram-se nas grandes, nas imensas manifestações de suas inteligencias, o Inferno, S. Pedro, Othelo, Lusiadas: mas conhecel-os, amal-os, só aonde esta forma bela e pura lhes prestou molde aonde vasassem os sentimentos mais intimos de suas almas. Ali, admira-se o Artista, mas aqui ama-se o Poeta: ali arrebata-nos o entusiasmo, mas aqui rebentam-nos as lagrimas. Os Lusiadas são a epopea d'um povo; ser-lhe-hão tambem epitafio quando com a sua mão Deus lhe apagar o nome d'entre as nações. Mas qual ha poema de sofrimento que iguale este final do soneto CLXXVII. Triste o que espera! triste o que confia! Aonde ha epitafio, que melhor narre ás gerações a vida pelo amor d'aquela alma nobre, do que este (XIX): Alma minha gentil que te partiste... Os Lusiadas são a epopea do povo: mas a epopea do Poeta é aquele livrinho apenas lembrado dos Sonetos. Um é o monumento da nação; outro o do homem: os Lusiadas escreveu-os o Soldado; mas foi o poeta quem chorou os Sonetos. Quem fala ai em colunas e estatuas? Camões não se vê, não se funde, não se palpa: sente-se! Que melhor retrato, que maior estatua quereis de que estes versos (CX): E vou de dia em dia, d'ano em ano, Após um não sei que, após um nada, Que, quanto mais me chego, menos vejo. Depois d'esta, que ele por suas mãos fundiu, ninguem lhe vá tirar as feições! * * * * * Esta grande forma estava perdida: sumio-a um dia Bocage, em meio do delirio d'alguma orgía _poetica_, e, tão longe a arrojou, que bem custoso foi achal-a depois. Lembrou-se ainda d'ela, ja quando as _grandes sombras_ lhe vinham do ceu descendo sobre a alma, a envolvel-a, para que no caminho não podesse olhar a terra e perdesse de todo a lembrança d'este desterro. Foi sublime aquela reminiscencia! mas a troco de quantos esquecimentos não veio ela?! Achou-a, depois, um homem--um poeta--digo _poeta_, por que o esquecimento do seu nome é, n'esta terra, a sua melhor coroa: a gloria aqui é ser esquecido, por que poetas--_poetas_ não ha ca quem os entenda... João de Deus restituiu-nos o _Soneto_ como ele é, como deve ser: a--forma superior do lirismo--Sem este laço atravez dos tempos, quem poderia achar aquela forma, para nola restituir em toda a sua pureza? Certo que não seriam os Castilhos, nem os Lemos, nem... De Camões até hoje é grande o salto: só alma gémea da do amante de Natercia, poderia assim transpor o abismo de tres séculos. É-o. Á terra fecundada por Camões custou-lhe a conceber tamanho _monstro_! Gemeu nas dores e na fronte do poeta bem se divisam angustias que a mãe deu em legado ao filho, e as maiores ainda que lhe deixou seu _Pae_... mas, João de Deus! quem renegará seu Pae?! Dezembro 1861. AD AMIGOS. Ó voi, ch'avete gl'intelleti sani, Mirate la dottrina che s'asconde Sotto in velame degli versi strani. DANTE. _Inferno_. I. Ignoto Deo. Que beleza mortal se te assemelha, Ó sonhada visão d'esta alma ardente! Que refletes em mim teu brilho ingente, Lá como em mar d'anil o sol se espelha? O mundo é grande! e esta ancia me aconcelha A buscarte na terra: e eu, pobre crente, Vou pelo mundo a ver o _Deus clemente_... Mas a ára só lhe encontro... núa e velha. Não é mortal o que eu em ti adoro. Que és tu aqui? olhar de piadade, Gota de mel em taça de venenos. _Ah lagrima das lagrimas que choro!_ Ah sonho dos meus sonhos! Se és verdade, Descobre-te, visão, no ceu ao menos! II. A M. C. Não busco n'esta vida gloria ou fama: Das turbas que me imporia o vão ruido? Hoje deus, e amanhã já esquecido, Como esquece o clarão de extinta chama! Fóco, que a luz em torno não derrama, Tal é essa ventura; éco perdido, Quanto mais se chamou, mais escondido Fugiu e se esqueceu de quem o chama. Cada flor d'essa croa é um engano, Como a nuvem das tardes ilusoria, Como o misterio vão d'um vão arcano. Mas croe-me tua mão a fronte ingloria, Cinge-me tu o louro soberano... Verás, verás então se amo essa gloria! III. Ignoto Deo. Meus dias vão correndo vagarosos Sem prazer e sem dor, e mais parece Que este fóco intrior antes fenece Do que brilha com raios luminosos. É bela a vida e os anos são formosos, E nunca ao peito amante amor falece... Mas, se a beleza aqui nos aparece, Outra alembra de mais perfeitos gosos. Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira: Prende-a um instante mundanal beleza, Mas outra a patria é por que suspira. Porem do pressentir dá-me a certeza, Dá-ma! e contrito--embora a dor me fira-- Eu sempre bemdirei essa tristeza! IV. A M. E. Terra do exilo! Aqui tambem as flores Tem perfume e matiz; tambem vicejam Rosas no prado e pelo prado adejam Zéfiros brandos suspirando amores: Tambem ca tem a terra seus primores; Pelos vales as fontes rumorejam; Tem a noute seus sopros, que a bafejam, E o ceu tem sua luz e seus ardores. Em toda a natureza ha amor e cantos, Em toda a natureza Deus se encerra... E comtudo esta é a causa de meus prantos! Eu sou bem como a flor que não descerra Em clima alheio. Que importam teus encantos? Não és, terra do exilio, a minha terra! V. A Alberto Telles. Só!--Ao ermita sosinho na montanha Visita-o Deus e dá-lhe confiança: O nauta, que o tufão aos polos lança, Ainda espera um sopro que o ceu tenha! Só!--Mas quem se assenta em riba estranha, Longe dos seus, lá tem inda a lembrança: E inda no peito deixa Deus a esprança A quem á noute chora em erma penha. Só!--Não o é quem possue na terra um laço --Um que seja--que o prenda a este fadario, Uma crença, uma esprança... e inda um cuidado. Mas cruzar--indifrente--inertes braços, Mas passar--entre turbas--solitario, Isto é ser só, é ser abandonado. VI. A Santos Valente. Estreita é do prazer na vida a taça: Largo, como o oceano é largo e fundo, E, como ele, em venturas infecundo, O calis amargoso da desgraça. E comtudo nossa alma, quando passa No pregrinar da vida pelo mundo, Prazer só pede á vida, amor fecundo, Com esta unica esprança só se abraça. É lei de Deus este aspirar imenso... E comtudo a ilusão impoz á vida, E manda buscar luz, e dá-nos treva! Ah! se Deus acendeu um fóco intenso D'amor e dor em nós, na ardente lida, Por que a miragem cria... ou por que a leva? VII. A Florido Telles. Quando comparo gloria ou ouro ou fama --Venturas que em si tem oculto o dano-- Com aquele outro afeto soberano, Que amor se diz e é luz de pura chama, Vejo que são bem como arteira dama Que sob o honesto riso, esconde o engano, E quem as segue como esse que ufano, Por ir traz do prazer, deixa quem o ama. Do orgulho vem aquele estranho goso E a gloria d'ele só nos vem do orgulho, Por que só na vaidade tem a palma: Tem na paixão seu brilho mais formoso E das paixões, tambem, some-o o marulho... Mas a gloria d'amor... essa vem d'alma! VIII. A M. C. Poz-te Deus sobre a fronte a mão podrosa! O que fada o poeta e o soldado Pousou em ti o olhar d'amor veládo E disse-te! «_mulher, vai! sê formosa._» E tú, descendo na onda armoniosa, Pousaste n'este solo angustiado --Estrela envolta n'um clarão sagrado, Do teu olhar d'amor na luz radiosa-- Ah!... quem sou eu, para poder mercer-te? Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado, Anjo! deu-te o Senhor um mundo á parte. E a mim, a quem deu olhos para ver-te, Sem poder mais... ca mim o que me ha dado? Voz pra cantar, uma alma para amar-te! IX. Ignoto Deo. Um diluvio de luz cáe da montanha: Eis o dia! eis o sol! o esposo amado! Onde ha, por toda a terra, um só cuidado Que não dissipe a luz que o mundo banha? Flor, viração, e prado, e erma penha, Revolto mar ou golfo socegado, Onde ha hi ser de Deus tam olvidado Pra que alivio do ceu o ceu não tenha? --Deus é Pae! Pae de toda a creatura: E a todo o ser o seu amor assiste: De seus filhos o mal sempre é lembrado-- --Ah! se Deus a seus filhos dá ventura. N'esta hora santa... e eu--só--posso ser triste... Serei filho, mas filho abandonado! X. Ad amicos. PROPTER SOLATIUM. Renasço, amigos, vivo! Ha pouco ainda Disse ao viver «_afunde-te no nada!_» E já, bem vedes, surjo á luz dourada --No labio o rir, no peito esprança infinda-- Ah, flor da vida! flor viçosa e linda! Envolto na mortalha regelada Do _só_ pensar--perdão!--foste olvida... Flor do sentir e crer e amar... bem vinda! A vida! como a sinto, ardente, imensa! Não unica! tomando a imensidade! Livre! perante Deus surgindo forte! Que amor! que luz! que pira, vasta, intensa! Plenitude! armonia! realidade! Mas melhor que tudo isto é sempre a morte. XI. A M.C. No ceu! se ha ceu pra os olhos de quem chora, Ceu, para o peito de quem sofre tanto... Se ha _voz d'amor_, e amor ha puro e santo --Chama que brilha, mas que não devora... No ceu! se uma alma n'esse espaço mora, Que a prece escuta e enchuga o nosso pranto; Se ha Pae, que estenda sobre nós o manto Do amor piadoso... que eu não sinto agora: No ceu, ó virgem! findarão meus males; Heide ter vida (por que mais pareço Sofrer a vida, que lograr favores) Ali, ó lirio dos celestes vales! --Tendo seu fim--terão o seu começo, Para não mais findar, nossos amores. XII. A José Felix dos Santos. Sempre o futuro! sempre! e o presente Nunca! Que seja esta hora em que se existe D'incerteza e de dor sempre a mais triste, E só nos farte a esprança um bem ausente! O futuro! Que importa? se inclemente Essa hora em que a esprança nos consiste, Chega... é presente... e só á dor assiste?! Assim, onde é a esprança que não mente? Desventura ou delirio? O que procuro, --Se me foge--é miragem enganosa, --Se me espera--peór, espetro impuro. Assim a vida passa vagarosa: O presente a aspirar sempre ao futuro, O futuro uma sombra mentirosa. XIII. A H. C. OB MAESTITIAM. Por que descrês, mulher, do amor, da vida? Por que esse Hermon tranformas em Calvario? Por que deixas que, aos poucos, do sudario Te aperte o seio a dobra úmedecida? Que visão te fugio, que assim perdida Buscas em vão n'este ermo solitario? Que fatal maldição, destino vário, Te faz trazer a fronte ao chão pendida? Nenhuma! Todo o bem em ti assiste; Deus, em penhor, te deu a formosura, Uma benção do ceu traz-te cada hora; E descrês do viver?! E eu, pobre e triste, Que só no teu olhar leio a ventura, Se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?... XIV. A Alberto Sampaio. Não me fales de gloria: é outro o altar Onde queimo piadoso o meu incenso, E, amimado de fogo mais intenso, De fé mais viva, vou sacrificar. Que vai a gloria, diz! pra se adorar --Fumo, que sobre o abismo anda suspenso-- Que vislumbre nos dá do amor imenso? Esse amor que venturas faz gosar? Ha outro, mais celeste, mais eterno, Que, se o busco com fé, não quer fugir-me, Nem dá, em vez de goso, negro inferno. Só esse hei-de buscar, e confundir-me Na essencia do _amor_, puro, sempiterno... Quero só n'esse fogo consumir-me! XV. Ignoto Deo. Vai-te, na aza negra da desgraça, Pensamento _d'Amor_, sombra d'uma hora, Que estreitei tantos _seclos_, vai-te--embora!-- Como nuvem que o vento impele... e passa. Que arrojemos de nós quem mais se abraça, Com mais ancia, á nossa alma! e quem devora D'essa alma o sangue, com que mais vigora, Como amigo comungue á mesma taça! Que se torne impossivel a esprança, E nunca a dor (que sempre o mal assiste) E seja unica esprança a desventura!... Se em silencio sofrer fôra vingança!... Envolve-te em ti mesmo, ó alma triste, Talvez que sem esprança haja ventura!... XVI. A Q. M. Q. Fica-te em paz! não póde a mão do homem Partir o seio á arveloa queixosa, Quando o canto soltou, e a voz chorosa Ergueu la contra as magoas que a consomem. Respeito o teu sacrario: embora tomem Por orgulho o respeito; eu colho a rosa Mas não a flor modesta e melindrosa, Que se oculta entre as mais... e que as mais somem. Mais que amor tenho crença: essa existencia Pede-me um culto por que dera a vida, Por que dou esta dor, que aqui se encerra. Mulher! mulher! de que valêra a essencia, A essencia pura, a uma alma que é descrida?... Fica-te em paz: fique eu com minha guerra! XVII. Ignoto Deo. Corre aos braços da mãe o filho amado; --Por olvidar, volvendo a sua historia-- Corre á mente do infliz doce memoria; Corre á luz d'um olhar o olhar buscado: Vem o alivio animar peito magoado; Corre o forte a buscar na morte a gloria; Desfeita do viver sombra ilusoria, Foge o espirito livre ao ceu anciado; Tudo busca quem o ama: a luz dourada Busca do seu viver, como no escuro Quem avista uma luz lhe vai ao encontro. Só tu, ventura! uma vez sonhada; Só tu, sombra _d'amor_! que em vão procuro, Só tu, foges de mim, só não te encontro! XVIII. Ignoto Deo. Espremos no Senhor! Ele ha tornado Em suas mãos a massa inerte e fria Da materia impotente e n'um só dia, Luz, movimento, ação, tudo lhe ha dado. Ele ao que é pobre d'alma ha tributado Carinho e amor; Ele conduz á via Segura quem lhe foge e se extravia, Quem um momento só não o ha lembrado. E a mim, que aspiro a Ele, a mim que o amo, Que tenho vida em mim, que anceio o brilho, Hade negar-me o termo d'este anceio? Buscou quem o não quiz; é a mim, que o chamo, Hade fugir-me, como a ingrato filho? Oh Deus! Senhor! meu Pae! espero! eu creio! XIX. A João de Deus. Se é lei que rege o escuro pensamento Lutar--em vão--á cata da verdade, Em vez da luz achar a escuridade, Ser uma queda nova cada invento; É lei tambem, (embora grão tormento) Buscar, sempre buscar a claridade, E só ter como certa realidade O que nos mostra claro o entendimento. Em tanta confuzão, em tanto engano, O que ha-de a alma escolher? se crê, duvida; Se procura, só acha... o desatino. Só Deus póde acudir em tanto dano: Alimente-se a esprança d'outra vida, Seja a terra degredo, o ceu destino. XX. Ignoto Deo. Senhor! eu sou teu filho! eu sou aquele Que tanta vez pecou, porem, contrito, Tanta vez tem erguido a ti o grito Da aguia que o tufão no alto compele. E a aguia sofre tambem, como ave imbele, E mais que ela (que pôe mais alto o fito) Mas da aguia, que lutou, o brado aflito. Senhor! o teu ouvido não repele. Eu não cáio, meu Deus, sem ter lutado; Fraco sou, por que sou de barro e limo, Porem na tua _Lei_ medito e sismo. E eu sou teu filho! A um filho desgraçado Que ha-de um páe recusar? Oh, dá-me arrimo, Estende-me tua mão por sobre o abismo. XXI. A Germano Meyrelles. Só males são reáes, só dor existe; Prazeres só os gera a fantasia; Em nada--um imaginar--o bem consiste; Anda o mal em cada hora, e instante, e dia. Se buscamos o que é, o que devia Por natureza ser não nos assiste; Se fiamos n'um bem, que a mente cria, Que outro remedio ha hi senão ser triste? Quem comsigo podesse que não vira, Que esta vida nos sonhos lhe passasse... Mas, no que se não vê, labor perdido! Quem fôra tão ditoso que olvidasse... Mas nem seu mal com ele ali dormira, Que sempre o mal pior é ter nascido! *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK SONETOS DE ANTHERO *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. 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