Title : Judas: Romance lirico em quatro jornadas
Author : Augusto de Lacerda
Release date
: November 16, 2008 [eBook #27276]
Most recently updated: January 4, 2021
Language : Portuguese
Credits
: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)
DO MESMO AUCTOR
Theatro:
A Flôr dos Trigaes , comedia original em um acto, em verso—Theatro de D. Maria II.
Aspasia , drama original em quatro actos—Idem.
Samuel , idem—Idem.
A Tesoura , monologo—Idem.
A Charada , sainete original—Theatro do Gymnasio.
Casados-Solteiros , comedia original em tres actos—Idem.
O Vicio , peça original em cinco actos—Theatro do Principe Real.
Em livro —Edições esgotadas:
Religião do Amor , versos.
O Padre , romance intimo.
A Pança , contos.
A Lei da Exauctoração Militar , poemeto.
Cyrilleida , analyse de uma critica á «Velhice do Padre Eterno.»
Juizo Final —Evangelho da Consciencia.
A entrar no prélo:
O Rabbi da Galiléa —(Vida de Jesus)—Romance.
Juizo Final —Evangelho da Consciencia—2.ª edição.
Em preparação:
Consciencia Libertada —Evangelho do Futuro.
Lendas de Israel.
Augusto de Lacerda
JUDAS
ROMANCE LIRICO
EM
QUATRO JORNADAS
LISBOA
Antiga Casa Bertrand
—JOSÉ BASTOS
73, Rua Garrett, 75
1901
Todos os direitos d'este livro são propriedade exclusiva e reservada do seu auctor.
Ao Dr. Manoel Maria Bordallo Pinheiro
Il n'y a guère de détails certains en histoire; les détails cependant ont toujours quelque signification. Le talent de l'historien consiste à faire un ensemble vrai avec des traits qui ne sont vrais qu'à demi.
Ernest Renan —Vie de Jésus
A aldeia de Bethania fica a hora e meia de Jerusalem. Sobre a collina em que ella assenta ergue-se, modesta e affastada das outras habitações, a casa de Simão, o Leproso . Tem esta a forma tipica de uma piramide rectangular truncada, e na parte superior um terraço onde florescem nos canteiros roseiras de Jerichó.
Em frente da porta, ladeada de duas janellas a deseguaes alturas, um pequeno largo coberto pela enorme abobada de verdura de grossas arvores seculares, coevas talvez dos ultimos grandes profetas.
A agua de uma fonte visinha, jorrando natural da fenda de um rochedo, cae sobre uma pia ampla, de architectura romana, espalhando no ambiente notas cristallinas, e fazendo-nos pensar na Samaritana da lenda...
Um tronco de arvore carcomido pelo tempo e tombado no solo convida ao descanso e á meditação.
Uma longa estrada, aberta pelo rodar dos carriões, vae desde ali serpeando por entre o matto, ora subindo, ora descendo, em curvas graciosas, até que chega aos terrenos cultivados onde o trigo verdeja e as papoulas entreoccultam as suas manchas rubras. Ergue-se então o Monte das Oliveiras, de um verde acinzentado; da sua macissa ramagem surgem, majestosos, dois altissimos cedros antigos como Babylonia, e em volta dos quaes esvoaça um bando de pombas brancas.
Aquelle monte, á esquerda, rude, penhascoso, de côr turva, é o [4] Monte do Escandalo; e chama-se Cedron o riosinho que apparece na linha inferior da encosta, e que, muito calmo e prateado, vae sumir-se alem no Valle de Josaphat, onde dormem em seus sepulcros caiádos as ossadas dos profetas e patriarchas.
Lá ao longe, no fundo do quadro e sobre terreno irregular, alonga-se a cidade de Jerusalem com as suas casarias de configuração muito geometrica, amontoadas como um forte punhado de dados. Mal se distinguem as ruas estreitas, com apparencia suja nas velhas cantarias.
A cidade vae n'um plano ascendente, que se quebra para lá da encosta:—é ali a antiga Sião do tempo do grande rei David. Mais clara, vem descendo a cidade nova, terminando junto do Monte Moriah onde, segundo diz a lenda, Abrahão esteve prestes a immolar seu filho Isaac, em sacrificio ao Senhor. Por isso n'aquelle monte se alevanta, mudo como um misterio, o grande Templo, a casa do Deus que «foi, é e ha-de ser»: Jehovat . A Torre Antonia, a um dos angulos do vastissimo quadrado, que fecha o recinto vedado a profanos, é como uma sentinella de Tiberio, na sua attenta quietação.
Para alem da cidade, a perder de vista, alonga-se o campo inculto, onde o carrasco e a urze predominam, e onde raras palmeiras deixam pender suas folhas esfarrapadas. Pequenos logarejos clareiam aqui e ali; muito nos longes, divisa-se a collina de Mizpa e a cordilheira de Gabaão entestando no firmamento azul e alegre.
Vae declinando o sol d'uma formosa tarde do começo da primavera, que entorna regaços de seiva, de canticos e de cores por sobre todo o harmonioso quadro. A brisa, ainda morna, traz-nos o aroma dos trigaes, de mistura com o resinoso do matto, que morenisa a pelle e põe nos labios um sabor acre. Os rebanhos tilintam vagamente; vão cantando na estrada as cotovias.
Eleazar, meu caro, honrado ebionita, Recebe de um amigo a cordeal visita.
És tu, Gamaliel? Que idéa bemfaseja
Teus passos dirigiu assim, para que eu veja
Á porta do modesto e humilde lavrador
Aquelle que possue o nome de doutor
Notavel e profundo?[5]
É pobre a moradia, Amigo?—Não encerra a vil hypocrisia, Ornamento dos maus e da nefanda casta, Que faz do sacerdocio uma arma. Isto me basta.
É que a virtude leva ás almas refrigerio Tal, como á flôr o pranto envolto no misterio; Pranto suave, meigo e virginal e ardente, Que uma estrella chorou silenciosamente...
É que a bondade espalha a sua luz divina E pura, como o Sol que a todos illumina...
E baixinho, encostando-se ao peitoril da janella onde Eleazar se conservou:
O que tenho a dizer-te é coisa de segredo. Escuta-me portanto aqui.
Porquê? Tens medo De que minhas irmãs...?
O assumpto é muito grave, E receio que a dôr ainda mais se crave Nas almas feminis do que na tua.
Bem o comprehendeu Eleazar. Eil-o que se retira da janella, e saíndo de casa, accode logo ao secreto chamamento.
Amigo, Uma nova cruel:—o Mestre...
Algum perigo É imminente?
Aquella estupida gentalha
Ridicula, mesquinha, hipocrita e canalha
Prepara com misterio o plano vingador,[6]
E está na posição terrivel do condôr, Pairando ao ver a presa incauta. A esta hora, Em casa de Kaiapha...—É sabbado hoje? Embora! —... O Conselho procura, extravasando o fel, Garantir-se o poder no povo d'Israel.
Prendendo o Mestre?
Sim! Razões tem para tudo O seu pensar feroz, indómito e agúdo! Amor divino? Qual! Apenas o receio De perder o logar no execravel meio: D'um lado, a ambição, por mais que abuse e coma, E d'outro o servilismo ás leis que vem de Roma!
N'um brusco movimento deixou transparecer todo o rancor que o domina e que se expande, emfim, n'uma invocação:
A Virgem de Sião suspira ha muito já!... —Ó terra de Jacob! Heroes de Josaphat! Que é feito do vigor da tua fala, Isaías? E das lamentações sinceras, Jeremías? Profeta Ezequiel, a tua voz potente Jámais ribombará por todo o Oriente, Fazendo estremecer o despota cezareo, Como o gládio de Deus, terrivel, incendiario, Que na vasta amplidão a olhar o mundo assôma, Que sepultou Gomorrha e destruiu Sodôma?!
Vergonha! opprobrio!...
Ai! desde que um idumeu
Conseguiu transviar o nobre povo, o hebreu,
E nos hombros depoz o manto purpurino...
Maldito! que deixaste um rasto viperino,
Um rasto de peçonha! Infame! Rei protervo,[7]
O teu nome recorda o luto e um acervo
De horrores!—Certo dia, ousaste no portal
Da casa do Senhor dar poiso á immortal
Aguia romana!...—Vil, nascido de idumeus,
O Cezar tambem morre: a aguia eterna é Deus!
... Que tristeza, ao pensar n'uma tão negra historia!
—Do nome do tiranno o filho honra a memoria.
Surge um brado, a Nação protesta, grita, lucta...
Afinal, para quê? sem forças, dissoluta?...
—Eu vi por toda a parte erguerem-se madeiros;
Vi morrerem na cruz milhões de prisioneiros,
Gritando «Jehovat!» nas ancias da agonia!
E ao passo que na morte o hebreu se contorcia,
E filhas e mulher's davam á luz o pranto,
O incendio voraz lavrava o Logar Santo!
—Depois?... Depois mais nada. O Cezar nos esmaga,
Revolvendo o punhal na apodrecida chaga!
Seja procurador Coponio, ou seja Marco,
Ou Rufo, ou Grato, ou Poncio, a nação é um charco
Onde vivem, senís, as rãs do servilismo...
É provincia romana; e viva o cezarismo!
E ri amargamente n'uma cascalhada ironica de velho rabbino, apertando, convulso, o cajado na mão ossuda onde as veias resaltam.
Não! não! Resurgirás, eleita do Senhor, D'esta funda apathía e d'este grande horror! Judéa, serás livre! Elias não morreu, Porque revive n'um que tem o verbo seu, E elle ha de trazer a guerra e o exterminio! Se é branco o seu vestido, ai! pode ser sanguineo!... Abaterás o orgulho, o despotismo, a infamia! O povo quer vingança atroz: pois bem, derrame-a Sem minimo temor da colera dos ceus!
Já temos o preciso: um Homem![8]
Não!—Um Deus!
Alta, morena, olhos negros, de languidez oriental. Negras devem ser tambem as suas tranças occultas a olhares mundanaes. As roupagens escuras, que lhe descem até aos pés, cáem suavemente em prégas regulares e castas como as de Suzanna. O seu olhar é sempre vago e tranquillo; os seus gestos sempre em accordo com as serenas emoções da alma.
É bello o teu falar, mas como de cegueira Pelo amor patrio estás vencido! De maneira Que apenas bastaria um pulso valoroso Para despedaçar o monstro ambicioso De fausto e de poder que se revolve além, N'aquella babylonia? Então, Jerusalem, Movida por um braço, embora resoluto, Poderia colher o ambicionado fructo Da plena liberdade em meio da revolta? —Vae longe, muito longe, o tempo... que não volta! A Judéa prefére a honra em mil pedaços, Cheia de timidez, crusando inerme os braços, Inhabil para a lucta e com horror á morte... A tribu de Levy, aquella cujo porte, Sendo mais senhoril e nobre, inspiraria Coragem ao vencido e alguma simpathia Ao vencedor, que faz? Conspira contra o povo. —Onde encontraste, irmão, o excitante novo, Que possa dar alento a quem succumbe exangue, Que os nervos fortaleça e retempére o sangue?
Ha sempre em casos taes...
a força d'um athleta!
Tem muito mais poder o verbo d'um profeta!
Ha de ser elle, sim! prégando a perfeição
Das coisas divinaes a toda a multidão,[9]
Que se contorce afflicta em negro paroxismo,
Descrente de Moysés, propensa ao paganismo.
Nem ferro, nem madeiro: apenas a palavra,
Que ao entranhar-se em nós suavemente lavra,
Pesada, como o arado á terra bemfasejo,
Subtil, como o poisar castissimo d'um beijo!
E quem te diz que não? Eu julgo indifferente Que tenhamos no Mestre aquelle descendente Do nome de David ao mundo promettido Pelo Senhor. Amal-o é todo o meu sentido. Porque bem vejo a força enorme, o poderío Que exerce na cidade. É mais que prestadío Á Patria um homem tal!
A sua mão convulsa, Brandindo um azorrague, os vendilhões expulsa Para longe do sitio ás preces consagrado...
E o seu falar murmúra ás vezes tão magoado!... —Regenéra a mulher atreita ás bacchanaes E que mercadejava as graças corporaes; Ascende até o amor aos pobres, ás creanças, Aos tristes e aos nús, e dá mil esperanças N'um reino que elle sabe e que ninguem conhece...
Quando, porem, troveja irado, mais parece Que vibra no seu peito a propria voz de Deus!
Oh! sim! que é de temer o divinal prestigio!...
Que deixa em seu caminho um profundo vestigio...
Mas o povo nem sempre acceita um bom aviso,
E Deus pode morrer... quando fôr mais preciso.[10]
O Mestre não virá. Alegra-me a certeza De que foge ao Conselho a ambicionada preza. Começa em breve a Paschoa, e entre os forasteiros Ainda não chegou nem um dos companheiros Do Mestre.
Vae o Sol no termo da viagem: Torno para a cidade.
E novamente em segredo:
Eleazar, coragem! No teu silencio tens a minha vida e a tua.
Se te constar, porem, que o plano continúa E mais se desenvolve...
Hei de dizer-te, amigo.
Que não te fuja Deus!
Fique o Senhor comtigo!
Saúda tambem Maria, e, retomando o caminho da cidade, vae-se ao longo da estrada, um pouco alquebrado, cadenciando os passos pelo bater do bordão no solo poeirento.
Ninguem pode roubal-o á proxima agonía. Morrerá na cidade. A horrivel profecia Aponta-lhe, cruel, a inevitavel a sorte... Ha muito que de longe anda a espreital-o a morte!
Martha e Simão de Bethania saíram de casa. Ella é uma rapariguita de desoito annos, irrequieta, buliçosa, muito infantil; elle, um velho cujo cabello e barba ha muito branquearam; nas mãos o trabalho da lavoura poz-lhe grossos callos e deformou-lhe os dedos; e no rosto a lépra deixou-lhe vestigios indeleveis em manchas avermelhadas. [11]
No que pensa o meu irmão?
Em nada penso.
Duvido. Ha n'esse olhar definido Vislumbre d'inquietação.
Se tu pensas na lavoura, Fazes mal, que o dia de hoje, Emquanto o Sol não nos foge, Prohibe que, scismadora, A mente se occupe assim De coisas que não respeitam A Deus.
Aquelles que engeitam O pensar, mesmo o ruim, São como as ondas brutaes, Que lançam á rocha dura A espuma de cuja alvura Ellas são as mães e os paes...
Sempre has de ser renitente Em respeitar a doutrina De Moysés!
O que ella ensina É por vezes incoherente. De ouvil-a já estou cançada, E nem assim me convence.
Não falas?[12]
Deixa-o! Que pense, Uma vez que isso lhe agrada!
Mas como sois curiosos Do que se passa por fóra De vossas almas!
Agora Vem discursos lamentosos, Recriminações, aposto! Grande mau!
Grande creança!
Não te inspiro confiança?
Inspiras, sim.
Pois não gosto
De segredos—Que tristeza!...
Não percebo! Porque, em summa,
Não vejo razão nenhuma
Para tal! Não ha riqueza?
A nossa vida, porem,
É feliz; a privação
Nunca nos veio affligir,
Nem ameaça o porvir,
Não é verdade? Simão,
Este bom velho leal,
Que tanto e tanto nos ama,
Dá-nos meza, casa, cama,
E conselho paternal;
Tu retribues a amizade,
Auxiliando-o na vida.[13]
Achámos uma guarida
Nas trevas da orfandade:
Temos familia! Por isso
Para nós a vida é clara
Assim como a luz. A seara
É verdadeiro macisso
De pão; agua na fonte;
Lenha nas faldas do monte...
Nada vejo, d'importancia,
Que não tenhamos. Então,
Quero saber o motivo
Por que estás tão pensativo...
E rindo muito:
E com cara de chorão!
E tenho de que sorrir?
Quem pensa é como quem sonha... E como a vida é risonha, Quando se pode dormir!...
A minha alma atribulada Profundo misterio aninha... Sê caridosa, irmãsinha, Não me perguntes mais nada!
Ai! não pergunto!
Uma idéa,
Que talvez seja bem dita:
Vou fazer uma visita
Ao José d'Arimathéa.
Vem commigo. Pode ser
Que tenhas n'este passeio
O prompto e seguro meio
Da tristeza espairecer.[14]
Dizes bem.
Acceitas?
Sim.
Afinal é sempre o velho Quem dá o melhor conselho!
Adeus!
E beijando Martha, que o evita d'arremeço:
Tu foges de mim? Não vens beijar-me, teimosa! É então uma vingança?
São arrufos... de creança!
São os espinhos da rosa!
Vão-se Eleazar e Simão. Succede grande silencio.
Nunca o vi assim como hoje...
«Espairecer»... Puro engano! O pensamento não sae... É como a sombra que vae Correndo atraz de quem foge...
Como o tempo está formoso E se prepara, amoroso, Para a Paschoa d'este anno!
N'uma corrida, eil-a junto da irmã que ficára sentada á beira [15] da fonte. Um beijo resôa na face de Maria e logo aos pés d'esta se senta Martha.
Achamos isto um encanto! Como elles acham, porem, Que tudo é feio.
Elles, quem?
Os Dose, que gostam tanto De dizer mal de Judá. A Galiléa! Não ha Para elles outro mundo! Têem sincera affeição, Tributam amor profundo Ao paiz de Salomão!
A sua terra natal... —Todos dizem que em verdade É um paiz ideal A Galilêa.
Quem ha de Duvidar, se elle inspirou Os galanteios doirados D'aquelles apaixonados... —Como elles, ninguem amou!
Depois de alguma hesitação reconstituiu na memoria o cantico, e recita-o, com um sorriso humido nos labios, em tom plangente, repassado de languidez. Maria quedou o olhar no fio d'agua, e vae brincando com elle, deixando-o deslisar por entre os dedos finos e alongados.
«É formoso o meu amante,
Formoso como nenhum,
E como o cédro elegante...
É formoso o meu amante,
Formoso como nenhum...[16]
«São de perfumes e odores
Suas faces purpurinas,
Dois ramalhetes de flores...
E suas mãos dois primores
Das pedrarias mais finas.
«O seu corpo deslumbrante
Do marfim o brilho tem...
—Eu aqui... Elle distante...
Onde está o meu amante,
Filhas de Jerusalem?»
Olhando de fito para a irmã:
Esta idéa é mesmo linda!
Amôres...
Muito falados! Olha que outros bem-amados Como estes não houve ainda! E quando elle se transporta, Descrevendo a sua amante? Não pode ser mais galante! Queres ouvir?
Que m'importa!...
«És formosa entre as formosas!
Como tu não ha nenhuma!
Tens no rosto duas rosas...
És formosa entre as formosas!
Como tu não ha nenhuma!
«Duas pombas tens no olhar
Onde transluz a bondade.
Os teus cabellos sem par[17]
Fazem-me sempre lembrar
As cabrinhas de Galaad...
«Tua bocca é tão fagueira!
Quando sorrís com ternura,
Julgo vêr n'uma ribeira,
Unidinhas em fileira,
Ovelhas de casta alvura!
«Oh! que suaves martirios
Em tuas caricias francas!
São teus seios—que delirios!
—Como duas corças brancas
A pastarem entre os lirios!»
Indiscretos ouviram Martha desde o meio da recitação. Claudia e o seu sequito passavam pela estrada, e a curiosidade fez que a mulher de Poncio Pilado detivesse os lecticarios com um gesto. Apeou-se da liteira; sem ser presentida, avançou, cautelosa, e com ella a sua escrava e confidente Geda.
Os soldados que escoltam a liteira ficaram immoveis; e o sol poente, avermelhando-lhes as couraças e os capacetes, parece tel-os transformado em estatuas de sangue. Na mão de um d'elles, que á frente caminhava, brilha o pilo de oiro, emblema heraldico da casa de Poncio.
Claudia é uma mulher alta e formosa, cujo rosto a idade ainda não enrugou, mas do qual fugiram as rosadas côres da mocidade, que a pintura e o artificio em vão tentam simular. Typo de matrona donairosa, fanatica do deus Phallus, tomando por modelo no amor a divina Julia, consorte de Tiberio, illustre messallina— lassata, sed non satiata . A tunica azul celeste apertada pelo largo cinto de oiro contorna-lhe a base do tronco esculptural. Um diadema, egual aos braceletes, que se lhe enroscam na carne, refulge no ebano de seus cabellos, e dá-lhe a majestade olympica do perfil das medalhas de Agrippina.
Muito bem![18]
Ergueu-se Maria em sobresalto, e, reconhecendo a mulher de Poncio, dirige-se apressada para casa, levando comsigo a irmã; mas á porta detem-se.
Que formosa poesia Cheia de amor e de melancolia! Ha quem diga no Lácio Que é impossivel encontrar primores Que não sejam de Ovidio nos «Amores» Nos «Epodos» de Horacio... —É que ninguem conhece quanto val' A doce poesia oriental! —Isso é de Salomão?
Senhora...
Pois eu sou tão lisongeira, Para ouvir-te apeei-me da liteira... E foges?—A razão?
E como não colhesse resposta, prosegue sardonicamente:
Tambem me odeias, tu, gentil creança? —Quando ha de fazer-se uma alliança Entre Roma e Judéa? Ganhariamos todos, com certeza: Nós, simpathia; vós, delicadeza. Darei a Poncio a idéa.
Olhando de fito para Maria, que permaneceu immovel com labios contraídos e os punhos cerrados:
Conheces-me tambem?
Perfeitamente.
Se não me engano, a tua alma sente
Por mim o mesmo affecto...
Mas que mal vos fiz eu? Por ser casada
Com Poncio, devo estar acorrentada
A um odio tão directo?[19]
É que tu desconheces o rancor Que tem toda a Judéa ao vencedor! Fossem mil as nações Caídas sobre nós! Odio profundo Teriamos então a todo o mundo E ás suas gerações! —Ninguem pediu que ouvisses o falar Da minha irmã. De mais, vindo escutar Fizeste muito mal... És Claudia; quer dizer: alguma coisa Que nos merece tédio, e que repoisa Sobre um vil pedestal Todo feito de lama e impudicicia! Justamente porque és uma patricia Deves ter o criterio De não brincar co'as cinzas ainda quentes, Porque nós detestamos intendentes E amantes de Tiberio!
Dois soldados olham rapidos para Claudia e logo n'um movimento impulsivo de mercenarios servis apoderam-se de Maria, que não resiste. Martha soltou um grito; succedeu-lhe longo silencio interrompido apenas pelo murmurio da agua e pelo chôro suffocado de Martha, que não desamparou a irmã.
Terrivel quando odeio, e meiga quando estimo. A todo o sentimento o da maldade encimo, Se acaso á minha face o insulto e o desdem Me forem arrojados por alguem! Uma frase, um olhar—tanto me basta; Pois como sou nervosa, em mim logo se engasta, Qual sanguineo brilhante, a fébre da matança, Dos deuses o prazer dulcissimo: a Vingança!
Mas em rapido movimento, como obedecendo a pensamento [20] occulto, faz signal aos soldados, que logo abandonam Maria. Depois, com acerado sorriso de maldade:
Agradece, mulher, a mim e ao teu Deus Esta disposição d'espirito, e os meus Bons nervos hoje; e grava, em summa, na memoria Que o insulto nem sempre é uma gloria!
Eu não pedi perdão...
E quem diz tal, judía? Fui eu que perdoei...—Offendes-te?
Maria...
Maria... Nome formoso, Que tem um rythmo éoleo! Merece logar honroso, Por Jove, no Capitolio!
E volta para a liteira.
Nunca te vi assim...
Diverte me a bondade, Ás vezes...
A caminho!
Os lecticarios põem a liteira aos hombros.
Á porta da cidade
Haveremos de estar antes da noite. Anceio
Por que termine em bréve este infeliz passeio,
Sem novo encontro mau.—Ó palida judía,
Pode ser que eu te veja ainda... Até um dia
Tem saúde até lá, que o ferro vingador[21]
Detesta a gente magra, e tem maior furor
Ao trespassar um cólo arredondado e terno...
Descansa: não hei de ir incommodar-te ao inferno!
Claudia solta uma gargalhada, correspondida n'um murmurio pela soldadesca; e Maria, affagando Martha, que não cessou de chorar, leva-a comsigo para casa.
Apparecem então os fariseus Benjamim e Josué, cautelosos, o olhar obliquo circumdando o terreno, como bons espiões: concretisação grotesca da hipocrisia sacerdotal da época. Mantos negros, andar pausado, mitras de feitio semelhante á dos outros judeus, mas de maior dimensão. Debaixo dos braços, os rôlos de Escriptura. Compostura beatifica. Benjamim, um pouco alquebrado, por calculo, parece não querer levantar do chão o olhar para as coisas superiores ao pó da terra; Josué, pelo contrario, conserva-os erguidos ao ceu como para não os baixar ás coisas mundanaes. Claro é que de quando em quando a compostura perde-se, e os velhacos manifestam-se.
Não ha que duvidar: chegaram todos.
Viste bem, Benjamim? seria engano...
Engano o que? Se affirmo, se até juro Ter visto o Mestre e os dose companheiros. Tomaram pela horta do Simão, E em bréve hão de estar n'aquella casa.
E approxima-se da casa do Leproso . Detem-se; prestando attenção, ouve a distancia o murmurio festivo do povo que, saúda com Hossannas! a chegada do Rabbi da Galiléa.
Eu não te digo?... O povo já começa
A correr ao encontro. Dentro em pouco,
Vae por esta Bethania uma celeuma,
Que nem no Templo em dia de festejo!
Eis portanto o momento ambicionado
De cumprirmos as ordens recebidas...[22]
Mas Benjamim...
O que é?
Sinceramente, Vou achando pesada esta incumbencia. É que nós somos dois: elles são tantos!...
Em verdade te digo; principío A estar arrependido de indicar-te Para meu ajudante n'esta empreza! Hanan mandou que fossemos prudentes: Devemos ter prudencia. Hanan mandou Que tomassemos nota do que vissemos: Tudo o que virmos lhe será contado. Hanan mandou que fosse descoberto O melhor paradeiro onde, em segredo, Se podesse prender o Nazareno, Muito em segredo, sim, para evitar Protestos e tumultos: pois, meu caro, Havemos de encontral-o!
Estás bem certo?...
E não vejo que mal nos ameace. O ex-Grande Sacerdote é simplesmente Quem se entrega aos revezes d'este jogo. Se perde ou ganha, o caso é lá com elle; E nós de qualquer forma ganharemos Não só a consciencia de homens probos, Leaes respeitadores de Moysés...
O que á minha alma traz doce conforto...
... Mas tambem o dinheiro promettido,
Que não menos conforta as nossas bolsas.[23]
Tens um sistema de encarar a vida!...
É forçoso que nós nos convençamos De que, se os bons principios se defendem, Tambem se deve garantir ao corpo A delicia das bôas digestões... Á custa do dinheiro do Conselho! —Ouve portanto o que é mister cumprir: Tu vaes para a cidade; a bréve trecho Procurarás o ex-Sacerdote... E então Dir-lhe-ás que o profeta e os companheiros Chegaram a Bethania era sol-posto; Que decerto aqui ficam toda a noite, E que eu não deixarei de estar álerta.
Perfeitamente.
Espéra! De manhã, Logo que vejas os clarões do dia, Has de esperar por mim...
Que sitio indicas?
Não distante da entrada principal Do Templo. Dado o caso que eu não chegue, Commigo has de encontrar-te...
E onde?
Aqui.
Muito bem!
Percebeste?[24]
Que pergunta! Como quem desenrola o «Pentateuco» E passa a vista pelo que elle diz. —A proposito: guarda-me estes rôlos.
Tens razão. As Sagradas Escripturas Iriam pezar muito no caminho. Mas deves ir com um, pois é preciso Para te dar o aspecto d'homem sério.
Ao romper da manhã...
Vae-te! Vem gente!
E tomam para lados oppostos, revestidos de sua compostura habitual.
Quatro homens assomaram á porta do Leproso ; são Eleazar acompanhado de João, Simão Pedra e Matheus.
João é um bello tipo da raça judaica do norte. Alto, robusto, espadaúdo e ainda imberbe. Os louros cabellos de genuino galileu caem-lhe sobre os hombros em fartos anneis. Olhar azul, meigo; gesto largo e suave, na quietação d'alma; mas desordenado e brusco, se a colera o determina. Voz intensa, possante, cadenciada, de homem habituado a falar ao ar livre, na grande extensão da superficie das aguas.
Mais velho do que elle, Simão Pedra deixa transparecer em toda a sua figura suavidade extranha em creatura humana. De Capharnaum, galileu tambem e tambem robusto homem do mar, o seu rosto é circumdado pelos annelados cabellos e pela barba comprida, bipartida, e tão loura, que mais parece branca. Olhar penetrante, mas bondoso e ligeiramente accentuado por um vinco entre os supercilios, o que torna a sua fisionomia um pouco severa. Gesto sempre sereno; voz protectora, paternal.
Matheus é mais velho do que João e mais novo do que Simão Pedra. Baixo, de forte musculatura, barba ruiva bipartida; olhos meùdos e muito vivos de antigo publicano. Todavia o conjuncto da fisionomia é attrahente por uma expressão de rude franqueza que n'elle predomina. Voz quasi homofona, de homem metódico, que raras vezes se enthusiasma ou sensibilisa, e que tem da vida uma noção segura. [25]
Os trez trazem na cabeça turbante á moda egypcia, com as pontas caídas ao longo das costas. Os mantos e as tunicas empoeirados mostram que foi grande o percurso que fizeram os romeiros.
Amigos, n'este sitio ha fresco e liberdade!
E ficam bem á vista os muros da cidade... Não sei o que adivinho!...
Ao largo esse receio! Muito mais me entristece a nuvem má que veio Escurecer ao Mestre o doce olhar...
Meu caro, Que justissimo orgulho eu tenho, se comparo O tempo que passou a este em que hoje estamos: O verbo illuminando a treva e os recamos Do manto a que se abriga uma ambição enorme; As contorsões finaes do animal disforme Que viu a luz no Horeb ao sopro de Moysés, Rojando-se afinal vencido a nossos pés!
E julgas que não tarda em despontar o dia Tão desejado?
Eu?! Pois quem duvidaría?
—A doutrina do Mestre é como o grão de trigo,
Que o lavrador dispõe no seu terreno amigo.
Que mais cuidados tem o bom do lavrador?
Não tem nem um cuidado. A terra, em seu labor,
Se encarrega de dar ao germe, ao simples grão,
A força e o poder da multiplicação.
Se o lavrador depois no campo seu repára
E vê brilhar ao sol a refulgente seára,[26]
Exclama, commovido: Abençoada terra,
Que assim tanta bondade e tanto amor encerra!
Mas se acaso acontece o lavrador morrer...?
Quem passa pela estrada e attenta no crescer Do risonho trigal, diz logo, reverente: Bemdito quem dispoz na terra esta semente!
Escuta, Simão Pedra: Ás furias do Conselho Não curvareis, talvez, humildes, o joelho?...
Nunca!
Nem fugireis?
Nenhum de nós!
Judas sae de casa de Simão e vae sentar-se, pensativo, junto da fonte. Bem o viu João: mas, dissimulando, continúa ainda mais violento, e, dando ás palavras uma intenção reservada:
Nenhum... Dos que têem do Mestre a patria por commum! Posso dizer bem alto, amigo: os seus patricios Nunca hão de vacilar perante os sacrificios. Se acaso o Mestre fôr levado de vencida, Qualquer de nós dará por elle a propria vida! Quem ha de recusar-se a tal? Filippe, André, Thaddeu, Nathaniel, Simão, Matheus, Thomé, Iago, o publicano, ou Simão Pedra?—Não! Julga-me alguem covarde, a mim, ou a meu irmão? —Vês pois, Eleazar, qual seja o nosso intento.
Não falaste de mim...
Por méro esquecimento.
E vae para junto de Matheus, como para evitar maior explicação.
[27]Pareceu-me o contrario...
É sempre assim co'o Judas...
Judas tem quando muito trinta e dois annos. É um homem em toda a força da vida, conformação máscula, de virilidade quasi selvagem. Estatura regular. Elle proprio vae dizer-nos d'onde é, e qual a côr dos seus cabellos naturalmente revoltos, curtos e encaracolados. Barba cerrada; pélle morena. Olhar profundo e d'infinita melancolia, que de fórma notavel contrasta da rudeza do resto da figura. Os dentes alvos brilham entre os labios vermelhos; e quando irado, o labio inferior que é grosso, sensual, estremece-lhe como o d'um touro em circo romano. É uma d'essas creaturas que não sabemos se devam inspirar-nos simpathia, se conservar no nosso espirito a idéa de repulsão que a principio nos dispertaram. Gestos angulosos e rigidos; mãos, braços e peito cabelludos; andar pesado. Voz de tonalidades irregulares; extremamente meiga e cariciosa na dôr, extremamente vibrante, herculea na cólera.
Que mal te fiz, João? Chego a pensar que estudas As tuas aggressões áquelle que te présa! Eu tenho uma alma branca, e a consciencia illésa. De injurias contra mim tu sempre estás faminto! Que mal te fiz, João? Tu pensas que não sinto... (E crê que muita vez isto me vem á idéa) ... Ter nascido em Judá e não na Galiléa? Sou culpado de quê? De ter a pélle escura? De ter cabello negro? Isto é para censura?
Mas se elle já te disse...
E eu digo que, em verdade, Prefiro lealmente o odio a esta amizade!
E volta aos seus pensamentos dominantes.
Vinde ceiar, que são horas.
Não quereis?[28]
Nem se duvída!
Pois deixae-vos de demoras, Aliás vae-se a comida! —Uma ceia improvisada Mas nem por isso mesquinha, Podeis crêr.
A caminhada Que fizemos foi damninha... Por aguçar o appetite.
Dize que venham depressa, Porque, faltando ao convite, Sem vós a ceia começa!
Dizeis que elle é honesto e probo e crente, em summa Que para ser dos bons não falta a coisa alguma... Talvez que seja assim como dizeis. No entanto, Se para o seu olhar o meu olhar levanto... —É tectrico e sombrio aquelle olhar revêsso! Pensando sempre! Em quê?—Amigos, bem conheço Que pode ser fatal este misterio vivo! Qualquer de nós é meigo, alegre e expansivo... —Quizeram confiar-lhe a bolsa do dinheiro: Não procederam bem.
Porquê?
O embusteiro Apenas retribue a prova de amizade Gastando em seu proveito o que é da sociedade.
Já não te quero ouvir nem mais uma palavra![29]
No teu peito leal um sentimento lavra
Improprio de quem és! Lá dentro direi tudo.
Depois do que te ouvi, não posso ficar mudo!
Então!
Menos calor!
Oh! cala-te, por Deus! Não vás exacerbar ao nosso Mestre os seus Desgostos; porque, emfim, sou muito leviano... Proveio o que me ouviste apenas de um engano... Simão Pedra, desculpa!
Á supplica de João succede algum silencio: todos têem o olhar em Simão Pedra, aguardando o desenlace.
Eu sei que és razoavel. Já tinha como certa a confissão louvavel, Que logo surgiria á simples ameaça...
Devemos collocar ao longe o que a desgraça Procura intrometter no nosso coração!
O Mestre é que diz bem: nasceste d'um trovão, Mas tens dentro do peito os risos da bonança!
Não voltes a magoal-o.
Hei de mudar, descansa.
Encaminha-se para casa, mas
E fala-lhe, João: não vês como ficou?[30]
Judas, deixa-te d'isso! Anda d'ahi!
Eu vou.
Mas fica, e só os quatro entram para casa.
Judas está agora sósinho, sempre sentado junto da fonte, novamente immerso nas suas meditações. Anoiteceu. O luar vem rompendo, illuminando toda a paísagem e coando-se pelas folhas do arvoredo. Uma paz enorme reina em todo o quadro. Calaram-se as cotovias, calaram-se os rebanhos; apenas os ralos se fazem ouvir, estridulos. Muito distante, porém, distinguem-se os sons mal definidos de uma melodia: são os ultimos romeiros, que veem para a festa da Paschoa tangendo psalterio, frauta e pandeiro. É um himno melancólico, dolente, ao pausado compasso da andadura. Pouco a pouco os sons definem-se, approximam-se. A aragem fresca e perfumada balouça docemente o arvoredo.
Porque motivo, ó Deus, esta injustiça?
Desegualdade sem razão, medonha!
Uma alma pura, virginal, submissa;
Outra, vertendo em lagrimas peçonha!
—Ah! fatal e profundo sentimento,
Que tens do abismo a attracção e o horror!
És para mim dulcissimo tormento,
E sendo um grande amor... não és amor!
Um desejo voraz, ardente, furia,
Que a força da vontade não arranca!
Tem sonhos de volupia, de luxuria,
Com as palpitações da carne branca!
Transforma o ideal em verdadeiro
E a minha alma timida conduz
A seductor e vago paradeiro,
Onde eu estreito um cólo e uns braços nús!
Não morrerás? não has de ter um fim,
Ó tenebrosa e infernal tortura,[31]
Que pareces viver dentro de mim
A construir a minha sepultura?
—Quem te ordena que leves a maldade
A fazer-me avançar para o impossivel?
Porque segrédas tu que a castidade
Nem sempre pode ser irresistivel
Ás seducções frenéticas do amor?
E porque vens mostrar-me, sensual,
Certa nudez, e em todo o seu fulgor
Um monte de oiro junto d'um punhal?
—Como és infame! Sim! Com violencia
Levas minh'alma fraca aos empurrões.
E, como a Daniel, a Consciencia
Queres deitar á cova dos leões!
—Oh! nunca! Podes crêr que te resisto!
Hei de salvar minh'alma moribunda,
Arrancar-te de mim, e, depois d'isto,
Escarrar-te no corpo, besta immunda!
E ergue-se de subito; mas o seu olhar detem-se, vendo no limiar da porta o vulto de Maria destacando-se no fundo de luz amarelada que vem do interior da casa.
Maria, ao reconhecer Judas, parou hesitante. Sobre o quadril esquerdo traz apoiada uma amphora de grés. Tem uns momentos d'indecisão. Alguma coisa extraordinaria occulta-se n'aquellas duas almas... Depois, Maria, como animada de forte resolução, encaminha-se para a fonte, passando pela frente de Judas, natural e serena. Elle seguiu-a com o olhar e quedou-se a contemplal-a. Maria põe a amphora sob a corrente d'agua, e espera que encha.
Os romeiros aproximam-se com o seu tanger plangente.
Dir-se-ía que uma lagrima resvalou no rosto de Judas, cujo olhar está agora fito no chão. Mas, por fim, com expressão de resignado, eil-o que se dirige para casa, onde entra a passos lentos.
A amphora transborda. Maria põe-na sobre o quadril e dá alguns passos. Parou: negro pensamento lhe atravessa o espirito; olha para as bandas da cidade com expressão de temor, como se d'ali podesse vir desgraça para algum ente querido... Entra depois em casa, serenamente, fechando a porta.
Os romeiros, cinco apenas, passam na estrada, tangendo os seus [32] instrumentos, e vão-se afastando, afastando gradualmente, os sons sumindo-se pouco a pouco na distancia. A lua sobe com lentidão; paira em todo o quadro a quietação muda da Natureza adormecida...
Mas um vulto suspeito e cauteloso deslisa na sombra, e dir-se-ía que esse vulto é Benjamim.
Estamos em casa de Simão de Bethania.
A casa de entrada é ampla. N'uma das paredes abrem-se as duas janellas tendo ao centro a porta; por ellas vemos o aprazivel sitio já nosso conhecido e a fonte d'onde a agua dimana. Na parede, que nos fica á direita, outra janella olha para Jerusalem e para a estrada que á cidade conduz; na da esquerda, pequena porta com trez degraus dá communicação para o interior.
Em volta da casa, a todo o comprimento das paredes, largo e baixo poial, onde existem em descuidosa promiscuidade varios utensilios da vida domestica, pratos, amphoras, onde o estilo ainda egypcio se revela; pequenos copos de barro pintalgados, almofadas de velho tecido da Syria, pedaços d'esteira de junco do Jordão. Não distante da janella fronteira á cidade, pequena meza redonda cercada de camilhas denuncía tambem a influencia do triclinio nos costumes da Judéa.
A lampada de cobre, que do tecto pende, tem ainda nos seus quatro bicos os morrões que a apagada luz na vespera deixara. É dia claro, festivamente bello; o sol dardeja e as cigarras vibram.
No triclinio trez homens estão deitados: Simão Pedra, Matheus e o Leproso . Comem vagarosamente restos de legumes e peixe secco temperados com oleo de oliveira doce, de que estivera cheio e amplo graal collocado no centro da meza. Duas infusas junto de Simão; pedaços de pão levedo em frente de cada commensal.
[36] Não distante da porta, Judas está sentado no poial, as pernas cruzadas sob a tunica, e tendo nos joelhos um grande rôlo aberto onde lê attento as Sagradas Escripturas.
João, no limiar da porta, sem manto, a tunica á cintura aconchegada por uma velha corda de linho que foi branco, braços cruzados,—medita e lança de quando em quando olhares furtivos e penetrantes, que prescrutam Judas.
De ha muito que não como, e sem lisonja o digo, Um pão com tal sabor. Que saboroso trigo! Não achas?
Fabricado em casa do Simão...
Obrigado. Outro copo?
O vinho é de Ascalão. Conhece-se a distancia apenas pelo aroma.
Continuam a dar-lhe enorme apreço em Roma Para onde vão toneis sobre toneis!
Pudera! O amor entre os pagãos á embriaguez prospéra.
Temos agora aqui magnifica cerveja.
De cevada?
Não é.
De peros?
De cereja Cultivada em Ramá.
Com sorriso amigo, Simão Pedra e Matheus estendem os copos [37] para Simão que n'elles verte o nectar rubro e espumante. Cheio o seu, bebem os trez em silencio e com recolhimento.
Olhae como é profundo Este segredo!
Qual?
Por um processo immundo, Pela fermentação, consegue-se tirar Da materia um licor tão grato ao paladar.
Não acontece o mesmo a tudo que fermenta. Ha certas podridões que geram peçonhenta Bebida a que nem Deus o rude effeito acalma. Entrando pela vista, é digirida na alma! E sinto que n'esta hora a dôr que me aniquila Provem d'esse veneno horrivel que distila Muito perto de mim com lugubre misterio. Inutil procurar um doce refrigerio, Por que elle é semelhante á nodoa, que onde cae Arredonda-se, alastra, afunda-se e não sae!
Judas ergue para elle o olhar inquiridor; mas João já se retirou para alem da porta e passeia em frente d'ella como para espairecer os negros pensamentos.
Judas voltou á leitura sempre silencioso.
Nunca ouvi tal falar da bôca do João.
E o caso é que tambem começo a achar razão A tudo que elle diz.
Abandonam o triclinio reunindo-se junto da proxima janella, onde conversam em voz baixa sem que Judas possa ouvil-os.
O Judas, francamente,[38]
No que hontem se passou, deu prova de demente,
Ou de infiel ao Mestre e cinico impostor!
Hontem?
Á noite.
O quê? Dizei-me, por favor. Não sei do que falaes.
Passou-se tudo aqui. Durante a ceia. Não ouviste?
Não; sahi, Mas foi por pouco tempo.
Então eis o motivo... —Durante toda a noite esteve pensativo E por mais d'uma vez fugiu-nos á conversa Com palavras banaes e frias. Tão submersa Tinha em meditações a alma, que ninguem Deixou de perceber...
Percebi eu tambem Que, muito mais que outr'ora, havia no seu rosto A fiel expressão d'um intimo desgosto.
Maria, aquella honesta e bôa rapariga,
Desejando seguir a usança muito antiga
No povo do Senhor, a de render um preito
De sincera amizade e natural respeito
Ao viajante illustre a quem se dá guarida,
Abeirou-se da mesa, e, muito commovida,
Derramou sobre o Mestre um perfumado unguento[39]
De nardo puro. Então, infame sentimento
De Judas se apodéra. Em vez de prazenteiro
E alegre como nós, aquelle companheiro
Reputado fiel, só tem uma censura
Para galardoar a prova de ternura:
—«Melhor fôra, elle diz, que esse custoso nardo
Se tivesse vendido. Eu, que o dinheiro guardo,
Saberia guardar tambem zelosamente
A importancia da venda a todos pertencente,
Entregando-a depois em meu e vosso nome
Áquelles que teem frio e áquelles que teem fome.»
Mas isso foi um insulto! E o mestre?
Respondeu Brandamente, como é velho costume seu.
Nem siquer suspeitaes a causa?
Tarde ou cedo, Alguem desvendará por certo este segredo.
E vão-se os trez para alem da porta, onde ficam ainda conversando, encaminhando-se por fim para mais distante.
O que estás lendo? O assumpto é grave, ao que supponho. Reparo em que lhe dás toda a attenção.
Medonho! —A infamia de Caím.
É proveitoso, e muito!
Feliz coincidencia! E eu que tinha o intuito,[40]
No que inda ha pouco ouviste em frase rude e chã,
De falar d'esse crime o qual desde manhã
Tanto me preoccupa.
Muito ironico:
Á tua consciencia Não pode causar damno esta coincidencia... És tão sincero, és tão leal e virtuoso!... —Mas devo confessar-te...
O quê?
Que estou ancioso De ha muito por que tu expliques o motivo, Que te obrigou a ser cruel e offensivo Para quem te consagra uma affeição fraterna.
Exaltando-se pouco a pouco, mau grado seu:
O que possues em ti, Judas, que assim governa O teu entendimento? É sempre em vão que eu scismo No misterio que abriu na tua frente um abismo Cercado de fataes e nús despenhadeiros, Affastando-te assim dos nossos companheiros, Sem que nenhum pezar lá dentro te remorda.
E indicando a corda com que prende a tunica á cintura:
Somos na união eguaes a esta corda, Que as estrigas de linho unidas fortemente Fizeram tão subtil, mas que é tão resistente. Na sólida affeição, unificados, somos Assim como n'um fructo os solidarios gommos. —Desfia-se, porem, a corda, ao que parece; E julgo ver no fructo um gommo que apodrece...
Chiméras, illusões...
Talvez.—Mas quando penso
Que o teu profundo mal pode tornar immenso[41]
O crime, e que será depois intempestivo
O arrependimento... Em summa, não me esquivo
A dizer-te o que tenho a corroer-me a entranha:
Nunca simpathisei comtigo; não se amanha
Com a tua frieza a ardencia do meu peito.
É por isto que eu sou dos Dôse o mais affeito
A observar-te.
A mim?!
E sabes o que vejo? Que tens uma alma rude e instincto malfasejo!
Chiméras, illusões...
Talvez.—Mas quem nasceu, Tendo as ondas por berço, e a cupula do ceu Por vasto cortinado; aquelle que na infancia Aprendeu a olhar com summa repugnancia Para tudo o que seja immundo, vil, terrestre, Muito melhor que tu ha de entender o Mestre. Não podem comprehendel-o os rudes corações Selvagens como o teu!
Chiméras, illusões...
Não podes comprehendel-o, e apezar d'isto queres
Viver junto de nós!... Ás bolsas esmoleres
Supplícas com aspecto humilde uma parcella
P'ra o Mestre!—Na verdade, é preciosa e bella
Tanta dedicação! Provoca o elogío!
—Ah! julgas que não sinto ás vezes, quando espío
O teu olhar matreiro, o brilho da avareza
A dar-lhe um tom sinistro?—Odeias a pobreza![42]
Ambicioso e fraco, andas comnosco apenas Como atraz do rebanho os lobos e as hienas!
João!
Podes bater, amigo! Por que esperas?
Judas, arrependido do seu primeiro movimento, affastou-se rapido. E João, agora ainda mais excitado:
E chamas illusões! e vens chamar chiméras Ao que é verdade núa e positiva?!—Agora Que a todos cumpre ter mais força do que outr'ora; No actual momento em que até eu vacílo, Presentindo que não poderá ser tranquillo O futuro do Mestre e de nós todos, mudas Em odio declarado essa frieza, Judas?! Que mal te fez, que affronta, elle, que é tão bondoso? Confessa que proveito, ou que terrivel goso Encontras n'essa infamia abjecta!
Desesperado pela indifferença apparente de Judas:
Que supplicio! Não poder arrancar-te ao menos um indicio! Não poder descobrir a causa que assim léva O teu cerebro audaz a trabalhar na tréva! Ah! não poder, depois do que disseste aqui, Rachar-te o craneo ao meio, e entrar dentro de ti!
E senta-se, febril, n'uma das camilhas.
Está bem! muito bem! Ao menos, esperava
Que soubesses deter a incandescente lava,
Que todo me queimou, transformando em carvão
A minha consciencia... embora de ladrão.[43]
Resoluto, firme, altivo:
Vou deixar-vos! Não sei qual seja o meu destino; Mas isso que te importa? Um ser tão viperino, Como eu, só tem logar no meio da ralé, E quando estorva o passo, affasta-se co'o pé!
Acalma a excitação, Judas. O principal Resume-se, ao presente, em confessares qual A origem do teu odio. É isto o que eu te peço, É isto o que eu desejo.
Isso é que não! Confesso Á minha consciencia o que me vae no peito! Arrancar-me um segredo? E julgas ter direito De desvendar em mim reconditos misterios? Acalmo a excitação, mas guarda os vituperios! —Pediste por acaso ao mar em que nasceste Que descobrisse o leito? Alguma vez desceste A espreitar-lhe a vida, a revolver-lhe o fundo? Pois o meu coração como elle é tão profundo, Que se alguem pretendesse abrir uma passagem, Teria de morrer submerso na voragem!
João avançou para elle com expressão conciliadora; Judas, porem, detem-no com um gesto. Depois, parecendo sincero, mas occultando as suas verdadeiras intenções:
Não me perguntes mais. Ao peso da injustiça
Conseguirei vergar esta alma tão submissa.
Chiméras, illusões condemnam-me implacaveis...
Judas, vae reunir-te áquelles miseraveis,
Que vagueiam, sem rumo, e que andam foragidos,
Erguendo para os ceus o olhar e os gemidos...
Depois quando vier o derradeiro instante,
Desamparado, nú, febril, agonisante,
Revolvendo no pó as tuas mãos afflictas,
Em vez de maldições, tem palavras bemditas,[44]
Para quem desprezou teu pobre coração,
Deixando-o succumbir como se fosse um cão!
—Adeus e para sempre.
Com ironia muito concentrada, já no limiar da porta:
Acceita em pensamento O que d'aqui te envio: em tão cruel momento, Abraçar-te e beijar-te é todo o meu desejo Sincero. Para quê? pois de que serve um beijo Dado por mim? Demais, meu hálito enxovalha! —Adeus, amigo. Adeus... Adeus, João.
E por entre dentes, inaudivel e rancoroso, saíndo a porta:
Canalha!
Oh! fui desapiedado! A sua voz tornou-se Tão lacrimosa e humilde! É mui de crêr que eu fosse Pedir ao exagero o auxilio necessario Para augmentar de vulto o crime involuntario, Ou a leviandade alheia á malvadez. Pobre Judas! E vae fugir de nós! Talvez Arrastar pelo mundo uma existencia nua De affectos, desgraçada... E não por culpa sua...
Á porta de casa appareceram Eleazar, Simão Pedra, Matheus e Simão de Bethania.
Eil-o aqui está! E nós á tua espera!
São horas de partir para a cidade.
Não deve ser pequena a caravana!
Junto do Mestre, o povo delibera
Acompanhal-o.[45]
O que é grande imprudencia!
Grande imprudencia?!
Os nossos companheiros Em vão procuram com docilidade Suster o passo á gente leviana...
E porquê? Não são elles verdadeiros Defensores do Mestre?
Mas reflecte...
O povo quer seguir-nos? Pois que venha!
Mas pode provocar algum tumulto. É preciso que a dentro da muralha Evitemos qualquer indisciplina.
Tu que dizes? Que pensamento occulto Encerram taes palavras? Será crivel Que te arreceies da imbecil gentalha, Que anda a rosnar as suas ameaças Contra a força que temos, invencivel, Justiceira e tremenda?!
E porque não?
Onde possues algemas e mordaças
Para conter as furias imminentes?
Pode acaso fugir-se a uma traição?
Reflecte bem: devemos ser prudentes,
Evitando que Hanan tenha pretexto
Para exercer emfim uma vingança,
Roubando ao Mestre a preciosa vida.[46]
Não tens portanto uma unica esperança Em ver surgir a aurora promettida? —Enganas-te! Abrigae-vos sob o manto Do Profeta, que vamos afinal Assistir ao enorme vendaval, Que ha de causar a todo o mundo espanto! Da Lei não ficará nem uma linha, E as pedras do Templo hão de cahir! Eu antevejo, amigos, o porvir, Que de instante a instante se avisinha! Como cães a ulular, de toda a parte Hão de saír as abominações! Entre espadas de fogo e maldições, Vae tremular um sólido estandarte! Hão de as nuvens rasgar-se! A voz de Deus Ribombará como um trovão gigante, E o vento ha de levar para distante, Onde não haja terra, mar, ou ceus, As ultimas parcellas do monturo A que chamamos hoje humanidade! Álerta! vae rugir a tempestade! —Confia em Deus! Espera no futuro!
Voltando-se e vendo Gamaliel, não pode reprimir a sua surpreza:
Gamaliel?!
Eu proprio. E vejo que cheguei
A tempo de lembrar que existe de uma Lei
A rispida crueza, a inquebrantavel força,
E que por mais que a tua exaltação retorça
O positivo, elle ha de emfim prevalecer!
Vós tendes a palavra. Hanan tem o poder.
—O perigo é enorme.[47]
Todos rodearam Gamaliel, attentos, em grande anciedade:
Ouvide: Nicodemo, Um homem de honradez e que respeita em estremo O vosso Mestre, não me occulta o que se passa A dentro do Conselho. Evite-se a desgraça, Fazendo-se abortar o plano vingador!
Um plano?!
Como?!
Dize!
É de grande valor O que disséres.
Sim! deves dizer-nos tudo!
E acercam-se d'elle ainda mais:
Hanan possue no genro o seu melhor escudo. Se transformou Kaíapha em Grande Sacerdote, Foi para ter alguem que cegamente vote Na sua opinião. Mais do que o genro, alcança Dos homens do Conselho estima e confiança.
E custando-lhe a despegar dos labios as palavras:
Eis por que hontem á noite, e em sessão secreta, Por elles foi votada a morte do Profeta!
O meu presentimento!
Infamia!
Cobardia!
É tempo de calcar aos pés a tirannía![48]
Todos, excepto Gamaliel, estão nervosos, irrequietos, consultam-se, animam-se, invectivam Jerusalem. João foi á janella, e com os dentes cerrados, o braço erguido, ameaça-a de esterminio.
Tende serenidade!
Oh! não, Gamaliel!
Liberte-se de vez o reino d'Israel!
Que poderá tornar-se em grande mar vermelho, Se Poncio perfilhar o voto do Conselho!
As espadas de Roma, as furias de Tiberio, Inda hão de succumbir a todo o nosso imperio! O povo ha de gritar, raivoso, leonino, Rasgando a face impura ao despota assassino!
Ouvide-me, por Deus! Eu tenho lido tanto No livro da experiencia, amigos, que é de pranto A minha pobre offerta á causa alevantada! Vós não podeis brandir a rutilante espada; Nem elle, todo amor, consentiria nunca Na transfiguração do verbo em garra adunca. Parti, pois que é preciso apparecer ao povo, Mas fugide a que venha um incidente novo Aguçar ao tiranno o sanguinario intento. Entrae com desassombro a porta do aposento Onde finge dormir, silencioso, o crime; Acalmae-vos, porem, ou elle não reprime O seu rancor feroz!
Seja o que Deus quizer!
Nem lamina d'espada, ou pranto de mulher,
Pode esfriar em mim a indignação![49]
Piedade!
Vamos!
Jerusalem!
Coragem!
Na cidade Havemos de formar com os nossos companheiros Possante legião d'impávidos guerreiros!
E vão-se todos tumultuariamente, levando comsigo de roldão o velho Gamaliel.
Decorridos alguns momentos em que a moradia de Simão ficou abandonada, Maria e Martha veem de fóra. Martha sempre alegre; a irmã sempre absorta em grande melancolía. Ao entrar em casa, Maria vae logo postar-se á janella, seguindo com o olhar cheio d'angustia os que vão a caminho de Jerusalem.
E uma vez que partiram Para a cidade, afinal, Entreguemo-nos agora Ao que julgo essencial: Tratemos da nossa casa.
Espera. Não tenhas pressa...
É que está tudo em desordem, E o nosso irmão começa Dentro em breve a murmurar Que ninguem aqui trabalha!...
Martha, vae tu repoisar,
Que eu tratarei do preciso.[50]
Não teimes, que me aproveito Do teu conselho.
Careces De alguns momentos no leito; Deves estar fatigada.
E não te enganas. Ergui-me Ao romper da madrugada...
E foste uma das primeiras Que se juntaram co'os Dôse No Monte das Oliveiras, Onde passaram a noite, Como é costume.
E não ficas De mal comigo?
Porquê? Se em nada me prejudicas...
E anciosamente, vendo Judas que acabou d'entrar:
O que ha de novo, Judas?
Nada sei...
Não quizeste partir para a cidade?
Como vês, não parti... pois que fiquei.
E porquê?
Porque o somno que me invade
Exige para o corpo algum repouso.[51]
Vae alto o Sol; de ha muito manifesta
Que brilha no seu ponto mais radioso,
E que são horas de dormir a sesta.
E vaes dormir?
O Livro dos Proverbios Alguma coisa diz... «Quem se julgar Com pequenos desgostos, exacerbe-os A dormir, a dormir... e a sonhar...» —Se durmo, para onde é que foge a vida? Para fóra de mim quem a conduz? Encontrará descanso na guarida Para onde, ao apagar-se, vae a luz? Ao despertar depois, quem reacende No cerebro o fulgor que relampeja? Quem é que nos dá vida ou que a suspende A seu prazer?
É Deus...
Talvez que seja.
Talvez?!
Muito baixinho ao ouvido da irmã:
Extranho o Judas!
Sim, talvez; Porque não julgo prova de criterio, Antes se me affigura insensatez, Explicar um segredo co'um misterio.
Anda a tua alma fugida
Ao bom caminho da crença...[52]
Quem foi que d'elle a affastou
E que dentro em ti deixou
Uma escuridão immensa?
Hontem á noite... (Desculpa
Se acaso te contrarío
Ao falar agora d'isto)
Por todos nós foi mal visto,
Judas, o teu desvarío.
De tão modesta homenagem
Não era merecedor
Aquelle Mestre sublime
Em cujo rosto se exprime
A bondade e o amor?
—Anda a tua alma fugida
Ao bom caminho da crença.
Que Deus de novo a conduza
E o brilho reproduza
Na tua alma, treva immensa!
Judas fica immovel e silencioso. Martha, satisfeita, julgando havel-o convencido, diz então baixinho á irmã:
Não responde. Pode ser Que facilmente consigas Descobrir toda a verdade.
Eu?
Com palavras amigas Interroga-o, porque, em summa, Custa ver n'um coração, Que deveria ser meigo, Semelhante ingratidão.
E vae-se para o interior da casa a reclinar-se no seu leito perfumado. Judas e Maria ficam a sós; Judas, com as palpebras semi-cerradas, observa-a.
É mais prudente...[53]
E dirige-se para a porta por onde a irmã saíu:
Maria, Pareces que vaes fugindo...
Para não te incommodar, Quando estiveres dormindo.
E retira-se tambem, fechando a porta castamente:
É isto mesmo, é isto: o effeito vem da causa... Pois quando ao seu trabalho alguem ordena pausa, Logo termina o effeito. É isto mesmo, sim. Provem este rancor, que ella sente por mim, Da paixão que lhe inspira o rosto, o olhar, a fala, Do ente extraordinario a que nenhum se eguala, Conjuncto singular de tudo o que ha perfeito. Portanto é elle a causa, e o rancôr o effeito! —Oh! que hei de supprimil-o, esmagando-o de todo, Ainda que me sinta a resvalar no lodo!
E erguendo-se, impetuoso:
E tu, Consciencia, não me opponhas embaraços!
Quando o trovão ribomba altivo nos espaços,
Acoita-se a tremer a aguia no seu ninho!
Vae-te! vae para longe! Eu quero estar sósinho!
—... Mas quem me diz não ser este sinistro plano
Improficuo, ou então summamente leviano!
Se elle fugir á morte, ao estertor final,
Por um processo occulto e sobrenatural,[54]
Contra mim lançará todo o furor do ceu,
Elle ha de ser juiz e eu hei de ser o réu!
Com a alma a contorcer-se n'um supplicio:
Se eu visse esta mulher entregue ao frio atroz, O craneo sem ter luz, a bôca sem ter voz, Ó Deus, entoaria, agradecido a ti, Uma canção igual aos psalmos de David, Transformando o meu peito em grande tabernaculo! —Mas vive: ha de ser minha! Hei de vencer o obstaculo!
Pensa longamente, em grande abstracção de tudo o que o cerca, com um sorriso malevolo, animando-se:
E se, como se diz, elle não fôr divino? Se obedecer, como eu, á força do destino?... —Sim! sim! Tudo consiste apenas no convulso E possante vigor d'um corajoso pulso!
Alguem o está ouvindo sem ser visto: Benjamim e Josué. Cautelosamente, Benjamim entrou em casa pela porta aberta e vae approximando-se de Judas, relanceando o olhar desconfiado; Josué empurrou o batente d'uma das janellas, e pela parte de fóra observa. Judas, porem, continúa, agora acobardado:
Assassinal-o!... Não! Vago terror me opprime. E como poderei matar, sem ver o crime? Armando um braço vil? comprando uma consciencia? É pouco, é muito pouco... e é tudo!—Que demencia! Quem poderá saber onde reside a féra, Que tenha peito humano e garras de pantéra?
Desvairado; os braços agitando-se, convulsos; os cantos da bôca espumando:
—Vomíta, ó grande Terra, essa entidade estranha,
Que vive silenciosa em tua negra entranha,
Que é pura como o fogo, immunda qual farrapo,
Enorme como Deus, mesquinha como um sapo!
Genio amante do crime e á virtude adverso,
Que mora num covil... e zomba do Universo![55]
Eu quero conhecer o amigo dos devassos:
Expele-o do teu ventre e arroja-o nos meu braços!
Com grande desanimo:
Nem elle me protege! E eu preciso, emfim, D'um ser bastante infame!
Aqui me tens, a mim...
Quem és tu?
Sou alguem que te escutava. O tempo, como vês, não desperdiço... Não perguntes quem sou. Aqui me tens, Amigo, ao teu serviço.
Ignoro quem tu sejas, mas se acaso Divulgar o meu odio tencionas, Juro que em curto praso No fio de uma lamina abandonas Co'o meu segredo a vida!
Cala a bôca! Não blasfemes de coisas respeitaveis. Venho fazer propostas acceitaveis, Dizer tudo o que sinto, E só respondes co'uma furia louca! Se me has de receber com effusão, Achando em mim o teu melhor amigo, Alevantas a mão, Ameaçador como um guerreiro antigo! É ser ingrato!
Dize-me o que sabes!
Ora! sei que a tua alma se abalança,[56]
Depois do que houve aqui hontem á noite,
A seguir o caminho da vingança.
Naturalmente, sentes-te offendido
Co'a resposta que teve o teu reparo
Tão justo e merecido...
Portanto, ignora...
É isto amigo?
É isso!
Eu hontem ouvi tudo junto á porta... —Manda, que eu te obedeço. Aqui me tens, Humilde, ao teu serviço.
Mas se eu não sei...
Não sabes? Pois sei eu. O Mestre será morto, em poucos dias; Depende só de ti, fica sabendo!
Que dizes, fariseu?
Ouve: É tremendo O odio que lhe tem todo o Conselho, O qual procura o instante mais propicio De pôr em exercicio O plano da prisão, do julgamento...
E da morte?
E da morte! O que, porem,[57]
No actual momento
Ao sacerdote Hanan muito convem
É prendel-o em segredo,
Á noite, em sitio obscuro. Hanan tem medo
De que o povo alevante alguns protestos...
Á prudencia conforme,
Assim procederá.
Dize-me então...
É urgente saber onde elle dorme. Tu sabes com certeza!
Mas...
O quê? Não queres a vingança, Judas?
Quero...
N'esse caso, aproveita o bello ensejo, Que outro não tens melhor. Sendo sincero E grande, como julgo, o teu desejo, Não deves recusar o que proponho. —Ouviste? Muito bem! Reflecte agora, Este sitio não é muito seguro... Aguardo te lá fóra!
Vae-se; Josué segue-o, e os dois desapparecem.
De que serve hesitar, se me apresentam
Como satisfazer o meu anceio?
Basta que eu seja um cumplice d'Hanan,
Um traidor simplesmente... Nada mais...[58]
Com rude franqueza:
—Na mão direita a Infamia, A Consciencia na esquerda. Eu de permeio!
Com funda ironia:
A sentença fixei: «Não saiba a esquerda o que pratíca a irmã.» —Não saberá, que eu nada lhe direi!
Vae sair, mas a porta que dá communicação para o interior da casa abre-se, e Maria apparece no cimo dos degraus. Judas quedou-se.
Julguei ouvir falar...
Aqui? Foi puro engano.
E notando um movimento esquivo de Maria:
Retiras-te de novo? Eu faço qualquer damno Com a minha presença?
Oh! não...
Deixa-te pois Ficar junto de mim, que facilmente os dois Teremos na conversa um passatempo. Fica.
E mentalmente:
Vejamos se o que diz me excita ou pacifíca.
Ha um grande silencio. Maria desceu mansamente e ficou de pé junto do primeiro degrau, o olhar sempre absorto, os braços inertes ao longo do corpo. Judas voltou para o triclinio, e de braços cruzados observa-a, apparentando a maxima serenidade. Lá fóra, o Sol illumina fortemente a paisagem; o calor primaveril irradía por toda a parte; ouve-se nitidamente o murmurio da agua; as vibrações das cigarras são cada vez mais intensas e estridulas; ha segredos d'amor nos ninhos proximos...
[59]Em que pensas, Maria? O teu formoso olhar,
Que era d'antes tão meigo e calmo como o luar,
Ha tempos que derrama um brilho vago, incerto,
E em nuvens de tristeza agora anda encoberto.
Por vezes, sem querer, entregue á dôr immensa Que me aniquilla, tenho a tudo indifferença. Ao passo que me opprime este cruel receio De vêr barafustar o nosso Mestre em meio Dos inimigos seus, mais frio do que a neve Se torna o meu olhar.
Deve ser isso, deve...
E depois de algum silencio, ironico:
Costumado a subir nos estos d'esse amor Aos mundos do Ideal, o candido fulgor Transforma-se em desdem, e apenas se descerra Perante a mesquinhez que roja pela terra!
O olhar bem fito n'ella, animando-se:
Assim como um punhal de rija temp'ra e agudo, Esse olhar desdenhoso, austero, vago, mudo, Brilha sinistramente e vem caír direito N'este pequeno espaço, o espaço do meu peito!
N'um arranco d'alma:
Em verdade te digo, ó mulher altaneira, Quizesse Deus mandar-te aos olhos a cegueira, Já que d'alma és tão céga aos prantos de quem te ama, Que olhas para esse alguem, como se fosse lama!
Crescendo em furia:
Desde hontem que eu desejo estar comtigo a sós
Para que emfim termine este supplicio atroz!
Do meu peito o rugir não sabe em que se esconda,[60]
E vae saír de mim, como em torpel a onda,
Tudo o que hei suffocado, e tudo o que hei soffrido!
—Escuta-me, ó mulher, apura o teu sentido,
E deixa de cuidar n'essa paixão agora,
Que é maior a paixão que todo me devora!
Maria vae responder; elle porém, detendo-a com um gesto:
Eu sei! Conheço a frase; escusas de falar: É puro o teu amor, não é amor vulgar... Mas vê que, se elle abriu em ti essa ferida, No centro da minha alma em sangue e dolorída Existe uma paixão tambem que me envenena, Podendo ser mortal, assim como a gangrena...
Em frente d'ella, com a mão sobre o peito, contorcendo frenetico a roupagem:
Ah! no supremo arranco um peito esfacelado Como este, não receia o que haja mais sagrado, E julga-se capaz, co'o seu valor enorme, De luctar e vencer o ente mais disforme, Terrivel como Deus, gigante como Adão, Possuindo na voz as frases do trovão! E porque sinto aqui as contorsões finaes, Espando francamente as máculas brutaes, Que viveram sem luz n'um mundo subterraneo: Os monstros do meu peito e os vermes do meu craneo!
Grande e soberbo, de braços abertos, espéra.
Sou fraca, sou mulher, e sei no que te escudas; Confesso-te, porém: causas-me tédio, Judas.
Maria!
Com franqueza, eu disse-te por vezes:[61]
Em castidade egual ás innocentes rezes
No Templo do Senhor dadas em sacrificio,
Tenho por goso infindo, ao amor viver propicio,
Dedicar áquelle ente em que a virtude brilha
Acrisolado amor, amor... como de filha.
Na terra nada mais preciso que uma coisa:
A Crença.
Enlevada, com o olhar erguido, as mãos sobre o peito virginal:
O meu amor longe d'aqui repoisa, Estrella que não teme as nuvens tempestuosas. Brando como o dormir das aguas silenciosas, Vago como o misterio enorme do futuro, Meigo como um sorriso, e como o orvalho puro, Nos espaços do azul vive risonho e inerme. A estrella é sempre estrella...
Descendo o olhar para Judas:
e o verme é sempre verme.
Ó vil mulher, que tens desprezo pelo amor, Fugindo á grande lei do grande Creador, Que elle n'esse teu corpo as maldições concentre Para tornar assim fecundo o estéril ventre!
Enlouqueceste!
Mas se eu nunca fui amado!
Assim como o terreno a que não chega o arado,
Semelhante em mudez ás pedras do caminho,
Era o meu coração. Via-me tão sósinho,
Que, por vezes, cravando o meu olhar nos ceus,
Interrogava o Espaço, interrogava Deus,
Procurava arrancar ás trevas o motivo
De haver dentro de mim um morto, estando eu vivo.[62]
Com a voz muito quente, repassada de amor, sensual, o olhar húmido, como revestindo Maria com um manto de beijos, as mãos gesticulando em curvas graciosas, languidas:
Mas desde que no teu o meu olhar depuz, Enxerguei o brilhar d'uma divina luz Na immensa escuridão d'este viver amargo E senti-me surgir do fundo do lethargo. Fosse para onde fosse, eu via a tua imagem, Adorada Maria, envolta na roupagem Tão alva como o arminho, immaculada e honesta: No prado sorridente, em meio da floresta, Sobre os rochedos nús ás vagas sobranceiros, No horisonte sem fim, no dorso dos oiteiros... Por toda a parte, em summa!—Adoro-te, Maria! No caminho da vida o teu olhar me guia... Vem dar uma esperança ao pobre coração Que vive para ti, que te pertence...
Não.
Oh! que negra palavra, amarga como fel!
Á doutrina do Mestre...
O Mestre!...
... és infiel.
Abrigas, por teu mal, um sentimento ignaro
Do que seja o dever, e que se torna avaro,
Cubiçoso, traidor, miserrimo, egoista!
Não podes resistir-lhe? É bem que eu te resista!
Se não queres viver do amor pela virtude,
Se á pureza é rebelde essa tua alma rude,
Então que ao sacrificio eu seja quem te exhorte:
Foge para distante, ou foge para a Morte.[63]
Escuso de ouvir mais. Não quero ouvir-te! Cala! Fica sabendo pois que isto que me avassala, O que por fim se espande e que ha de ser funesto, Nunca foi do amor um sentimento honesto!
Maldito sejas tu, se acaso me tocares!
Que importam maldições inuteis e vulgares? Os castigos de Deus, Deus sobre mim desabe-os, Mas que eu sinta, mulher, o aroma dos teus labios!
E tenta beijal-a, soffrego:
Oh! deixa-me, brutal demonio da luxuria!
Chamaste muito bem á minha ardente furia, Como o fogo voraz, cruel e deshumana, Que a Eva perverteu, e maculou Suzanna.
Soccorro! Eleazar!
Oh! cala-te!
Meu Deus!
Ah! como são gentis assim os olhos teus! Como é rosada e fina a tua debil mão! Vaes ser minha, afinal!
Aperta-a mais contra si; mas de subito, notando-lhe a immobilidade, abandona-a; e vendo o corpo de Maria caír inerte sobre uma das camilhas, diz n'um murmurio de desespero:
Desfallecida?!...
Um pensamento hediondo atravessa o cerebro de Judas; os olhos inquirem em volta. Estão bem a sós, não ha duvida... Sob irresistivel [64] attracção, com o olhar lascivo desnuda-a; ergue-lhe em peso o corpo, aperta-o contra si... Mas de subito, como accordando, como se a voz da Natureza lhe désse um grito na alma:
Não!!
E tomado de horror por si proprio, foge, correndo como doido atravez dos campos, deixando o corpo de Maria inanimado, mas casto e puro como um lirio d'Issachar...
Na quadra principal da Torre Antonia, moradia do procurador Poncio Pilado, tudo é silencioso, embora a noite só agora acabe de tombar.
Assenta o elevado tecto em dez columnas não distantes das paredes; é de mosaico branco e preto o chão marmoreo. Duas portas fronteiras communicam, uma para os aposentos de Claudia e Poncio, outra para as diversas dependencias da Torre. N'uma das paredes abre-se amplamente, achegado um pouco para o angulo, um arco de elegante curvatura, que dá para um terraço resguardado de formosa balaustrada. Comprida escadaria d'ali conduz ao andar inferior e ao vestibulo. No centro geometrico da quadra, ergue-se um busto de guerreiro: é de marmore branco o pedestal; de roseo o busto, em cuja base lêmos, em caracteres romanos esculpida, a legenda: Tiberius Claudius Nero, Imp . Das portas ha pendentes reposteiros de azul e oiro. É da mesma fazenda o reposteiro que está ornando o arco e repuxado junto ao angulo. Fitando nós o busto de Tiberio, temos sobre a direita larga meza de citrus, onde ardem n'um bronzeo candalabro trez vellas de cêra e pez; e perto d'ella vemos uma cadeira d'estofado, de braços longos, costas amplas e recurvas; á nossa esquerda, perto das columnas, coxim de bronze com embutidos de tartaruga e trez almofadas de lavor riquissimo; não distante, no chão, está estendida grande pelle de leão do Atlas. Um armario de ébano macisso alonga-se na parede junto ao arco e [68] sobre elle se ostenta graciosa clepsydra de bronze, onde um Éros aponta com a flécha a escala das horas que decorrem.
Entre as columnas, pendem das paredes, panoplias de couraças, capacetes, escudos e adagas. Encostado ao pedestal do busto de Tiberio, o pilo de oiro cinzelado.
Ha um misto de indecisa luz em toda a quadra: amarellada a que as vellas espargem frouxamente, côr de prata a que o chão do terraço reenvia e que a Lua derrama das alturas. A cidade dormita lá em baixo; e o luar, banhando as casarías, dir-se-ía illuminar uma necropole.
No coxim do terraço está Claudia reclinada. A tunica é de lã; escura e longa a estóla. Tem os braços cobertos pelas mangas da segunda tunica, e é branca a facha que os cabellos lhe prende em élos brandos. Perto de Claudia a sua escrava Geda. Ambas percorrem com o olhar cançado o por demais conhecido panorama.
Dorme tudo na cidade. Que silencio e que tristeza!...
Tens então grande saúdade De Roma?
Sim. Dizes bem: É saúdade esta amargura, Pois outro nome não tem O que sinto na Judéa Onde Poncio me exilou. —Que horas podem ser? Vê lá.
Salvo engano, gottejou A segunda hora de prima...
Por Saturno, é muito cedo,
Pois não é?[69]
Tambem eu cria Ser mais tarde.
Agora, em Roma, Ouve-se ainda a folia Da multidão buliçosa, Que de toda a parte assoma, Soltando ao vento a harmonía Da sua voz descuidosa...
Vem Poncio, taciturno, e para a meza se encaminha, trazendo na mão direita um escripto em papyro. É homem d'estatura mais do que regular, e de idade viril. Rosto livre de pellos; o nariz aquilino; bôca breve, olhos negros e vivos; curto cabello em curvas de frisados, testa larga onde as rugas bem se ageitam. Alva a tunica e alvo o manto farto; sandalhas amarellas; mãos carnudas. Sentou-se junto da meza, e o papyro consulta.
Ali tens quem me trouxe para o exilio! Se não dormem Plutão nem Proserpina, Hão de cedo chamal-o ao domicilio Onde cáem as victimas da Morte!
Muito ironica:
Que inspiração divina Eu tive ao escolher este consorte!
Com um gesto ordena a Geda que se retire. Ergue-se do coxim, e adiantando-se para Poncio, que não a viu:
Que novas trazes, Poncio?
É de Tiberio Foi-me enviado este papyro honroso.
O quê?! Novas de Roma?
O grande imperio[70]
Continúa radiante e venturoso. Foi porém necessario reprimir, No principio do anno, Certa conspiração que fôra urdida Pelos amigos do traidor Sejano. A mensagem termina Aconselhando a que use da violencia.
E lê pausadamente, accentuando muito as palavras:
«Aprende em mim como o poder se eleva E como se elimina Todo aquelle que tenha a impudencia De attentar contra a posse d'este manto. Faze como eu tambem: Reprime a todo o custo a rebeldia. Talvez no Templo se conspire. Emquanto Mostres sabedoria, Espirito sensato, forte e agudo, Podes contar comigo. Recommenda a Claudia, Poncio amigo. Por Jove, te saúdo».
Põe de parte o papyro e reclina a fronte na mão.
O que vaes responder?
Já respondi.
Permaneces?
Decerto, pois me cumpre.
Na perna esquerda sobrepõe a direita, fazendo-a oscillar por longo tempo.
Bella esperança! Hei de viver aqui,
Segundo me parece, eternamente!
—Casou Venus com Marte e foi o Amor[71]
O que nasceu da conhecida união;
Casei comtigo, audaz procurador,
A principio amoroso, bom, cortez...
O que nasceu, por fim, d'este consorcio?
Nasceu a Insipidez!
Pela divina Isis que estás louca, Ou requintas de véras em maldade!
Talvez seja melhor Não despertar do Nilo a divindade! —N'estes ultimos annos tenho sido Verdadeiro modelo de matrona... Sabes que ambiciona A minha alma fugir a tal desterro, E não queres pedir a demissão! Imaginas talvez ser este o meio De garantir a minha honestidade? Pois olha, estás em erro! Não me curvo a pressões tão aviltantes. Se não fôr satisfeito o meu desejo, Perderei todo o pejo... —Inda possuo algum, valha a verdade!— E para me vingar bem cruelmente Serei mais leviana do que d'antes!
Tu não vês que deixarmos a Judéa
Não seria prudente?
Tiberio é para nós inexcedivel
Em attenções, e dá-me como prémio
A confiança. Bastaria a idéa
Da minha demissão, para de vez
Nos expulsar do resumido grémio
Dos seus affeiçoados, e talvez[72]
Depois se transformasse em vingador...
—Pede outra coisa, Claudia; nunca peças
O que julgo insensato.
Somos grandes aqui; nenhum valor
Teriamos na côrte. Não te esqueças
Da sorte de Coponio, Rufo e Grato,
Ao voltarem a Roma.
Pede outra coisa, Claudia, que por certo
Has de ser attendida.
Não me digas, porém, que vá trocar
Aquillo que é seguro pelo incerto.
Mas que m'importa, a mim, o teu logar, Se eu desejo viver onde se viva? Em Roma, na cidade portentosa, Onde qualquer escrava é mais altiva Que uma nobre judía virtuosa! Onde Gelanio, o deus das gargalhadas, Desinfecta as emmanações palustres Da tristeza! onde as pedras das calçadas Falam até de tradições illustres! Quero fugir d'este mortal supplicio Para onde o meu ser se espanda e vibre; Participar no seductor bulicio, E ver á tarde o Sol beijar o Tibre! Assistir como outr'ora aos festivaes No grande circo onde o valor impéra; Vêr athletas sanguineos, triunfaes E ouvir os rugidos d'uma féra! Beber o doce vinho de Falerno, Ser cortezã, de novo rir e amar... Dêem-me vida longe d'este Averno, E que m'importa, a mim, o teu logar!
O que uma vez escrevo, escripto fica![73]
Depois, mais brando:
Não fugirei ás ordens de Tiberio. De mais, coisa nenhuma justifica Em solidas razões o que me pédes.
E volta á primitiva posição.
Disseste?
Disse.
É caso firme e assente Permanecer?
Que dúvida!
Não cédes Nem aos meus rogos?
Não.
És imprudente... —Sabes que fui amante de Tiberio?
Tenho ouvido dizer.
Não desconheces Que se é meigo, tambem é vingativo O meu caracter. Pois talvez um dia Desappareça o teu falar altivo. Tiberio, com certeza, Muito embora já tenha algumas cans, Ha de ainda lembrar-se da belleza Das suas cortezãs...
Não comprehendo bem. Com isso tudo
O que vens a dizer?[74]
Que te saúdo...
E recolhe em silencio aos seus aposentos, deixando tombar atraz de si as prégas do reposteiro.
Poncio ficou sósinho, meditando. Logo apparece no terraço o Ostiario que veio do andar terreo pela escada exterior.
Poncio, recebes agora?
E quem é que me procura?
O sacerdote judeu Hanan.
Hanan procurar-me Na Torre Antonia, a esta hora? —Ostiario, succedeu Alguma coisa?...
Não sei. O povo está socegado.
Manda entrar o sacerdote Para aqui mesmo.
Retira-se para o terraço o Ostiario. Poncio, que ficára preoccupado, diz como comsigo:
Cuidado!...
Vae buscar uma adaga á panoplia mais proxima e mette-a no cinturão; pôe em cima da meza o pilo de ouro que estava encostado ao busto de Tiberio. Senta-se novamente na cadeira.
A um gesto do Ostiario, dois vultos subiram a escada, e a breve trecho appareceram no terraço; são dois homens, cujos semblantes o luar illumina. Um é Judas; o outro um velho de setenta annos, mas válido e robusto—o ex-Grande Sacerdote Hanan, sogro do Grande Sacerdote Kaíapha. Meão d'estatura, barba cerrada e não [75] comprida onde abundam as brancas, assim como no bigode hirsuto e no longo cabello descuidado; nariz adunco, olhos azues e penetrantes. E seu trajar egual ao do mais humilde filho d'Israel: tunica e manto, mitra redonda no alto da cabeça; chinellos muito usados. Dir-se-ía que tal modestia d'aspecto foi um calculo, um disfarce... Ha porem na sua fisionomia e na voz resoluta e aspera a expressão da velhacaria e do mando.
O Ostiario retirou-se pela escada. Judas foi postar-se junto do busto de Tiberio, com ar matreiro, e d'ali segue attento as fases do dialogo a que vamos assistir.
Tenho intima alegria, ao ver que no teu rosto Amavel transparece um juvenil composto De puro entendimento e de vigor e saúde. No falar respeitoso, humilde na attitude, O sacerdote Hanan ao grande Poncio envia Protestos de leal e eterna simpathia.
O alamo gigante, ao estender os braços Como para cingir Apollo, que os espaços Domína, mostra quanto é grande na affeição, Mas fructos não produz: É como a adulação. —Hanan, ouvir-te-ei attentamente.
Vim Para que tu me dês auxilio.
Como assim? De noite? acompanhado?
Este homem ouve, e cala Tudo o que ouvir. Demais, é-nos preciso.
Fala.
Embora nos vencesse a furia dos romanos[76]
Em tempos que lá vão; embora muitos damnos
Haja soffrido o povo heroico d'Israel,
Ás suas tradições conserva-se fiel,
Na crença do seu Deus respeito manifesta.
Religião sómente é hoje o que lhe resta,
Porque tudo entregou ás mãos do vencedor;
Por isso ha de manter, altivo e com fervor,
O que elle considera um virginal trofeu!
—Dize-me então se é justo ou não é justo que eu
Procure lealmente ao povo garantir
A crença de Moysés, agora e no porvir.
Não sei do que se trata, Hanan; mas sempre digo Uma coisa que eu penso ha muito a sós comigo: Do leito has de saír com mais celeridade Para zelar melhor a tua propriedade, E com menos se alguem te fôr dizer, de rastros, Que descobriu no ceu ladrões roubando os astros.
Duvídas de que seja o meu falar sincero? Julgas que estou mentindo, e em nada considero A minha crença?
Olá!...
Desculpa-me. Prometto Não me exaltar de novo, ó Poncio.
O mel do Hymetto Agrada a toda a gente... e fica bem na fala.
Dou-te razão; mas vê que dôr nenhuma eguala
A dôr que sinto. E não terei motivo? Escuta:
Aquella sã doutrina, a doutrina impoluta[77]
Que nos deixou Moysés, o grande fundador
Da nação, que livrou das garras do oppressor
O povo escravisado, e que á ditosa grei
Legou, depois da Fuga, um Deus e Patria e Lei!
A doutrina sublime, erario de virtudes,
Que tem ficado illesa ainda nas mais rudes
Provações...
Vaes falar d'alguem profeta novo, Que anda por'hi talvez a amotinar o povo Contra os amigos teus?—Pois hei de protegel-o. Apraz-me não tocar nem siquer n'um cabello D'esse homem.
Mas porquê? Terás razões secretas?
Quem as tem não sou eu: são elles, os profetas, Ao falarem de ti.
Então! sê razoavel E mostra coherencia, ó tiranno implacavel! Um cadaver de mais, um cadaver de menos, É coisa que não leva aos teus dias serenos Nenhuma inquietação, nenhum remorso.
Animando-se pouco a pouco:
E quando Um sacerdote probo e honesto e venerando Em nome da Judéa a morte solicíta Para um vil criminoso, o teu rancor hesíta?!
Esplodindo, francamente:
De cumprir o dever percebo o que te afasta: Quem te fala sou eu, que tu odeias!
Basta!
Sabes que essas razões não oiço, nem toléro,[78]
E que digo uma vez que não, quando não quero!
—Como o poder de Roma aos homens do Conselho
Tirou todo o poder de tingir de vermelho
N'um banho sanguinario os corpos fraternaes,
Privados de lavrar sentenças capitaes
Sem que eu lhes dê meu voto, imaginaste, Hanan,
Que eu poderia, qual infame barregã,
Despejar a vergonha á rua, como o lixo,
Para satisfazer depois o teu capricho?
Porque uma voz protesta e clama contra o vil
Conselho que assoberba o povo e que, febril,
Anda a espiar na sombra, a procurar o instante
Em que ha de ser traidor ao Cezar triunfante;
Porque um homem possue a civica ousadia
De guerrear talvez a tua hipocrisia,
Venerando ancião, tiveste uma lembrança:
Transformar o meu voto em arma de vingança
Cobarde! Sim! Bem vejo a idéa que te inflamma!
Agarrando no pilo:
Pois digo-te que nunca has de caír na lama Co'o pilo de oiro! Não! D'Oriente a Occidente, A aguia de Roma é grande, e nunca foi serpente!
E poisando o pilo na meza, com ruido, senta-se.
Eu não falo por mim; eu falo por Moysés,
Cuja doutrina tem sido calcada aos pés
D'um homem, que apresenta uma doutrina estranha
Ao direito e á lei; que os pobres arrebanha
Só para dizer mal dos grandes e dos ricos;
Que dirige a palavra aos seres impudícos,
Ás mulheres venaes, aos infimos ladrões;
Que anda em nome de Deus a conceder perdões
A toda a gente; emfim, que o povo, em desatino,
Se atreve a inculcar como um ente divino![79]
Quem sabe?... Pode ser...
O quê?!
Se te reféres Ao Nazareno em vão me falas. Nunca espéres Que eu ponha ao teu serviço a minha autoridade Para o matar. Não mato uma celebridade. Conheço-o muito bem. Inda ha trez dias teve Uma grande ovação. De resto, não se atreve A suscitar no povo o odio contra o Império: Deseja que se entregue a Deus e a Tibério O que pertence a Deus e o que pertence a Roma. Agrada-me o desejo. É o melhor diploma Que lhe ha de garantir a minha protecção.
Ficou tudo perdido, ó Judas.
Ainda não. Péde para eu falar.
Duvído...
Experimenta.
Senhor, ouve as razões que este homem apresenta: Conhece o Nazareno, e sabe tudo...
Vá. Pode falar, mas bréve.
Eu nasci em Judá.
Odeio a Galiléa, e, sempre respeitoso,[80]
Me curvei de Tibério ao vulto majestoso.
—Engana-te, senhor, aquelle que disser
Que o profeta de quem falou Hanan requer,
Como acabei de ouvir, as attenções do povo
Para o império de Roma.
O quê?
Não me demôvo De dizer a verdade, inda que soffra o peso Do remorso, indicando um amigo indefeso Á justiça de Roma e do Conselho! Brado Em voz altisonante: Ó Poncio, és enganado! O Profeta conspira, em intimo rancor, Contra a lei de Moysés e contra o vencedor! —De tal conspiração confio-te o segredo...
Approximou-se mais de Poncio, que continúa assentado, e fala-lhe agora, insinuante, incisivo, um pouco por detraz d'elle, encostando-se até á curva da cadeira. Poncio escuta-o em silencio, com o olhar brilhante e fixo em um ponto, todo o seu sentido concentrado nas palavras que sáem dos labios de Judas como subtil veneno.
Porque abate no mar, ás vezes, um rochedo
Austero, alcantilado, enorme?—Toda a gente
Julgava-o rijo, forte, invencivel, potente,
Que do seu dormitar ninguem o accordaria,
Que o Tempo, esse feroz destruidor, seria
Incapaz de roer-lhe o corpo giganteu...
Mas certa noite o monstro herculeo estremeceu,
Barafustou no espaço, e com fragor medonho
Afundou-se no abismo, ao despertar d'um sonho!
—Que forças colossaes, que forças imprevistas
O venceram? O sol ia doirar-lhe as cristas
Majestosas, assim que despontava ao largo;
A Lua namorada, em languido lethargo,
Cobria-lhe de prata o dorso negro e frio,[81]
Que as lagrimas do ceu tornavam tão macío
Como um peito de cisne ou face de mulher...
O proprio Creador do Mundo nem siquer
Lhe causava receio. Em doidas convulsões,
Um raio desabou das vastas amplidões
Sobre elle, e a sua voz, longe de ser magoada,
Soltou-se em desdenhosa e grande gargalhada!
—Que forças colossaes, que forças imprevistas,
Lhe fizeram baixar as invenciveis cristas?
Que forças?—Perguntae-o áquella massa informe,
Que por vezes murmúra e que por outras dorme
Em profundo silencio; interrogae o Mar,
Que outr'ora vinha, meigo e humilde, a caminhar
Do horisonte sem fim, da solidão distante,
Para oscular os pés do impávido gigante!
Interrogae o vil hipocrita, que ao passo
Que era meigo e humilde, em fraternal abraço,
Tratava de roer, silenciosamente,
As bases do colosso athletico e indiff'rente,
Que afinal, certa noite, ao despertar d'um sonho,
No abismo tombou com fragor tão medonho,
Que as Estrellas, ouvindo aquelle enorme grito,
Sentiram-se tremer d'horror no Infinito!
Ha colossos que teem gigantes nas entranhas,
Féros como leões, grandes como as montanhas!
Possuem dos clarins as frases inspiradas,
E fusilam do olhar relampagos d'espadas!
Ó mares da perfidia, andaes a carcomer
As bases do colosso herculeo do poder?
Tende cuidado, anões, co'os ríjidos ciclópes!
Ondas que assim correis, que vindes em galopes,
Apressadas, servís, infames... Para traz![82]
Que para reprimir a vossa furia audaz, Para que o vosso dente ao monstro não carcoma, Basta um simples olhar dos hercules de Roma!
E passeiando agitado, raciocinando e resolvendo de prompto:
Prefiro debelar de prompto a crise. Ignoro Se falaste verdade, ou se acaso labóro Em uma vil intriga! A dúvida me envolve... Mas n'esta situação o meu poder resolve O que julga efficaz. Esse traidor proféta Ha de attingir ainda hoje a tenebrosa méta Da existencia. Vou dar a ordem da prisão Do Zéfiro subtil com furias d'Aquilão!
Sê prudente, senhor. O sangue d'innocentes Não deverá correr. Escuta os meus prudentes Conselhos, bom amigo. Ai! poupa-me a Judéa!... Escuta-me, por Deus! e a indignação refreia! Tenho medo do povo... elle é tão leviano!... Será muito melhor seguir o nosso plano.
Que poderá falhar!
Que é firme!
Que é seguro!
Uma escolta romana ao meu dispôr, e juro Por Moysés que ámanhã de noite será preso O Nazareno.
E em tom de muita confiança, como velha autoridade que bem conhece os seus governados:
O povo ha de ficar surpreso,
Ao saber no outro dia a grande nova. Embora!
Não deve protestar, porque elle não ignora
Que é depois d'ámanhã o dia consagrado[83]
Ao festejo da Paschoa. Assim, manietado
E mudo, ha de assistir ao julgamento e morte
Do Proféta.—Senhor, bem vês que d'esta sorte
Moysés perde um rival, Tibério um inimigo.
—Este homem prometteu que ha de ensinar o abrigo
Onde fica de noite o Nazareno occulto
E os discipulos...
Que hão de fugir ao tumulto...
«Um cadaver de mais, um cadaver de menos É coisa que não traz aos meus dias serenos Nenhuma inquietação, nenhum remorso...»—Hanan, Dás-me a tua palavra...?
O Proféta, ámanhã Por esta hora, se Deus não se mostrar contrário, Ha de estar preso.
Bem! Pois n'esse caso...
Dirige-se ao terraço e batendo as palmas, chamando:
Ostiario!
Ganhámos, afinal! Serás recompensado Pelo teu grande zelo, ó Judas.
Obrigado...
Um prémio te darei. Trinta moedas; queres? De prata!
Sim, Hanan... Acceito o que me deres.
Chamaste-me?[84]
É de crêr que no Pretorio esteja Algum centurião. É Poncio quem deseja Que se dê cumprimento a tudo que estes dois Homens disserem.
Bem.
Fique entendido pois. Ao Pretorio tu mesmo agora os encaminha.
E passando pela frente de Judas e de Hanan, sem para elles olhar, retira-se para os seus aposentos.
Moysés ha de vencer!...
Maria ha de ser minha!...
Vão-se com o Ostiario pela outra porta.
Apparece então a escrava Geda, que se encaminha para o terraço.
Vae repoisar a minha ama...
Como a noite é calma e linda!
Mas ninguem ha que prescinda
Das indolencias da cama!
Muito ingrata a Humanidade,
Que acha as trévas de Morpheu
Preferiveis a este ceu
De risonha castidade!
Talvez seja por vingança
Que a mostrar-nos a outra face
A Lua não se abalança!
Seja lá pelo que fôr,[85]
Que sem protesto não passe,
Diana, o teu desamor!
Acaba de fazer correr brandamente o reposteiro. Depois vae buscar o candalabro e dispõe-se a leval-o comsigo.
Mas o reposteiro agita-se, é corrido pela parte exterior por mão nervosa e resoluta, e uma mulher d'Israel apparece offegante, com o rosto occulto por espesso veu de lã negra.
Claudia?
Quem te deu a livre entrada? Que vens fazer aqui, judía?
Venho Para falar a Claudia, unicamente É este o meu empenho.
E que importa o motivo, se é costume Não entrar sem licença do Ostiario?
Em pouco a minha falta se resume: Vi tudo solitario...
Esperasses.
Desculpa-me...
Duvído De que a minha ama te receba. É tarde. A menos que a tivesses prevenido De vir, e que te aguarde.
Urge que eu fale a Claudia. É muito sério O que me traz!
Eu vou...—Temos misterio!
E entra nos aposentos de Claudia. [86]
A mulher, vendo-se sósinha, ergue então o véo. É Maria de Bethania. Á fadiga reune-se no seu rosto transtornado profundo abatimento moral.
Ó essencia do Bem! ó divinal encanto, Que fazes do Amor a tua crença unica! Presinto que a Desgraça estende o negro manto E deixa a descoberto a sanguinaria tunica, Pairando sobre ti mais proxima que outr'ora Presinto que o teu rosto, onde sorri ventura, Em breve deixará de ser como é a aurora, Tornando-se, meu Deus! em grande noite escura! Mostra-te para mim bondoso e esmoler: Escuta-me, Senhor! E que seja bastante, Para fazer da noite aurora triunfante, Uma lagrima ardente e pura de mulher.
E fica absorta, com a cabeça encostada ao pedestal do busto de Tiberio.
Maria de Bethania?! O quê? Pois tu Ousaste vir aqui? Pois desafías Com a tua presença o meu rancor? Tens a loucura, a falta de criterio, De brincar com as cinzas inda quentes?
Perdôa-me, Senhora...
O que fizeste Da altivez soberana e do teu odio?
Perdôa-me, senhora. Quem se humilha,
É porque tudo esquece, e quem supplíca
O perdão d'uma offensa, tem direito
A ser ouvida...[87]
Apraz-me isso que dizes. Tu propria te encarregas de vingar-me. Optimamente!—O que é que tu me queres?
Nunca viste, depois da tempestade, Quando vem a bonança, Resplandecer de luz na immensidade O Arco da Alliança? Pois que venha, senhora, em tal momento, Um meigo olhar bondoso Alegrar do teu rosto o firmamento Como o divino traço luminoso.
Não faças poesia, que Virgilio Mandou lançar a sua Eneida ao fogo! Começas muito mal. Por um idilio!... Do teu poema a sorte pões em jogo...
Na ironia cruel quanta amargura! Esta hora é suprema. Vou falar-te d'um ser todo candura...
O heroe do teu poema?
Heroe, disseste bem, mas que regeita
O gladio vingador,
E que tem na palavra uma arma affeita
Á bondade, ao amor...
Ouvindo-lhe o falar tão meigo e doce
Que de manso deslisa,
Perfumado, subtil, como se fosse
O perpassar da brisa,
As almas estremecem, de sentidas,
E ficam-se amorosas,[88]
Desabrochando trémulas, florídas,
Como botões de rosas!
Ha já trez dias, Claudia, que o terror
É para mim veneno!
Querem matal-o! Ai! salva o meu amor!
Ai! salva o Nazareno!
Não deixes que lhe roubem a existencia,
E termina o martirio
D'esta paixão que tem do Sol a ardencia,
E a pureza d'um lirio!
Ordena que o não matem, Claudia! acalma
Os monstros malfasejos,
Que eu a teus pés arrojarei minh'alma
N'um effluvio de beijos!
E cáe de joelhos em frente d'ella, com a fronte erguida, o olhar febril, os braços estendidos, supplicante.
Isto é completamente um caso novo, E agrada-me de véras Que sejas tu, mulher, em vez do povo, Quem venha interceder pelo Profeta Com lagrimas sinceras! É bello!
Tem piedade!
Honra o teu sexo
O platonico amor que te inquieta;
E n'elle vejo mais do que um reflexo
Do feminil civismo d'outras eras.
Tu excedes Cornelia,
E de Coriolano a mãe Veturia!
—Tenho notado haver n'esta Judéa
Mais valor nas mulheres que nos homens,
O que toma o aspecto d'uma injuria[89]
Ás patricias de Rhéa!
Judith a Holofernes rouba a vida,
Para salvar o povo seu amante,
Ao vêr que elle agonisa;
Esther, em patrio amor toda incendida,
De Assuéro affronta a crueldade e insânia;
Debóra, a profetisa,
Entra na lucta e sae-se triunfante...
Agora vem Maria de Bethania!
—Palavra, que a Judéa é divertida!
Rindo sempre, passou pela frente de Maria e sentou-se no coxim, depois de ageitar-lhe as almofadas.
Mas põe fim ao desdem, que chega a ser um crime! Quando uma alma se dobra e tanto se deprime, Quando um peito soluça, a compaixão ordena Que a ironia que esmaga e o riso que envena...
A um olhar severo de Claudia, humildemente:
Oh! peço-te perdão! Esqueço-me de tudo
Que não seja o tormento indómito e agudo,
Que me offusca a razão e o peito me lacéra!
Perdôa. Tem piedade. Apenas eu quizera
Que soubesses tambem como é risonha a vida,
Que toda se consagra a uma entidade querida:
Sorrir quando sorri, chorar quando ella chora;
Respirar o subtil perfume que evapora;
Enchermo-nos da luz que o seu olhar derrama;
Silenciosamente, amar tudo o que ella ama;
Ouvir-lhe da palavra a doce melodía
Tão limpida, tão casta e pura, que enebría,
Vibrando dentro em nós alguma coisa ideal,
Semelhante, no brilho, ao riso divinal
Da estrella que, tremente, em candidez scintilla,
Quando ao longe a manhã vem a romper tranquilla.[90]
Claudia tem-se reclinado no coxim e, cerrando as palpebras, conserva-se impassivel. Maria cae de joelhos junto d'ella.
Ó Claudia, sê bondosa e presta-me sentido: Tu poderás talvez, pedindo a teu marido... Tu és bôa, afinal; e eu fui leviana Quando te respondi com altivez soberana. Esqueces tudo, sim? Já não me tens rancor E vaes poupar minh'alma, ó Claudia, á enorme dôr... —Mas fala, mas responde a isto que eu te peço! Ai! que ella não me escuta! Ó Deus, eu enlouqueço!
E chora convulsamente, com a cabeça entre as mãos, os cotovellos fincados no coxim.
Claudia, sempre immovel, impassivel, parece dormitar.
Ao cabo de copioso pranto, Maria afasta do rosto as mãos, e continuando de joelhos, com o olhar vago, como em extasi, as mãos com os dedos enclavinhados sobre o regaço, diz em voz muito dolente:
Não me resta uma esperança,
Pois não me escuta ninguem!
Dorme a eterna Divindade
No azul da Immensidade,
Nos horisontes d'além,
Onde não chega um suspiro,
Onde o silencio é profundo.
Ha de ser bom tal dormir,
Descuidoso do porvir,
Descuidoso d'este mundo,
N'aquelle reino divino
Tecido por andorinhas,
Feito só para os honrados,
Para os bons e desprezados,
Para as meigas creancinhas...
Tão sereno como o lago
Da Galiléa florída,
Que se formou por encanto
Do arrependido pranto[91]
Da mãe Eva arrependida... —Parece mesmo que o vejo No seu manto azul. Dir-se-ia Que o firmamento amoroso Teve a alegre fantasía De enviar á terra um beijo Puro, suave, bondoso... Parece mesmo que o vejo. —É seu olhar calmo e doce; A tudo o mais fica estranho, Quando distingue o fulgor Dos astros, como se fosse O cuidadoso pastor Do scintillante rebanho...
É seu olhar calmo e doce...
Tem o brilho das seáras O cabello perfumado, Que nos hombros lhe descansa E lhe cerca as faces claras. É tão formoso e doirado Como um sorrir de creança...
Tem o brilho das searas Seu cabello perfumado...
Mais uma vez perdão te peço. Eu vou sahir
E não perturbarei, ó Claudia, o teu dormir.
Reconheço por fim que era a esperança fátua.
É inutil chorar em frente d'uma estátua...
—Retiro-me vencida, assim como o pagão,
Que dedicou á Sphinge, ardentemente e em vão,
Os gritos da sua alma e os canticos do amor.
Podes dormir risonha: eu levo a minha dôr![92]
E com a cabeça descaída sobre o peito, dirige-se para o terraço em passos vagarosos, como se fôra a caminho da morte, com o negro véo pendente ao longo das costas. Sem ter olhado para traz, desce a comprida escadaria.
O somno de Claudia é agora profundo. Tudo ficou silencioso. Estinguem-se uma a uma, com lentidão, as véllas no candalabro; e o luar, a que o arco sem peias dá passagem, faz projectar o busto de Tiberio na parede fronteira, como um enorme phantasma negro...
Estamos n'um dos sitios mais tristes e isolados junto da muralha de Jerusalem. A denegrida alvenaria sobreposta é como gigantea molle, á indecisa luz da madrugada. Ceu torvo, onde as nuvens carregadas desfilam mansamente.
Das juncturas das pedras da muralha pendem aqui e alem longas hervas parasitas balouçadas pela aragem fria, e que parecem, á frouxa luz, corpos sem vida de suppliciados.
Abre-se na muralha pequena porta, á qual se chega por tortuoso e natural caminho, que, não distante d'ella, passa por sobre um pequenino outeiro. Parallelamente á muralha, alonga-se uma continuidade de penhascos onde os cardos vegetam, e algumas figueiras bravas se contorcem rachiticas. Junto ao sólo, uma caverna abre a sua negra fauce misteriosa.
Para alem do pequeno outeiro comprehendido entre a muralha e os penhascos, mal distinguimos ainda o horisonte vasto, árido, sêcco, argiloso e triste.
Choveu. Pairam no ambiente exhalações humidas. Relampagos fuzilam de quando em quando; os distantes trovões ribombam roucamente.
A custo o dia vem rompendo; os galos cantam ao longe, ao desafio.
O ultimo relampago deixou nos vêr junto da porta um soldado [96] romano que é Ampío, fazendo sentinella. Sob a arcada dois vultos estão deitados: são Lauso e Fábio, tambem soldados de Tiberio, porque as sentinellas foram reforçadas na vespera por ordem de Poncio.
Erguei-vos, camaradas, pois não deve O negro deus do somno tal imperio Exercer sobre vós, quando do Olympo Cáem com furia as cóleras de Jove.
Novamente começa a tempestade?
Foi aquelle patife do Vulcano, Que lhe enviou fornecimento novo.
Pois ainda troveja?
Muito ao longe.
O peior é que Phébo, com certeza, Não vem tão cedo.
Os galos já cantaram Das bandas do Levante, amigo Fábio.
Olha! alguem se dirige para aqui.
Talvez seja Noctifer, deus das trevas.
E os trez esperam, encostados ás lanças. São seis miseros mercadores avergados ao peso de seus fardos. Quando chegaram em frente dos soldados.
É permittida a entrada aos mercadores?
A dúvida, meu velho, está sómente
Em pagarem tributo ao publicano.[97]
Decerto que pagamos, como é de uso; Mas quando vi trez guardas junto á porta. Fiquei suppondo alguma novidade...
Pois quê! não morreu hontem o profeta? Nada mais facil do que haver rebeldes... Conhecemos a vossa grande astucia E o vosso rancor, judeus malditos!
Maldita Roma!...
Eh! lá! Vê como falas, Que o teu rei já não vive!
Da Judéa Ha muito que fugiu a realeza!
E os mercadores entram na cidade, seguidos pelos trez soldados que d'elles chasqueiam.
A tempestade vae acalmando; as ultimas nuvens passam mais serenas. Um vulto d'homem arrasta-se, vagaroso, para fóra da caverna, como se fôra um animal silvestre. A custo saíu e a custo distendeu, para se erguer, os membros entorpecidos. É Judas. Traz sobre si a tunica sómente, esfarrapada e suja; cabeça a descoberto, o corpo enlameado, os pés descalsos.
Vem o dia a nascer das regiões eternas. Depois de ter lançado as iras justiceiras, O grande firmamento agora é mudo e quedo. Na penumbra, os chacaes regressam ás cavernas, E vão pedir a noite ás fendas do rochedo As aves agoureiras.
E olhando para a caverna d'onde saíu:
Nunca tornes a ouvir o minimo sussurro,[98]
Ó treva de amargura e negras maldições!
Ó antro, que animei co'o halito do crime,
Cae de novo em mudez! As aguas do enxurro
Hão de lavar-te ainda, ó meu algoz sublime,
Das tectricas visões!
Com a cabeça apoiada n'uma das mãos e o cotovello na outra, move-se com passos incertos, indecisos. Senta-se n'um monticulo de pedras; e depois, como reconstruindo mentalmente o que se passou na ante-vespera:
Estavam a dormir ao pé das oliveiras, E a Lua derramava em cheio nas clareiras O argentino olhar, o seu formoso pranto. Fui na frente da escolta, e ao avistar-lhe o manto, Caminhei para elle. Ergueu-se, olhou, sorriu... Mas ficou-se indeciso apenas descobriu Dos archotes a luz na solidão campestre. —Adiantei-me. «Deus seja comtigo, Mestre.» Fitou-me silencioso. Aproveitando o ensejo, Dei-lhe a mão desleal, e um repellente beijo Depuz n'aquella face imperturbavel... Ai! Co'um latido feroz toda a matilha sae Da sombra do arvoredo e cerca-o n'um momento! Aos amigos leaes occorre o pensamento Heroico de empregar a força. A gritaria Desperta o olival da funda lethargia. Cresce o tumulto. Um ferro ergue-se ameaçador... Contra mim? Não sei bem, porque me invade o horror. Por entre a ramalhada, aos pios, uma c'ruja Espavorida vae dizendo-me que fuja.
E erguendo-se de chofre, animando-se:
Percorro velozmente os grandes olivaes;
Quando abandono a sombra, entro nos matagaes;
O manto esfarrapado o rasto meu indica,
Depois a propria carne! A alma, porem, não fica,
Pois se olho para traz, sobre a verdura espessa[99]
Persegue-me, a rolar em sangue, uma cabeça.
Termina de repente o estenso matagal,
Foge-me a terra, e vou caír n'um tremedal
Onde tenho uma lucta encarniçada e louca:
A lama em borbotões entra-me pela bocca,
Os limos que eu encontro agitam-se irrequietos,
Voam por sobre mim, zumbindo, mil insectos,
Fogem nuvens de rãs para logares occultos,
E o seu coaxar parece arremetter insultos!
Mas saio vencedor e a terra firme alcanço;
Então quero parar... mas corro sem descanso.
As forças vão fugindo, e julgo que do peito
O coração rebenta exanime e desfeito!
Não se demora o rio: é tempo emfim! D'um alto
Vejo a Lua a brilhar no espelho da agua; salto,
Alheio á dôr do corpo, e emquanto vou nadando
Sinistramente ao longe um lobo fica uivando.
Chego á margem; depois entro por um atalho
Escuro e pedregoso onde caíu o orvalho...
Afinal, afinal, ó grande Deus, consigo
Descobrir de repente o mais seguro abrigo!
Abeirando-se da caverna:
Sem saber onde estou, a estremecer d'horror, Esfarrapado, ardendo em febre, sem vigor, Ouvindo sempre ao longe uns gritos de tortura, Venho enterrar-me aqui, na treva da amargura, Onde encontro por fim, núas e desgrenhadas, A Consciencia a chorar, a Infamia ás gargalhadas!
Ri convulso, com a cabeça entre as mãos. E o écho da caverna responde-lhe longamente...
Depois de grande silencio, solta um suspiro d'alívio, e, com os braços pendentes, a cabeça descaída sobre o peito:
Eliminei a causa, e agora nem procura
A minh'alma saber se existe ou já não dura[100]
O effeito. Um assassino é o que vejo em ti,
Judas!
Apertando na mão um pequeno sacco de coiro que em si guardava.
O coração refugiou-se aqui Transformado em dinheiro. É prata reluzente, Mas se queres vêr sangue, enterra n'elle o dente! E falas de ambição, tu que possues a marca Das filhas sem pudor do velho patriarcha!... Relembras o incesto horrendo de Thamar, E o crime de Ruben, que ousou enxovalhar A honra de seu pae no leito da madrasta!... E falas de ambição, tu, cuja voz arrasta Em de redor de mim o grande amontoado Das velhas podridões da carne e do peccado!
Ferido por um rapido pensamento:
—Vou arrojar ao Templo este dinheiro infame, E talvez que o Senhor o seu perdão derrame...
Mas detendo-se, hesitante:
Tenho medo... não sei...
E supersticioso:
Era de madrugada E eu ia caminhando em terras d'Ephraím Quando um sapo surgiu d'entre risonha mésse Para vir espreitar meus passos junto á estrada. Esmaguei o!—Se alguem agora me fizesse A mesma cousa, a mim?
Compadecído:
Meus olhos, vêde a luz que o firmamento inunda,
Que a luz tambem se fez para os olhos da serpente!
Rasteja para longe, ó animal mesquinho,
Deixando atraz de ti a escuridão profunda...[101]
Rasteja para longe... e ségue o teu caminho
Silenciosamente...
A passos lentos, vae-se, costeando a muralha até dobrar o angulo que ella fórma.
Duas mulheres, com os rostos occultos por densos véos, sáem da cidade. Alguns passos dados, páram como avergadas pelo cansaço ou pela dôr. São Maria de Bethania e sua irmã Martha.
Fica perto da cidade O sepulcro: é no jardim Do José d'Arimathéa. Ao aroma do jasmim Casa-me o aroma da rosa... É tudo meigo e silente N'aquelle triste remanso Onde elle dorme. A corrente, Que vae regar os pomares, Tem uns murmurios tão doces E tão cheios de misterio...
Maria, irmã, se tu fosses Contaminar o teu corpo? É prohibido na Lei Ir a um sepulcro...
Decerto...
É um crime.
Sim; bem sei.
Mas devo eu conjecturar
Que os negros vermes da terra
Contaminem moradia
Que tanto perfume encerra?[102]
As borboletas sómente,
Aereos beijos de amor,
Hão de poisar junto d'elle
Como poisam n'uma flôr,
Indo contar em seguida
Aos espinhos do balseiro
Quanta fragancia divina
Exhala aquelle canteiro.
... Ao passo que eu viverei
Na grande dôr do meu pranto,
Como a aranha silenciosa
Que fez a teia n'um canto.
—No ceu da minha existencia
Pairavam tranquillamente
Dois flócos de nuvem, que era
Como o fumo transparente...
Andavam pairando assim
Despreoccupados os dois,
Para ao sopro d'uma aragem
Se desfazerem depois...
Fumo illusorio que sobe
Mansamente pelo ar
E que se esvae n'um instante
P'ra nunca mais se juntar...
Ó minha irmã!...
E abraçadas, com as frontes reclinadas no hombro uma da outra, soluçam longamente.
Vem então da cidade outra mulher, que pelo trajar romano logo se reconhece ser Claudia.
Porque choras?
Ella?![103]
Claudia!...
Que motivo Gerou no teu seio a Dôr, A negra mãe do gemido? Conta-me tudo, mulher. —Morreu-te um filho, o esposo, Ou um irmão...
Oh! meu Deus! Como o seu falar é outro!
Tambem eu soffro ha trez dias D'um enorme soffrimento, E quero que na cidade Fiquem todos conhecendo Quanto Claudia é bondosa, Claudia, que o povo despreza, E quanto chora tambem Pela morte do Profeta.
O que oiço!
D'uma mulher
Taes lamentos recebi,
Que um novo ser despertou
De chofre dentro de mim.
Sonhei depois, e que sonho!
Nem mesmo o posso contar...
Tão cheio de quietação,
De suavidade e de paz,
Que fiquei por muito tempo
Absorta, de madrugada,
Ao construir na memoria[104]
Todo o sonho que sonhara.
—Eu fugira para longe,
Para um paiz tão distante,
Que este mundo em que vivemos
Não me ficava ao alcance;
E alguem cercado de luz
E de meigas creancinhas
Veio alegre ao meu encontro
Nas paragens infinitas...
O que te disse?
Não sei... Apenas sei que, accordando, Não conheci a minh'alma Transformada por encanto; E por que um plano de morte Estava urdido em segredo Contra o bondoso Profeta, Logo intentei desfazel-o, Supplicando a meu marido Que em seu favor empregasse Todo o auxilio. Impossivel! A suprema divindade Caíra em somno profundo No seu grande leito azul, Deixando que o Nazareno Expirasse n'uma cruz!...
E eu que ainda a accusava!...
A minha dôr reparti
Comtigo; deves portanto
Confiar tudo de mim...[105]
Para quê, se tudo sabes?
Tudo sei?...
Pois que em Judá Nenhum rosto de mulher Por mais ninguem chorará N'este momento.
Por Elle?
Sim, por Elle, Homem-Misterio,
Que voou, como o aroma
Da pobre rosa pendida
Sobre a haste, dolorida
Pela mágua da saúdade...
—Vinde comigo, mulheres,
Orvalhar co'o vosso pranto
A boceta em que dormita
Aquelle celeste encanto.
Ide colher á campina
Braçados de malmequeres,
D'alfazema e rosmaninho,
E vinde, vinde comigo
Dispol-os naquelle ninho...
E vós, ó mães, que trazeis
No ventre o fructo do amor,
Purificae-o aspirando
O perfume e o calor,
Que se evolam brandamente
Do sepulcro sorridente,
Como as nuvens que perpassam...
... Fumo illusorio, que sobe
Com lentidão pelo ar,[106]
E que se esvae n'um instante,
P'ra nunca mais se juntar...
E cala-se, a voz estrangulada pelas lagrimas.
Estas palavras?... Judía, Impossivel existirem Dois corações como o teu!
Já não o tenho: morreu.
Como te chamas?
E vendo o rosto de Maria que se desvelára:
Maria!
Sim! que se roja a teus pés Humildemente contricta, Para dizer-te: mulher, Sê bemdita, sê bemdita!
Ergue-te, ó alma sublime, Que encheste de luz a treva E que tiveste o condão De abafar a voz do crime Co'o soluço do perdão. —Tambem eu ia levar-lhe O meu pranto dolorido Como nunca tive igual. És a mulher que fugiu Para o reino do Ideal... A terra é muito mesquinha, E o vôo da andorinha Convida a voar tambem...
Cingindo com os braços Maria e Martha:
Partamos, sim, pela estrada[107]
Que nos conduz ao misterio.
Sorri ao longe a alvorada...
Vamos tranquillas, serenas,
Bater a cada poisada,
E sejam nossas palavras:
Levando-as comsigo docemente:
Vinde comnosco, mulheres, Orvalhar co'o vosso pranto A boceta em que dormita Aquelle celeste encanto. Ide colher á campina Braçados de malmequeres, De alfazema e rosmaninho...
E vão-se as trez pela estrada a caminho do sepulcro.
O firmamento agora é limpo. Raras estrellas brilham ainda. A luz da madrugada define-se, e a brisa traz os perfumes dos vergeis e trigaes de Gethsemani. Por um pequeno atalho cinco homens avançam para a cidade: João, Gamaliel, Simão Pedra, Eleazar e Simão de Bethania. Todos denunciam no andar e no rosto o abatimento moral em que se encontram, a irresolução, o receio. Chegados em frente da muralha:
Não entres na cidade...
És muito conhecido. O Conselho não tem desviado o sentido Dos amigos do Mestre.
Olha que talvez pense Em prender-te, e depois nada ha que recompense O inutil sacrificio.
Ao teu valor opponho
Todo o meu raciocinio.[108]
Ainda julgo um sonho!...
Sobre a cruz aviltante, assim como o homicida, Como o escravo traidor, como o ladrão!...
Ó Vida, E continúas tu dando vigor a quem, Depois de infamia tal, dorme em Jerusalem! Profetas de Sião, da campa alevantae-vos Para escrever ali com sanguinarios laivos Esta nefanda historia, este inarravel crime! Dobrae Jerusalem, como se dobra um vime, E que a mão do Senhor, terrivel, iracundo, Em látegos crueis com ella açoite o Mundo!
Co'a doutrina do Mestre o odio não se casa...
Mas tambem cicatriza a f'rida o ferro em braza!
E assim tudo acabou!...—Saúdosa Galilea,
Onde sorris tranquilla, ó minha pobre aldeia!...
Quantas recordações do teu ceu, do teu ar,
Dos dias que passei no teu sereno mar,
Das noites que dormi na relva da campina,
Tão descuidoso! Mãe da excepcional doutrina,
Que encheu d'enthusiasmo e risos seductores
As almas infantis d'ingénuos pescadores,
Fazendo-os caminhar atraz d'uma visão,
Confiados, como vae por entre a cerração
A barquinha velleira ao descobrir farol!
Prados, que sois jardins, e onde o rouxinol
Canta serenamente em noites estivaes;
Macieiras em flôr; regatos que passaes,
Ondeando, como ondeia á brisa, levemente,[109]
Da aldeã virginal a trança refulgente...
Montanhas de Nain; e tu, ó grande monte,
Que te elevas no fundo azul do horisonte,
Redondo como um seio a amamentar os astros...
Meigo Genezareth, campos, cabanas, mastros,
Rochedos, alcantís, seáras e pastagens,
Que bordam a primor tuas alegres margens...
—Eis aqui finalmente a horrivel derrocada!
A solida affeição dos Dôse feita em nada;
A cegueira vencendo; a Luz amortecida;
A tripudiar em nós um ladrão homicida;
E eu, no meio de tudo, extactico e absôrto,
Buscando o olhar de Deus na pallidez d'um morto!...
—E assim tudo acabou!
Quem fala de acabar? O fogo ainda não se extinguiu no altar Da nossa consciencia, e os rubros holocaustos Onde fomos depôr as almas ainda exhaustos Não deixaram de todo os nossos corações!
Que havemos de fazer?...
Povos, religiões, Autoridades, leis, é tudo movediço E débil como ao sôpro um tímido aranhiço!
Queres dizer então...
A lucta?!
Braço a braço,
Não se deve luctar. Seria um erro crasso
Instituir o Bem co'o ferro. Não! Deixae
Esse erroneo principio aos filhos de Schammai![110]
O que pensas?
Que chega a ser um attentado Á memoria do Mestre abandonar o arado Com que elle andou lavrando a consciencia humana! Eu quero a lucta, sim, mas nunca a lucta insana, Que esfria os corações e purpurisa as ruas! Não quero vêr brilhar ao sol espadas nuas! Impiedades brutaes, odeio-as e renego-as!
Mas faláste de lucta.
Humilde, mas sem trégoas; Branda, mas incisiva; humana... mas divina! Como arma, aquelle dom secreto que extermina, Ferindo os corações sem que haja soffrimento. Ruge, como o trovão e géme como o vento, Murmúra como a fonte e estála como o raio, Tem a ardencia do fogo e a alvura do desmaio; Dolente, acaricía; em furias, escalavra! Esta arma triunfante, esta arma...
É a palavra!
Mas logo receioso:
Falar ás multidões...?
Continuar...?
Decerto!
Entrando no porvir que Elle deixou aberto.
Pois que o Mestre morreu, a alguem cumpre seguir
O caminho traçado entrando no porvir,
E esse alguem és tu![111]
Eu?
Sim, João!
Ninguem Melhor que tu!
Qual é de nós o que mais tem O verbo inspirador, altivo e fulgorante?
Simão, Gamaliel, amigos... Ai!
Ávante!
Para gloria do Mestre!
E gloria tua!
E nossa!
É bella a occasião...
E quem vos diz que eu possa?...
Serás novo profeta, aproveitando o exemplo...
Vão começar agora os canticos no Templo. Anda comnosco!
Vem!
Sê forte!
N'um instante,
De povo te verás cercado...[112]
Ávante! Ávante! É preciso arrancar ao morbido lethargo. A doutrina do Mestre!
Emfim!
É meu o encargo! O caminho do Bem eu vejo, como outr'ora A escada de Jacob á luz da meiga aurora. Por ella vae subindo um côro triunfal Proclamando no Espaço o amor universal E a guerra sem clemencia ás abjecções e ao vicio. Ávante! Não desabe o sólido edificio De que o Mestre assentou as bases! O thesoiro Da palavra, caíndo em grande chuva de oiro, Enriqueça de novo a consciencia humana! Inspira-me, Senhor! a minha estrada aplana! Tu, que fizeste a luz, tu que fizeste o dia, Uma scentelha só do genio teu envia Ao meu cerebro! Dá-me a força necessaria Que torne a minha voz da tua a emissaria! —Vamos, Gamaliel!
Gloria ao profeta novo!
Dou a minha alma a Deus, e a minha vida ao Povo!
Entram todos na cidade, ouvindo-se logo a voz de
Negra Jerusalem, escuta, ó assassina, D'aquelle que morreu a divinal doutrina!
E depois, mais distante:
Ouve, Jerusalem, que matas os profetas, As palavras que são do teu Senhor dilétas!
E os brados do velho doutor da Lei proseguem por longo tempo [113] cada vez menos distinctos, á medida que o grupo se interna pelas estreitas e tortuosas ruas da cidade.
No entretanto, Judas voltou do Templo em cuja caixa fôra lançar o dinheiro da traição, e quedou-se encostado á muralha junto ao angulo. D'ali ouvira as ultimas palavras de João e os brados de Gamaliel.
«Gloria ao profeta novo!»—Insensatos! João, Vaes procurar a Morte! E eu... a expiação!
Toma pela estrada e n'ella caminha, affastando-se da cidade, mas, vendo alguem que se approxima, recúa e estáca.
Maria?!
Judas!
Ah! cobarde salteador D'estrada! Vens talvez trazer o teu amor? O olhar, que seduzia, infunde repugnancia! O hálito d'outr'ora, a virginal frangancia, Que me embriagava, enója! Hálito, corpo, olhar, Ao largo! Vae, mulher! Não poderei amar A carne do meu crime! Odeio-te!
Não vim Trazer o meu amor.
Que queres tu de mim? Trazes-me o teu perdão?
Solta uma risada nervosa.
O riso da demencia
Nunca ha de suffocar a tua consciencia,
Que géme e se revolve em negro torvelinho.
Podes rir... mas eu vou seguindo o meu caminho.[114]
E a maldição ha de ir seguindo-te as pisadas!
A tua maldição... as tuas gargalhadas!... —Como o teu odio é bom!
Inda não é bastante Odiar-te! Se de ti fizesse minha amante, Como eu satisfaria este voraz desejo: Ferindo em cada olhar, mordendo em cada beijo! Que ventura, meu Deus! sermos no crime os dois, Fruir o teu amor, e arrojar depois O teu corpo e a paixão de que hoje ainda te nutres Aos ventres bestiaes dos ávidos abutres! —Mulher, posso matar-te! Ao largo! tenho medo!...
P'ra sempre guardarei, Judas, o teu segredo: O mundo é tão cruel que aleives não reprime, Se junto da virtude elle descobre o crime. Mas entretanto... foge!
Acaso me suppões Tão cobarde que vá fugir sem ter razões Mais fortes que o teu odio e a tua hypocrisia?
E se o Mestre voltar?
Que doida fantasía!
Se o visses novamente?
Eu? vêl-o?
Sim![115]
Não creio! A morte é vasto abismo...
Abismo, cujo seio Não poderá conter o que era illimitado!
Que dizes tu, mulher?!
Que dorme inanimado O insecto no casúlo; ao sepulcro sombrio Elle proprio deu forma, urdindo-o, fio a fio, Vagaroso, em silencio, estranho ao mundo vário, Como o trabalhador que não requer salário E que só tem por fim realisar o plano De ha muito concebido. Em vão o olhar humano Procura descobrir o que existe no centro Do casúlo: o misterio é silencioso dentro. Mas depois, certo dia, o homem vê, absôrto, Que o sepulcro é aberto e não encerra o morto!
Justos ceus!
Has de vêr, com a tua alma inquieta, Saír do seu casúlo a enorme borboleta, Que n'esta hora talvez as palpebras descerra, Encher de luz o espaço e de pavôr a terra, Da grandeza de Deus ser vivo testemunho...
E caír sobre mim co'o azorrague em punho!
Emquanto não voltar, os olhos do covarde
Hão de vêl-o assim como hontem o vi á tarde:
Co'o respirar opprésso, o corpo no madeiro,
Nas angustias da morte, a olhar-te, justiceiro![116]
Não pode ser, não creio...
Ha de falar-te, Judas, Á tua consciencia abjecta!
Não me illudas, Que eu nada vejo!
Vês pairando sobre ti O Remorso, o fantasma eterno!...
Ali! ali! Co'aquelle olhar azul que a morte mais esfria! Ergue a fronte... descerra os labios... Ah! dir-se-ia Que vae falar-me!—Oh! cala-te! Fui eu Que te entreguei, ó Mestre, ao inimigo teu! Não me accuses, que sinto em mim a accusação; Tem os dentes da cobra e as garras do leão! Anda aqui dentro—ouviste?—a esfarrapar-me todo! Fica-me pôdre o craneo, e o peito fica em lôdo, Para ser tão nojenta a apparencia que eu tome, Que nem os proprios cães matem comigo a fome!
E apontando de novo, como um vidente:
O respirar opprésso... o corpo no madeiro... Nas angustias da morte a olhar-me justiceiro... Exactamente!—Eléva os olhos para os ceus; A agonia final chegou: fala com Deus... A cabeça descae no peito: vae morrer...
E n'um grito dilacerante, fugindo para junto da caverna:
Ai! não! deixa-me em paz! Não! não! Não quero vêr![117]
E resvalando o corpo ao longo dos penhascos, cáe de bruços no chão, o rosto occulto nas mãos, gemendo, offegante.
Insultáste-me ha pouco ainda. Eu tudo esquéço. Tenho a razão bem clara, e tu és um possésso. Quanto ao Mestre, lá tens em ti a accusação... A tua alma está sendo, ó torpe vendilhão, Passiva e sem vigor n'este fatal momento Assim como o enforcado a baloiçar ao vento... —Adeus.
E entra na cidade vagarosamente, sem olhar para traz.
Ha um grande silencio entrecortado apenas pelos gemidos mal suffocados de Judas. Pouco a pouco, vão-lhe voltando as forças, e então
«O enforcado?...»
E ergue-se com custo. Interrogando a sua consciencia:
Emfim para que existo?
Pensa. Tendo apoiado a mão direita na cintura, o contacto da corda com que cinge a tunica desperta-lhe a attenção e aviva-lhe na memoria aquellas palavras de João que elle repéte machinalmente:
«As estrigas de linho...»
E prevendo o effeito:
Um laço... um nó...
Resoluto:
—É isto!
Então, desatando a corda, dobrando-a em duas, formando um nó corredio, vae monologando, febríl, nervosa, sêccamente:
Para que hei de fugir, ouvindo a cada instante
Correr atraz de mim um grito retumbante
E vingador? Fugir?... Sob o azul dos ceus
Quem pode combater a cólera de Deus?
Inda que fuja sempre, eu sempre retrocedo,
Porque é fugir do Eterno o mesmo que estar quedo!
Não fugirei!—Se fico, atrocidades cruas...[118]
Hei de ser arrastado ahi por essas ruas,
Padecerei do povo horríficos flagellos:
Vir alguem arrancar-me os olhos, os cabellos,
E transformar em lama o corpo do homicida!
—Não! Prefiro morrer... por ter amor á vida!
De súbito, n'um grito de independencia, muito egoista:
Eu prefiro morrer! Que se escancáre o espaço Da treva! Sim, ó Morte, eu quero o teu abraço! A maldição eterna o Eterno em mim derrame-a! Que importa! Serei grande até na propria infamia!
Allucinado novamente:
Odeio-te, Virtude! odeio-te, Verdade! Renego do respeito e amor á Divindade! Eu creio só na Morte... e basta-me esta corda!
E ri, ri convulso. Batendo com a mão no peito:
Álerta, monstro! Olá! monstro hediondo, accorda, Para insultar a Vida, essa madrasta bruta, Que faz d'uma alma honesta uma alma dissoluta! E tu, ó Mundo, pae d'este animal disforme, Vem lançar-lhe no corpo o teu escarro enorme!
E desapparece por entre os penhascos, correndo doidamente.
É já manhã clara: o horisonte purpurisa-se e doira-se. Chilreiam passarinhos não distante. No Templo começam os canticos matutinos, e as vozes das mulheres e das creanças chegam até nós em plangente e languida melodía. Calam-se de súbito os gorgeios e paira em todo o ambiente grande serenidade, como se toda a Natureza estivesse escutando.
João apparece á porta da cidade seguido por Gamaliel, Simão Pedra, Eleazar, Simão de Bethania e por mulheres, homens e creanças. Caminham todos silenciosamente, respeitosos, para ouvirem o novo profeta. Vem João apenas com a tunica, descalso, a cabeça e o peito a descoberto, os braços cruzados, o olhar em extasi. Chegados á parte superior do pequeno oiteiro, João parou. Os companheiros ficam junto d'elle. As mulheres com os filhinhos ás cavalleiras nos hombros, ao uso oriental, tomam para a direita, e os homens para a esquerda do terreno inferior; sentam-se no chão, já secco [119] pelo vento, formando um semi-circulo em frente do profeta novo. Sentaram-se tambem os companheiros. O vulto de João, destaca-se fortemente do horisonte rubro, onde o sol vem rompendo, triunfal.
E é então que
Quem tem ouvidos, oiça o que Elle manifesta! Elle é o Omnipotente; Elle o principio e o fim; Elle quem libertou da escravidão funesta O povo d'Israel... Elle descansa em mim. Elle é o Omnipotente! Elle o principio e o fim! Seja bemdito quem ouvir e conservar As palavras que encerra a minha profecia! Quem tem ouvidos, oiça! e purifique o olhar, Porque já não vem longe o tenebroso dia Em que todos vereis a minha profecia! —Despenham se na terra os astros refulgentes; O Sol veste de negro, a Lua é côr de sangue; Varíam de logar ilhas e continentes; A Grandeza estremece e vem caír exangue... O Sol veste de negro, a Lua é côr de sangue... ..............................................
Escripto em 1888-1890
Acabado de imprimir aos 5 dias do mez d'Outubro de 1901 na Imprensa de Libanio da Silva Rua do Norte, 87 a 103
Lisboa
Nota do transcritor:
Foram corrigidos diversos erros tipográficos. Na lista que segue estão as alterações mais importantes.
Pág. | Original | Corrigido |
20 | abnadonam Maria | abandonam Maria |
18 | Pois eu sou tou | Pois eu sou tão |
25 | JÕAO PEDRA, com o braço direito | SIMÃO PEDRA, com o braço direito |
30 | a aragem fresca e permada | a aragem fresca e perfumada |