The Project Gutenberg eBook of Maldita Felicidade

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Title : Maldita Felicidade

Author : Alexandre da Costa

Release date : December 16, 2008 [eBook #27545]

Language : Portuguese

Credits : Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK MALDITA FELICIDADE ***

  

Alexandre da Costa

MALDITA FELICIDADE

COMEDIA ORIGINAL EM 1 ACTO

Representada pela 1.ª vez por distinctos amadores do Grupo Dramatico GERVASIO LOBATO

PREÇO 120 RÉIS

LISBOA—1898

Arnaldo Bordalo—EDITOR

42—RUA DA VICTORIA—1.º [2]

PERSONAGENS

E NGRACIA , esposa de Pinto Gallo 40 annos
O SR. P INTO G ALLO 42 »
F ERNANDO } seus filhos 21 »
C ARLOS 18 »
O SR. C ARNEIRO R EAL 48 »
D. A LEXANDRE N OBRE 50 »
D R. M ANSO C ORDEIRO , seu genro 22 »
J OSÉ , creado de Pinto Gallo 30 »

LISBOA—ACTUALIDADE

DUAS PALAVRAS

Esta peça, que hoje a livraria Bordalo edita, tem, sob o ponto de vista artistico, muitos deffeitos, que actualmente conheço, mas que me abstive de corrigir, pelos motivos que a seguir exponho.

Foi escripta ha muito anno, e agora que o editor me convidou a revê-la, prescindo de lhe fazer as minimas alterações para que no meu primeiro trabalho de theatro, pensado e passado ao papel numa noite apenas, não deixasse de transparecer a falta de pratica d'outr'ora, a precipitação e pressa com que foi produzido, a inexperiencia dos meus bem verdes annos d'então.

Incommoda-me sobremaneira tirar ás minhas despretenciosas producções o cunho da espontaneidade, embora a arte ganhe com as revisões, que visam a melhor conduzir a acção, a melhor caracterizar as personagens, a aperfeiçoar a fórma. Repugnou-me, pois, modificar a Maldita Felicidade que, para mim, tem o triplo valor de marcar o primeiro passo na litteratura dramatica, de avivar alegres tempos que não voltam e de recordar-me a primeira noite perdida...

O auctor. [3]

ACTO UNICO

Vista: Saleta ricamente mobilada em casa de Pinto Gallo. Portas ao fundo e lateraes. Mesa e cadeiras ao centro.

SCENA I

Pinto Gallo e depois José

P INTO G ALLO ( passeando pela scena )—Suspiro pela resposta de D. Alexandre Nobre! Seis annos que andei pelos sertões d'Africa, hão-de valer me a nomeação de ajudante de campo de Sua Magestade. Em terras africanas fiz sempre respeitar a bandeira portuguesa, e o meu padrinho, o sr. D. Alexandre Nobre, é politico palaciano, e não costuma faltar ao que promette! Preciso d'honras, quero figurar, embora isto desagrade a minha esposa.

J OSÉ ( entrando )—Uma carta para o senhor.

P INTO G ALLO ( alegre )—É lettra de D. Alexandre ( a José ) Podes retirar-te. ( José sae. Pinto Gallo abre a carta e lê ): «Amigo Pinto Gallo. Ainda hontem te participei a nomeação de teus filhos, Fernando e Carlos, para officiaes da secretaria dos negocios estrangeiros, e já hoje venho felicitar-te porque acabo de saber a tua entrada na Real Côrte. A Felicidade deu-te, pois, duas filhas:—a tua Victoria e a tua Gloria!—Dispõe sempre do teu amigo Alexandre Nobre.» ( fallado ) Oh! Querida felicidade! ( toca o timbre ) Até que emfim consegui o que tanto ambicionava! Eis-me finalmente ajudante de campo de Sua Magestade! ( José apparece ).

J OSÉ —O patrão deseja alguma cousa?

P INTO G ALLO —Sabes qual é, e onde é o meu alfayate?

J OSÉ —Sei, sim senhor. É o sr. Carneiro Real da rua de S. João dos Bemcasados.

P INTO G ALLO —Justamente. Dize-lhe que me traga amostras de fazendas para escolher. [4]

J OSÉ ( sahindo )—Vou cumprir as suas ordens.

P INTO G ALLO ( )—Não darei palavra a minha mulher a respeito da nomeação que obtive para ajudante de campo de El-Rei. Ahi vem ella!... Vou para o meu escriptorio. ( Sae ).

SCENA II

Engracia, só

E NGRACIA ( entra pensativa )—Meu marido aborreceu-me, não ha duvida. Evita fallar comigo. Quando d'elle me approximo, affasta-se logo de mim... Amará outra mulher?! Tremo só em pensálo! ( vendo a carta que Pinto Gallo deixára sobre a mesa ) Uma carta! ( lendo ) «...a tua entrada na Real Côrte». ( fallado ) Não percebo! ( continuando a ler ) «A Felicidade deu-te, pois, duas filhas: a tua Victoria e a tua Gloria.» ( fallado ) Oh! Meu Deus! Não me enganara! Meu marido ama uma tal sr.ª D. Felicidade e já tem duas filhas, a menina Victoria e a menina Gloria! Oh! Raiva! Maldita Felicidade! ( entram Fernando e Carlos ).

SCENA III

A mesma, Fernando e Carlos

F ERNANDO —Que tem, mamã? Está doente?

E NGRACIA —Felizmente não soffro.

C ARLOS —O mesmo não dizemos nós. Amamos e padecemos.

E NGRACIA —Já?!...

F ERNANDO —Sim, mamã.

C ARLOS —E desejavamos que a mamã instasse com o papá para que elle, hoje mesmo, fosse pedir em casamento as nossas amadas.

E NGRACIA —Pois sim; digam-me os nomes, filiação e moradas das damas dos vossos pensamentos.

C ARLOS —A minha chama-se Victoria Côrte Real, é filha de Felicidade Côrte Real e de Carneiro Real, negociante e proprietario, e mora na rua de S. João dos Bemcasados.

F ERNANDO —E a minha chama-se: Gloria Côrte Real, é filha dos mesmos paes e mora na mesma casa.

E NGRACIA —Oh! Que horror! Namoram as irmãs! [5]

C ARLOS —E o que tem isso? Dois irmãos podem casar com duas manas.

E NGRACIA —Então querem casar com as vossas irmãs?!

F ERNANDO E C ARLOS —Nossas?!

E NGRACIA —Sim! Nesta carta, D. Alexandre felicita o pae, por saber que lhe cabe a paternidade da Victoria e da Gloria e tambem á Felicidade que lhe deu entrada na Real Côrte. Isto está bem de perceber. Real Côrte e Côrte Real são uma e a mesma familia!

C ARLOS —Lá foram agua abaixo todos os nossos sonhos dourados!

F ERNANDO —E ellas que a esta hora esperam ser pedidas em casamento!...

E NGRACIA, F ERNANDO E C ARLOS —Maldita Felicidade!

E NGRACIA ( escutando )—Sinto os passos de Pinto Gallo! Não quero pôr-lhe a vista em cima! Vou pensar na minha vinganga! E, meninos, tenham coragem! Mulheres não faltam! Quem havia de dizer que meu marido tinha peccados velhos!... ( sae ).

SCENA IV

Fernando, Carlos e Pinto Gallo

C ARLOS —Pobre mãe! E, por causa do pae, já não póde ser minha a Victoria!

F ERNANDO —E, por causa d'elle, tambem não devo continuar a pensar na Gloria!

P INTO G ALLO ( entrando, prompto para sahir. A Fernando e Carlos )—Não se esqueçam d'ir á repartição. Vão almoçar e apresentem-se cedo ao serviço.

C ARLOS —Assignaremos o ponto. Apesar de novos... nunca faltâmos ás nossas obrigações...

F ERNANDO —Temos sido sempre o modelo dos filhos e a sociedade respeita-nos.

P INTO G ALLO —Não admira. Seguem o meu exemplo. Como pae e como esposo ninguem me poderá beliscar.

C ARLOS ( com malicia )—A esse respeito...

F ERNANDO ( atalhando, a Carlos )—Vamos almoçar. ( Saem Fernando e Carlos ). [6]

SCENA V

Pinto Gallo e depois José

P INTO G ALLO ( )—Estranho o tratamento de meus filhos. ( toca o timbre. José apparece ).

J OSÉ —O sr. Gallo cantou?

P INTO G ALLO —Cantei?! Eu não sou cantor.

J OSÉ —Eu queria perguntar se tinha tocado; e não diga o sr. Gallo que não canta, porque ainda hontem á meia noite...

P INTO G ALLO —É possivel. Tinha estado no gallinheiro do theatro de S. Carlos a ouvir a Favorita ...

J OSÉ ( admirado )—Ah! O sr. Gallo esteve no galinheiro com a sua favorita!..

P INTO G ALLO —Vamos ao que importa. Déste o recado ao alfayate?

J OSÉ —Sim senhor.

P INTO G ALLO —Se elle vier, que espere. Sáio mas não me demoro. Vou procurar D. Alexandre Nobre para lhe agradecer o empenho que tomou em me servir com a maior brevidade.

J OSÉ —Então o fidalgo vem brevemente servir o patrão?

P INTO G ALLO —És tolo ou fazes-te?! Basta de perguntas e respostas. Não te esqueças do que te recommendei. ( sae ).

J OSÉ —Não ha-de haver novidade.

SCENA VI

Engracia e José

E NGRACIA ( entrando, pensativa )—A vingança... sim a vingança será fallada e escandalosa... ( reparando em José que está limpando e arrumando a mesa ) Ó José, teu amo sahiu?

J OSÉ —Sim, minha senhora. Disse que ia ter com o sr. fidalgo.

E NGRACIA —E sabes d'onde elle vinha hontem á noite?

J OSÉ —A esse respeito fallámos hoje...

E NGRACIA —Donde vinha então?

J OSÉ —Vinha do triatro onde esteve com a sua favorita.

E NGRACIA ( aparte )—O perfido foi com ella ao theatro! ( alto ) Deixa-me sósinha.

J OSÉ ( sahindo )—Seja feita a vossa vontade! [7]

SCENA VII

Engracia e depois Fernando e Carlos

E NGRACIA ( )—Ah! Senhor meu marido, hei-de puni-lo com a pena de Talião! Não se commettem impunemente infidelidades! A tal Felicidade, não contente com o seu Carneiro, rouba-me o meu Gallo! Infeliz Carneiro! E os meus filhos que não escutavam a voz do sangue! O que é a cegueira do amor! ( Entram Fernando e Carlos. Vêm tristes e lacrimosos. Vão sahir ).

F ERNANDO ( suspirando )—Gloria!

C ARLOS ( idem )—Victoria!

E NGRACIA ( abraçando-os )—Victimas da Felicidade!

F ERNANDO —Para que viria ao mundo a Felicidade?

C ARLOS —Só para dar desgostos!

E NGRACIA —E teu pae para que procurou a Felicidade?

SCENA VIII

Os mesmos e Carneiro Real

C ARNEIRO ( ao fundo )—O sr. Pinto Gallo está?

F ERNANDO —O sr. Carneiro Real!

C ARLOS ( baixo )—O pae de Victoria!

F ERNANDO ( baixo )—O pae de Gloria!

C ARNEIRO ( áparte )—Os meus futuros genros!

E NGRACIA ( áparte )—O esposo infeliz! ( alto ) Que lhe deseja?

C ARNEIRO —Trago amostras de fazenda!

E NGRACIA —É o alfayate de meu marido?

C ARNEIRO —Sim, minha senhora.

F ERNANDO E C ARLOS ( despedindo-se )—Até logo!

C ARNEIRO —Meus senhores!

E NGRACIA —Adeus, filhos. ( Saem Fernando e Carlos ).

SCENA IX

Engracia e Carneiro Real

E NGRACIA —Meu marido não está, mas...

C ARNEIRO ( atalhando )—Mas, nesse caso, dou meia volta volto logo, quando elle estiver de volta. [8]

E NGRACIA —É melhor esperar, porque talvez elle não se demore.

C ARNEIRO —Esperarei.

E NGRACIA —Ah! Sr. Carneiro, sou muito desgraçada.

C ARNEIRO —Sinto muito a desgraça da sr.ª D. Engracia ! Eu, graças a Deus, fui agraciado com a graça de uma Felicidade que me faz o mais feliz dos mortaes.

E NGRACIA —Tem a certeza?

C ARNEIRO —Minha senhora. A minha Felicidade nunca levou a infelicidade a parte alguma e muito menos ao lar conjugal.

E NGRACIA —Engana-se. A minha casa esta sentindo os terriveis effeitos da existencia de sua esposa.

C ARNEIRO —Dar-se-ha caso que a sr.ª D. Engracia não engrace com a côrte que os filhos de v. ex.ª fazem ás minhas filhas!

E NGRACIA —Perdão, sr. Carneiro. O sr. não é pae de suas filhas!

C ARNEIRO —Que me diz?

E NGRACIA —A verdade, infelizmente.

C ARNEIRO —Já não estou em mim!

E NGRACIA —Resigne-se!

C ARNEIRO —Mas dado o caso que se o que v. ex.ª diz que se , não me é dado saber quem é o pae das creanças que minha mulher deu á luz? Não sei se me dei a entender?

E NGRACIA —Ora essa! O sr. conhece-o perfeitamente. É seu freguez!

C ARNEIRO —Meu freguez?! Tenho tantos!...

E NGRACIA —Sim, aquelle para quem são as amostras que o sr. traz.

C ARNEIRO —Seu marido! O sr. Pinto Gallo!

E NGRACIA —Elle mesmo!

C ARNEIRO —Pois, minha senhora. Diga ao sr. Gallo que passa a ter um Carneiro á perna. ( Pensando ) Por isso minha mulher não queria se não ave de penna e chamava frangas ás filhas.

E NGRACIA —Maldita Felicidade!

C ARNEIRO —Mas, em tal caso , casar as filhas de minha mulher com os filhos de seu marido, é um caso repugnante.

E NGRACIA —Decerto!

C ARNEIRO —E eu que não sabia o que era sabido por v. ex.ª e que talvez muita gente já saiba e esteja farta [9] de saber . Ah! Que se eu soubesse , outro gallo cantaria!

E NGRACIA —Quer o sr. ligar-se a mim!

C ARNEIRO —Oh! Minha senhora! Não ha ligadura possivel. A companheira d'um Gallo difficilmente fará boa liga com um Carneiro.

E NGRACIA .—Esta união é apparente e só para tirar uma desforra.

C ARNEIRO —Eu só me desforrava , lançando-lhe fogo ao fôrro do casaco, e, quando o maldito Gallo estivesse bem assado, mandava-o de presente á Felicidade! Mas deixe estar que hei-de assentar-lhe as costuras, hei-de desazá-lo.

E NGRACIA —Sua esposa hontem sahio?

C ARNEIRO —Foi passar a noite para casa de uma irmã.

E NGRACIA —Enganou-o redondamente. Meu marido foi hontem com ella ao theatro.

C ARNEIRO —Que falsa! ( Ouve-se tossir ) D. Engracia, não ouvio?!...

E NGRACIA —É provavel que seja meu marido. Para lhe fazermos pirraça, finja que me faz declarações amorosas. Deite-se a meus pés e beije-me as mãos, sr. Carneiro.

C ARNEIRO —Executarei o que me ordena! Ah! sr. Gallo! Amor com amor se paga! Quem com ferro mata com ferro morre. ( Entram D. Alexandre e dr. Manso Cordeiro ).

SCENA X

Os mesmos, D. Alexandre e Dr. Manso Cordeiro

D. A LEXANDRE —Com sua licença! Estejam a sua vontade. ( áparte ) Inconvenientes de portas abertas!...

D R. M ANSO ( áparte )—Viémos assistir ao beija-mão?!...

E NGRACIA ( áparte )—Era D. Alexandre Nobre! ( alto ) Tem a bondade...

C ARNEIRO ( áparte )—Não era o marido! ( alto ) Se m'o permittem, retiro-me. Voltarei mais tarde! ( áparte ) Que ridicula figura estou fazendo.

E NGRACIA —Quando quizer. ( Dr. Manso tira um retrato da algibeira do peito e beija-o quasi constantemente. Todos cumprimentam Carneiro que sae ).

D R. M ANSO . ( áparte )—Como elle vae compromettido! ( beija a photographia ). [10]

SCENA XI

Os mesmos, menos Carneiro e depois José

D. A LEXANDRE ( reparando em Manso, áparte )—Cupido beijando Venus!...

E NGRACIA ( áparte )—Devo estar como um pimentão! ( alto ) Não esperava tão agradavel visita! Como esta a sua filha, a D. Alice, tem-se dado bem com o seu novo estado?

D. A LEXANDRE —Perfeitamente bem!

D R. M ANSO ( áparte )—Como ella esta córada! Farece um rabanete! ( beija o retrato ).

D. A LEXANDRE ( a Engracia )—E seu esposo como está?

E NGRACIA —Não ha mal que lhe chegue. Vinha procura-lo?

D. A LEXANDRE —Vinha apresentar-lhe o meu genro:—o sr. dr. Manso Cordeiro, bacharel em direito, formado este anno pela Universidade de Coimbra. Pensa, porém, mais em poesia, musas e parnaso... do que em endireitar a nossa injusta legislação!

E NGRACIA ( A Manso )—Muito folgo em conhecê-lo,

D R. M ANSO —Minha senhora... ( beija o retrato de Alice ).

D. A LEXANDRE —Alice foi muito feliz. São muito amigos! Ainda estão na lua de mel... Minha filha ama loucamenta o noivo. Meu genro, esse então, ou passa o tempo a fazer-lhe versos, ou a beijar o retrato d'ella, quando está distante do original! É um poeta muito inspirado.

D R. M ANSO —Oh! Meu querido sogro!...

D. A LEXANDRE —Offendi-lhe a modestia?... Paciencia! ( a Engracia ) Tenho pena de que o Gallo esteja ausente. Queria que elle ouvisse uma poesia que meu genro compôs!

E NGRACIA —Como se intitula?

D R. M ANSO ( beijando o retrato )—A Felicidade!

E NGRACIA ( a Manso )—Por quem é; não leia essa poesia a meu marido!

D. A LEXANDRE E D R. M ANSO —Porquê?

D. A LEXANDRE —É uma composição que collocou meu genro ao lado dos poetas mais notaveis do nosso país.

E NGRACIA —Razões fortes e particulares...

D R. M ANSO ( áparte )—Esta mulher sempre tem cada ratice !

D. A LEXANDRE —Ainda era outro o fim da minha visita. [11] Trago uma novidade agradavel e importante que ha-de surprehender Pinto Gallo!—Uma das boas novas que envaidecem as esposas amantissimas.

D R. M ANSO ( áparte )—E que não dão beija mão a alfayates!... ( beija o retrato ).

D. A LEXANDRE ( continuando )—A Felicidade não deixa Pinto Gallo! Canta sempre Victoria e pertence-lhe a Gloria.

E NGRACIA ( áparte )—Maldita Felicidade!

J OSÉ ( entrando )—O sr. Pinto Gallo está-se apeando d'um trem.

D. A LEXANDRE —Será conveniente retirarem-se. Desejo dar-lhe a sós a novidade... e depois apresentar-lhe-hei meu genro.

E NGRACIA —Como entender melhor. ( sae )

D. A LEXANDRE ( a Manso )—Dê cá o retrato e occulte-se.

D R. M ANSO —Deixe-me levar o retrato.

D. A LEXANDRE —Não, senhor. Não quero que o Pinto Gallo ouça o som dos beijos. E você não sabe dar chôchos! ( Empurra-o para um quarto e fecha-o ) Apre que é teimoso! ( Entra Pinto Gallo )

SCENA XII

D. Alexandre, Pinto Gallo e depois José

P INTO G ALLO —Por esta sua casa, meu bom amigo e protector. Andava á sua procura para lhe agradecer o interesse que por mim tem tomado.

D. A LEXANDRE —Pois olha, eu não vim cá para receber agradecimentos.

P INTO G ALLO —Bem sei. Mas...

D. A LEXANDRE ( continuando )—Não é esse o objecto da minha estada aqui. Queria fazer-te uma surpresa, mas confesso que, desejando surprehender, fiquei devéras surprehendido com o quadro que a meus olhos se apresentou.

P INTO G ALLO ( admirado )—Um quadro!... Qual quadro?!...

D. A LEXANDRE —Pinto Gallo, sou teu amigo. Não gosto, portanto, de que alguem se ufane de entrar aqui para fins indignos.

P INTO G ALLO —Não sei onde quer chegar!

D. A LEXANDRE —Quero chegar a tua mulher! [12]

P INTO G ALLO —Mas que fez ella para o D. Alexandre lhe querer chegar?

D. A LEXANDRE —Pretendia trahir-te no momento em que eu, encontrando aquella porta aberta, pedia licença para entrar.

P INTO G ALLO —E elle?

D. A LEXANDRE —Logo que entrei, sahio... Não sei se para a rua, ou se foi occultar-se nalgum esconderijo, esperando a minha retirada.

P INTO G ALLO —Perfida! Vou mandá-la chamar. Ha de apresentar-se aqui immediatamente, e então lhe contarei um conto.

D. A LEXANDRE —Não desejo assistir a essa scena! Como ainda tenho que te dizer, vou para a tua sala de bilhar entreter-me com as bolas e o taco. Concedes-me licença?

P INTO G ALLO —Ora essa!...

D. A LEXANDRE —Vá la! Sê prudente! O sexo fraco merece do forte a maxima clemencia.

P INTO G ALLO —Conter-me-hei.

D. A LEXANDRE —A mim resta-me a satisfagão intima de ter prevenido um amigo d'um perigo imminente que consegui evitar! ( sahindo ) Cá vou para as bolas!

P INTO G ALLO ( toca o timbre e José apparece. Encolerisado )—Chama a senhora. Desejo-lhe fallar.

J OSÉ ( áparte, sahindo )—Parece que fizeram engallinhar o sr. Gallo!

SCENA XIII

Pinto Gallo e Engracia

P INTO G ALLO —Talvez que o proceder de Engracia seja motivado pela frieza com que a trato. Mas não ha motivos que justifiquem o adulterio!

E NGRACIA ( entrando )—Que me deseja?

P INTO G ALLO —Então a senhora acceita a côrte de outro homem e recebe-o nesta casa?!...

E NGRACIA ( no mesmo tom )—Então o sr. faz a côrte a outra mulher da qual ja tem duas filhas?!...

P INTO G ALLO —Eu?

E NGRACIA —Faça-se de novas, ande!

P INTO G ALLO —E mesmo se assim fosse, acha digno o seu procedimento?! [13]

E NGRACIA —Ha uma differença! É que o sr. tem filhas d'essa mulher, e eu... só hoje consenti que o meu amado me osculasse as mãos.

P INTO G ALLO ( zangado )—Senhora!... Eu não tenho filhas!

E NGRACIA ( continuando )—E demais, é troca por troca! A sua amada é a mulher de meu amado! Trocaram-se os pares! Não acha o caso muito original?!...

P INTO G ALLO —A senhora zomba de mim!

E NGRACIA —O sr. é que foi infiel!...

P INTO G ALLO —Quando?

E NGRACIA —Calcule!... Para ter já filhas casadouras!...

P INTO G ALLO —A senhora não me faça perder a cabeça!

E NGRACIA —Não vale a pena por tão pouco... Procure a sua Felicidade!

P INTO G ALLO —E bem preciso, porque tu roubas-te-m'a!

E NGRACIA —Ah! Já sabes que tens um Carneiro á perna!

P INTO G ALLO —Não gosto de perna de carneiro!... Retire-se minha senhora. Meus olhos já não a podem fitar!

E NGRACIA ( sahindo )—Sr. Gallo...

SCENA XIV

Pinto Gallo, Dr. Manso Cordeiro e Carneiro Real

P INTO G ALLO —D. Alexandre disse que não sabia bem se o tal sujeitinho sahira, talvez que... ( O dr. Manso Cordeiro, farto de estar fechado, pretende abrir a porta do quarto onde está ) Olá! Cá está elle! Fechado por fóra! Que grande ideia! ( Abre a porta. O dr. Manso entra )

D R. M ANSO —Deixem-me ir ter com ella! Deem-me a photographia ao menos, já que não póde ser o original.

P INTO G ALLO ( agarrando o dr. Manso )—Estás nas minhas mãos!

D R. M ANSO —Ó meu caro senhor!... Não faça mal ao dr. Manso Cordeiro.

P INTO G ALLO ( aos empurrões ao dr. Manso )—O Manso Cordeiro, não satisfeito com a sua quer tambem a alheia?...

D R. M ANSO —Não me martyrise!

P INTO G ALLO ( como acima )—És Cordeiro... deves [14] prestar-te ao sacrificio! ( Entra Carneiro Real, Pinto Gallo larga o dr. Manso )

C ARNEIRO —O Gallo em correrias!...

P INTO G ALLO —O meu alfayate! O sr. Carneiro Real!

D R. M ANSO ( áparte )—O homensinho do beija mão!

C ARNEIRO —Venho ajustar contas com o meu amigo... ( áparte ) de Peniche!

D R. M ANSO ( áparte )—É bem feito! Abençoado credor!

P INTO G ALLO —Não lhe devo nada! O sr. quer depennar-me ?

C ARNEIRO —Quero assentar-lhe as costuras...

D R. M ANSO ( áparte )—Bravo! Valente Carneiro!

P INTO G ALLO —Mas o sr. ainda não me provou...

C ARNEIRO —Não sou como minha mulher que gosta de ave de penna...

D R. M ANSO —E meu sogro que não me apparece com o retrato de Alice... Onde estará?

P INTO G ALLO —Não sei a que deva a sua colera?!

C ARNEIRO —O senhor é o pae de minhas filhas, o amado de minha mulher...

D R. M ANSO ( áparte )—Por isso a D. Engracia lhe paga na mesma moeda!

P INTO G ALLO —Não conheço a sua mulher! ( recordando-se ) Ah! Sempre tenho uma memoria de Gallo! Por isso Engracia me dizia que eu tinha um carneiro a perna! Então o senhor é o amado de minha mulher?!..

D R. M ANSO ( áparte )—Contradansa conjugal!

C ARNEIRO —Fui amado a fingir mas o senhor... foi a valer!

P INTO G ALLO ( ao dr. Manso )—Mas afinal quem vem a ser o senhor?!

D R. M ANSO —Sou o genro de D. Alexandre.

P INTO G ALLO —Ainda não o conhecia... desculpe-me! ( a Carneiro ) E o sr. Carneiro, saia!...

C ARNEIRO —Não saio sem explicações! Sou o offendido!

P INTO G ALLO —O offendido e o dono da casa sou eu! Saia, senão enfio-lhe uma cadeira pela cabeça abaixo! ( pega numa cadeira e corre sobre Carneiro ).

D R. M ANSO ( gritando entre os dois )—Acudam! Venham ajudar o Cordeiro a separar o Gallo do Carneiro! ( Entram D. Alexandre e Engracia ). [15]

SCENA XV

Os mesmos, D. Alexandre e Engracia

D. A LEXANDRE ( de taco e retrato na mão )—Então que scenas são estas, Pinto Gallo?! Andas jogando as cristas ou temos toirinhas?!...

D R. M ANSO ( tirando-lhe o retrato e beijando-o. Áparte )—Meu anjo!

E NGRACIA —Que barulho é este?

P INTO G ALLO ( a Engracia, apontando Carneiro )—Conhece-o?!... Explique-se!

E NGRACIA —O senhor é que tem de se explicar com o sr. Carneiro!

D. A LEXANDRE —Porquê?

E NGRACIA ( a Alexandre )—O senhor sabe-o tão bem como eu!...

D. A LEXANDRE —Eu?!

D R. M ANSO ( ao mesmo tempo que D. Alexandre )—Meu sôgro?!...

E NGRACIA ( a D. Alexandre )—Sim, o senhor. Não se recorda do que escreveu? ( dando uma carta a Carneiro ) Leia!

C ARNEIRO ( depois de ler )—Esta claro como agua! Sou casado com Felicidade Côrte Real e tenho duas filhas Victoria e Gloria, e logo...

D. A LEXANDRE —Ora batatas, sr. Carneiro! A Felicidade, a que me refiro nessa carta, não é de carne e osso, nem tão pouco a Victoria nem a Gloria.

P INTO G ALLO —A Victoria foi a que cantei em Africa luctando com os pretos, e a Gloria o resultado da palma, obtida com felicidade.

E NGRACIA —E a tua entrada na Real Côrte ou Côrte Real?

D R. M ANSO —É a nomeação do valente militar, o sr. Pinto Gallo, para ajudante de campo de Sua Magestade.

C ARNEIRO E E NGRACIA —Sendo assim... ( Caem aos pes de Pinto Gallo. O dr. Manso beija o retrato ).

P INTO G ALLO —Levantem-se! Nunca mais deixo cartas na mesa...

E NGRACIA —Por que não me participaste?!...

P INTO G ALLO —Aguardava bom ensejo... [16]

C ARNEIRO —Nesse caso, as minhas filhas podem casar com os filhos do sr. Gallo...

P INTO G ALLO —Amam-se, pelo que ouço! ( Pensando ) Por isso elles ainda agora pareciam querer censurar-me! Effeitos da carta!...

E NGRACIA —Consentes o casamento?

P INTO G ALLO —Com o maior prazer!

D. A LEXANDRE ( a Pinto Gallo )—Ainda não te apresentei meu genro!

D R. M ANSO —Já nos apresentámos um ao outro! ( batem á porta ).

SCENA XVI e ultima

Os mesmos, Carlos, Fernando e José

J OSÉ ( vindo abrir a porta )—Os meninos! ( Entram Fernando e Carlos ).

E NGRACIA —Chegaram em boa occasião! Já podem casar com as meninas Victoria e Gloria!

F ERNANDO E C ARLOS —Oh! Que felicidade!

D. A LEXANDRE —Falta ainda a novidade agradavel e importante que trazia. Eu, acompanhado de Pinto Gallo, vou representar o governo português no Brazil. Podemos levar as familias para a terra dos capoeiras . Querem vir comnosco?

T ODOS —Pois não!

J OSÉ ( áparte )—Agora é que a familia Gallo dá cabo de capoeiras !...

E NGRACIA ( a Fernando e Carlos )—E d'hoje em diante, meus filhos, não tornaremos a dizer:—Maldita Felicidade!

( Cae o panno )