Title : Saudades: história de menina e moça
Author : Bernardim Ribeiro
Editor : Delfim de Brito Guimarães
Release date
: January 6, 2009 [eBook #27725]
Most recently updated: January 4, 2021
Language : Portuguese
Credits
: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net
SAUDADES
HISTÓRIA
DE
MENINA E MOÇA
COMPOSTO E IMPRESSO NA
IMPRENSA
DE MANUEL LUCAS TORRES,
RUA DO DIARIO DE NOTICIAS, 87 A 93
Trovas de Crisfal , de Bernardim Ribeiro, 1 vol. broch. | $30 |
Bernardim Ribeiro ( O Poeta Crisfal ), por Delfim Guimarães, 1 vol. broch. | $80 |
Theóphilo Braga e a lenda do Crisfal , por Delfim Guimarães, 1 vol. broch. | $50 |
A máscara d'um poeta ( Bernardim Ribeiro ), por Sílvio de Almeida, 1 vol. broch. | $30 |
A PUBLICAR: | |
Éclogas de Jano , de Bernardim Ribeiro. |
Colecção Horas de Leitura
BERNARDIM RIBEIRO
SAUDADES
HISTÓRIA
DE
MENINA E MOÇA
2.ª edição, revista
POR
DELFIM GUIMARÃES
1916
GUIMARÃES & C.ª—Editores
68, Rua do Mundo, 70
LISBOA
(Historia de Menina e moça)
de
Bernardim Ribeiro
2.ª edição, revista
por
Delfim Guimarães
Contribuir para a vulgarização do adoravel volumezinho que torna imorredoiro o nome de Bernardim Ribeiro, quer-me parecer uma boa acção.
Por isso, me encarreguei gostosamente de dirigir esta edição das « Saudades », tarefa que não é de molde a conquistar louros, mas que não reputo banal nem despida de algum mérito.
Tratando-se de uma edição popular, entenderam os editores, e a meu ver judiciosamente, que se não devia fazer uma simples reimpressão de qualquer das edições conhecidas do livro de Bernardim, o que poderia ser muito apreciado de eruditos e estudiosos, mas que condenaria, fatalmente, o volume a uma existencia inglória.
Consultando as edições das « Saudades », e seguindo, criteriosamente, os textos; procurando interpretar o mais fielmente possivel a ideia de Bernardim [8] Ribeiro, e estudando com atenção as variantes que as diversas edições salientam; modificando uma ou outra palavra caída em desuso; aclarando uma ou outra passagem de compreensão embaraçosa, e por vezes quase enigmatica;—tornava-se mister preparar o original que servisse para a factura d'esta edição, e que, sem alterar sensivelmente a lingoagem inconfundivel da obra, e sem desvirtuar o pensamento do seu autor, colocasse as « Saudades » ao alcance do grande publico, tornando conhecida, lida e estimada uma obra de peregrino brilho, um dos mais belos florões da nossa literatura.
A esse trabalho meti ombros, e dispensei-lhe a melhor vontade e carinhoso amor, procurando suprir o que me mingoasse em competencia á força de cuidado.
Como me saí da empreza, não sei, nem a mim cumpre averiguá-lo.
Diz-me a consciencia que procedi com o zelo e a probidade com que se haveria o artista que fosse chamado a retocar um quadro de mestre; porque, embora esse artista fosse, como eu, dos mais modestos, todos os seus cuidados havia de empregar para se haver na justa grandemente , como diria o nosso Bernardim.
A edição ahi fica.
Julguem-na os que teem competencia para fazê-lo.
Lisboa, 4 de agosto de 1905.
Delfim Guimarães [9]
Menina e moça, me levaram de casa de meu pae para longes terras. Qual fosse então a causa d'aquela minha levada,—era eu pequena,—não na soube. Agora, não lhe ponho outra, senão que já então, parece, havia de ser o que depois foi.
Vivi ali tanto tempo, quanto foi necessario para não poder viver em outra parte.
Muito contente fui eu n'aquela terra; mas, coitada de mim, em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou, e para longo tempo se buscava! Grande desventura foi a que me fez ser triste, ou a que, porventura, me fez ser leda! [10]
Mas depois que vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.
Escolhi para meu contentamento (se em tristezas e saudades ha algum) vir viver para este monte, onde o lugar, e mingoa da conversação da gente, fosse como para meu cuidado cumpria: porque grande erro fôra, depois de tantos desgostos, quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que êle nunca deu a ninguem!—Estando eu aqui só, tam longe de toda a outra gente, e de mim ainda mais longe; d'onde não vejo senão serras, de um lado, que se não mudam nunca, e do outro agoas do mar, que nunca estão quedas, cuidava eu já que esquecia á desventura, porque éla, e depois eu, com todo o poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada em que pudesse nova mágoa ter lugar,—antes havia muito tempo que tudo era povoado de tristezas, e com razão. Mas parece que, em desventuras, ha mudanças para outras desventuras; porque, no bem, não as havia para outro bem; e foi assim que, por caso estranho, fui levada a um lugar onde me foram ante os meus olhos apresentadas, [11] em cousas alheias, todas as minhas angustias; e o meu sentido d'ouvir não ficou sem sua parte da dôr.
Ali vi então, na piedade que tive d'outrem, quam grande a devêra ter de mim, se não fôra tam demasiadamente mais amiga de minha dôr do que parece que foi de mim quem me é a causa d'éla; mas tamanha é a razão porque sou triste que nunca me veio mal nenhum que eu não andasse em busca d'êle.
D'aqui me vem a mim a parecer que esta mudança, em que me eu vi, já então começava a buscar, quando esta terra, onde me éla aconteceu, me aprouve mais que outra nenhuma, para vir aqui acabar os poucos dias de vida que eu cuidei que me sobejavam. Mas n'isto, como em outras cousas muitas, me enganei eu. Agora, ha já dous anos que estou aqui, e não sei ainda tam sómente determinar para quando me aguarda a derradeira hora! Não póde já vir longe!
Isto me pôs em duvida de começar a escrever as cousas que vi e ouvi.
Mas, depois, cuidando comigo, disse eu que recear de não acabar de escrever o que vi, não era causa para o deixar de fazer; pois não havia de escrever para ninguem, [12] senão para mim só. Quanto mais que, em cousas não acabadas, não havia de ser esta a primeira: pois quando vi eu prazer acabado, ou mal que tivesse fim?! Antes me pareceu que este tempo que hei de estar aqui n'este ermo (como a meu mal aprouve) não o podia empregar em cousa que mais de minha vontade fosse:—pois Deus quis que assim minha vontade seja.
Se em algum tempo se achar este livrinho na mão de pessoas alegres, não o leiam, que, porventura, parecendo-lhe que seus casos serão mudaveis, como os aqui contados, o seu prazer lhe será menos prazer. Isto, onde eu estivesse, me doeria, porque assaz bastava eu nascer para minhas mágoas, quanto mais ainda para as d'outrem. Os tristes o poderão lêr: mas ahi não os houve mais, homens, depois que nas mulheres houve piedade; mulheres, sim, porque sempre nos homens houve desamor: mas para élas não o faço eu, pois que o seu mal é tamanho que se não póde confortar com outro nenhum. Para as mais entristecer, sem-razão seria querer eu que o lessem élas; antes lhes peço muito que fujam d'êle e de todas as cousas de tristeza, que, ainda com isto, poucos serão os dias que hão de poder ser ledas,—porque [13] assim está ordenado pela desventura com que élas nascem.
Para uma só pessoa podia êle ser; mas d'esta não soube eu mais parte, depois que as suas desditas, e as minhas, o levaram para longes terras estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possue a terra sem prazer nenhum. Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tam longe? Vós comigo, e eu convosco, sós, sabiamos suportar nossos grandes desgostos, e tam pequenos para os de depois! A vós, contava eu tudo. Como vós vos fostes, tudo se tornou tristeza; nem parece senão que estava espreitando já que vos fosseis. E para que tudo mais me magoasse, nem tam sómente me foi deixado, em vossa partida, o conforto de saber para que parte da terra ieis, porque descansariam os meus olhos em levarem para lá a vista!
Tudo me foi tirado no meu mal; remedio nem conforto, nenhum houve ahi. Para morrer mais depressa, me pudera isto aproveitar; mas, para isso, não me aproveitou. Ainda convosco usou a vossa desventura algum modo de piedade (dos que não costuma ter com nenhuma pessoa) em vos alongar da vista d'esta terra; pois que, se para não sentirdes mágoas não havia remedio, para as [14] não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou falando, e não vejo eu agora que leva o vento as minhas palavras, e que me não póde ouvir a quem eu falo! Bem sei eu que não era para isto a que me agora quero pôr; que o escrever alguma cousa pede muito repouso; e a mim as minhas mágoas ora me levam para um cabo, ora para outro; trazem-me assim, que me é forçoso tomar as palavras que me élas dão, porque não sou tam constrangida a servir o engenho, como a minha dôr. D'estas culpas me acharão muitas n'este livrinho: mas da minha ventura foram élas. Ainda que, quem me manda a mim olhar por culpas, nem por desculpas?
O livro ha de ser do que vae escrito n'êle. Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem élas. Tambem, por outra parte, não se me dá nada que o não leia ninguem; que eu não no faço senão para um só, ou para nenhum; pois d'êle, como disse, não sei novas, tanto ha.
Mas, se ainda me está guardado, para me ser em algum tempo outorgado, que este pequeno penhor de meus longos suspiros vá ante os seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz. [15]
N'este monte, mais alto de todos, (que eu vim buscar pela soledade, diferente dos outros, que n'êle achei) passava eu a minha vida como podia, ora em me ir pelos fundos vales que o cingem derredor, ora em me pôr, do mais alto d'êle, a olhar a terra como ia acabar no mar, e depois o mar como se estendia logo após éla, para acabar onde ninguem o visse.
Mas, quando vinha a noite, entregue a meus pensamentos, e via as aves buscarem seus pousos, umas chamarem as outras, parecendo que queria sossegar a terra mesma; então eu, triste, com os cuidados dobrados com que amanhecia, me recolhia para a minha [16] pobre casa, onde Deus me é boa testemunha de como as noites dormia!
Assim passava eu o tempo, quando, uma das passadas noites, pouco ha, levantando-me, eu vi a manhan como se erguia formosa, e se estendia graciosamente por entre os vales, e deixar indo os altos.
O sol, já levantado até aos peitos, vinha tomando posse dos outeiros, como quem se queria assenhorear da terra.
As doces aves, batendo as asas, andavam buscando umas ás outras; os pastores, tangendo as suas flautas, e rodeados dos seus gados, começavam a assomar pelas cumiadas.
Para todos, parecia que vinha aquele dia assim ledo. Só os meus cuidados, vendo, parece, como vinha poderoso seu contrario, se recolhiam a mim, pondo ante meus olhos para quanto prazer e contentamento pudera aquele dia vir, se não fôra tudo tam mudado; d'onde o que fazia alegre a todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste!
E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura ordenado, me começassem de entrar pela lembrança de algum tempo, que foi, e que nunca fôra, assenhorearam-se assim de mim que não me podia já sofrer a par [17] de minha casa, e desejava ir-me para lugares sós, onde desabafasse em suspirar.
E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que acinte) determinei ir-me para o pé d'este monte, que d'arvoredos grandes, e verdes ervas, e deleitosas sombras, é cheio; por onde corre um pequeno ribeiro de agoa de todo o ano, que, nas noites caladas, o rugido d'êle faz no mais alto d'este monte um saudoso tom, que muitas vezes me tolhe o sôno; onde, outras muitas, vou eu lavar minhas lagrimas, e onde, muitas, infinitas, as torno a beber.
Começava então de querer cair a calma: e no caminho, com a pressa, por fugir d'éla, ou pela desventura que me levava a mim, três ou quatro vezes caí ali; mas eu (que, depois de triste, cuidei que não tinha mais que temer) não olhei nada para aquilo, em que me parece que Deus me queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando á borda do rio, olhei para onde haveria melhores sombras. Pareceram-m'o as que estavam além do rio. Disse então que n'aquilo se enxergava que era desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver; porque não se podia ir alem sem se passar a agoa, que corria ali mansa e mais alta que na outra parte. [18]
Mas eu (que sempre folguei de buscar meu dano) passei alem, e fui-me assentar sob a espessa sombra de um verde freixo, que, para baixo um pouco, estava.
Algumas das ramas estendiam-se por cima d'agoa, que ali fazia algum tanto de corrente, e, impedida por um penedo, que no meio d'éla estava, se partia para um e outro lado, murmurando.
Eu, que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar que tambem nas cousas que não tinham entendimento havia fazerem-se dano umas ás outras.
Estava d'ali aprendendo a tomar algum conforto no meu mal: porque assim aquele penedo estava contrariando aquela agoa que queria ir seu caminho, como as minhas desventuras no outro tempo costumavam fazer a tudo o que eu mais queria,—que já agora não quero nada. E crescia-me d'aquilo um pesar!
Ao cabo do penedo, tornava a agoa a juntar-se, e ir seu caminho sem estrondo algum, antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte: e dizia eu que seria aquilo para se apartar mais rapidamente d'aquele penedo, inimigo do seu curso natural, que, como por força, ali estava. [19]
Não tardou muito que, estando eu assim cuidando, sobre verde um ramo que por cima da agoa se estendia, se veio pousar um rouxinol. Começou a cantar tam docemente que de todo me levou após si o meu sentido d'ouvir. E êle cada vez crescia mais em seus queixumes, que parecia que, como cansado, queria acabar, senão quando tornava, como que começava.
Então (triste da avezinha) estando-se assim queixando, não sei como, se caiu morta sobre aquela agoa! Caindo por entre as ramas, muitas folhas cairam tambem com éla. Pareceu aquilo sinal de pesar, n'aquele arvoredo, de caso tam desastrado.
Levava-a após si a agoa, e as folhas após éla. Quisera-a eu ir apanhar, mas pela corrente que ali fazia, e pelo mato que d'ali para baixo, cerca do rio, logo estava, prestemente se alongou da vista.
O coração me doeu tanto, então, em vêr tam depressa morto quem d'antes, tam pouco havia, vira estar cantando, que não pude ter as lagrimas.
Certamente que por causa do mundo, depois que perdi outra cousa, me não pareceu a mim que assim chorasse de vontade; mas em parte este meu cuidado não foi em vão; [20] porque, ainda que a desventura d'aquela avezinha fosse causa de minhas lagrimas, lá, ao sair d'elas, foram juntas outras muitas lembranças tristes.
Grande pedaço de tempo estive assim embargada dos meus olhos, entre os cuidados que muito havia que me tinham já então, e ainda terão, até que venha o tempo em que alguma pessoa estranha, com dó de mim, com as suas mãos cerre estes meus olhos, que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas de si.
E estando assim, olhando para onde corria a agoa, ouvi bulir o arvoredo. Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo; mas, olhando para ali, vi que vinha uma mulher; e, pondo n'ela bem os olhos, vi que era de corpo alto, disposição boa, e o rosto de dona, senhora do tempo antigo. Vestida toda de preto, no seu manso andar, e meneios seguros do corpo, do rosto e do olhar, parecia d'acatamento. Vinha só, e tam pensativa que não apartava os ramos de si, senão quando lhe impediam o caminho, ou lhe feriam o rosto.
Os seus pés trazia por entre as frescas ervas, e parte do vestido estendido por élas. E, entre uns vagarosos passos que éla dava, [21] de quando em quando colhia um cansado folego, como que lhe queria falecer a alma.
Sendo cerca de mim e me viu, ajuntando as mãos, á maneira de medo de mulher, um pouco, como que vira cousa desacostumada, ficou; e eu tambem assim estava,—não de medo, que a sua boa sombra logo m'o não consentiu, mas da novidade d'aquilo que ainda ali não vira, havendo muito que, por meu mal, tinha frequentado aquele lugar, e toda aquela ribeira.
Mas não esteve éla muito tempo assim, porque, parece, conhecendo tambem que estava com uma boa sombra, começou a dizer, vindo ao meu encontro:
—«Maravilha é ver donzela em ermo, depois que a minha grande desventura levou a todo o mundo o meu...»
E d'ahi a grande pedaço, misturado já com lágrimas, disse:
—«... filho!»
Depois, tirando um lenço, começou a limpar o rosto, e a chegar-se para onde eu estava.
Levantei-me eu então, fazendo-lhe aquela cortesia, que éla, com a sua, e consigo mesma, me obrigava.
E éla: [22]
—«O descostume grande, (me disse) ha muito tempo que vivo n'este ermo, de ver pessoa alguma, me faz, senhora, desejar saber quem sois, e que fazeis aqui, ou que viestes a fazer, formosa e só.»
Como eu um pouco tardava em lhe responder, pela duvida em que estava do que lhe diria, (parece que entendendo-me éla) me tornou:
—«A mim, podereis dizer tudo, que eu sou mulher como vós, e, segundo vossa presença, vos devo ainda ser muito semelhante; porque me parece (agora que vos ólho de mais perto) que deveis ser triste, que vossos olhos teem vossa formosura desfeita, e, ao longe, não se enxergava.»
—«Pareceis vós logo ao longe (respondi eu) o que sois ao perto; e não vos saberia negar cousa em que de mim vos servisseis; que os vossos trajos, e tudo o que vos eu ólho, é cheio de tristeza, cousa a que eu sou ha muito tempo conforme; e porque posso mal encobrir o senhorio que, eu mesma, ás longas mágoas sobre mim tenho dado, não me quero rogar, antes vos devia ainda agradecer quererdes saber de mim o que quereis, para ser ao menos meu mal escutado alguma hora!» [23]
—«Pois dizei-m'o (me tornou éla) que ficardes-me devendo ouvir-vos eu, nova maneira é tambem de me obrigardes; mas assim me pareceis vós, que, de vos ser obrigada, folgo muito ainda.»
Satisfazendo-lhe eu então, disse:
—«Sou uma donzela que n'este monte, da banda d'alem d'este ribeiro, pouco ha que vivo, e não posso viver muito. N'outra terra nasci, n'outra, de muita gente, me creei, d'onde vim fugindo para esta, despovoada de tudo, senão só das mágoas que eu trouxe comigo! Este vale, por onde correm estas agoas claras, que vêdes, os altos arvoredos de espessas sombras sobre a verde erva, as flores que por aqui aparecem, e a seu prazer se estendem, ribeira d'esta agoa fria, doces moradas e pousos das sós deleitosas aves, são tam conformes a meu cuidado, que o mais do tempo em que o sol anima a terra passo aqui, e, ainda que me vejaes só, acompanhada estou.
«Muito ha que tenho andado este caminho: nunca vi senão agora a vós. A grande solidão d'este vale, e de toda esta terra por aqui derredor, me faz ousar vir assim, mulher... formosa, bem vêdes já que não! E pois não tenho armas para ofender, para me [24] defender para que me seriam já necessarias? A toda parte posso já ir, segura de tudo, senão só do meu cuidado; que não vou a nenhum cabo que êle não vá após mim. Ainda agora estava eu aqui, só, olhando para aquele penedo (mostrando-lh'o eu então d'ali) a ver como ele estava contrariando aquela ágoa que queria ir seu caminho. Ante os meus olhos, sobre aquele ramo que a cobre, se veio pôr um rouxinol, docemente cantando. De quando em quando parecia, que lhe respondia outro, lá de muito longe.
«Estando êle assim, no melhor do canto, caiu morto sobre aquela ágoa, que o levava tam depressa que o não pude eu ir apanhar.
«Tamanha mágoa me nasceu d'isto, que me recordei de outras minhas, de que tambem grandes desastres foram causa, e levaram-me onde eu tambem não podia ir buscar-me... (A estas palavras se me arrasaram os olhos de ágoa, e fui-me com as mãos a êles.) Isto, senhora, fazia quando vós aparecestes, e o faço as mais das vezes; porque, sempre, ou chóro, ou estou para chorar!»
Eu, que lhe tinha já respondido, detive-me um pouco cuidando como lhe preguntaria outro tanto d'éla: maiormente da causa que [25] foi das suas lagrimas quando não pôde, senão muito tarde, dizer: «filho».
Éla, cuidando que, porventura, eu não queria dizer mais, disse:
—«Bem se vê n'isso, senhora, que sois d'outra parte, e ha pouco que estaes n'esta, pois dos desastres que n'este ribeiro acontecem vos espantaes. Ha uma historia muito falada n'esta terra, por aqui derredor, que muito ha que aconteceu. Lembra-me que era eu menina, e ouvia-a já então contar a meu pae, por historia. Agora, ainda folgo de cuidar n'éla pelos grandes acontecimentos e desventuras que n'éla houve. E ainda que nenhum mal alheio possa confortar o proprio de cada um, parte de ajuda me é saber, para o sofrimento, que antigo é fazerem-se as cousas sem razão, e contra razão. De boa vontade, pois parece que ainda a não ouvistes, vo-la contarei; que, segundo entendo, devem-vos aprazer as cousas tristes, como vós a mim me dizeis.»
—«O sol (lhe respondi eu) vae alto, e eu folgaria muito de a ouvir, pela ouvir a vós, e depois por saber que não busquei embalde esta terra para minhas tristezas, pois tanto ha que se costumam n'ela. Outra cousa, senhora, vos quisera eu agora preguntar; mas [26] fique para depois, que para tudo haverá tempo, ainda que a historia, como dizeis, é de tristezas, e não poderá durar tam pouco como o dia.»
—«Os dias são agora grandes (me tornou éla) e não poderão êles nunca ser tam pequenos que eu, com todo o meu poder, vos não fizesse a vontade n'êles, assim sou, senhora, paga por vós; mas olhae o que quereis antes.»
—«Porque é cousa em que vós folgaes ainda agora de cuidar (lhe respondi eu) não póde ser pouco para desejar ouvir. Fique o que eu d'antes quisera para depois, ou para sempre; que só de o eu querer lhe deve vir isto. Não tomeis de aqui que eu não folgarei de ouvir a historia, porque isto pudera ser se não fôra de tristezas, para que eu vou achando, já agora, o tempo curto, tanto folgo com élas. Por isso, contae-a, senhora; contae-a, pois é de tristezas... Gastaremos o tempo n'aquilo para que parece que no-lo deram,—a vós e a mim.» [27]
«Coitada de mim (começou éla) que, para me magoar, busco ainda desventuras alheias, como se as minhas não bastassem; que são tantas que, muitas vezes, n'este despovoado, eu mesma ando espantada de mim, como as posso sofrer!
«Por isso, vos não parecia sem causa triste; que assim o sou eu que, se o soubesseis, ainda muito mais vo-lo pareceria do que cuido que parecerei no aspecto; porque a longa dôr, que ha já muito tempo que eu passo, tem o cansado d'este meu corpo tam acostumado a sofrê-la, que, já agora, vive n'éla.
«Este é um dos queixumes grandes que [28] eu tenho do corpo, que não ha cousa para que êle, por longo costume, não seja.
«Assim ha já muitos anos que eu não vivo para mim, e que vim para estes ermos, fugindo das gentes para quem só anoiteceu e amanheceu...
«Muito me aprouve achar-vos tambem conforme á minha tristeza; porque nos consolaremos, ambas desconsoladas:—que isto vae assim como quem é doente d'alguma peçonha, e se cura com outra.
«Quando vos eu á primeira vista vi, em o apartamento de toda a gente (que n'esta terra ha muito) e o muito que tambem ha que eu não via n'éla cousa com que falasse, me moveu á alteração, e não pus em vós os olhos, tanto, como depois que vos falei; e, quanto mais vos ólho, mais acho que vos olhar. As passadas palavras vossas me dizem que deveis ter o coração altamente agravado.
«Nas mágoas que as lagrimas teem feitas no vosso rosto (que para esse efeito parece que não foi dado) entendo eu quam dada deveis ser aos cuidados, porque não costumam élas fazer-se sem razão.
«Vejo-vos moça; ainda ereis para viver no mundo. Mal haja a desventura que tam cedo [29] começou em vós, e tam tarde acaba em mim!
«Muito folgaria de me contardes vossas tristezas, uma a uma, que assim, como vos eu ouvi, não me bastou mais que para me magoar. Mas, pois vós, senhora, assim fostes servida, eu sou contente.
«E já que não pudestes escusar desventuras, folgo em que vós folgueis de encobrir vossos males,—que o pesar ha este bem: Inda que não aproveite para doer menos, aproveita para se sofrer melhor.
«Isto é assaz para as tristes das mulheres, que não teem remedios para o mal, que os homens teem; porque, n'esse pouco tempo que ha que eu vivo, tenho aprendido que não ha tristeza nos homens. Só as mulheres são tristes; que as tristezas quando viram que os homens andavam de um lugar para outro, e, como as mais das cousas, com as continuas mudanças, ora se espalhavam ora se perdiam, e que as muitas ocupações lhe tolhiam o mais do tempo, tornaram-se ás coitadas das mulheres,—ou porque aborreceram as mudanças, ou porque não tinham para onde lhe fugir.
«Porque, certamente, segundo as desventuras são desarrazoadas e graves, aos homens [30] se haviam de fazer; mas, quando com êles não puderam, tornaram-se a nós, como á parte mais fraca. E assim é que padecemos dous males, um que sofremos, e outro que se não fez para nós. Os homens cuidam outra cousa, mas o que das mulheres não cuidam êles?! Logo, costumaram ter em pouco as suas tristezas. Mas se élas, por isso, teem razão de serem mais tristes, sabê-lo-á quem souber que mágoa é manter verdade desconhecida!»
A isto não pude eu suster um cansado suspiro de dentro d'alma; e éla, sentindo-o (com quanto o eu encobri) estendeu a sua mão direita, e, tomando a minha, com dissimulação, suspeitosa, tornou a falar para mim, dizendo:
—«Quando eu era da vossa edade, e estava em casa de meu pae, nos longos serões das espaçosas noites do inverno, entre as outras mulheres de casa, umas fiando, e outras dobando, muitas vezes, para enganarmos o trabalho, ordenavamos que alguma de nós contasse historias, que não deixassem parecer o serão longo; e uma mulher de casa, já velha, que vira muito e ouvira muitas cousas, por mais ancian, dizia sempre que a éla pertencia aquele oficio, e, então, [31] contava historias de cavaleiros andantes.
«E, verdadeiramente, as afrontas e grandes aventuras (que éla contava) a que se êles punham, pelas donzelas, me faziam a mim haver dó d'êles,—porque cuidava eu que um cavaleiro convenientemente armado sobre seu formoso cavalo, pela ribeira de um rio, de gracioso campo passeando, podia ir tam triste como uma delicada donzela, em alto aposento, encostada a seu estrado, entre paredes, só podia estar, vendo-se de altos muros cercada, com tantas guardas,—feitas para tam pequena força. Mas, para lhe tolherem as vontades, fizeram grandes defezas, e, para lhe entrar o desgosto, muito pequenas.
«Mais maneiras teem os cavaleiros para se mostrarem mais tristes do que são; e muito menos teem as donzelas para se mostrarem mais tristes do que parecem aos homens.
«Ao menos, se eu, depois que soube muitas cousas, pudera tornar atraz, menos me houveram de magoar do que me magoaram. Que tambem se deve esperar da dôr aquilo para que cada um a tem; de outra maneira, não se devia éla ter.
«Digo isto, senhora, porque pelo lugar [32] onde suspirou vosso coração, (que vós de mim, quanto podieis, vos quisereis encobrir) suspeito eu que d'alguma grande sem-razão deveis trazer o cuidado magoado; porque a vossa edade não era para viverdes nos matos. Se os homens não costumassem agravar donzelas, muito fôra de sentir; mas, das cousas costumadas, quem se deve agravar?!
«Muito bem vos posso dizer isto (ainda que o conhecimento entre nós seja pouco) porque sou mais velha que vós, e porque é verdade, para que se não deve esperar tempo, como para as outras cousas.
«Quantas donzelas comeu já a terra com a saudade que lhe deixaram cavaleiros, que come outra terra, com outras saudades?!
«Cheios são os livros de historias de donzelas que ficaram chorando por cavaleiros que se iam, e se lembravam ainda de dar de esporas a seus cavalos, porque não eram tam desamorosos como êles.
«N'este conto, não entram só os dous amigos de que é a historia que ha pouco vos prometi. N'êles, sós, cuido que se encerrou a fé que em todos os outros se perdeu; e creio que por isso ordenaram outros homens de os matarem á traição, maldosamente, porque se não pareciam com êles. [33]
«O mal não sómente aborreceu o bem, como quisera ainda que o não houvera ahi.
«Lembra-me que, quando meu pae contava a vileza da maneira que tiveram os falsos cavaleiros, para matarem os dous amigos, dizia que muito folgara de a não ouvir para a não saber, pois não viera em tempo para deixar de ir á terra magoado, porque já geração d'êles não havia ahi.
«Mas, se muito para sentir foi a morte dos dous, muito mais para sentir foi a das duas tristes donzelas, que a desventura trouxe a tanta desdita, que não sómente conveio aos dous amigos tomarem a morte por élas, mas ainda conveio tomarem-na élas por si mesmas.
«Os dous amigos, no que fizeram, cumpriram para com élas, e para consigo mesmos, aquilo a que eram obrigados pelas leis da cavalaria que mantinham; élas só cumpriram para com êles, o que eu creio que é de maior estima; porque élas, por outros, não fizeram aquilo, e êles, por outras, deveriam-no fazer.
«Assim, como de pessoas que fizeram mais, se deve tambem a morte sentir mais, ainda que a mim egualmente me doem umas [34] e outras: élas, porque eram mulheres, e êles, porque eram homens...
«Isto digo eu, para vós, e para mim, porque meu filho tambem era homem, como êles.» [35]
Com estas palavras começaram as lagrimas a correr pelas suas faces abaixo, e éla, soltando a fala, seguiu dizendo:
—«Perdoar-me-eis, senhora, que, por minha edade, bem vos posso chamar filha, se muitas vezes me virdes fazer isto, ainda que a vós vos não devem as lagrimas ser estranhas, pois tanto folgastes de buscar lugares sós como estes onde estaes, que já em outro tempo, dizem, foram cheios de mui nobres cavaleiros e formosas donzelas; e ainda agora, por aqui algures, as moças que guardam gado acham pedaços d'armas, e joias de grande valia;—o que parece que faz este [36] vale de mais triste sombra que outro nenhum.
«Não sei, este desconcerto do mundo, onde hade ir ter. Em tempo, foram estes vales muito povoados, e agora muito desertos; costumavam gentes andar n'êles, agora andam animaes ferozes. Uns deixam o que outros tomam! Para que eram tantas mudanças em uma só terra?
«Mas parece que tambem a terra se muda como as cousas d'éla. A esta, porque passou o tempo em que foi leda, veio este em que havia de ser triste.
«De muito povoada, e de edificios reaes enobrecida, tornou-se a povoar de altos arvoredos, como a natureza os produzia.
«Ainda em alguns sitios d'este vale estão algumas antigas arvores, que, pelo muito decurso de tempo, e descostume de como foram creadas, parecem já d'outra plumagem diferente d'aquela de que deviam ser quando, ajudadas de pomareiras mãos, élas produziam seu perfeito fruto.
«Tudo quanto ha n'este vale é cheio de uma lembrança triste para quem tiver ouvido o que dizem que aconteceu n'êle, e o que foi já em outro tempo; que pareceria então que não era para vir a este de agora. [37]
«Mas tudo é assim. Emfim, fazem-se umas cousas para outras, para que se não faziam.
«Mal cuidariam os dous amigos, quando aceitaram a empreza de guardar as aventuras d'este vale (para só aprazer ás formosas duas donzelas) que era para tanto seu desprazer d'élas... E, tambem, mal cuidaram élas, quando aquele dia (da grande desventura) se vestiram, e enfeitaram ricamente, para verem os dous cavaleiros amigos, que era para os não verem mais!
«Trazem-nos os nossos fados não sei quê ante os olhos, que temos as cousas diante, e não as vemos...
«Tudo anda trocado, que não se entende; e assim nos veem tomar as mágoas quando estamos mais assegurados d'élas, que nos doem, a um mesmo tempo, o bem que perdemos, e o mal que depois cobramos!»
Aqui deu éla um grande suspiro, e esteve como se quisera dizer outra cousa: e tornou dizendo:
—«Mas tempo é de cumprir o que vos prometi, pois bem vejo que muito ha hoje que me leva a minha dôr após si.» [38]
«De reinos estranhos, dizem que veio n'um tempo passado ter a estas partes um nobre e famoso cavaleiro.
«Aportou, cerca d'aqui, em uma nau grande, carregada de muita riqueza, e, sobretudo, de duas formosas irmans, a uma das quaes êle mais que a si queria. Para que éla não sentisse a saudade de sua terra, trouxeram a outra irman, donzela, mais pequena que aquela por quem êle vinha buscar terras estranhas.
«Contam que élas eram filhas de um poderoso senhor, como depois, com o tempo, se suspeitou, pelos muitos cavaleiros andantes [39] que pelo mundo foram espalhados n'aquela epoca. Mas esta historia será longa.
«Aportando Lamentor (que assim se chamava) n'estas partes, como digo; havida inteira informação da terra, e da gente d'éla, porque, como êle viesse da maneira que vinha, não queria fazer seu assento em nenhum lugar muito povoado; e, saindo um dia pela manhan da nau, com todas as suas riquezas, começou a caminhar por este vale acima,—que para tudo tinham já seus criados feito o concerto necessario.
«Em umas ricas andas, que Lamentor na nau trouxera, iam as duas irmans; porque a maior vinha quase no fim do tempo da prenhez.
«A manhan era graciosa. Parecia que assim se acertou, para a terra mais lhes contentar. Ia o ano no mês d'abril, quando florescem as arvores, e as aves, que até então estiveram caladas, começavam a andar fazendo os gorgeios do outro ano, pelo que, por entre o arvoredo d'este vale (bem podeis cuidar quejando seria então, pois agora é tanto) estavam élas tomando recreio, ora n'uma cousa ora em outra.
«Tudo buscava Lamentor para que sua senhora e a donzela sua irman, de alguma [40] maneira, perdessem a saudade de sua terra, e o enjôo do mar.
«Sendo êles cerca de uma ponte, que ahi perto ainda está, e querendo-a passar, lhe disse um escudeiro que no começo d'éla estava:
—«Senhor cavaleiro, se quereis passar, convem que façaes, uma, de duas:—ou que confesseis que o cavaleiro que mantem esta passagem quer bem com mais razão que ninguem, ou o determinará a justa.»
—«Muitas cousas havia mister de saber (lhe respondeu Lamentor) quem houvesse de responder a essa pregunta: e como se póde saber se quer êle bem com mais razão sem ouvir primeiro onde, ou como o quer? Mas, por agora, d'isso eu não curo: porque a mim basta-me saber que, por mais razão com que êle queira bem, eu o quero mais que êle, e que todos os do mundo. Isto que sei, certo de mim, me escusa saber mais d'êle que a condição com que êle guarda esta ponte. A razão que tem para isso, guarde-a para si; que, para êle, poderá ser que pareça a maior do mundo. Deveis, bom escudeiro, dizer-lhe que faria bem em deixar-nos passar, antes que o julgue a justa.»
«O escudeiro, que já olhára para as andas, [41] e nunca cousa tam bem lhe parecera, lhe tornou:
«—É escusada, para êle, essa embaixada, porque está tam ufano, que não póde agora ninguem com êle (e na verdade tem causa); porque fará d'aqui a oito dias três anos que êle mantem este passo, sem achar cavaleiro que o vencesse, sendo o mais esforçado d'êles que por toda esta terra ha. E então se acaba o praso que lhe foi dado por uma donzela, a mais formosa que n'estas partes se sabe, filha do senhor d'aquele castelo que ali vêdes, em que éla lhe prometeu seu amor, sendo esta ponte por êle guardada com a dita condição. Mas se êle fosse sabedor da companhia que vós trazeis, com razão deveria temer agora, mais que nunca; mas eu não lh'o posso ir dizer, que já outras vezes lhe levei assim embaixadas, e êle tornava-me má resposta: e sucedendo depois á sua vontade m'o deitava em rosto, como que a minha tenção ficasse, pelo seu acontecimento, culpada.»
—«Ora, pois, determine-o a justa», disse Lamentor, olhando já para as andas.
«Tirando então, de um tiracolo, o escudeiro uma corneta, tocou-a.
«Dahi a um pouco, deixou-se sair d'um espesso arvoredo, que alem da ponte estava, [42] um cavaleiro bem armado, a cavalo, e vindo direito para a ponte, ali houveram ambos justa, de que meu pae contava muitas cousas de grande esforço e valentia, que vos eu não contarei; porque, ainda que as mulheres folguem muito de ouvir cavalarias, não lhes está bem contarem-nas, nem élas parecem, nas suas bôcas, como nas dos homens que as fazem.
«Mas, comtudo, dissera-vo-las eu, se me lembrassem inteiramente; porém, não me lembra senão que contava meu pae que romperam três lanças, e á quarta caiu o cavaleiro da ponte; e com a queda grande do encontro (que tambem foi grande) ficára sem se poder levantar por um pouco.
«Lamentor se apeou rapidamente. Quando chegou junto d'êle, o achou sem fala, e, descobrindo-o, lhe pareceu como morto. Mas, d'ahi a um pouco, acordou, todo mudado na côr, e levantando os olhos para Lamentor, que sobre êle estava, com um suspiro:
—«Ai! ai! cavaleiro,—lhe disse. Que vos nunca vira, prouvera a Deus, ou que ao menos vos não tornára a ver!»
«Lamentor houve d'êle dó, maiormente de suas lagrimas, que lhe viu; e, tomando-o pelo braço, o ajudou a erguer, dizendo: [43]
—«Do amor, senhor cavaleiro, nos podemos queixar com razão; que, assim como vos êle a vós fez aqui guardar esta passagem, me fez a mim fazer-vos dano. De vo-lo ter feito, me pesa como homem; que, fazer-vo-lo, foi como namorado. N'outra alguma cousa de vosso contentamento vo-lo emendarei, quando mandardes.»
«O cavaleiro da ponte, que assim o viu comedido, bem lhe pareceu razão de lhe agradecer aquela vontade; mas tamanha era a dôr que tinha no coração que não pôde acabar de forçar a sua. Comtudo, porque era de alta criação, lhe disse, como desculpando-se:
—«O amor demasiado não vive em terra de razão, mas eu irei tomar vingança d'êle n'outras, alongadas d'esta, onde não veja cousa com que os meus olhos descansem; ainda que esta vingança bem me pésa,—pois que ha de ser de mim e de meu cuidado?!»
«E assim se virou para outro lado, e deu a andar pelo vale abaixo. E como êle da queda grande que dera ficasse mal-tratado, e (segundo depois pareceu) quebrasse alguma cousa de dentro, não foi muito pelo vale abaixo, porque, acabando o seu escudeiro [44] de tomar o cavalo, começando d'ir após êle, o alcançou perto d'ali: e achando-o já lançado no chão, de bruços, foi para o erguer, e viu que êle era em estado de morte.
«Começou a chorá-lo amargamente, e Lamentor, que o ouviu, deu a correr para lá. E vendo que estava o escudeiro com seu senhor, como morto, nos braços, desceu-se prestesmente, e foi-se para êle; e vendo-o no derradeiro termo de sua vida, e como desmaiado, lhe começou a dizer:
—«Que é isto, senhor cavaleiro?... Esforçae! que é este o passo verdadeiro para que tomastes a ordem de cavalaria.»
«E êle, acordando, pôs os olhos em Lamentor, e estendeu-lhe, vagarosamente, a mão direita, como em signal que parecia de paz. E, com uma voz cansada, disse:
—«Ao esforço, se me êle pudera valer, perdoára eu tudo; pois me falece agora, quando a mim tanto cumpre viver...»
«E com a força que fez para dizer isto (como homem que tinha alguma dôr grande de dentro) foi-se-lhe o folego, e, cerrando os seus olhos, ficou como passado d'este mundo. Mas, d'ahi a um pouco, os tornou a abrir, e fazendo menção com o rosto para aquela parte onde estava o castelo da donzela por [45] quem guardava a passagem, e que todo aquele vale descobria, e levando para lá os olhos,—parece que lembrando-lhe que não tinha já mais de oito dias para acabar o praso que lhe fôra assinado, e como cousa que lhe mais magoava—ainda disse estas derradeiras palavras:
—«Ó castelo, quam perto ainda agora estava de vós!»
«E, com isto, deixaram-se-lhe os seus olhos ir, cansadamente, cerrando para sempre.» [46]
«Chegadas eram já ali as andas com as duas irmans, e toda a outra gente, e vendo como o cavaleiro da ponte (que desarmado já o rosto tinha) era de formosura, e presença extremada, e ainda mancebo, todos ficaram muito tristes de tamanho desastre.
«Lamentor, que via como o escudeiro estava lançado aos pés de seu senhor, tristemente chorando, havendo d'êle compaixão (porque, assim na pratica que com êle tivera havia pouco, na ponte, como n'aquilo, lhe parecera de boa maneira e de criação) foi-se para o consolar; e tirando-o para fóra d'ali, d'onde estava chorando, lhe disse: [47]
—«Até nas cousas proveitosas, a temperança é muito louvada; os choros não aproveitam para nada; por isso, é muito mais necessaria n'êles; nem os choros se devem ter senão como cousa que se não póde escusar. Vosso senhor faleceu como cavaleiro; e ainda vos digo que as pessoas que lhe bem-queriam não devem estar tristes; antes se devem alegrar muito, porque foi de tam alto coração que não pôde suportar ser vencido,—que, sê-lo ou não, está na ventura.»
—«D'esta desventura minha, pois fico só (disse o escudeiro, chorando) não me pésa tanto por mim, senhor, como por ser tomada por quem é.»
—«Os cavaleiros por amores, tornou Lamentor (desejando saber o que este era), tudo lhes está bem fazer.»
—«Em lugar, lhe respondeu o escudeiro, que lhe seja agradecido; mas o meu senhor, sobre todas as cousas do mundo, queria bem a uma donzela, que não tinha para êle mais armas que a formosura; porque a vontade (segundo éla mostrou) nunca foi d'êle, antes disseram algumas pessoas de sua casa que no dia em que éla concedeu o praso chorou muitas lagrimas, e que nunca o concedera se não fôra por seu pae, que era tam afeiçoado [48] a meu senhor (e com razão) que, ao cabo de longo tempo, alcançou isto de sua filha, e ainda á hora de sua morte.»
«Todos ficaram espantados d'ouvir isto, porque o cavaleiro da ponte era formoso e se houvera na justa grandemente.
«Lamentor, a quem isto pesou muito, pelo esforço que êle na justa lhe vira, com grande melancolia, disse:
—«Consolae-vos, que amor nunca perdoou desamor; tarde ou cedo, vereis vingança.»
«O escudeiro, chorando, e tornando-se a lançar aos pés do seu senhor:
—«Ai! senhor cavaleiro, disse, para a morte não ha ahi vingança!»
«Lamentor o tornou a erguer, dizendo-lhe: que, para o chorar, haveria tempo; que por então curasse de entender no que havia de fazer.
«O escudeiro lhe disse que iria, d'ali a uma jornada, onde estava uma fortaleza de seu senhor, em que vivia uma sua irman viuva, a quem a êle dera para lhe comer as rendas enquanto que êle seguia as aventuras: e d'ahi viria o concerto para o levarem ao jazigo de seus antecessores; e que, por então, deixasse Lamentor ali um seu escudeiro, que o guardasse. [49]
«O sol ia já declinando, e era tempo de repousar: mórmente quem do mar saíra.
«E porque, não muito longe d'aquele lugar, e da ponte, estava um assento gracioso d'arvoredo, e corria por entre êle agua, ordenou Lamentor de ali jantar, e assim o fez depois, dizendo ao escudeiro que queria ir repousar n'aquele lugar; que lhe daria as andas em que o levassem, e que, se mais lhe cumprisse, de boamente o faria.
«O escudeiro, tendo-lh'o em mercê, disse que assim fosse.
«E, começando-se de ordenar tudo, sucedeu por acaso que a irman do cavaleiro da ponte, que sabia que não havia mais que oito dias para se acabar o praso em que seu irmão (que éla muito queria) todo o seu contentamento tinha posto, determinára vir ali com grandes pompas e atavios, como aquela que devia, por amor e obrigação, acompanhá-lo até ao fim,—porque tinha éla por certo que o acabaria êle com grande honra, pois tanto tempo mantivera sua aventura que não havia já cavaleiro em toda essa parte que por ali não tivesse passado.
«E acertou então de vir: e, vendo aquele ajuntamento e as andas, não soube que dizer; mas logo lhe deu o coração uma volta, [50] e, chegando-se com presteza, viu o escudeiro, que éla bem conhecia, andar chorando. Preguntou-lhe que cousa era aquela. Olhou, e viu o irmão jazer já sobre uns panos ricos, que Lamentor lhe mandara pôr, e, apeando-se apressadamente, foi correndo para êle. Lançando os seus toucados por terra, começou a ir, arrancando cruelmente os seus cabelos (que longos eram), para onde o corpo de seu irmão morto jazia, dizendo:—«Para a dôr grande, não se fizeram leis!»
«Isto dizia éla, porque era costume muito guardado n'aquela terra, que ficara d'outro tempo, sob grandes penas proíbido, não se pôr mulher nenhuma em cabelo, senão por seu marido.
«Chegando a êle, o abraçou muitas vezes, e o beijou, dizendo:
—«Irmão meu, que morte foi esta, que assim vos levou tam depressa, que vos não pude falar? Quam enganada me trouxe, do vosso castelo até aqui, a desventura?! Que desconcertos da fortuna são estes? Para verdes outrem, tomaveis vós esta empreza; e eu para vêr a vós parti de casa: e tudo era para não vêrmos o que desejavamos!... Triste de mim, que, quando vós, com outro rosto, fostes correndo a abraçar-me, dizendo: [51] «D'aqui a três anos, senhora irman, haverei a causa do mundo mais desejada, e, com vossa licença, que mais quero» logo me deu n'alma. E disse-vos: «Que largo praso, esse, para quem o recebe; parece até que quem o põe o não põe para outra cousa!» Mas vós, que para isto quisestes este bem, como que não folgaveis de me ouvir aquilo, me tornastes: «O grande amor assegura esta demanda.» Inda mal, muitas vezes, porque foi tam grande! Mas não me comerá a mim a terra com esta dôr, sem fazer, com todo o meu poder, que custe o largo praso alguma cousa áquela que tanto custou a vós e a mim!»
«As duas irmans, que já tinham descido para darem as andas, se foram para éla, e, tomando-a entre si, começaram a agasalhá-la, á maneira de a quererem consolar,—que a lingoagem d'aquela terra não a sabiam.
«Éla, com alta voz, chorando, disse: «Deixai-me, senhoras, chorar meu irmão, pois não tem outrem que o chore.»
«Chegou-se Lamentor, que sabia a língoa, e andára todas as partidas do mundo, e disse:
—«Os cavaleiros, senhora, que em feitos [52] d'armas acabam, como vosso irmão, não devem ser chorados como os outros homens; porque êles acham o que buscam. Vós, senhora, posto que muita causa tenhaes para ser triste, pela perda que perdestes n'ele, que era o melhor cavaleiro d'esta terra toda, tendes tambem muita razão para louvar a Deus por ele ser tal. Deixae o pranto, e vêde o que mandaes que se faça; que parece, senhora, escandalo curardes mais de vossa dor que de vosso irmão, emquanto o tendes diante de vós.»
«N'isto, chamou o escudeiro, para que lhe dissesse o que estava d'antes ordenado. E éla o houve por bem, e fez-se assim.
«E puseram o cavaleiro da ponte sobre as andas, em ricos panos; e a irman, chorando, pediu que a metessem com ele. Lamentor a tomou por um braço, e a donzela (porque a irman não podia) pelo outro, e puseram-na dentro. E querendo Lamentor soltar os paramentos das andas, como causa de tanto dó, se chegou mais para éla, e disse estas palavras:
—«Ainda que o tempo, senhora, seja para outra cousa, como não sei quando vos tornarei a ver, de mim sabei, como certo, que podeis fazer a vosso serviço; o mais, sabereis do escudeiro.» [53]
«E éla não tornou resposta, que ia toda coberta, lançada já sobre o rosto de seu irmão, chorando.
«Ele soltou os paramentos, e assim se foram.» [54]
«Tristes ficaram todos por aquela desventura; mas Lamentor, que não esquecia quem trazia consigo, limpando os olhos das lagrimas que aquela partida assim lhe fazia, veio para onde sua senhora estava com a irman, com estas palavras:
—«Agora nos podemos, senhora, ir; que na mortalha alheia não temos mais que fazer.»
«E, tomando-as, cada uma por sua mão, mandou os seus para aquele lugar que d'antes lhe parecera bem, dizendo-lhes o que haviam de fazer entrementes.
«Foram-se então todos pôr sobre a ribeira [55] d'este rio, olhando para êle. Falando em outras cousas, estiveram ali um pouco, porque o mais depressa que ser podia foi armada uma rica tenda, e preparado de comer, que tudo vinha em grande abastança.
«Repousaram até bem tarde, que as andas tornaram. E por não serem já horas para caminhar, se deixaram ficar ali aquela noite,—que a fortuna tinha já ordenado que fosse para sempre.
«Belisa (que assim se chamava aquela senhora que vinha prenhe), emquanto ali estiveram, antes que as andas viessem, adormeceu; e, acordando um pouco agastada, viu junto de si Lamentor, e lançando-lhe, amorosamente, os braços sobre o pescoço, esteve assim pensativa por um pouco.
«E êle, vendo que éla sonhára, pelo desacordo com que acordára, lhe preguntou:
—«Que cousa, senhora, foi essa?»
—«Sonhava, senhor (lhe respondeu éla) que estávamos, vós e eu, ambos presos de um fio; e que eu cortava-o, e que vos não via mais.»
«Lamentor, não lhe pareceu senão que lhe atravessavam aquelas palavras o coração (como na verdade assim foi) e assim êle, com isto que em si sentiu, se entristeceu grandemente.
«Adivinhava-lhe, parece, a alma o seu mal. [56] E não pôde tanto dissimular que o não conhecesse éla, e disse-lhe:
—«Que é isto, senhor, que assim vos mudastes com o que vos disse?»
«Mudando êle o proposito em cousa que tambem lh'o mudasse a éla, para lhe escusar alguma imaginação, pelo perigo em que vinha da prenhez, lhe respondeu, dizendo:
—«Hei-vo-lo, senhora, de confessar, ainda que n'isto force minha condição,—que nem dizer-vo-lo, nem cuidá-lo quisera. Houve melancolia. Perdoae-me, que de vós não se póde éla haver. Mas como os sonhos não venham senão do que a gente traz na fantasia pareceu-me (porque me dissestes que sonhaveis que me não vieis mais) que era desconfiar do que vos quero, e de mim,—sendo vós bem segura de ambas as cousas, ou de cada uma.»
—Éla, com a boca cheia de riso, que bastava para o desagastar (se êle aquilo cuidava) se chegou mais para êle, dizendo-lhe:
—«Bem longe viera eu buscar essa desconfiança! Eu vos perdôo. Parece que é este dia aziago, que tantos desastres acontecem n'êle!»
«N'isto, e em outras cousas, passaram aquele dia, emquanto houve sol,—o qual com mais prazer se havia de pôr, do que amanheceu, pelo que ouvireis.» [57]
«Vinda a noite, repousando já todos, Belisa se começou de agastar levemente; mas, crescendo-lhe a dôr cada vez mais, houve de chamar por sua irman.
«Acordando éla, que perto em uma cama dormia, lhe contou Belisa como a dôr lhe ia em crescimento. A senhora Aonia (que assim se chamava a irman) acordou as mulheres de casa, e uma dona honrada, que de parteira sabia muito, e para isso a trouxera Lamentor; porque, quando partira, já Belisa era prenhe; e se não fôra porque se não podia já encobrir, não a trouxera êle assim a terras estranhas: mas, na necessidade, o amor [58] não achou outro melhor remedio que o desterro.
«Belisa, que a Lamentor queria sobre todas as cousas do mundo, disse, para as outras, que a ajudassem a tirar do leito em que jazia para a camilha de sua irman, para o não acordarem, que estava cansado do caminho. Assim se fez, o mais de manso que puderam.
«Grande parte da noite passaram a fazer remedios para a dôr de Belisa. Mas a senhora Aonia, que via sua irman cada vez com mais agastamentos:
—«Quereis, senhora irman (lhe disse) que chamemos meu irmão?»
—«Para tomar paixão, (lhe disse éla) não o chameis vós; que prazerá a Deus que se me irá esta dôr: e isto, ao menos, ganharemos d'éla.»
—«Assim praza a Deus (falou a dona honrada, d'acolá d'onde estava) porque não vejo nenhum sinal, senhora, de parirdes tam cedo. Deve ser isto do caminho ou da mudança de terra.»
«Porém, era já manhan quase; e a dôr não amansava, antes se fazia maior, e começavam-lhe a vir uns agastamentos e desmaios ao coração. A primeira vez que lhe [59] isto veio, suportou-o éla; e a outra vez tambem; mas quando veio a terceira, em tamanho crescimento lhe veio, que lhe tolheu a fala, um pouco.
«Tornando éla a si, olhou para sua irman, dizendo-lhe que já agora lhe pesava de o não chamarem. E porque n'isto se começou a sentir melhor, tornou depressa para sua irman, que já ia para o chamar, dizendo:—«Mas não o chameis, que, parece, me acho melhor.»
«Um pedaço grande, esteve então Belisa desagastada. E porque uma rica camisa que tinha vestida estava mal-tratada dos remedios que sobre o coração lhe punham, para as mulheres, disse:—Vistam-me a mim outra camisa, que, se morrer, não vá pelo menos assim.»
«A senhora Aonia se pôs a chorar, com estas palavras.
«Olhando para éla, Belisa, lhe vieram as lagrimas aos olhos; e, querendo-lhe dizer alguma cousa, a dôr não a deixou, que então começou mais apertadamente que d'antes.
«Aquela dona honrada, que a via mais agastada que nunca, disse que seria bom erguerem-na de todo; e querendo-a sua irman tomar por um lado, se virou Belisa para éla, [60] dizendo-lhe:—«Não sei que ha-de ser isto!»
«Mas tamanhos foram os agastamentos, e tam apressados, que não houve ahi acordo para a erguerem de todo, e ficou como assentada. E, emfim, foi assim a desventura que em breve espaço a pôs no extremo da morte.
«E já, a éla, lhe ia falecendo a fala, levantando os olhos para sua irman, como forçadamente, disse:—«Chamem-no; chamem-no!»
«Foi a senhora Aonia, chorando desoladamente, chamar Lamentor, que no mais alto sôno dormia, dizendo-lhe:—«Acordae, senhor; acordae, que vos levam Belisa!»
«Ergueu-se apressadamente Lamentor, levando a mão a um terçado, que junto da cabeceira tinha; mas vendo chorar todos derredor da cama de Aonia, e Belisa, a quem tinham erguida até aos peitos, como passada d'este mundo,—abraçando-a, se chegou para éla, dizendo:
—«Que cousa foi esta, senhora?»
«E as lagrimas enchiam, com estas palavras, todo o rosto seu e o d'éla.
«Levantou então Belisa, cansadamente, uma mão, com a manga da camisa tomada, para lhe limpar os olhos; mas, não seguindo [61] éla já a sua vontade, se lhe deixou a tornar a cair para baixo. E éla, pondo os olhos fitos n'êle: «Não mais, disse, para sempre!» E, d'ahi, os foi cerrando, vagarosamente, como que lhe pesava de o deixar assim.
«Lamentor, que isto não pôde ver, caiu para o outro lado, como morto, e assim esteve um grande pedaço.
«N'este meio tempo, ouvindo a dona honrada chorar uma criança na cama; e cuidando o que era, atentou, e achou uma menina recem-nascida, que chorava muito.
«E, tomando-a então nos braços, com os olhos não enxutos, disse assim:
—«Ó coitadinha de vós, menina, que chorando vossa mãe nasceis! Como vos criarei eu, a vós, filha estranha, em terras estrangeiras? Mal vá ao dia em que assim saimos do mar, para passar toda a tormenta na terra!»
«Mas, como entendida que era, ordenou de a curar, tomando a tarefa toda sobre si; que bem via que Lamentor, e a irman, outro maior encargo tinham. E, assim, mandou o que se havia de fazer, e proveu sobre tudo». [62]
«A senhora Aonia (lembrando-lhe o que vira fazer á dona viuva sobre o corpo de seu morto irmão, que o devido costume ao tempo do luto lhe parecia então,—posto que em sua terra se não usasse) pondo-se sobre o corpo de sua irman, rasgando os toucados dos seus formosos cabelos, que longos eram, á maravilha, a cobriu toda, e tambem a Lamentor, que éla bem cuidou que era falecido; que pelo grande bem que êle queria a sua irman, leve lhe foi isto de crer, vendo-o da maneira que via!
«Depois de muito cansada, em alta e dorida voz, começou por estas palavras:
—«Triste de mim, donzela de pouco tempo, [63] desamparada em terra alheia, sem parentes, sem ninguem, e sem prazer! Como vós, senhora irman, me pudestes deixar só, tam longe e em tal lugar?! Para vos tirar a saudade, me dizieis vós que vinha eu cá: e vós, para m'a dar a mim, vinheis!... Malaventurada de mim! Para outros fados, cuidava eu que me criava a mim minha mãe, e éla foi a enganada, e eu a que hei de pagar agora o engano! Quam sem-razão tamanha, senhor cavaleiro, me é feita diante de vós! De quantas donzelas por vós foram amparadas, eu só estava para o não ser! Coitada de mim! Que farei? Onde me irei?...»
«E assim se lançou sobre o corpo de sua irman.
«Mas, ao invocar o cavaleiro, Lamentor a ouviu, como por sonhos; e tornando em si, viu diante tantas mágoas que ficou sem fala um pouco; e vendo logo como se matava toda a senhora Aonia, esforçou-se para a ir ajudar, para que tam cruelmente se não matasse, dizendo:
—«Esforçae-vos, senhora, pois a fortuna quis que um tam desconsolado vos console!»
«E foi-a a erguer; e, querendo-lhe falar, lhe faleceu a fala.
«Ali, houveram ambos mui triste pranto, [64] e entre si se diziam, um ao outro, palavras de muita mágoa, começadas pela dôr, rotas pelo pranto.
«E era já manhan clara.
«E acertou assim que, áquela hora, chegava um cavaleiro á ponte, e vinha de longes terras buscar aquela aventura, por mandado d'uma senhora que lhe queria bem a êle: mas êle a éla devia-lhe mais do que lhe queria.
«Não achando ninguem na ponte, e ouvindo perto d'ali tam grande pranto, pareceu-lhe algum misterio, ou alguma cousa de dôr.
«Deu a andar para onde era; e, vendo uma rica tenda, e ouvindo muita gente, dentro e fóra, chorando, preguntou a um servidor, que topou, que cousa era aquela. E êle lh'o contou.
«E, apeando-se êle então, (mandando primeiro adiante o escudeiro de Lamentor) muito mensurado e humildemente, entrou após êle.
«E entrando, e vendo a senhora Aonia, que em grande extremo era formosa, soltos os seus longos cabelos que toda a cobriam, e parte d'êles molhados em lagrimas, que o seu rosto por alguma parte descobriam, foi logo trespassado do amor d'éla, sem haver [65] quem, por parte d'outrem, fizesse defeza alguma; e como o amor viesse juntamente com a piedade, parecia que vinha éla só; mas, quando se descobriu, eram já conhecidas tantas razões por parte da senhora Aonia, que não tam sómente lhe esqueceu a outra, mas não lhe lembrou mais senão para lhe pesar do tempo que gastára em seu serviço.
«D'esta maneira, foi êle preso do amor da senhora Aonia; e, depois, veio a morrer por éla.
«Este foi um dos dous amigos de que é a nossa historia. E, por isto, costumava meu pae dizer que tornára o amor d'este cavaleiro a morrer na paixão onde se levantára. Mas, para isto, seu tempo lhe virá. [66]
«Dito era já a Lamentor que o cavaleiro entrára: mas êle não no viu senão quando já o achou junto de si, dizendo-lhe palavras de consolação.
«Lamentor as recebeu d'êle o melhor que pôde, mais por lhe não dar causa de se deter muito, que por estar para isso. Mas, depois de estarem um pouco, vendo Lamentor que êle não fazia menção de se ir, forçadamente, lhe disse:
—«Senhor cavaleiro, a vossa visita vos tenho em mercê. Praza a Deus que, em outra mais alegre, vo-la pague! Nós vimos de jornada, como sabereis. As pousadas não são maiores do que vedes; não ha ahi outra [67] casa senão esta, para a tristeza e para nós. Deveis-vos, senhor, ir para onde ieis; não tomareis ao menos parte em tanto luto, porque as mágoas alheias tambem doem a quem as vê. Perdoae-me, que não tenho agora outra cousa em que vos sirva a vossa boa vontade.»
«O cavaleiro, passando os olhos pela senhora Aonia:
—«Eu não tenho d'onde ir d'aqui», lhe disse.
«E, parece que lembrando-lhe que a havia de deixar, cairam-lhe umas ralas lagrimas pelo peito.
«Mas, como êle visse que ali não tinham mais do que aquela tenda, e outra pequena, bem lhe pareceu que não podia caber ali n'aquele tempo gente estranha, ainda que êle—no seu coração—já o não era. Erguendo-se então, seguiu sua fala, dizendo:
—«D'este luto, senhor, não me póde a mim já caber pequena parte, para onde quer que vá. De boamente vo-lo ajudára a passar; mas emfim, vós, senhor, cavaleiro sois: e mais, pois vindes de longe terra, (como soube de um servidor vosso) não deve ser este o primeiro que tendes visto; porque, nas suas mesmas terras, os que nunca se mudam d'éllas, [68] não se podem escusar de ver luto cada dia, e cada hora do dia!»
«E dizendo-lhe mais que visse o que lhe mandava, se despediu d'êle, com os olhos postos na senhora Aonia, e assim foi um poucochinho, que a tenda não lhe deu mais lugar; mas, quando se houve de virar todo, com muita dôr sua os arrancou d'ali.
«Assim se saiu da tenda; e assim o deixaremos, para seu tempo.» [69]
«Lamentor se tornou a seu pranto,—que muita causa tinha êle para isso.
«Mas, estando êle, e a irman, assim por um grande espaço de tempo, que ia já o Sol para o meio-dia, a dona honrada (que ama se chamou depois, pela criação da menina) como era já idosa, era de muito saber, e chegando-se para onde ambos estavam no seu pranto:
—«Senhores, (começou a dizer) para o pranto, muito tempo vos ficará, que a desventura parece que é n'esta terra como na nossa. Deixai as lagrimas, que não é agora tempo para vós, senhor, não parecerdes cavaleiro; nem para vós, senhora, parecerdes [70] tanto mulher. Lembre-vos que a tristeza é de todos; que tamanho mal foi o nosso que não tam sómente o hemos de ter, mas ainda nos havemos de consolar uns com os outros. E, pois temos a dôr para sempre, doâmo-nos, sequer, como de nós que ficamos vivos. A sepultura é devida aos mortos: hão-se de fazer as cousas necessarias; olhai que é o derradeiro dom da vida! Termos o corpo da senhora Belisa mais tempo sobre a terra, parecerá fazermos-lhe força no mais pouco de sua partida; e porventura se deve éla desgostar de lhe negarmos o seu descanso quando não nos hade pedir mais cousa alguma.»
«Acabadas estas palavras, que não foram ditas sem muita dôr de todos, tomou éla á senhora Aonia, como sobraçada, e a levou para a tenda pequena, que chegada áquela estava; e d'ahi tornou por Lamentor, e tambem o ajudou a ir para lá. Depois, entendeu em concertar o necessario.
«Mas Lamentor não quis que levassem o corpo de Belisa para outra parte, antes mandou que ali, onde falecera, fosse a sua sepultura; porque logo assentára em sua vontade de nunca mais, emquanto vivesse, se mudar d'aquele lugar. E assim o fez.
«E porque, nos reinos d'onde êles vinham, [71] se costumava, antes que mandassem os corpos mortos á terra, virem todos os parentes a beijarem-nos nas faces, e os familiares nos pés, e o parente mais chegado por derradeiro de todos (parece que faziam aquilo como saudação, para que aquela transmigração fosse como em boa hora), quando tudo foi acabado, a ama veio chamar Lamentor e a senhora Aonia, que foi prestes lançar-se sobre as faces de sua irman.
«E, beijando-a muitas vezes, levantou a voz, dizendo:
—«N'outra terra, muitas tivereis vós que fizeram isto, mais que n'esta!»
«E aqui começou a rasgar o seu formoso rosto.
«E todos levantaram um triste pranto.
«Á maravilha, cada um lembrava a sua dôr, e assim a iam beijar nos pés.
«Lamentor, a quem mais doía onde ainda nunca outra cousa lhe doera, depois de muitos suspiros arrancados d'alma, olhando pelo que devia fazer, pelo costume, d'esta maneira disse:
—«Senhora Belisa, como vos hei de saudar, eu? Por mim, deixastes vós vossa mãe, vossa terra, vossos amigos e parentes! Quem vos pôde apartar de mim, em terras estranhas, [72] para me fazerdes tam triste?! Não me querieis vós a mim, tamanho bem? Como me deixastes só? Mas alguma desventura me houve inveja, que o que vós me fazieis para ser o mais ledo cavaleiro do mundo—para eu ser o mais desgostoso o fazieis vós!... Malaventurado cavaleiro, que para vós, senhora, estava ordenada uma sepultura em terra alheia, e, para minha vida, duas! Mas a vossa terá o corpo; e a minha: vida e alma! Não era mais rijo, senhora, o fio que nos prendia a ambos? Como o cortastes vós, sem mim? Não vos lembrou que era eu o que vos não havia de ver mais? Mas pedistes, senhora (me disseram) que vos levassem de junto de mim, para me não tirarem do repouso; e outrem tirava-m'o estando longe de vós. Não bastou a minha desventura haver de ser mais triste do mundo, mas ainda a maneira como me veio o havia tambem de ser! Não me chamaram senão para vos não ver; e ainda então vos doestes de mim, que quisereis limpar-me as lagrimas, e a minha desventura não o queria. Faleceu-vos a mão; como que vos deixava, sendo já senhora da vossa vontade a morte. E, com os olhos derradeiros postos em mim, me fostes mostrando que, com a alma, se vos ia tambem a vontade. Mas devidos eram os [73] meus anos a este vosso caminho; mas mais o era eu ás tristezas! E, pois fico para élas, o melhor é ficar sem vós!»
«E, com isto, cumpriu o costume.
«Mas a ama, que via não haver ali outrem sobre quem recaisse o cuidado das honras derradeiras, senão a éla, arredando Lamentor e a senhora Aonia, tomou uma rica toalha nas mãos, e, lançando-a por cima do rosto de Belisa:
—«Agora para sempre (disse) vos cumpre olhar para o ceu, onde éla, bem-aventuradamente, está; que isto é terra! Quem a amar, pois já éla a deixou, parece que errará ao bem que lhe quiser.»
«Palavras eram estas de muita consolação, se soubera a dôr presente consolar-se.
«Mas assim a enterraram.
«Deixemos aqui as cousas de Lamentor (que foram muitas e extremadas as que êle fez, pelo muito que a Belisa queria), porque como este conto seja dos dous amigos, agravo se lhe fará, ao muito que d'êles ha para dizer, gastar-se n'outrem alguma parte do tempo.» [74]
«Torno-vos ao cavaleiro que saiu da tenda, tam triste que não pôde alongar-se muito d'ali; e, apeando-se, sentou-se ao pé de um freixo que cerca d'aquelle ribeiro e da ponte estava. E, para pensar mais á sua vontade, mandou o seu escudeiro, arredado d'ali, que desse de comer ao seu cavalo na ribeira d'aquele rio, porque logo se temeu de êle o ver assim, e cair em alguma suspeita que fosse contar a Cruelcia (que era aquela por quem viera ali, como ouvistes), porque todos os seus lhe eram muito afeiçoados; e como éla quisesse a êle muito grande bem, êles não se podiam ter que lh'o não mostrassem todo em as [75] obras; d'onde nascia irem-lhe êles a dizer e contar tudo o que êle passava.
«Assim o que êle fazia por bem lhe saía ás vezes em mal; que para tamanho bem lhe éla queria que não podia deixar de ouvir, pelo tempo, cousas que a magoassem; nem tambem êle não as podia deixar de fazer, pelo pouco que lhe queria. Como, de feito, assim, por derradeiro, lhe foi isto causa, a éla, de triste fim.
«Mas, sentado o cavaleiro ao pé do freixo, esteve por longo espaço revolvendo muitas cousas na fantasia.
«E, quando se lembrava do que a Cruelcia devia, parecia-lhe sem-razão deixá-la; por outra parte, lembrando-se de quam bem lhe parecera Aonia, parecia-lhe desamor não lhe querer bem.
«Tinham-no assim, entre ambas, formosura e obrigação, a ver quem o levaria; mas, por derradeiro, pôde mais a de mais perto.
«Costumava dizer meu pae que fôra vencida a obrigação, como cousa que lhe não vinha de direito o pago no amor, e vencera a formosura, como quem só de amor se pagava.» [76]
«Era Cruelcia uma de duas filhas a quem sua mãe mais que a si queria, e de boa formosura; mas obrigou tanto este cavaleiro, com cousas que fez por êle, que o endividou todo nas obras. Não lhe deixou nada, tam só para que lhe devesse a formosura. Parece que lhe quis tamanho bem, que não sofreu a tardança de o ir obrigando pouco a pouco: deu-se-lhe logo toda. Obrigou-o assim, mas não no namorou.
«Coitadas das mulheres, que, porque vêem que as namoram os homens com obras, cuidam que assim se devem élas tambem namorar; e é muito pelo contrario,—que aos homens namoram-nos desdens e presunções. [77] Após uma brandura de olhos, aspereza muita de obras.
«Isto de seu natural lhes deve vir; porque são tam rijos que parece não terem em muito senão o que trabalham muito.
«Nós outras, brandas de nosso nascimento, fazemos outra cousa; porém, se êles comnosco entrassem a juizo, que razão mostrariam por si? O amor, que é, senão vontade? Não se dá, nem se toma por força. Mas, como quer que seja, ou pela desventura das mulheres, ou pela ventura dos homens, sentença é dada em contrario; que a êles os vençam esquivanças; e boas obras—a élas!
«Esta só maneira puderam ter para os namorarem, se não foram namoradas d'êles.
«Mas, ao amor, quem lhe porá lei?
«Porém, este desagradecimento dos homens—que é o seu nome verdadeiro—trouxe muitos desventurados fins, como vereis n'este cavaleiro em que falâmos.
«E não foram vãos os rogos que Cruelcia fez, com as mãos erguidas ao Ceu, pedindo d'êle vingança.
«Comtudo, assentou êle, por derradeiro, de a deixar; porque, além de lhe parecer a senhora Aonia a mais formosa cousa que vira, pareceu-lhe tambem (por vir de longes [78] terras, e ser n'aquela estrangeira) que mais depressa haveria seu amor. Esta esperança (ainda que bem visse êle que era de longe) comtudo grande ajuda foi então para acabar de assentar e confirmar, ou de fazer muito grande, o bem que lhe queria; porque isto vae assim, como quando algum amparo tolhe o sol:—se o toma em cheio, é muito maior a sombra que o amparo que a faz.
«Assim, os que bem querem; porque as esperanças, por pequenas que sejam, tomam sempre em cheio, ou parece que tomam, os estorvos que tolhem a cousa bem-quista; fazem o amor muito maior do que élas são; d'onde veem depois os cuidados que com a morte, ou longa tristeza, se possuem, como foi n'este cavaleiro, que já não cuidava senão de ver como se apartaria do seu escudeiro, de maneira que, depois de apartado, lhe não causasse suspeita alguma d'aquele lugar, para êle mais á sua vontade gosar d'êle.
«Desejava tanto este apartamento, porque bem sabia êle que havia de sofrer mal o ver-lhe deixar Cruelcia; porque era da criação d'éla, que lh'o dera para o acompanhar, e nunca outra cousa êle lhe dizia senão que a havia de tomar em matrimonio,—porque era de alto sangue, e herdava terras onde [79] êle podia repousar os derradeiros dias da vida, que não deixam tomar armas com honra.
«Mas, emfim, cuidando o que determinou, o chamou, e fazendo-lhe um discurso largo, entre outras cousas, lhe disse que lhe não parecia bem ser êle mesmo que levasse á senhora Cruelcia a nova da aventura que não achára, vindo por amor d'éla; mas que seria bem levar-lh'a êle, e dizer-lhe que da sua mofina quisera êle que fosse outrem o portador. Que, para éla, não podia êle ir em companhia de novas tristes; e que o esperaria no castelo, que perto d'ali estava, até tornar a trazer-lhe recado se queria éla pô-lo n'outra aventura, pois aquela, assim, não se pudera acabar.» [80]
«Partindo o escudeiro com o recado (enganado êle, e para quem o levava) ficou o cavaleiro só, e começou a entrar em pensamentos de que maneira mudaria o nome, para que não fosse sabido onde estava, nem se pudesse saber para onde ia; que tanto se senhoreou, n'aquele pouco tempo, o amor d'êle, que a si mesmo queria já, em parte, deixar.
«Mas, lembrando-lhe n'isto que n'outro tempo lhe dissera um adivinhador que, quando êle mudasse a vida e o nome, seria para sempre triste, ficou um pouco mais pensativo; mas tornando logo a fazer menos conta d'aquelas cousas, como incertas, e, comtudo, [81] não querendo ir de todo contra élas, por outras muitas que tinha ouvido pensou em trocar as letras do seu nome. De maneira que, assim, o não mudaria, nem tentaria os fados.
«Mas êle não viu que isto era engano tambem dos fados.
«Estando êle assim n'este pensamento, acertou, por acaso, que um mateiro vinha do mato pelo caminho que ia ter á ponte, e vinha em cima de sua besta, como deitado, e mal coberto com um enxalmo. Parece que andando êle, despido, cortando a lenha, ateára-se algum fogo perto do seu vestido, e lh'o queimára; e então o mateiro, por lhe querer acudir, descuidára-se de si, e o fogo fizera-lhe algum dano, em partes de seu corpo.
«E, a direito do cavaleiro, topou com outro mateiro, que para o mato ia, que lhe preguntou, vendo-o vir assim sem lenha, para que fôra ao mato, respondendo-lhe o mateiro queimado, falando-lhe galego, estas sós palavras:
—«Bim n'arder.»
«Olhou o cavaleiro para o barbarismo da letra mudada na pronunciação de b por v , e pareceu-lhe misterio; porque ele era aquele que tambem se fôra a arder,—quis-se chamar assim d'ali ávante.» [82]
«Não passou muito que, por aquele lugar, não viesse um dos servidores de Lamentor, que atravessava para o castelo.
«Quando Bimnarder soube d'êle que Lamentor tinha ordenado fazer ali uns paços grandes, e morar n'êles toda a sua vida, algum repouso mais deu isto a Bimnarder; que, d'antes, a pouca certeza que tinha da estada de Aonia n'aquela terra lhe dava grande fadiga ao pensamento.
«Mas, afrouxado da parte d'este cuidado, entrou n'outro:—do que faria de si, e para onde se iria; no qual esteve até a noite, sem poder assentar nada consigo. Porque se o [83] ir-se d'ali para outra parte, lhe era já grave; ficar, parecia-lhe impossivel cousa poder-se esconder do seu escudeiro.
«Combatido assim de uma cousa e de outra (ainda, porém, sem determinação nenhuma) ergueu-se,—como forçado da noite, mais que da vontade.
«Buscando o seu cavalo, onde o deixára o escudeiro, não o achou. Tornando-se então para o freixo onde antes estivera, para d'ali olhar se fôra beber a este rio, mas não o vendo nem sentindo em nenhuma parte, encostou-se então assim ao freixo, pensando, á primeira no cavalo. Mas não tardou que logo não tornasse ao seu verdadeiro cuidado, imaginando, parece, a senhora Aonia na fantasia, afigurando-se-lhe vê-la da maneira que a vira. E, de piedade amorosa, lhe estavam vindo as lagrimas aos olhos.
«Estando êle assim, todo ocupado d'aquela doce tristeza, sentiu como que alguem junto de si.
«Olhando, com o luar que então fazia, viu uma sombra de homem de estatura desproporcionada (de nosso costume) estar perto d'êle.
«A subita novidade o moveu á alteração, mas, como esforçado que era, lançando mão [84] á sua espada cobrou ousadia de lhe preguntar quem era; e vendo que, comtudo, se calava, se pôs a mover para êle, já com a espada arrancada, dizendo:
—«Ou me dirás quem és, ou o saberei eu.»
—«Está quedo, Bimnarder (chamando-o assim por seu nome)—lhe disse a sombra—que inda agora foste vencido de uma donzela chorando!»
«Deteve Bimnarder o passo, espantado de aquilo que ainda então cuidava êle que o não sabia ninguem; mas tornando logo a querer-lhe preguntar de onde o sabia, a meia palavra, olhou... e viu aquela sombra que, virando-se para umas moitas grandes, que 'hi cerca estavam, se ia metendo por entre élas, pouco a pouco. E assim se encobriu e desapareceu.» [85]
«Ficando Bimnarder com o pensamento cheio do que aquilo seria, começou de ouvir um estrondo grande que vinha pelo mato para onde ele estava. E, inda bem o não ouvia, quando, correndo por ante si, viu passar o seu cavalo, e uns lobos após êle, e após êles, de longe, vinham correndo uns cães com grande grasnada.
«E, ao saltar d'este ribeiro, caiu n'êle o cavalo. E, chegando os lobos, começaram a mordê-lo por todas as partes, de maneira que, comquanto prestemente Bimnarder acudiu, já êle era morto.
«E não tardou nada que uns pastores, que perto d'ali tinham a malhada do seu gado, [86] ao filar dos cães, vieram ali ter, afigurando-se-lhe ser morta alguma rês; e, achando Bimnarder assim agastado, começaram-no a querer consolar com palavras e modos rusticos, oferecendo-lhe pousada por aquela noite.
«Aceitou êle, ainda que não desejava então companhia; mas pelas horas o fez, e tambem porque logo cuidou que, quando os pastores fossem no seu rebanho, não lhe haviam mais de tolher o tempo ao pensar,—que para êles não se fizera a noite senão para dormir.
«Foram assim ao fato de uma grande manada de vacas (que todas estavam alevantadas, com o alvoroço dos cães e medo dos lobos) metendo-se os pastores e Bimnarder por entre élas, que lhe iam fazendo lugar, e escornando umas ás outras.
«E, assim, saindo d'entre élas, estava uma fogueira grande junto de uma choupana de sebes, cortiçada por cima. E junto d'esta, ao fogo, jazia deitado, sobre rama verde espalhada, um pastor já de todo branco, que maioral era do fato; e tinha sua cabeça encostada sobre um tronco de madeira; e uns rafeiros ainda pequenos lançados em parte por cima do velho pastor, e outros, grandes, com as cabeças estendidas sobre êle. [87]
«E, em pastores chegando, ergueu êle a cabeça um pouco, e, como homem que era avisado em semelhantes casos, descansadamente começou a preguntar pelo que se passava. Contando-lhe êles que não era nenhuma rês morta, tambem lhe contaram do cavaleiro que traziam.
«Ergueu-se êle então assentado, e fazendo-lhe lugar na rama de sua cama, lhe rogou que se fosse assentar. E assentado Bimnarder, e assentados todos derredor d'aquella fogueira, pediu o velho maioral a Bimnarder que lhe contasse como aquele desastre lhe acontecêra.
«Contou-lh'o êle, brevemente, por lhe satisfazer: como andando o seu cavalo pastando vieram aqueles lobos, e mataram-lh'o, primeiro que lhe pudesse valer.
«Ao que, começou com uma fala retumbada a falar o pastor, como que o queria consolar n'aquela mofina, dizendo:
«Os desastres que acontecem com os animaes ferozes n'este vale, é cousa espantosa, e, para quem o souber, mais leves de sofrer, se a companhia em isto dá consolação! N'uma noite de inverno escura, sendo eu mais novo que agora, diante dos meus olhos, me tomaram a minha vaca bragada (mãe [88] d'est'outras bragadas, que tenho'inda agora) e mataram-na. Pois tinha eu então ao pé de mim o rafeiro malhado, e a rafeira branca sua mãe, armados os pescoços ambos, que nunca me achei com êles, em lugar tam ermo nem em noite tam trabalhosa, que não estivesse seguro como na metade do dia; mas então pouco aproveitavam êles a mim, que bradava a coitada da vaca, e bramia tam doridamente que, em breve espaço, ajuntou quanto gado tinha, que estava, á la fé, a um bom pedaço d'ali. E já aqui, onde agora estou, me vieram no claro dia matar quantos bezerrinhos tinha, que inda não eram para andarem com as mães.»
—«E porque estás então aqui, pastor honrado?»—lhe disse Bimnarder.
—«Nunca vistes outra cousa, lhe disse o pastor, não ha o haver senão onde ha o perder. A terra é abastada de pastos; e, assim como cria o bom, cria o mau. Já ouvi dizer a um grande homem, que era dado ás cousas do outro-mundo, falando na povoação d'esta terra (que, ainda que a vêdes assim, por partes, metida a mato, é de pastores, em muita maneira, povoada) que isto era uma das maravilhas da natureza: de uma mesma terra nascerem duas, tam contrarias uma á [89] outra. E isto não era só nas alimarias, mas nos homens:—que não ha maus senão onde ha os bons, e não ha ladrões senão onde ha que furtar. Mas, quanto a mim, não sei qual é pior para nós outros, pastores:—na terra de pouca ervagem perece-nos o gado á fome, e cá n'est'outra, matam-no-lo. Assim, em toda a parte nos vae mal. Mas nós outros somos, emfim, como dizem que são todos os outros homens (e vós, senhor cavaleiro, o sabereis): podemos melhor sofrer o mal que nos faz outrem que o que nós fazemos a nós outros mesmos. Os danos da terra fraca, porque está em nosso poder sairmo-nos d'éla, não os podemos sofrer; os da outra, que não está em nós vedarmo-los, sofrêmo-los como podemos. Assim, tambem digo eu, senhor cavaleiro: no vosso caso, não estejaes agastado; descansae, e tornae tudo á culpa da terra.»
«Estas palavras, a Bimnarder, pareceram bem; e, se não fôra porque era contar o pastor a verdade de sua vida, cuidára êle que não eram estas palavras de pastor; mas o que cada um passa, facilmente o sabe bem contar; e, por isso, não lhe tornou resposta mais que umas palavras em sinal de agradecimento d'aquele bom conforto, fazendo [90] menção de querer repousar; o que vendo, o velho pastor mandou a todos que se calassem, e que dormissem. E foi feito assim.
«E começaram em breve espaço os pastores a roncar, estirando seus rusticos membros, uns para cá, outros para lá, como ao sôno aprazia.
«Só Bimnarder não podia repousar, tendo no coração a quem êle não doía. E quando a todos a escura claridade das estrelas aconselhava o sôno, d'êle o tinham desterrado os seus cuidados.
«Antes, com os olhos postos para aquela parte d'onde viera (segundo parecia, com o corpo só) á senhora Aonia, ausente, êle a ouvia chorar.
«E em a longa noite esteve assim, 'té que aquele cansado corpo adormeceu aquela parte dos sentidos sobre que tinha algum poder. Sonhos e fantasias ocuparam a outra.
«Mas, depois de um pouco de sôno, acordou êle, todo banhado em lagrimas, porque sonhára, chorando, que o levava d'ali, por força, a sombra que vira d'antes. E correndo-lhe, por isto, muitas cousas pelo pensamento, assentou consigo de se não ir d'aquela terra, 'té vêr o que podia ser d'êle n'aquele cuidado, que o assim tomára, e assim o seguia. [91]
«D'esta maneira, cuidava êle que não iria contra aquilo que, porventura, lhe adivinhava o sôno, se o fizesse.
«Tamanho desejo tinha de se não ir nunca d'ali, que tudo lhe parecia que lh'o aconselhava; e, de muitas maneiras que cuidou, n'esta assentou por derradeiro: despedir-se cedo d'aquele velho maioral, e ir-se a algum lugar perto d'ali, onde mudasse os trajos, e tornasse a assentar vivenda com êle, que grande rebanho lhe parecia que trazia.
«E, ainda que muitos mancebos lhe visse, a pouquidade da soldada faria com que lhe não fosse sobejo qualquer pastor.
«E assim o fez.» [92]
«Eis Bimnarder pastor de vacas,—que não houve ahi nada impossivel no amor grande.
«Muito tempo passou êle n'aquela vida, com maus dias e piores noites; porque Lamentor, no começo logo do seu assentamento, mandou fazer primeiro umas casas para recolhimento, não mais; e a muita gente que era vinda para as obras, pela labutação grande que tinha, por causa da grande pressa que Lamentor dava a élas, tolhia a saida das mulheres, pelo que Aonia não apareceu um grande tempo, para Bimnarder, ao menos, ter aquele contentamento que a vista dos olhos dá áqueles que do mais carecem. [93]
«Conheciam-no, porém, já todos os de casa, e chamavam-lhe o pastor da flauta , porque êle costumava trazê-la sempre, pois para remedio da sua dôr a escolhêra, depois de se desconhecer.
«Tambem assim, muitas vezes, ora pela ribeira d'este rio, e outras horas por estas altas assomadas (que fazem, como vêdes, mais gracioso este vale) andava tangendo, e cantando em palavras pastoris. Este só contentamento lhe era algum conforto para o seu mal, e para desabafar o seu coração, que tam ocupado de profundos e muito penosos pensamentos trazia.
«Muitas cousas sabia meu pae, suas, que arremedavam de pastor, e tinham as cousas de alto engenho, ou, mais verdadeiramente, de alta dôr, postas e semeadas tam docemente por outras palavras rusticas, que quem bem olhasse facilmente entenderia como foram feitas.
«E, assim, tinha mais outra cousa, a meu fraco juizo e parecer: é que o bom pastor, n'aquela baixeza de estilo, pela impressão da presunção que punha, e de si mostrava, como que via mais depressa haverem d'êle compaixão todas as pessoas que o ouviam, tanto póde a imaginação em todas as cousas. [94]
«Mas, de todas, uma só me vem á memoria, e lembra-me que dizia meu pae que êle a cantára, e ouvira-lh'a a ama da menina.
«Por certo, parece que assim o ordenou a ventura para que Aonia fosse sabedora de seu cuidado, já quando êle de todo andava desesperado; e, não se podendo d'ali apartar, ordenava, andando desvairadas cousas de si, que desvairadamente o atormentavam.
«Tambem, para que tudo fosse como cumpria á desventura que estava ordenada, aconteceu que a velha ama era natural d'esta terra, e, n'outro tempo, quando era moça, parece que um mercador muito rico e gentil-homem, (que viera d'aquelas partes d'onde Lamentor) por asos e visinhanças, houvera o seu amor; e com dadivas grandes, e promessas maiores, a levára de sua terra, de casa de seu pae, que a tinha muito estimada e guardada, mais ainda do que a seu estado convinha; mas tudo, pela sua formosura d'éla, era bem empregado.
«Era ensinada a livros de historias, pelo que era já então sabida, e depois, quando velha, o foi muito mais.
«E, dizem que, chegando ambos á terra do mercador, por grandes desventuras, o veio [95] éla a perder, ainda quando moça e formosa. Mas ficando assim em terras estranhas, movida de compaixão, a mãe de Belisa a recolhera para sua casa, d'onde ainda lhe estava ordenado este outro desterro para a sua terra.
«De como a levou êle, e o éla perdeu, se conta um grande conto. Deixá-lo-ei agora, porque tenho outro caminho tomado, ainda que, entre os homens, todos os caminhos vão ter a fim de mulheres; mas, pois moraes n'esta terra, outra hora nos veremos, e contarvo-lo-ei então, se por ventura vos ficar desejo de ouvi-lo.»
—«Ainda, senhora (me não pude eu ter que lhe não dissesse) que eu tinha já posto em minha vontade nunca ter desejo nenhum, este quero eu ter,—que tanto podem as cousas vossas comigo; e mais, pois é conto de mulher, não póde deixar de ser triste. E, d'esta maneira, tambem em parte não irei contra meu proposito; porque desejando ouvir tristezas, não se póde isto verdadeiramente chamar desejo, que só o desejo deve vir d'aquilo com que se haja de folgar. E, se tambem acontece o contrario, será porque tambem o desejo engana muitas vezes, como todos os outros sentidos.» [96]
—«Nós outras, tristes, (me tornou éla então) chamaremos logo a este desejo desgosto; porque não se deve espantar ninguem de ver mudadas as palavras ou o entendimento d'élas, nas pessoas em que se mudaram tambem muitas outras cousas, que não dissera nem cuidára ninguem que se podiam mudar.
«E tambem, filha e senhora, ainda que me vós vejaes assim, já em idade em que as tristezas passadas não deviam ser-me causa de mais que de haver tudo por nada, e julgar o presente pelo passado, e, emfim, estimá-lo assim; comtudo, tamanhas foram as causas que me fizeram triste, que o sofrimento d'élas, e o longo tempo, não me faz sentil-as menos. Pensando n'isto, muitas vezes digo eu que não póde ser senão que quando a fortuna ordenou desgostar-me, para que a vida não sobejasse á dôr, as compassou, parece, ambas assim, que não fosse uma maior que a outra; e venho a entender n'isto que não se acrescenta mais a minha dôr que a vida. E perdoae-me ir-vos assim saltar a falar de mim, tendo ainda por cumprir o que vos prometi. Que a sua dôr traz a cada um assim. Tambem os meus feitos: indo para fazer uma cousa, faço outra. E a [97] mim, muitas vezes, d'esta maneira, me sou eu mesma em vergonha.»
—«Não podeis vós já, senhora, fazer cousa ante mim que haja mister perdão de mim; antes, quanto mais vossas cousas ólho, me vae parecendo que não viestes aqui senão para vos eu ouvir; que, até agora, costumava eu andar espantada, de mim para comigo, como podia durar tanto uma dôr depois d'acabada a causa d'éla, e como a não gastava o tempo, como as outras cousas todas que n'êle ha! E, porque eu não via isto na minha mágoa, tornava dando a culpa d'isto a outrem, porque, pela ventura, me era forçado tornar a dar a mim maior pena... Ou... que digo eu, pela ventura?... E aqui, indo eu para dizer outra cousa mais, se me pôs diante o pouco conhecimento d'entre nós ambas, e calei-me,—assim como que me não quisera calar. Éla, docemente, dissimulando porventura, (segundo no fim de sua fala me pareceu) seguiu dizendo:
—«Das culpas que alguem dá a quem bem-quer, sempre lhe ficam as penas d'élas, e com razão; que vos não quereria eu a vós bem se vos eu o pior desse: mas antes me espanto ainda de, quem quer bem, como [98] póde culpar a quem o quer; senão que, torno a dizer eu, que pódem fazer isto, pela pena que lhes fica; que a éla tomam êles, como por vingança da força que se fazem n'isto a si mesmos. Tambem, senhora, fui moça como vós; culpei já alguem contra minha vontade. Causa de grandes desgostos me foi, muitas vezes, não me poder eu escusar a mim mesma só de culpar outrem. Foram desvarios de amor. Ha isto n'êle, como ha outras sem-razões infindas, sofridas como êle quis, que'té n'este nosso sofrimento pôs tambem cousas que se não sofrem senão pela ventura!»
«E, a esta palavra, tirou os olhos de mim, como que queria dizer que não me entendia, pois lh'o eu queria encobrir. E a mim, que me pareceu mau ensino, a uma senhora, dona e triste, que me tanto dava de si, negar-lhe parte de minhas tristezas, pois lh'as já d'antes quisera significar, disse eu então:
—«Cuidae de mim, senhora, o que quiserdes; que, assim, me parece que sois desgostosa; que esta maneira é melhor que todas para saberdes a verdade da minha vida, que toda é uma longa queixa.
—«Fazeis bem (me tornou éla) que essa [99] maneira é tambem a melhor para vo-lo eu não ousar perguntar, que tambem afeiçoada vos sou já. E, pois ha de ser tam triste, não na quero antes ouvir. Por isso, tornaremos ao conto. Ele acabado, farão de nós as nossas tristezas á sua vontade, que tambem se desejam contadas, como os prazeres. Mas, o conto, foi assim como agora direi:» [100]
«Disse (se vos lembra) que uma só cantiga me lembrava, que dizia meu pae que lhe ouvira a ama,—e foi d'esta maneira.
«Começava a cair a calma, e havia pedaço que o pastor da flauta estava assentado á beira d'este ribeiro, sobre um torrão, olhando para a parte contraria, d'onde a ama acertou por acaso de vir. Estava tangendo de mansinho a flauta, para consigo.
«Estando êle n'isto, deixára-se vir um rebanho de vacas, correndo, apressadas da mosca. Passando por êle, se foram meter na ágoa até aos peitos; e, deixando êle então de tanger, ficou como pensativo um pouco, [101] porém, sem tirar a flauta d'onde a d'antes tinha, como transportado.
«Olhou para isto a ama, e quisera-lhe dizer que tangesse, que bem lhe parecera d'antes. Mas, estando para lh'o dizer, começou êle então a tocar a flauta, docemente, de maneira que fez detença a ama.
«Parecendo-lhe cousa triste, e mais que de pastor, deu-se toda a ouvi-lo, senão quando êle, depois de um pedaço grande, soltou a flauta, e começou assim:
«P'ra todos houve 'hi remedio
P'ra mim só não no houve ahi:
Inda mal que o soube assi.
«Fogem as vacas p'ra a ágoa,
Quando a mosca as vae seguir;
Eu só, triste em minha mágoa,
Não tenho a d'onde fugir:
D'aqui não me posso eu ir,
Estar não me cumpre aqui,
Que o que eu quero não o ha 'hi.
«Entretanto a calma dura,
Tem esta fadiga o gado,
A manhan pasce em verdura, [102]
A tarde em o seco prado;
Dorme a noite sem cuidado,
Pois tudo achou para si.
Descanso, eu só o perdi.
«A mim, nem quando o Sol sae,
Nem depois que se vae pôr,
Nem quando a calma mór cae,
Não me deixa a minha dôr.
Dôr, e outra cousa maior,
Convosco hoje amanheci,
Convosco honte' anouteci.
«Crendo que assim findaria,
Dei-me todo ao que padeço:
Um dia leva outro dia,
Por um mal, outro conheço.
Se o fim responde ao começo,
Ai! quam mal que me provi,
Que no começo o fim vi!
«Se nasci p'ra meu mal vêr,
E não p'ra vê-lo acabado,
Melhor fôra não nascer,
Que vêr-me desesperado.
E, pois que n'este cuidado
Me traz tam cego após si,
Inda mal que o soube assi! [103]
Fim
«Entre lagrimas e prantos,
Nasceu o meu pensamento.
Cresceu, em tam pouco, tanto,
Que é mais alto que o tormento!
Passa o que passo ao que sento.
Mal faz quem me esquece assim
Que após mim não ha outro mim.» [104]
«Em dizendo este derradeiro verso, parece que não podendo êle já suster as suas lagrimas, calou-se, como estorvado d'élas; e, entendendo-o a ama, pelo soltar da flauta, e tomar da aba do gabão para limpar-se, tamanha paixão a comoveu que não pôde ter as suas, lá onde estava, e sempre lhe falara, se não fôra que vinham chamá-la já de casa.
«Foi forçada a levantar-se éla, e foi-se, ocupada toda a fantasia d'aquele pastor, pois algum grande misterio lhe pareceu.
«E como o que está ordenado de ser, logo traga asos consigo, entrando a ama em casa, e topando Aonia só, á boa-fé, sem mau engano, [105] se pôs a contar-lhe tudo, e a jurar-lhe e tresjurar-lhe que não podia ser pastor.
«E, porque já Aonia entendia a lingoagem d'esta terra muito bem, lhe disse a ama a cantiga. E quando lhe veio a contar como o pastor, com aquelas derradeiras palavras, deixara cair a flauta no chão, e com a aba do gabão (que de burel era) se limpara das lagrimas que com élas lhe vieram; e, acabando de limpar-se, olhara para a aba, que com ambas as mãos tinha, e como (parece) lembrando-lhe do que éla era, ou não sabia porque, encostara o rosto a éla, assim entre as mãos, como estava; e, após um grande suspiro, se deixara estar assim, e assim ficara quando éla viera, que, pela chamarem n'este meio tempo se tornara tam triste como havia muito tempo que o não fôra por causa alheia... E encheram-se-lhe á velha ama os olhos d'ágoa, em dizendo «cousa alheia». E assim se virou para outro lado, e foi-se fazer cousas de casa.
«A senhora Aonia, (que ainda então era donzela d'entre treze a quatorze anos) sem saber que cousa era bem-querer, de umas lagrimas piedosas regou as suas formosas faces, e, sobre élas, os sentidos primeiros lhe inclinou, tanto podem, algumas horas, as cousas ouvidas! [106]
«E, se não fôra que era éla moça, facilmente o entendêra logo; mas, não o entendendo, mil vezes n'aquele dia tornou a pedir á ama lhe dissesse, ora a cantiga, e ora como estava o pastor.
«E, por acerto, perguntando-lhe uma vez de que feições era, lhe disse a ama:
—«Eu já outras vezes o vi, de bom corpo, e de boa disposição; a barba um pouco espessa e um pouco crescida que a êle traz, parece que é aquela a primeira ainda. Os olhos brancos, de um branco um pouco nublado; na presença, logo se enxerga que alguma alta tristeza lhe sujeita o coração.»
«Lembrou a Aonia só tornar-lhe a perguntar quando foram as outras vezes que o vira.
«Disse-lhe então a ama que o pastor se vinha pôr derredor d'aquelas casas sempre, e ás vezes se punha a falar com os oficiaes, e outras andava defronte (na ribeira d'aquele rio) pastorando o seu gado. E este era o pastor a que todos chamavam «o da flauta», que conhecido era de todos.
«Não o conhecia Aonia, porque nunca saira fóra. Mas como então logo pôs na sua vontade de olhar para êle, e de buscar maneira para isso, (tamanho dó lhe fez ouvir [107] d'êle o seu canto) enganada assim d'aquela falsa sombra de piedade, toda aquela noite seguinte não pôde dormir. Mas não que já fosse declarada consigo, nem debaixo d'aquele desejo determinasse nada; porém, ardia em fogos de dentro de si.
«E porque de todo o ponto se acabasse isto de confirmar de todo, ainda bem não era manhan, saindo a ama da menina a uma varanda á maneira d'eirado (que sobre uma parte das casas estava, e fôra feita, logo no começo, para despejo) viu o pastor estar só, sobre a borda d'este rio, não muito longe do lugar onde o éla vira o dia antecedente,—que ali estava o freixo onde se ele pôs a primeira vez que saira da tenda, onde tambem viu a sombra, como vos disse, e ali foi onde depois veio a morrer.» [108]
«E como assim o viu, foi logo dizê-lo a Aonia, correndo, tamanha pressa dava já a fortuna ao desastre, ou era vinda a hora que se não podia alongar. E, como lh'o houve dito, ocupou-se em negocios de casa.
«Levantou-se Aonia, e deitando só uma roupa grande sobre si (que, em camisa, estava ainda na cama) se foi ao eirado, e viu-o estar virado para aquela mesma parte. Mas, vendo-se Aonia no eirado, e vendo-o, lembrou-se logo de que ia toucada de um arrodilhado só, como se erguera; e ou por não parecer que se erguera então, ou já para não parecer mal, lançou uma manga da camisa [109] sobre a cabeça, e se deixou estar assim.
«E, n'isto, começaram as vacas, pascendo, a rodeá-lo n'aquele lugar onde êle estava, que era uma maneira d'outeiro pequeno.
«Andando pascendo élas, umas para cá, e outras para lá, deixou-se de outra manada vir um touro grande e medonho, urrando, e lançando de quando em quando a terra sobre as ancas; e, d'outras vezes, parecia que a queria comer, meneando a cabeça para uma e outra parte.
«E, chegando ás vacas, começou tam feramente a pelejar com outro seu egual, que espanto fazia a éla, lá onde segura estava d'êles, não mais.
«E, andando assim, começaram de se ir chegando, com grande peleja, para o lugar onde êle estava. Mas vendo éla que não se mudava êle, nem tirava os olhos d'aquela parte onde olhava, antes parecia (segundo estava segura) que os não via, senão que isto não era para crêr; quando éla, de todo em todo, viu que os touros se iam chegando a êle, ficou esmorecida; e, tornando a si olhou. E, com o espaço que se metia em meio, tolhendo-lhe os touros a vista d'ele, parecendo-lhe que o tomavam debaixo, caiu para o outro lado, como morta. [110]
«Vendo Bimnarder aquilo (que para outro lado não olhava) deu-lhe logo no coração o que era; e ainda que êle tivesse muitas razões para o duvidar, ou não o haver por certo, (pois de sua vontade, Aonia, não era sabedora, que êle soubesse) comtudo creu; porque assim o quis o bem-querer grande; que todas as cousas duvidosas fossem mais certas, ou por mais certas se crêssem.
«E, cobrando força da melancolia que houvera, pelo que suspeitou, com um cajado grande que tinha na mão, atirou ao touro alheio, que já a melhor do seu levava, e quis a sua dita que lhe quebrasse uma perna. E, lançando-se rijo e acordadamente para ele, o levou por um dos cornos. E como Bimnarder fosse de muito grandes forças, e com a ajuda do seu touro, que por instinto natural conheceu o socorro (e lhe tambem começou, por sua maneira, a ajudar) prontamente deu com o outro em terra; e virando-lhe a cabeça para o ar, o deixou que se não pôde bulir.
«Viram isto todos os de casa, que ao estrondo grande, e urros dos touros, acudiram; e foram todos espantados do esforço grande do pastor, e não falavam de outra cousa.
«A ama, que tambem o viu, foi-se em [111] busca de Aonia, para lh'o contar; mas, não a achando na camara, lembrou-se que estaria no eirado. Indo lá, a achou deitada.
«Chegando-se a éla, a viu como passada d'este mundo, e, dando um ai grande, lançou a mão ao seu rosto; mas, ao brado, acordou Aonia, como cansada.
«E, parece, como trazia o pensamento ocupado do pastor, foi-se-lhe afigurar o que receava, pois cuidou que o que fazia a ama seria com dó do pastor, que assim tambem chorava éla quando lhe contava o que fizera êle o dia antecedente. E a primeira palavra que lhe disse foi:—«E o pastor?...»
«Descansou a ama com isto que lhe ouviu, parecendo-lhe que esmorecêra éla por ver a afronta tamanha em que se pusera o pastor, como é costume das mulheres.
«Mas n'éla era outra cousa maior, que estava ainda ha bem pouco tam longe de poder ser como éla de o poder então cuidar.
«Mas tudo já póde ser; ao longo tempo, não é nenhuma cousa nova.
«Contou-lhe então a velha ama tudo o que passara o pastor. E, tornada em suas forças, se ergueu Aonia, e puseram-se ambas um pouco a olhar para o touro, que no chão jazia. [112]
«Estava ahi muita gente, dos oficiaes da obra e de casa; e se não fôra pela vergonha que havia Aonia de a verem, que era em extremo bem acostumada, não se fôra éla d'ali. Mas comtudo foi-se, já um pouco tam declaradamente contra sua vontade, que o entendeu éla; porém como era aquele o primeiro cuidado, não lhe pareceu de todo o que foi, senão que já consentia éla a si mesma cuidar que, se êle não fosse pastor, logo lhe quereria bem.
«Recolheu-se Aonia para a camara, a vestir-se; e, em se recolhendo, acertou de vir de fóra uma mulher de casa, que tambem, parece, saira a ver a peleja dos touros; e, entrando na casa onde ficara a ama, começou, um pouco alto, a falar-lhe, dizendo:
—«Quereis vós, senhora ama, saber?»
«Aqui, calou-se, como muito maravilhada.
«A esta palavra, que Aonia ouviu, se pôs a escutar detraz da guarda-porta da camara.
—«Quê! O pastor?» lhe tornou a ama.
—«É uma maravilha grande, lhe respondeu a mulher. Deveis saber (não sei se vos lembra) que este pastor é um cavaleiro que n'aquela ante-manhan, que a Deus prouve levar Belisa para si, chegou aqui e falou a Lamentor. Eu me acertei de estar então [113] ahi, e o vi sair da tenda com os olhos cheios da senhora Aonia, e d'agoa; e, todo o tempo que ahi estivera d'antes, sempre a olhou de uma maneira como que não podia outra cousa fazer, e que não desejava fazer outra cousa. Que vos hei de dizer?! Verdadeiramente, me pareceu que se ia êle então como que lhe ficava ahi o coração. E, por isto que entendi, saí logo após êle para ver onde ia; e êle foi-se sentar junto de um freixo grande que ali está, onde foi a peleja dos touros. Eu não olhei mais o que êle fizera, nem o tempo era para isto disposto, senão agora, que fui ver aquilo que êle fez; e, em lhe pondo os olhos, deu-me logo a sombra d'êle, e tomei isto por mais misterio; porque, quando então, estava eu bem fóra de cuidar n'êle; por esta imaginação subita que me veio, tornei a atentar mais n'êle, e vi que não podia tirar os olhos de cá. E, quando vós vos fostes do eirado, ficou triste, mais que d'antes. Quanto a mim, bastou aquilo para confirmar a minha presunção; porque êle era aquele, como Deus é Deus!»
«Era esta mulher um poucochinho lingoareira; porém, era avisada, se o alguem era. Mas, pelo outro defeito que tinha, quis-se a ama encobrir d'éla; e, posto que aquilo tudo [114] logo se lhe assentasse na alma, para o desfazer, disse-lhe que se fosse d'ali; que éla conhecia aquele pastor, e, por lhe ver um dia tanger uma flauta bem, perguntára por êle, e disseram-lhe que era filho do maioral de uma grande manada de vacas e gado que n'este vale anda.
«E assim se despediu d'éla; porém, a velha ama ficou crendo, por que bem sabia éla que os acertos em todas as cousas podiam muito, e no querer-bem mais que em todas élas.» [115]
«Aonia, que estava escutando, ouviu toda esta pratica; e, comquanto a ama contradissera a outra, éla o creu. E não fôra isto nada, senão que, após a crença, foram todas as outras cousas que as crenças, n'estes casos, costumam trazer após si; que logo teve desejos, pensando em querer-bem; e já não havia dia nem hora que êle fosse certo de sua vontade para que se não apartasse d'ali por algum desastre, que éla começou a recear,—porque o verdadeiro bem-querer não póde estar muito tempo sem receios.
«Vêdes aqui como se namorou esta donzela de Bimnarder, que pareceu cousa feita [116] de acinte; porque ambos se começaram a querer-bem sob uma sombra de piedade; e como haviam de acabar ambos de uma mesma maneira,—começaram assim tambem, ambos de dous, de uma!
«Aonia, logo que se determinou consigo, não pôde mais descansar.
«E como êle tivesse por costume vir sempre por derredor d'aqueles paços (que sumptuosos se faziam, á maravilha), por uma fresta alta, que na camara onde éla dormia fôra feita só para o lume, se subiu Aonia, sabendo que êle andava ahi.
«E, como o viu, com os desejos que tinha de o ver, e com o que consigo tinha assentado, pareceu-lhe não tam só assim como êle era, mas como éla queria que fosse.
«Depois de o éla estar olhando um pouco, bem á sua vontade, porque êle, ainda que contra a fresta com o rosto acertasse então de estar, acertou tambem de estar olhando para o chão, pensativo como costumava, teve éla tempo para o ver bem. Mas, depois de um pedaço bom, não suportando não ser vista por êle, fez que falava com alguma pessoa de casa.
«A isto, olhou Bimnarder, e, conhecendo-a, transportou-se, e lhe caiu o cajado no chão. [117]
«Levou Aonia contentamento d'aquele desacordo, que bem o viu. E esteve assim mais um pouco; mas não pôde tanto forçar-se que a vergonha natural de donzela (ainda tam moça, e tam guardada, como éla era) não pudesse mais que o seu desejo, e tirou-se depressa da fresta.
«Porém, não estando ainda bem em baixo, tornou a espreitar se se fôra êle, e tornou-se logo a tirar.
«Tambem quisera éla tornar outra vez e outras, mas não pôde tantas vezes decidir-se a fazer o que não devia.
«Veio a noite n'aquele dia mais cedo, para Aonia, do que nunca outra viera. Deus sabe como éla aquela tarde passou! Mas não quero aqui contar muitas cousas, que, por querer-bem, se fazem de maneira que se não podem dizer. A velha e honrada ama, que, com o que suspeitou, entendeu o desassocego de Aonia, que diferente foi logo para quem atentasse n'isso, andava triste, e desgostosa, em parte de si, pelo que lhe contara d'êle. E, por isso, o sentia muito mais, e áquela ceia não pôde comer.
«Mas, recolhidas que élas foram áquela camara da fresta, onde dormiam, e pondo-se a ama a tratar da menina que creava, como [118] costumava,—como pessoa agastada de alguma nova dôr, e quis tornar ás cantigas; e começou éla então, para a menina que estava tratando, a cantar-lhe um cantar á maneira de solau; que era o que, nas cousas tristes, se costumava cantar n'estas partes, e dizia assim:
ROMANCE
«Pensando-vos estou, filha;
Vossa mãe me está lembrando:
Enchem-se-me os olhos d'agoa...
N'éla vos estou lavando.
«Nascestes, filha, entre mágoa.
Para bem inda vos seja,
Pois em vosso nascimento
Fortuna vos houve inveja.
«Morto era o contentamento,
Nenhuma alegria ouvistes;
Vossa mãe era finada,
Nós outros eramos tristes.
«Nada em dôr, em dôr creada,
Não sei onde isto ha de ir ter...
Vejo-vos, filha, formosa,
Com olhos verdes crescer. [119]
«Não era esta graça vossa
Para nascer em desterro.
Mal haja a desaventura
Que pôs mais n'isto que o erro!
«Tinha aqui a sepultura
Vossa mãe, e mágoa—nós;
Não ereis vós, filha, não,
Para morrerem por vós.
«Não ouvem fados razão,
Nem se consentem rogar;
De vosso pae hei mór dó,
Que de si se ha de queixar.
«Eu vos ouvi a vós, só,
Primeiro que outrem ninguem;
Não foreis vós, se eu não fôra;
Não sei se fiz mal, se bem!
«Mas não póde ser, senhora,
Para mal nenhum nascerdes,
Com esse riso gracioso
Que tendes sob olhos verdes.
«Conforto mais duvidoso
Me é este que tomo assi;
Deus vos dê melhor ventura
Do que tivestes 'té aqui! [120]
«A Dita e a Formosura,
Dizem patranhas antigas,
Que pelejaram um dia,
Sendo d'antes muito amigas.
«Muitos hão que é fantasia;
Eu que vi tempos e anos
Nenhuma cousa duvido,
Que tudo é sujeito a danos.
«Mas nenhum mal não é crido;
O bem só é esperado?
E na crença, e na esperança,
Em ambas ha 'hi cuidado,
Em ambas ha 'hi mudança!» [121]
«O pastor da flauta (que não era pastor) teve n'aquela noite maneira de, com um pau que colheu, arribar á fresta; e já estava n'éla quando começara o solau.
«Bem conheceu na limpeza das palavras, e na pronunciação d'élas, que a ama era natural d'esta terra, e avisada; por onde logo receou que, se não tivesse n'éla ajuda, teria grande estorvo.
«Encomendou-se á sua sorte.
«Acabou a ama de tratar da creança, que não foi tratada sem muitas lagrimas d'ambas, d'éla e de Aonia, que penteando-se esteve entretanto, segundo sentiu Bimnarder,—que [122] êle nada de dentro podia bem divisar, pelo impedimento de um pano que diante da fresta estava, para amparo d'éla.
«Acabada a menina de tratar; apagando o lume, se deitaram élas; e, porque a ama tinha sua suspeita, fez que dormia, para espreitar a Aonia; e Aonia, porque tinha seu cuidado, não podia dormir, e ora se revolvia para uma parte, e ora para outra; e outras vezes, após um socego de um pouco, (colhendo folego) dava um baixo suspiro longo, á maneira de cansada d'aquilo que acabara de pensar.
«Esteve tudo a ama notando por um grande pedaço.
«E já Bimnarder estava para descer, cuidando que era outrem a que fazia aquilo, senão quando a ama começou assim a falar para a senhora Aonia:» [123]
«Não dormis, senhora Aonia? E que será, senhora, se não podeis dormir? Parecendo-me vae que esta nossa vinda aqui para desastres foi, e não mais; mas assim de longe os ordena a ventura, que logo ao começo se não podem conhecer.
«Mal cuidara eu o que havia de acontecer á senhora Belisa, quando, aquela noite, depois de dormirem todos, nos levantamos nós sós, caladamente, e pelo laranjal do jardim (que com a espessura do arvoredo fazia então mais escuro) passámos cheias de medo, e vós pegada a mim, toda tremendo, fomos sair pela portinha falsa que acolá, no mais escuro lugar d'êle, estava, onde achámos a [124] Lamentor aguardando-nos já havia pedaço, todo cheio de esperanças tam longas que, emfim, haviam de vir a ser, assim, esperanças, não mais!
«Por isso, cumpre a todas as pessoas (e ás donas, senhora, muito mais cumpre, pois são as que aventuram mais) que, ao principio das cousas, olhem onde élas podem ir parar; que não ha nenhuma tamanha, que no começo d'éla, se lhe não possa resistir, ou deixar sem trabalho; que muitos rios grandes ha ahi que, onde nascem, se podem impedir com um pé, ou levar para outro ponto; e no meio d'êles, ou depois que colhem forças, todo o mundo junto os não poderá tolher ou mudar. Chama uma agoa a outras agoas, e um erro a muitos erros... Em pequeno espaço, crescem de maneira que se não podem depois deixar!
«Gravemente, e com muita prudencia, devia cada um cuidar se o que faz, ou o que determina fazer, é cousa honesta e que convenha; que, se lhe sae bem, todos lh'o teem a bem, e se não, ainda que o mundo lh'o tenha a mal (o que muitas vezes acontece, porque, mal-pecado, já as cousas não são julgadas senão pelas saidas d'elas) não tem ao menos de que se queixar consigo. [125]
«E grande bem é, a meu ver, excusar a pessoa as inimizades entre si, pois não ha lugar cá n'este mundo que defenda a ninguem de si mesmo.
«Pode-se tolher inimigo e inimiga, frio e chuva; cuidado, pode-se tomar, e tolher—não.
«Já quem faz o que deve, saindo-lhe como não deve, não quero afirmar que lhe não dará paixão; que a perda de qualquer proposito (ainda que seja desarrazoado) a dá. Mas, assim, digo que se lhe der paixão, dar-lhe-á sofrimento para éla.
«Bem-aventurado se póde chamar, n'esta vida, quem tem dôr que se suporte; pois, segundo parece, não se póde viver sem éla, assim como assim.
«Nos amores cuidará alguem que não é isto necessario, e que não é costumado; cuido eu que não poderá ser mais necessario. Em todas as cousas se deve haver respeito ao como e ao quando, e ao porque ou para que se fazem, para se não errarem. Maiormente se deve ter este respeito nos amores, pois são tão sujeitos aos erros, que mais mal contado seria, ao caminhante rico, se fosse desprevenido pelo lugar que de ladrões é seguido, que por outro que o não fosse; porque [126] n'este, se lhe acontecesse algum desastre, culparia a ventura; mas n'aquel'outro culparia a si, que são culpas mais graves de perdoar.
«Por isso, senhora, vos peço que aprendaes de mim, que vi culpas, e os danos d'élas, porque assim como toda a pessoa, no bem, é mais amiga de si que d'outrem, assim tambem no mal (quando acontece que haja algum desvario consigo) é mais inimiga de si que de ninguem.
«E isto não é para espantar, porque é inimigo de casa, como dizem.
«Ainda mal, muitas vezes, que me foi necessario que vo-lo dissesse, porque o soube para vo-lo dizer!
«Quereis antes, senhora, não ser contente que arrependida.»
«E aqui, fazendo a ama uma pausa, não para acabar, mas sim para descansar (que vontade tinha já de lhe dizer tudo) sentiu dormir Aonia.
«E, cuidando que fosse fingido, esteve um pedaço espreitando-a, e, por derradeiro, pondo-lhe a mão, e bulindo-a, se certificou que dormia. Parece que, cansada do trabalho não acostumado, adormeceu. Éla era moça, e nunca se vira n'outra... [127]
«A ama, ainda que isto lhe fizesse duvidar do passado comtudo, pelo que passara já por éla, pareceu-lhe o que era, porque não ha cousa que traga mais certo o sôno ás moças que a dôr grande: e ás velhas tira-lh'o.
«E com esta fantasia, em que a ama se afirmou, adormeceu tambem.» [128]
«Bimnarder, que todo aquele tempo passou como Deus sabe, vendo que assim se calavam, não soube que determinar; porque tão magoado ficou das palavras da ama, pelo dano que temeu de lhe fazerem, que se lhe turvou o juizo, e não soube dar saida nenhuma áquele calar.
«E assim enleado, ácerca do que seria, esteve até que a manhan o levou d'ali, bem contra sua vontade; porém, não se pôde ir para longe d'ali.
«Da mágoa d'êle, não vos quero contar. Era homem; poderia com éla. Mas da coitada da Aonia (a quem as boas palavras da ama [129] não aproveitaram mais que para se guardar d'éla) vos contarei:
«Ergueram-se pela manhan, e, posto que a ama tentasse Aonia, dizendo-lhe se ouvira a noite passada o que lhe éla contara, éla dissimulou altamente. Pela sua idade, e pelo amor de creação que lhe a ama tinha, creu logo de todo, e pelo socego de Aonia, feito por acinte, o acabou de confirmar, e houve o passado por nada. Pareceu-lhe que seria o desassocego de moças: que ás vezes, por mocidade, fazem cousas que não fariam em outra idade, ainda que n'isso fosse todo o seu desejo.
«Assentando a ama n'isto, meteu-se na ocupação de casa (que era grande) porque sobre éla carregava tudo; pelo que a Aonia ficou lugar e tempo que bastava para pensar mais á sua vontade, e para fazer com que Bimnarder fosse certo d'éla.
«Pondo cofres sobre cofres, fechando a porta da camara primeiro, dissimulando fazer alguma cousa, se subiu á fresta. E, ainda bem não era n'éla, viu Bimnarder, que não estava longe d'ali, nem tam perto que a conhecesse logo: pelo que se deixou estar um pouco, para se afirmar melhor.
«Éla, que não suportou já aquela tardança, [130] lançando uma manga da camisa fóra da fresta, fez que o chamava.
«Chegou êle com presteza, e, vendo-a, ficou assim sem lhe poder dizer nada. Mas Aonia, que estava já determinada consigo, ousou falar-lhe primeiro, mas não o que éla quisera, porque não pôde a tanto decidir-se.
«E, mudando o proposito n'aquilo que se acertou, lhe disse:
—«Aqui andaes, pastor, cada dia, sempre!»
—«Essa fresta, lhe respondeu êle, não está ahi, senhora, de noite tambem?»
«Aonia, que o entendeu, muito de manso lhe tornou:
—«Está», ajudando a palavra com o abaixar dos olhos, que de todo então, ao dizer d'aquilo, pôs n'êle.
«E não na entendera Bimnarder, se não fôra por isso, mas não lhe tornou êle resposta. Éla, n'isto, desceu-se, porque se lhe afigurou que buliam na porta da camara; e, tornando os cofres a seu lugar, se foi abri-la, e, não achando ninguem, quisera tornar para a fresta, senão quando, n'isto, eis vem a ama com outras mulheres de casa.
«De maneira que todo aquele dia, não teve outro tempo mas logo, n'aquelas palavras [131] que lhe o pastor dissera, entendeu que eram para que tambem olhasse de noite para êle. E, com esta esperança que se deu a si mesma, passou aquele dia, que tambem Bimnarder passou com sua esperança, que tomou d'aquela palavra derradeira que lhe éla falou, com os olhos mais que com outra cousa!
«Mas não cuidara êle, me parece a mim (dizia meu pae), que havia de ser para tanto como lhe saiu, pelo pouco que entre ambos era passado.
«Porém, por isso estava mais certo, me tornou a mim a parecer, (dizia meu pae) porque como a ventura venha mais em todas as cousas que tudo, quem só a tiver não ha mister de mais.» [132]
«Como aconteceu a Bimnarder que, vindo a noite, pondo-se á fresta, como as passadas fizera, sentiu-as deitar, e, d'ahi a um grande pedaço, já quando estava desesperado, ouviu pela casa andar de mansinho, e pôrem alguma cousa contra a fresta.
«Estando com o sentido pronto, n'isto sentiu que subia alguem, e não crendo que fosse tanto (como acontece na vista das cousas muito desejadas, e esperadas muito), antes receando que fosse algum desastre, abaixou-se prestes, e deixou-se estar ao pé da fresta.
«Aonia levantou o pano, e, com o escuro que fazia, não viu ninguem.
«Comtudo, deixou-se assim estar um pouco [133] e, não sentindo nada, duvidou de todo, e, indo para descer, disse:
—«Parece que foram só palavras!»
«Conheceu-a, na fala, Bimnarder. Dizendo:
—«Não foram, nem serão», subiu depressa á fresta.
«E éla tambem o conheceu, e subindo, chegando êle, e querendo-lhe falar, disse éla muito devagarinho:
—«Que me perdoeis!»
«N'isto, começou a chorar a menina, e, acordando, a ama se pôs a embalá-la, cantando-lhe; mas, não se querendo éla acalentar, se ergueu a ama, dizendo:
—«Não sei se acharei lume, que esta criança sente alguma cousa.»
«E, desde que abriu a porta da camara, se foi á outra casa das mulheres, a procurar lume.
«Aonia, que viu não haver remedio, querendo-se, depressa descer, chegou o rosto muito á fresta dizendo:
—«Ide-vos embora, que não póde ser mais.»
—«De vós, lhe respondeu êle, me não posso eu ir assim.» E isto, tremendo-lhe a fala. [134]
«E éla, que houve dó d'êle, querendo soltar o pano, amparo da fresta, não se pôde ter que lhe não desse de si alguma presença, e disse-lhe:
—«Pelo que fiz por vós, julgae o que tinha para vos dizer; e perdoae-me (que vos não posso pagar em mais) o soltar d'este pano.»
«E assim o soltou, descendo-se muito depressa, e concertando tudo.
«Quando tornou a ama, já a achou deitada.» [135]
«Deixou-se Bimnarder ficar á fresta, e ali esteve até pela manhan, que tam ocupado lhe ficou o pensamento d'aquelas palavras que lhe Aonia dissera, em se indo, e da maneira como lh'as dissera, que uma cousa e outra não lhe dava a mais vagar, nem tam só para se lembrar de fugir ao tempo.
«Mas como êle não tivesse a noite antecedente dormido, nem o dia que se seguiu, então, como descansado de alguma parte de seus cuidados, adormeceu, não já por os ter menos, mas como acontece a quem traz alguma cousa que muito deseja, e anda, entretanto aquele desejo o traz, sem poder repousar, [136] mas, depois que alguma segurança lhe vem de o ter cumprido, repousa e dorme, como se o alcançára.
«E não podemos dizer que seja então menor o desejo, que antes, com razão, deve ser maior.
«Assim foi Bimnarder, que, parte de cansado, e parte de contente, transportou-se, parece, tanto em seu cuidado, que se lhe foram, por sonhos, os pés e as mãos, e caiu no chão, com o pau após si.
«E, ao cair, lavou toda em sangue aquela parte do seu rosto, que d'aquela banda da parede parece que levou; de que muitos dias esteve mal depois.
«Mas nenhumas cousas grandes se acabaram senão por meio de grandes desastres como aqui vereis; porque esta queda foi causa de Bimnarder ver o que, pela ventura, nunca vira.» [137]
«Mais diz o conto que a ama (que a menina não a deixára mais dormir) sentiu todo aquele estrondo. E Aonia, que não dormia, tambem o ouviu, e cuidou logo o que temeu; porém, dissimulou grandemente, porque já se guardava da ama.
«Mas éla, que já tambem estava descuidada de Aonia, foi suspeitar outra cousa: que seria alguem d'aquelas obras, porque muita gente andava ahi, e, porventura, viria espreitar por aquele lugar o que élas de noite faziam, que bem sabia éla que os homens tudo ousavam fazer de noite.
«E, ainda bem não foi manhan, foi derredor da casa, e achou sinaes por onde confirmou sua suspeita; e logo mandou tapar a [138] fresta a pedra e cal, contando tudo, da maneira que o éla cuidou, primeiro a Aonia, que lh'o ouviu com tamanha mágoa, que mór trabalho cuido eu que levaria em lh'a encobrir que em a sofrer consigo: porque o sofrer faz-se por vontade, e a outra cousa contra éla.
«Mas, este remedio tolhido a Aonia, deu-lhe causa para buscar outro maior; e chamando a uma mulher de casa, que Enis se chamava, avisada, e de quem se podiam bem fiar grandes cousas, e assegurada no segredo, pelas melhores maneiras que pôde, contando-lhe seu coração, lhe disse que fosse ver se andava pela ribeira d'aquele rio o pastor da flauta; e, se o não visse, que preguntasse a algum outro pastor por êle.
«Fel-o éla assim; e soube que jazia doente em um monte perto d'ali, onde morava a mulher e filhos do maioral do rebanho em que êle andava. E, tomando éla em sua companhia um homem de casa, determinou ir lá, porque tamanha vontade conhecia em Aonia, que não pôde fazer menos.
«Chegou depressa ao monte; e preguntando pelo pastor da flauta, lh'o foram mostrar lá, em uma casa de palhoça, por detraz das outras, onde êle estava. E ficando êles [139] sós, que assim buscou éla maneira, lhe descobriu inteiramente ao que ia.
«Bimnarder, que logo a creu, porque era mulher, sobre a cabeceira onde pobremente estava encostado, se lhe deixaram cair umas ralas lagrimas, causadas d'entre contentamento e muita dôr,—que de ambas as duas costumam élas ás vezes vir, as quaes fizeram certa a Enis do grande bem que êle a Aonia queria; e não lhe esqueceu contar-lh'o éla depois.
«Ali estiveram ambos um grande espaço de tempo, e Bimnarder contando-lhe tudo do começo; e detiveram-se tanto que foram suspeitando mal da tardança, se fôra em outro lugar; mas a vida do monte não cria suspeitas, como não cria de quem se suspeite mal.
«Mas, comtudo, detiveram-se ainda ambos n'esta pratica menos do que ambos quiseram, por causa do homem que Enis trouxera.
«Tornada éla onde Aonia estava, lhe contou tudo, cousa por cousa, que não ficou nada por contar.» [140]
«Veio assim, por acerto, que perto d'ali havia uma ermida de uma santa de grande romagem, e era então, no outro dia, a vespera do seu dia; e a ama e as mulheres de casa ordenaram ir lá.
«Havida licença de Lamentor para Aonia, e postos a caminho, (que a pé podiam bem andar) ao passar pelo monte, se chegou Enis a Aonia, e disse-lhe que ali era, porque iam já concertadas.
«N'isto, fez Aonia que cansava. A ama disse logo que repousasse um pouco. Mas, d'esta vez, não teve éla maneira para ir aonde Bimnarder estava. Foi lá Enis.
«De tornada, fizeram ali grande detença. Buscando achaque de querer lá ir para detraz [141] das casas, levando Enis consigo, houve tempo para Aonia entrar onde êle estava então deitado, contra a outra parte da parede, chorando, porque não vira Aonia ao passar, que bem se pudera êle erguer. E como isto perdêra, cuidava tambem que havia de perder a tornada; porque um mal nunca lhe viera sem outro, pelo que estava no maior pranto do mundo para consigo.
«Entrada Aonia, deteve-se um pouco, e sentiu que êle chorava, e suspirava baixo, de maneira que como, n'aquilo, se forçava a si mesmo.
«Éla, para vêr se poderia saber o porquê, que tudo desejava saber d'êle, deteve-se ainda mais: mas êle com pensamentos muitos, que sobrevinham ao choro, mais o acrescentava do que o diminuia.
«Assentando-se então Aonia na borda d'aquela sua pobre cama, lhe pôs a mão, e quisera-lhe dizer alguma cousa, mas não pôde, que lhe faleceu o espirito.
«Virando-se Bimnarder, e vendo-a, tambem lhe faleceu o seu.
«Estiveram assim ambos um grande pedaço sem se dizerem nada um ao outro: e êle com os olhos postos em Aonia, e Aonia postos os seus no chão, porque, em se virando [142] Bimnarder, tomou vergonha. Levando-os assim á terra, cobriu-se-lhe o seu formoso rosto de um tanto de côr, alem da natural; e costumava dizer meu pae (porque parte d'esta historia em seu tempo se soubera) que não parecia senão que viera aquela côr como para ajudar ainda mais Aonia contra Bimnarder, tam formosa a éla, formosa, fizera.
«Mas, estando assim n'isto êles ambos, e não estando êles ambos ali, chegou Enis muito de rijo á porta, dizendo que se queriam já ir, e que a mandavam chamar.
«Assim, foi forçoso levantar-se Aonia, e ir-se, e Bimnarder vêr tudo, e ficar.
«Mas Aonia, que bem via os olhos de Bimnarder como ficavam, tomou uma manga de sua camisa, e, rompendo-a, para remedio de suas lagrimas lh'a deu, significando, na maneira só como lh'a deu o para que lh'a dava; pois parece que a dôr grande que sentia não lh'o deixou dizer por palavras; mas, em lh'a dando, pôs os olhos nos seus, dizendo-lhe só assim:
«—Pesa-me, pois a minha ventura, ou desventura, não quis que vos eu deixasse de magoar com o que eu não quisera.»
«E estas palavras lhe disse já fóra da porta. [143]
«E com élas, e com o que sentiu ao dizer d'élas, duas a duas, lhe começaram as lagrimas a correr dos seus formosos olhos, e pelas suas faces formosas abaixo lhe iam fazendo carreiras por onde iam, que Bimnarder a tanto pranto convidou quanto era a razão d'êle, pois perdia a vista.
«Foi tanto o choro, que não lhe bastavam os seus olhos ás suas lagrimas, pelo que lhe não pôde então dizer nada. Mas Enis, apressando Aonia com a fala, e com as mãos, quasi puxando-a, e levando-a já, virou-se para êle Aonia, dizendo:
—«Levam-me!»
«E, deixando-se ficar toda com os olhos, se foi assim, enlevada, até que, com a parede das outras casas, passou alem.
«Apartada que éla foi de Bimnarder, êle não se pôde ter que pela outra banda da sua casa se não saisse para aquela parte d'onde se podia ver o caminho que élas levavam; e ali esteve olhando, entretanto a terra lhes deu lugar, e depois, um grande pedaço, em quanto poderiam bem chegar a casa; pois, parece, folgam tambem os olhos com a presunção, e descansam em olhar para aquela parte onde está, ou vae, aquilo que podiam ver, se não fôra a fraqueza [144] d'êles, ou o impedimento d'alguma cousa.
«Mas como lhe pareceu que estaria já em casa, lembrou-se logo do lugar onde éla estivera na sua cama assentada, e com grande pressa se tornou para lá.
«E, entrando, foi-se ali pôr, onde éla estivera d'antes.
«Consigo estava fantasiando a Aonia; ora lembrando-lhe como aquilo fizera, ora como aquel'outro.
«Depois, tomando aquela parte da manga, que lhe deixára, se punha a chorar com éla, de mistura com palavras tristes, como que as houvesse éla de entender.
«N'isto passou aquela doença, em que grandemente foi visitado por Enis; e sarou depressa.
«E, d'aqui até que lhe aconteceu a desventura que vos contarei, se passaram tempos e outras infindas cousas; porque os paços de Lamentor acabaram-se, e pelo apartamento do lugar onde êles estavam, Aonia e a ama, com outras mulheres de casa, iam passar tempo á ribeira d'este rio, onde Bimnarder sempre andava.
«Mas nenhuma cousa ha n'este mundo em que se deva ninguem muito fiar; que aquela [145] grande segurança em que Bimnarder estava, em lugar tam ermo, lhe não pôde durar, como agora vereis.» [146]
«E foi assim que a donzela, por quem morreu o cavaleiro da ponte, (como vos hei contado) veio tristemente a acabar por aso da irman viuva que o levou nas andas.
«E sucedeu no castelo um filho de um cavaleiro muito valido e rico n'esta terra, que, por meio de visinhos, desejou a Aonia para mulher, o que foi depressa acabado, pela igualdade d'ambos n'aquilo em que a quiseram aqueles em que estava o « praz-me » do casamento.
«Mas, pelo luto de Lamentor, e pelo apartamento de sua vida, não o soube Aonia senão no dia antecedente áquele em que a [147] haviam de levar para o castelo,—que em sua casa não queria Lamentor ver prazeres, e bem lhe pareceu que se não desconcertaria Aonia do esposo; porque era bem posto cavaleiro, e, dos bens do mundo, abastado; e por isso tambem escusava dizer-lh'o então. Mas não foi assim; que Aonia toda aquela noite passou em um grito.
«Se não fôra Enis, que do seu segredo era sabedora, morrêra ou se fôra por esse mundo; mas éla a consolou, e, com muitas esperanças que lhe deu, não tam sómente a susteve, que não fizesse de si nada, mas antes ainda lhe fez ser contente d'aquela vida e desejá-la; porque lhe dizia que, como os casamentos ocupavam aos homens, poderia éla ter a liberdade que quisesse; e, com resguardo, faria o que de sua vontade fosse, o que não poderia fazer na casa onde estava.
«Este conselho foi tomado sem Bimnarder saber, porque a brevidade do tempo não deu lugar para isso; mas concertaram-se ambas que ficasse Enis para lh'o dizer ao outro dia, e, depois, mandaria por éla, porque logo determinou pedi-la a Lamentor.
«E veio aquele outro dia; e, como Bimnarder não guardasse outro gado, ainda bem não era manhan, já êle andava pela ribeira [148] d'este rio; e viu vir muita gente a cavalo, e passar a ponte dirigindo-se para os paços de Lamentor.
«Mas não teve então a quem preguntar o que seria aquilo.
«Comtudo, não se tirou d'ali, porque logo se lhe revolveu o pensamento, e inclinou a vontade a querê-lo saber; que, pela maior parte, o que ha de ser, dá primeiro sempre na alma; e se andassemos de sobre-aviso facilmente entenderiamos tudo, ou parte, do que nos está para vir.» [149]
«Descidos os de cavalo, estiveram por grande espaço com Lamentor; e, depois, começaram saindo uns atraz dos outros, fazendo maneiras de prazer.
«E, n'isto, viu Bimnarder donas a cavalo, e viu o fio da gente encaminhar-se para a ponte; pelo que teve ensejo de preguntar a um pagem que cousa era aquela.
«Disse-lh'o êle, seguindo seu caminho; mas Bimnarder não o acabou de crer, tamanho abalo fez no seu cuidado.
«Porém, olhando, viu a Aonia, e com éla, da parte esquerda, o seu esposo, que conhecido ia nos trajos e na comunicação da pratica que entre ambos levavam; porque tudo, [150] como derradeira cousa, olhava Bimnarder, e muito bem viu!
«E Aonia nunca se virou para aquela sua banda, que continuada sempre d'éla era; mas antes, porque ia inclinada para aquela parte onde o esposo ia, pareceu-lhe a êle que o ia muito mais do que éla ainda ia, e que o fazia por acinte. E isto é natural, pois quando uma pessoa vos cae n'um erro, todas as cousas, que depois faz, tomais á pior parte, como aqui aconteceu.
«Ficou Bimnarder tam maguado que d'ahi a mais de uma hora não cuidou de nada. E, ao cabo d'éla, virando-se para outra parte, se foi; e não no viram mais.
«N'aquele dia á tarde, veio Enis buscá-lo; e, não no achando, preguntou por êle; e disse-lhe outro pastor (que por acaso acertára então de estar perto d'êle, olhando tambem a gente) que, depois d'éla passada, estivera êle um grande pedaço sem se mudar do lugar d'onde estava e sem tirar os olhos do chão, como homem pensativo, em sua maneira. E tanto que êle mesmo olhára para isso, e quisera-lhe falar, senão quando êle, n'isto, virára para outro lado, e, pela ribeira, dando a andar apressadamente, desaparecêra, e nunca mais o vira. E já êle mesmo [151] fôra ao monte de seu amo preguntar por êle, para que viesse pastorear seu gado, que andava desmandado, e não o acharam; e que, do monte, tambem o foram buscar por todo este mato, e pareceu a todos que seria ido, porque êle nunca tal costumou; e já outrem andava com o seu gado.
«Ficou Enis toda fóra de si; e logo cuidou que lhe não cumpria ir ver Aonia, nem viver com éla, pois saira tam mal o seu conselho.
«E, tornada para casa, ordenou dilatar a sua ida por alguns dias, para ver se sabia novas de Bimnarder.
«Entretanto, não sabendo nenhumas, e apressando-a Aonia para que lh'as levasse, determinou, comtudo, ir; porque, por outra via, cuidou para consigo que com pouco trabalho se lhe tiraria por então Bimnarder do pensamento; que os casamentos, á primeira vista, parecem outra cousa; e senhoras, que d'antes foram presas de amor, logo aos primeiros dias esqueceram todo o passado; mas depois, por cousas e desgostos, que nascem da culpa do longo tempo, ou conversação que traz menospreso, tornaram muitas vezes ás lembranças do primeiro.
«Porque n'isto, que Enis consigo cuidou, [152] quis obedecer a Lamentor, que já, a pedido de Aonia, mandava que a levassem.
«Que vos hei de dizer?
«Ainda bem não chegavam, afastou-se Aonia com éla, mas, sabido o que se passava, chorou muitas lagrimas e maldisse o dia em que nascera.
«Enis, que era avisada, e via que, pois o mal não se podia curar, se devia dilatar, lhe fez uma fala d'esta maneira:
—«Deixemos, senhora, o pranto, que d'êle não se vos podem seguir senão dous males muito grandes. Um, é que mataes a vós com o choro; e quando, porventura, vier Bimnarder, não vos quereria achar assim, e será esta então maior ofensa para êle; porque est'outra tem desculpa, e esta não a terá para êle, senão se lhe quiserdes dizer que desconfiaveis d'êle, que monta tanto como cuidardes d'êle mal. Ora vede lá, senhora, convosco, se podereis dar a culpa a quem quereis tamanho bem! Pois, afóra isto, tendes ainda outro mal: que correis risco de se saberem vossos prantos, e, como êles sejam tomados em tempo de bodas, não se poderá deixar de suspeitar d'eles mal. E, por aqui, tolher-se-vos-á, porventura, o que póde ser em algum tempo, o que eu espero; porque [153] as lagrimas de Bimnarder não podiam ser sem vos êle querer muito grande bem, que lhe não doesse muito o que fizestes; e não lhe póde doer muito o que fizestes que, n'algum tempo, não queira saber o como ou porque o fizestes;—porque o bem-querer grande faz sentir muito os escandalos recebidos, e crê-los em parte, quanto baste para o sentimento ser maior do que póde ser. Mas, porém, sempre deixa uma duvida lá na crença, para experimentar n'algum tempo, tarde ou cedo, segundo a dôr grande ou pequena lhe dá lugar. Não póde ser que aquilo que vós, senhora, sabeis, não faça duvidar Bimnarder do que fizestes, até se êle desenganar por si mesmo. Ou, se isto não é assim, não ha verdade no mundo nem nos homens!» [154]
«Estas palavras desagastaram a senhora Aonia algum pouco, mas não de todo; que, na verdade, se a deixaram estar só, e ter tempo para perseverar n'este cuidado, não creio eu que éla pudera durar muito.
«Mas era esposada de então, e umas cousas e outras não na deixavam nunca só; espalhavam-se os cuidados.
«Assim, éla, pouco a pouco, foi-se acostumando a viver d'outra maneira; que as ocupações de casa, e a desconfiança, ou desesperança, que foi tendo de Bimnarder, lhe fizeram indo ter nas cousas passadas uma sombra de esquecimento, com que éla pudera [155] viver todas as horas da sua vida descansada ou menos cansada, se em alguma cousa d'este mundo houvera segurança.
«Mas não na ha; que mudança possue tudo!...» [156]
Capitulo I —Em que a donzela começa a sua historia | 9 |
Capitulo II —Em que a donzela vae prosseguindo sua historia | 15 |
Capitulo III —Da conta que a dona dá á donzela de sua vinda áquela terra | 27 |
Capitulo IV —Das palavras que a dona com a donzela passou | 35 |
Capitulo V —Do que Lamentor passou n'aquela parte onde foi aportar com a sua nau, e da batalha que teve com o cavaleiro da ponte, e do que mais lhe sucedeu | 38 |
Capitulo VI —Em que se diz a razão por que o cavaleiro da ponte sustinha aquele passo, e de como sua irman ali veio ter | 46 |
Capitulo VII —Como, depois de partida a irman do cavaleiro da ponte, por aprazer aquele lugar a Lamentor, ordenára fazer ali seu assento | 54 |
Capitulo VIII —De como a Belisa vieram em crescimento as dôres do parto, e, parindo uma criança, faleceu | 57 |
Capitulo IX —Do pranto que Aonia fez pela morte de sua irman Belisa | 62 |
Capitulo X —De como Narbindel, vindo combater com o cavaleiro da ponte, vendo o pranto que se fazia na tenda de Lamentor, entrou dentro para o consolar | 66 |
Capitulo XI —De como se deu sepultura ao corpo de Belisa, e do pranto que com êle fez Lamentor | 69 |
Capitulo XII —Do que sucedeu ao cavaleiro, que saiu da tenda, vencido do parecer e formosura da senhora Aonia | 74 |
Capitulo XIII —Em que se diz quem fosse Cruelcia, e do que o cavaleiro passou com seu escudeiro | 76 |
Capitulo XIV —De como, partido o escudeiro do cavaleiro da tenda, entrou em pensamentos de como se apartaria d'êle, e mudaria o nome | 80 |
Capitulo XV —De como Bimnarder soube de um servidor de Lamentor que este ordenava fazer ali uns paços, e do mais que lhe aconteceu com a sombra que lhe apareceu | 82 |
Capitulo XVI —De como, estando Bimnarder muito pensativo no que faria, viu de subito vir o seu cavalo fugindo d'uns lobos que o queriam matar | 85 |
Capitulo XVII —De como Bimnarder assentou vivenda com o maioral do gado, e do que a donzela passou com a dona em sua historia | 92 |
Capitulo XVIII —Em que a ama dá razão á donzela da cantiga de Bimnarder | 100 |
Capitulo XIX —De como conta a ama á senhora Aonia o que vira fazer ao pastor, acabada a cantiga | 104 |
Capitulo XX —Da peleja que o touro do pastor teve com outro alheio, e de como o matou, a qual Aonia estava vendo do eirado | 108 |
Capitulo XXI —De que maneira Bimnarder se viu com Aonia | 115 |
Capitulo XXII —De como Bimnarder, estando na fresta da camara de Aonia, se pôs devagar a ouvir a ama | 121 |
Capitulo XXIII —Do singular conselho que deu a ama á senhora Aonia, pelo que suspeitou de seus amores | 123 |
Capitulo XXIV —Em que se conta o mais que a ama passou com a senhora Aonia, ácerca de Bimnarder | 128 |
Capitulo XXV —De como Bimnarder, pela fresta do aposento de Aonia, lhe falou | 132 |
Capitulo XXVI —De como Bimnarder, estando na fresta de Aonia, adormeceu, e se lhe foram, por sonho, os pés, e caiu | 135 |
Capitulo XXVII —De como a ama, sentindo de noite o estrondo da queda, o que sobre isso fez quando foi manhan | 137 |
Capitulo XXVIII —De como, estando da queda Bimnarder muito doente, Aonia buscou maneira por onde o fosse visitar | 140 |
Capitulo XXIX —De como Lamentor casou Aonia com o filho d'um cavaleiro comarcão, e do que Enis aconselhou a Aonia que fizesse | 146 |
Capitulo XXX —De como Fileno, o marido de Aonia, desejoso de a ter em seu poder, a levou de casa de Lamentor muito acompanhada | 149 |
Capitulo XXXI —Em que se diz da grande dôr que sentiu Aonia em seu casamento | 154 |
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Viagem do castello . $10
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O Rosquedo (2.ª edição) 1 vol. $20
Juramento sagrado , 1 vol. $20
Ares do Minho , 1 vol. $20
Flores do mal , de Baudelaire, 1 vol. $70
Bernardim Ribeiro (o poeta Crisfal). $80
Theofilo Braga e a lenda do Crisfal . $50
« A viagem por terra » do sr. João Penha. $10
Augusto Gil
Gente de palmo e meio 1 vol. $40
NO PRÉLO:
O canto da cigarra .
Carlos Ferreira
Os alemães na Belgica , A inviolabilidade e neutralidade da Belgica e o direito das gentes perante a Convenção da Haya ou os crimes da Alemanha na Belgica , 1 vol. com capa ilustrada. $50
Historia Ilustrada da Grande Guerra , cada volume. $30
PUBLICADOS 9 VOLUMES