The Project Gutenberg eBook of Rogações de Eremita

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Title : Rogações de Eremita

Author : Jaime de Magalhães Lima

Release date : September 1, 2009 [eBook #29884]
Most recently updated: January 5, 2021

Language : Portuguese

Credits : Produced by Pedro Saborano

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROGAÇÕES DE EREMITA ***

  

JAIME DE MAGALHÃES LIMA

Rogações de Eremita

CASA EDITORA
DE
A. FIGUEIRINHAS
PORTO

Empresa Gráfica "A Universal".—Porto.

HOMENAGEM DO EDITOR

Rogações de Eremita

Composição e impressão

Empresa Gráfica «A UNIVERSAL»

—Rua Duque de Loulé, 111—Porto.—

Jaime de Magalhães Lima

Rogações
de Eremita

CASA EDITORA de A. FIGUEIRINHAS

Deposito geral:
Livraria Portuense de Lopes & C.ª—Suc.
119, Rua do Almada, 123—Porto.

{5}

No ermo que eu percorro neste mundo,—ermo de corações cativos dos meus sonhos—ao suplicar dos céus a claridade na qual a alma habite e se engrandeça, deixei na terra gotas do meu sangue, onde a dor o soltou do peito ansiado por abundância de erros e de culpas e por amargura de infinitas mágoas, e onde jorrou seus cantos de alegria em louvor e contemplação da beleza eterna.

E, como assim vulnerável tenha sido, misteriosa comunhão uniu-me àqueles, solitários e crentes, que na cruz da aspiração também sofreram. Muitas vezes me guiou o rasto estranho, se porventura o vi ensanguentado de sangue igual ao meu pela paixão que o derramou em oferenda a altares de amor. São rogações de todos esses passos as que neste livro traduzi e confesso para quem no mesmo error se houver perdido ou se tiver remido em iguais enlevos. {6} {7}

ROSAS DO MEU CAMINHO

I

Parei no meu caminho a colher rosas. No doce esplendor da sua gloria, brotavam purpurinas entre o cômoro renovado no viço pelo outono. E o sol brando que vinha do nascente, e a palidez do céu já esmorecido do seu fulgor candente do Estio, e a atmosfera quieta e orvalhada, e o silencio do campo onde desponta o prado que no inverno o cobre e é a sua túnica,—cantavam com as rosas a doçura e em minha alma infundiam subtilmente os salutares enlêvos dos seus sonhos.

Acordou-me de encantos a pobreza. Alguém, passando, me estendeu a mão, mirrada e pálida de fadiga e fome. Ouvi um brando murmurar de suplica; e o coração turvado de piedade transmudou em misericórdia o seu deleite. Um resplendor mais alto escurecera a cintilação da terra em seu fulgor.

Levei comigo as rosas que colhi, para me alentarem de um sorrir ingénuo meu peito ferido na {8} jornada agreste em que dolorosamente se consome sangrando magoado de perversidade, de ódios, de mentira, de quanto avilta os homens desvairando-os nos seus cruéis infernos de cobiças. Mas sempre que senti a rosa bafejar-me, senti perpassar também vozes mendigas. Por singular magia, confundi em uma só aspiração e um só amor as rosas e a pobreza.

II

Senhor! No meu caminho entretecei as rosas na pobreza, para que, adorando em extasi vosso encanto, eu adore também as vossas dores e o meu peito comungue da miséria! Que todo o meu coração se enleie e prenda nas grinaldas, Senhor, com que coroais de espinhos e de rosas vossos servos; e que, enquanto sentir deleite infindo na doçura que sobre a terra semeastes, eu vos seja fiel inteiramente sentindo ao mesmo tempo e em igual fervor toda a infinita agrura da desgraça. {9}

AS TAÇAS DO BANQUETE

I

No banquete da vida em que o destino me deu lugar onde os prazeres abundam e os regalos são o pão quotidiano, provei das suas taças mais queridas e vi meus companheiros de igual sorte ora erguidos na sua embriaguez ora prostrados pelos seus travores.

Riquezas, ambições, paixões, gloria, amor, as taças mais cobiçadas do banquete, a todas eu senti o seu sabor, todas vi disputadas com ardor e todas continham gotas de amargura, os traiçoeiros bens das alegrias cedo mudadas em desengano e dor.

Vi a riqueza inútil perante a morte, assistindo impotente à corrupção do corpo que no seu ser trazia os filtros de fatal caducidade inexorável. Vi ambições gerando em seus triunfos ambições maiores ainda, insaciáveis, de contínuo torturando suas vitimas, de degrau em degrau as elevando até que do mais alto as precipitam no torvo abismo das {10} desilusões. Vi as paixões mirrando-se exauridas, em vergonha, em remorso e inanidade, o orgulho aviltado nas fraquezas; vi a gloria a desfazer-se em fumo e apedrejando hoje por infames os que ontem beijara por heróis e em seus altares pusera como deuses. Vi transmudar-se amor numa mentira, a sua fé perjura na traição; vi a ternura magoada em lágrimas. E até a própria humildade, desprendida dos enganos do mundo, a mais pura das taças que anjos bons dos céus trazem à terra para remir quantos na terra penam suas penas, até a própria humildade eu vi chorar porque, salvando os bem-aventurados em cujo coração habita e resplandece, não lhes pôde poupar a compaixão de quantos desfalecem no martírio, pois, desventurados, não partilham das bênçãos da alegria no Senhor, naquela conformidade austera e santa que é a nossa redenção suprema e única.

II

Senhor! Sê piedoso! Socorram-me os teus anjos. Reanimem-me em cálices de vida; humedeçam-me os lábios na tua paz; iluminem-me o mundo na tua luz.

Afasta dos meus passos esse espectro que me enegrece de terrores as noites, essa sombra de gélidas {11} vigílias que me murmura o desespero e a dúvida, e, rindo dos meus sonhos piedosos, repete escarnecendo cruelmente:

Doçura! louco, só na morte a encontras! {12} {13}

A DOR E A VIDA

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descançou afinal meu coração.
A NTERO DE Q UENTAL .

I

Turvou-se de amargura a alma do poeta quando, sentindo o vento do outono anunciar tormenta e escuridão, viu as aves felizes, cautelosas, abandonarem campos e florestas e partirem velozes à procura de terras sorridentes, animadas pelos carinhos tépidos do sol.

Já não tardava a cerração das neves, mortalha e sepultura dessas vidas que ao poeta exaltavam o espírito e o corpo, pelo rumor, verduras e perfume, pela graça, pela força e pela opulência, pelo florir de impulsos da sua seiva.

Vai a esconder-se tudo o que o inspira. A esperança do peregrino desfalece à mingua do sustento e do conforto sorvido a jorros no calor do Estio, incensado de aromas e reflectindo os delírios da cor pulverizada. Onde irá saciar a sede ardente de intenso resplendor que lhe alimente as cobiças {14} profundas do seu ser? Porque foi acorrentado à imobilidade, porque não foge, como a ave foge, àquilo que o oprime e o ameaça? Porque não lhe foi dada a asa vibrante que percorresse espaços infinitos, de céu em céu, sem nunca se afastar dum translucido puríssimo azul? Que culpa lhe forjou essas cadeias que sujeitaram o mísero forçado a rastejar exposto à contingência das estações altivas, sem piedade, queimando sob o sol canicular, sufocando nos gelos a expansão, inflexíveis, mudas, ignorando o desejo dos homens e as suas mágoas, para prosseguirem no combate austero da suprema beleza que sonharam? Porque, liberta, a ave se eximiu a padecer igual escravidão?!...

Sucumbido, cismando tristemente, ao escutar o sibilante agoiro da tormenta, vendo o bando das aves em demanda de benignas terras generosas que aos seus amores lhes dessem agasalho e em doçura fecunda fossem pátria aos ninhos embalados pelo canto de pequeninos peitos ansiados, o poeta chorou a sorte negra que o entregava às penas do inverno.

II

E dentre brumas frias, apressando precocemente a noite de Novembro, veio beija-lo cândida {15} e singela, na palidez etérea que é o seu manto, a Dor, a companheira do poeta.

E disse:

—«Nunca ninguém te amou como eu te amei! Nunca ninguém te deu ao coração inquieto mais alto arrojo e mais sagrado êxtase. Só por mim alcançaste renascer naquele renascimento do Apostolo em que o sangue se isenta de veneno e se converte em filtro do amor. Quantas rosas colheste no caminho, quanto perfume te turvou os sentidos, visões do paraíso, toda a atracção, toda a harmonia, todo o laço, felicidade, risos e ternuras, tudo para ti foi breve e se afogou nos abismos mortais donde surgira, abandonando-te errante, ao desamparo, no louco vaguear do coração. Só por mim fez sacrário no teu seio, numa aurora perene, sem poente, esse facho de ardor que te consome e é a suprema gloria, a eternidade.

«E sabes, meu irmão e meu amigo, que o silêncio é o levita nosso eleito cuja bênção nos liga e arrebata; e os altares em que oramos são sombrios, duma sombra celeste, benfazeja, tal qual, no inverno, essa outra sombra que por erro temeste e será sempre confessionário e templo da minha alma.

«Nunca ninguém te amou como eu te amei!... Deixa que a ave siga no seu rumo, em busca de ilusões da vida efémera. Une-te a mim e, desprendido então de quanto foge e passa na incerteza, {16} redimido em meu peito hás-de subir à divina presença do Senhor!»

Libertado, o poeta ergueu-se ouvindo a Dor.

Por sua vez beijou a mensageira.

—«Bendita sejas!» disse.

E nesse instante passou na treva estranho clarão.

III

Segue a sua jornada paciente o poeta cuja fronte a Dor beijou. A macerada face da visão jamais se apaga nos seus doces olhos, humildemente isentos de desanimo, suavemente escravos dum poder que sem cessar o fortalece e ampara nas provações mais ásperas do mundo.

Onde uma aspiração palpita e cresce, palpita e cresce a dor que a atormenta e nega, ou seja um gérmen que gelou na terra, ingrata e fria, surda ao seu anseio ou seja um coração crucificado do seu amor traído e profanado.

Sentiu o poeta a Dor nas rosas que decaem; sentiu sofrer os astros que desmaiam no frio alvor de brancas madrugadas. Na haste quebrada entre iras das rajadas, na inquietação das águas despenhando-se, nos alcantis rasgados pelas neves, na criança a que o soluço corta o riso, no peito ferido por paixões humanas, onde quer que o destino {17} cegamente castigue, mortifique e desengane, onde quer que proíba ou estrangule um arrojo, um impulso, uma vontade, ou desfaça os rochedos na mudez dos seus combates loucos da montanha, ou escarneça a suplica do mísero, redobrando de ardor em atormentá-lo—a Dor foi companheira do poeta, no seu seio chorou divinas lágrimas, em seus braços buscou acolhimento.

Foi assim que o poeta amou a Dor. Foi assim que, curvado, ela o levou a ungir de piedade as agonias de todo o ser que os olhos contemplassem caído em desventura ou malfadado. Fielmente a adorou no seu mistério! Fielmente a serviu nos seus mandados!

IV

Exangue do pungir da Dor que nunca o abandona, ou na solidão dos montes o encontre ou, perdido, vagueie entre o tumulto das multidões humanas desvairadas, o poeta parou no seu caminho e contemplando a serrania e o prado que a seus pés se alargavam repousados em sereno esplendor, deixou cerrar seus olhos deslumbrados e adormeceu, dormindo o torpor magoado dos vencidos.

Cantava o sol o «cântico» do Santo, o ressurgir de toda a criação resgatada para a terra e para os {18} céus em um só Deus. Cantava os seus louvores ao «altíssimo, omnipotente, bom Senhor», a quem «toda a honra e bênção são devidas». Por todas as criaturas o louvava! Por sua própria luz que o iluminava; pela «irmã lua» que no firmamento tão «preciosa e bela» se formara; pelo «irmão vento e pelo ar e pela nuvem e todo o tempo» no qual as criaturas têm sustento; pela «irmã água» que é «humilde e casta», e também pelo «irmão fogo corajoso, e por nossa mãe a terra e por seus frutos, e pela «irmã morte» que à sua paz nos arrebata.

Desusada carícia o seduziu; ignorada ternura o fascinou! Gloriosa visão despertou o poeta e, beijando-o, o exalta naquela divina luz que em torno ela espargia.

E disse-lhe a visão:

«Desterrado da ventura que com o sangue marcaste o teu caminho e em cada passo feriste o teu coração! Onde um espinho te rasgar a carne, o perfume das rosas a embalsama. Onde o vento derruba a floresta, exultaram renovos na verdura. Onde o ódio, a mentira e o desespero te entenebrecem de terror e dúvida, a bondade e a fé virão salvar-te em sua luz bendita. Onde cai uma lágrima, a mão de Deus a enxuga. Ergue os teus olhos! Beija a minha fronte! Aviventa teu ser mortificado na salutar candura que me alenta!

E dos lábios vermelhos transfundindo a alegria {19} e a vida e a exaltação em lábios pálidos de sofrer e mágoas, enlevado seu peito em caridade e possuído de doçura infinda, a visão benfazeja do poeta restituiu à terra e seus paraísos, à luz do sol e a quanto ele ilumina, aquele que à Dor votara todo o ser e só a Dor servia sequestrado desse supremo amor que na bondade se libertou de toda a contingência.

V

Tal qual o poeta que a Dor e a Vida, vossos mensageiros, encaminharam, Senhor, à vossa presença, mandai-me, a mim também, os vossos sonhos, visitem-me as visões do vosso reino, para que me guardem e guiem e me conduzam, para na Vida me exaltar convosco e para na Dor sofrer as vossas penas, «na mão de Deus, na sua mão direita, descansando afinal meu coração!» {20} {21}

MAIS FORTE QUE O MAR

I

Sonhei que o peregrino ao apartar-se dos lugares em que amara e fora amado no benigno lar onde abrigara o corpo enfermo e o coração sequioso de carinho, afectos e de graças, passou ondas do mar escuro e turvo, e ao passá-las deixou nas vagas fundas um sulco ténue, vermelho, coruscante entre o negrume da cerração ambiente.

Longos anos, por séculos infindos, na esteira do peregrino o mar cavou suas iradas vagas espumantes de espumas alvas, claras, diamantinas; e iluminaram-nas pálidos luares; e a tempestade atroz escureceu-as; e pairaram sobre elas sorridentes as primaveras brandas incitando toda a terra a renascer em alegria.

Em vão, em vão! Bafejo algum dos astros, ou propício trouxesse a exaltação da vida triunfante, ou inclemente derramasse a dor, jamais pôde apagar esse sulco vermelho sobre o mar que ali deixara {22} o peregrino ferido. Mais forte que as ondas, a saudade traçou nas águas lúgubre derrota. Em vão os poderes da terra as agitaram provocando-lhes a fúria temerosa! Em vão as repousaram em cristalina calma suavíssima! Em vão ali passaram combatendo seus raivosos combates os titãs! Em vão tentaram afundar na voragem aquele sangue que do coração brotara por saudade!

Em séculos infindos, para sempre, esse rasto de angústia ali ficou.

II

Senhor! Se misericórdia vos merece a fé de quem no amor espera a salvação e lhe confia a vida miseranda, erguendo-a dos seus erros para a remir na consagração ao ser que é a vossa própria essência, a essa etérea bondade omnipotente que a Deus vos une e nele vos confunde, concedei-me, Senhor, aquela bênção que ao peregrino ferido concedeste, permitindo-lhe a graça de traçar nas ondas com o seu sangue a dor pungente, esvaindo-se em puríssima saudade. Onde quer que o destino o dilacere, onde quer que, infeliz ou louco, se atormente, que o meu coração desmaie por saudade, que por saudade verta todo o sangue, que em saudade amortalhe os seus anseios!...

Mais pura exaltação não conheceu! Mais próximo de ti jamais se sente! {23}

HUMILHAÇÃO

I

Vi sair da prisão o criminoso e encaminhar-se ao lobrego covil onde deixara a companheira e os filhos a estorcer-se de fome nos andrajos. Macilento, esquálido, trémulo nos passos, espectro erguido duma sepultura, atravessa a cidade entre inimigos. A aversão, o desprezo e o desamparo são o seu cortejo e com horror o escoltam; tomando por pureza a inanidade, arrogantes se afastam a tremer de macular o orgulho na miséria dum corpo pestilento de seus erros.

Nem os filhos nem a companheira se atrevem a sair do seu tugúrio para beijar o mísero e o proscrito que volta a consumir-se na desgraça, na treva da embriaguez em que se afoita para a sinistra aventura dos seus crimes.

De súbito, quebrou-se o trágico silencio. Um grito de alegria ecoa nas choupanas. Saltando da morada um cão exulta em seu bradar duma ferina {24} ânsia; e louco de carinho afaga o homem que outros homens maldizem, como se esse não fosse o filho infeliz da mesma podridão que a todos gera e por igual corrompe.

Estranha aberração! Cruel estigma! Humilhação fatal dum ente eleito em que Deus fez morada e se revela!... Coube a um cão parasita dos monturos a ternura generosa, esse perdão que os homens atraiçoam negando a piedade ao criminoso, não sabendo sorrir à sua face e tendo por dignidade a cobardia que os privou de ver irmãos, os seus iguais, em quantos seres a criação produz, para que o nosso coração todos confunda numa só luz de amor e de bondade.

II

Senhor! Porque me roubas, a mim a quem mandaste o teu Espírito para eu sentir claramente o teu império, a quem tu deste um coração ardente para abrigar-te e a voz para louvar teu nome e o repetir,—porque me roubas aquele ingénuo anseio de indulgencia, esse perdão tecido de caricias com que dotaste inconscientes servos, obreiros mudos da tua vontade?!... Porque, Senhor, me privas desse bem de esquecer toda a injuria, todo o mal, e de cobrir de afectos todo o crime e em carinhos dissipar sua lembrança?!... {25}

Isenta-me, Senhor, desse tormento da consciência algoz que até perdoando volta a julgar os homens e os condena! Pois que lhe deste entrada no meu peito, salvai-a do martírio em que adorando-te te veja distinguindo nos homens bem e mal em vez de os confundir no teu sagrado amor omnisciente. {26} {27}

BÊNÇÃO DO POENTE

I

Foi calmo o dia. A rosa húmida, que desabrochando saudou no descerrar do seio a madrugada, prateou ao sol as cetinosas pétalas sem que a brisa lhe ferisse a formosura; e o vento adormecido nos seus antros, vencido por estranha letargia, inerte e mudo não blasfemou suas ímpias cóleras contra o ardor do sol. Os milheirais tardios e o medronheiro, tão lento no crescer como moroso no arrastado fabricar da sua doçura, sazonaram seus frutos generosos na paz dessa propícia quietação. Ao redor do casal, ao cimo da encosta onde o horizonte é largo e os céus são amplos, esvai-se na calmaria toda a forma, agora que o sol perdido ao poente se escondeu para lá da cerração austera dos pinhais. Descoram as urzes roxas na charneca, não mais lobrigo a ténue palidez da flor da estêva, já não distingo no silvado o aderno: tudo o crepúsculo vem tingindo em sombras. {28}

Ao longe, os montes altos da serrania e o manto das florestas nas quebradas e os campos verdes à beira dos regatos e os pomares e os vinhedos e as aldeias e a inquietação da água nas jornadas, eterna aventureira,—todos vão a dissolver-se nessa neblina, duma inundante alvura caprichosa, caótica, erradia, absorvente e mansa na avidez, como afagando o mundo e resumindo-o em um só sonho incerto, indefinível.

Olho, e nem um tremor diviso em todo o ambiente. Escuto, e nem um rumor pressinto próximo ou distante. Por sua calmaria a atmosfera adormeceu a vida em serenidade, e quantas divindades a interpretam e a regulam e a movem em seu anseio, desde a arrogância da montanha austera até à pequenez da célula mais ínfima, consagraram juntas numa paz divina a trégua religiosa de seus feitos, talvez a consciência da inanidade final de todo o esforço, porventura uma dúvida, uma céptica interrogação dos seus destinos, senão o antegozo da morte experimentada em passageiro cessar das energias.

Porque, não o sei nem jamais, pobre enfermo arrastado em vale de lágrimas, o poderei saber; pois a fraqueza é o nosso eterno anátema, é irrevogável maldição do orgulho. Mas na olímpica mansidão desse crepúsculo em que a vastidão da terra adormeceu sorridente e benigna, alguém, ser de bondade, um alado eco fugitivo, um murmúrio {29} de esperança, me segreda a confiança e a fé, robusta crença na libertação final de toda a angústia, na fatal paralisia dos tumultos da nossa alma e do mundo, tarde ou cedo remidos, confundidos em amorosa quietação de penas, amortalhados em mortalha branca como esta que eu vi crepuscular, vestindo em alva neblina a terra e os astros.

II

Então, comovido e grato, reconhecendo a esmola que me alegrava o coração, quis dizer ao Senhor a minha prece, quis confessar-lhe a exaltação da minha alma pela serena luz que ele acendia no meu peito turvado de combates. Loucamente balbuciei palavras loucas, e todas se perdiam apagadas! Tão alto e tão profundo o meu sentir, não souberam dizê-lo esses murmúrios frouxos e mortais de lábios débeis que mortais nasceram.

Cessou minha oração nesse momento. Pressenti sombras de orgulho, desvairado, na tentação de ver e penetrar a omnipotência de harmonia e ordem que é a razão de ser de quanto existe. E humildemente apenas repeti:

—Senhor! Senhor! Senhor!... {30} {31}

O SONO DO TRIGAL

I

Crepúsculo de Maio! O céu baixo e sombrio, revolvendo nuvens pesadas, violáceas, lentas, promete dentro em breve as chuvas tépidas, pelas quais a verdura espera e anseia, na cobiça de crescer e renovar-se.

As seivas abundantes, criadoras, na túrbida estação em que se elevam, a modelar os lírios e os salgueiros, latejam silenciosas; não as tenta a cantar o voo da brisa. Desde a cerração escura da floresta à humilde melancolia da campina, as legiões das frechas dos pinhais, a coma faustosa dos carvalhos, o arrelvado extenso em desafogo, livre de manchas das plantas altas, e o que se alarga na espessura umbrosa, todos repousam quietos e calados, pressentindo a visita salutar que dos céus lhes trará toda a opulência, a abençoar a terra de humidade, alimento e riqueza das ervagens, onde despontam frutos e sementes, e das vergônteas {32} frágeis, ainda tenras, em cuidados de robustecer-se, para suportarem calmas estivais.

E o trigal, como os irmãos, dorme também, se em temor ou na prece é o seu segredo!

Imóvel, na firmeza imperturbável dos fieis que crêem no Senhor e sem lamentos todo o destino aceitam por ser justo, a toda a sorte querem igualmente, em qualquer perfazendo obra de amor;—aquele que ao mais leve passar do vento respondia, cedendo fácil ao bulício alado das ondas repetidas sussurrantes, sempre agitado dum sonhar sem fim, em delírio incessante rumoroso, recordando carinhos e promessas da abastança e fortuna que concede aos casais bem providos do seu grão, esse mesmo trigal se sujeitou à extática mudez de todo o ambiente.

Já parece esquecido do inverno! Parece atraiçoar a aspiração de gerar em leite doce o pão dos míseros que por caridade santa ele sustenta.

II

Não te iludas, porém, oh Sonhador! tu que procuras ler, na contingência de impulsos vagos e caducas formas, a perene oferta do mover dos mundos à lei suprema do supremo amor. Não te engane o torpor em que o trigal se abandonou à {33} paz da atmosfera. Não cuides porque o vês assim submisso que deixou de elaborar fartas sementes.

De contínuo escutará vozes divinas, e há-de segui-las, destilando os sucos, que pela raiz beber na aspereza fria. Das entranhas do chão tira e semeia, constantemente, ou se mova ou pare, a rescendente esmola das doçuras com que suaviza a fome a quem trabalha e descerra em sorrisos de alegria, flores sanguíneas! os lábios das crianças.

Também passaste um dia ao pé do leito em que a mãe aquecia o filho ao seio. Não sentiste rumor que confessasse quanto afecto em silencio se derrama, transfundindo a quentura do sangue em outro sangue. E entretanto, fervorosa e muda, uma vida se consumia ali em outra vida.

Assim vi o trigal quando dormia, tal qual como em vigília, consagrando à paixão do seu ser inquebrantável aquele amor que é nosso alento e força. {34} {35}

TERRA LACRIMOSA

I

Conheci os cativos da vaidade, sorrindo, se por acaso conquistavam os ouropéis e fama e o espanto de multidões atónitas, turvadas, ignorantes cegas no caminho, que da desgraça nunca se libertam para banhar-se em luz de eternidade. Na vertigem do orgulho e da soberba, julgando erguer-se por entumecida inanidade, ao verem rastejantes a seus pés os aviltados míseros do mundo, passaram sobranceiros, desdenhosos; e porque, desvanecidos, contemplando-se, só da própria grandeza iam sonhando, sem baixarem seus olhos aos humildes, desconheceram a alegria, beleza e formosura que os pequeninos têm por seu quinhão.

Conheci o avaro entesourando, na obsessão de transformar em ouro a opressão, a fome e o martírio de quantos por astúcia ou pela força subjugasse. As riquezas cresciam, construindo a fortaleza em que, confiado e firme, seria poderoso {36} e invencível; e entretanto o seu corpo definhava nas penas da velhice, desditoso, como se a ordem cósmica dos astros castigasse, escarnecendo, as ambições.

Insaciados de domínio efémero, porque, efémero, mal se criou e logo se arruína, avaros, orgulhosos e soberbos morreram entre pompas clamorosas, envolto o seu cadáver corrompido nas vestes recamadas que o cobriam, quando ainda o sangue nele palpitava e cria deslumbrar túrbidas gentes, ocultando em bordados fulgurantes a carne de contínuo apodrecida no decair fatal do seu destino. E a terra de infinita misericórdia deixou cerrar na campa esse cadáver, sem que de luto se vestisse um ramo, sem que uma folha desmaiasse murcha, em lembrança ou saudade do amigo que a alentava e, estremecido, dela recebia recompensa de fadigas carinhosas.

Na morte desses loucos condenados ao pó estéril de estéreis sepulturas, entre a dureza fria dos bronzes e a rigidez do mármore impenetrável, as palavras dos homens lamentavam a ruína da grandeza mentirosa, tão cedo ali desfeita e aniquilada. Mas de tais lágrimas não partilha a terra. Indiferente ao rumor do falso pranto, não cessou de brilhar e de cantar. Nem um só veio de água emudeceu, perdido o murmurar da sua lida! Nem uma só flor do prado se estiolou à míngua de cuidado e de sustento! Nem um só átomo de fecundidade {37} se atrofiou em toda a criação! Aos cativos da vaidade e da avareza, perdoou-lhes a terra piedosa; mas não soube chorar quem, transviado, ingratamente a desamou, traindo amor materno, o leite gerador.

II

E conheci também o cavador, que para morada e leito de repouso, não encontrando um tecto hospitaleiro nos vilares, foi levantar a mísera cabana, de colmos de centeio e frágeis varas, no pousio comum inculto e virgem, despido, tosquiado de contínuo por ovelhas bravias, únicos gados que a gente pobre ali ia soltar, aproveitando esse pascigo escasso.

Rasgou a leiva dura, empedernida; lançou no pó sequioso a semente leve e todo o manancial de vida que ela encerra; e fez brotar a água das prisões em que a guardava o peso dos rochedos. A cavar, a regar e a semear, banhando sempre a terra com o suor do rosto, despertando-lhe a férvida energia com os arrancos heróicos do seu braço e o pulsar gigantesco do seu peito, o cavador criou verde abundância onde fora a infecunda e negra gândara, e tirou o pão e os frutos do chão áspero onde nem os silvados já medravam. {38}

Foram passados anos nessa faina. Ao fim, surgiu ali a mancha branca duma casita estreita, ávida de sol. A cabana alargou-se. Transformada, anunciou nos fumos da lareira o agasalho, o sustento e o tépido conforto dum benigno casal, servido e amado pela esposa do servo da gleba; e o embalar do berço acompanhou com o rumor alado duma esperança essa vitoria que em torno se espraiava, dilatando-se na infatigável ânsia de remir pela seara farta e latejante os longuíssimos tempos de indigência, a que a ingratidão humana, criminosa, abandonara aquelas pequenas geiras devastadas. Mais tarde, em horas negras, tenebrosas, as ambições e a guerra assoladoras vieram separar o cavador dos filhos que criou para companheiros, e um sinistro poder arremessara para longe, labutando dispersados. Escravos uns do rei e seus ministros, por seu mandado e força coagidos a ensanguentar o mundo, combatendo pelo ódio apaixonado e latrocínios em malditas pelejas mentirosas, que na suprema infâmia ousam sem pejo invocar o amor da pátria e atraiçoá-lo, foram-se a derramar a morte sobre os campos, que o Senhor nos ofereceu para a vida, e a prostrar atrozmente o nosso irmão, ao qual por lei divina só devemos afecto, protecção e piedade, o auxílio compassivo na desgraça e o sorrir de simpatia, quando a ventura ao passar o bafeja generosa. Outros, não mais felizes, seduzidos pela visão da cidade e seu engano, enfermos {39} das demências do tumulto, perderam-se entre os fumos da oficina, pela própria vontade escravizados dos lúgubres dragões que guardam o ouro e de contínuo o movem e entesouram, fundindo num só cadinho incandescente a fome e o ferro, minério bruto e corações humanos, lubrificando maquinas com lágrimas e fundando o palácio em sepulturas, pondo a brilhar em pedras preciosas, por alquimia da sua crueldade, as ossadas dos que apodreceram, transitando da pobreza à vala comum, sem algum dia terem experimentado a alegria, a abastança ou o desafogo.

Assim desamparado, entre ruínas do seu próprio sonho dissipado nas vagas da agonia como uma aparição de luz que apenas rompe e subitamente se esvai na tempestade, o cavador ficou-se a envelhecer, no silencio da gândara, amando todavia o seu casal e querendo sempre à terra, com a fé que à terra o consagrara submisso, quando pela primeira vez a fecundou e renovou no repetir das estações a verdura e o pão e a sombra e o refrigério, sem lamento ou desânimo, curvado a trabalhar, desde o romper da aurora ao cair da noite.

III

A terra que ele amou, amou-o também!...

Quando morreu, calaram-se no ermo os seixos que cantavam, rolando alegremente pela enxada; {40} murchou endurecido o prado à míngua do sustento que alimentava as ávidas raízes, entumecida a erva verdejante, quando, pelas madrugadas calmas do Estio, o cavador se erguia a socorrê-las, atento, diligente, cortando breve o sono, para que por sua culpa não sofressem as miríades de seres sob sua guarda, mudos para os demais mas eloquentes para quem lhes conhecia a aspiração. Não mais ao despontar da aurora respondeu o jorro da água límpida tirada entre o mover estrídulo das rodas pelo jugo robusto que a elevava da frescura dos poços obscuros à claridade rútila dos céus.

Foram essas as lágrimas que a terra, lacrimosa e viúva, chorou pelo criador humilde do seu viço,—aquela mesma terra desdenhosa que, indiferente, sepulta os orgulhosos, degenerados do seu culto e crença. {41}

CULTO DE QUIMERAS

I

Onde começam áridos incultos, que os gados, sem cessar, têm devastado,—quase ao cimo da encosta—, voltei-me a olhar o vale e os montes que o formavam, as aldeias perdidas nas ramagens, e os campanários que as protegiam. Não sei se fatigado, se encantado, por necessidade instante de repouso, cedendo a quebranto estranho, parei; e ao prazer de esforçado caminhar preferi essa delícia calma de contemplar.

E, quando atentei bem no turbilhão de seres que ao redor e a meus pés pulsavam o seu pulsar olímpico, indomável, infinito, eterno, achei-me enleado e preso em multidões de divindades, todas poderosas, que dos céus de claríssima gloria, e das profundezas infernais do orbe, e do frescor das sombras da floresta corriam a arrebatar-me no tropel em que cada qual se agita e é seu delírio.

Então, na turbação confusa de um neófito, converteu-se-me {42} a caverna em santuário, e, no lugar consagrado pelo raio ou sobre a pedra que caiu dos astros, ouvi oráculos, e o sacerdote orava. Um deus protegia os lares e sua fortuna; outro firmava os marcos que repartem os campos entre o povo dos vilares; e os mortos e os heróis erguiam-se das cinzas a ditar seu conselho e a impor os seus mandados, prolongando, em uma vida só, vidas diversas. Na forma nobre como na mesquinha, em todas se ocultava uma vontade, consciente e grande, e inflexível. Apolo e Juno, Hércules e Ceres, Afrodite e Plutão, e Pã, deus dos pastores, e as Amadriades que viviam nos rios e nas árvores, todos tinham na terra seu quinhão, onde reinavam livres; e todos, nessa hora de visões, por mim passaram, severos ou folgando, rindo ou chorando, tristes e majestosos uns, outros alados, dizendo seus mistérios e incitando-me a que, adorando-os, eu lhes tributasse o incenso devido ao seu poder.

Guerreiros incansáveis, triunfantes, povoaram os espaços de deidades e o coração de graças e favores. Negaram a solidão em todo o universo, confiado ao império sempiterno de demónios e anjos que encarnavam na poeira, no vento, na folha e na neblina, em rochedos e águas e no murmúrio da asa mais leve do menor insecto, sorrindo, consolando e castigando, soltando com igual prodigalidade afagos e ameaças, esperanças e terrores, a indulgencia, a ira e o escárnio, a abundância e a {43} fome, o mal e o bem, toda a infinda vibração das nossas almas.

Que mundo radiante de aparições, capricho e formosura, não tentou derruir, aquele ímpio sectário do saber que pensando, e dissecando, e inquirindo friamente, quis dissipar, num ímpeto de orgulho, esses entes celestes, benfazejos, que andavam entre os homens e lhes vertiam no sangue fraco e impuro a firmeza, a coragem, a gratidão, salutares alegrias e a serenidade, a exaltação suprema, a mais sublime, a consagração plena dos mortais em altares de religiosa poesia e de um dever mais forte do que a mísera carne transitória!

Que demência julgou virtude haver privado de magnânimo amparo de seus religiosos filhos a imaginação fecunda e inquieta que jamais sofrerá os cativeiros da razão, altiva e austera, sem piedade?!...

Ah! não morreram! Esses filtros da nossa fantasia todos vivem ainda e nos seguem, ocultamente, semeando de rosas os caminhos que os fados nos traçaram.

II

No silêncio dessa tarde em que comovidamente os invoquei, ouvi-os; e a sua voz, de mansidão dulcíssima, trouxe-me ao corpo como um refrigério, sacudindo a letífera inércia e o torpor em que {44} a venenosa sede de saber desvaira e mata, inquirindo sem amor, só por orgulho—senão, pior ainda!, por cobiça—, da aspiração ingénua dos fraguedos, das fontes e das ervas, das nuvens e dos sóis, da natureza inteira no seu frémito.

Pedi-te então, Senhor, que me concedas a quimera, a ilusão, esse cismar que a qualquer forma deu energia e vontade igual à nossa. Pedi-te então que ampares os meus passos dos companheiros bons que uma ciência vã afugentou.

Não me abandoneis, Senhor, nesse deserto em que espíritos cruéis nos atormentam roubando aos nossos olhos a beleza! Dá-me, Senhor, os sonhos criadores! Possa eu ver as ninfas das nascentes, os faunos das florestas, e os tritões lançando à praia as ondas arrojadas. Se da vida me tiras as quimeras, irisada espuma capitosa da taça que gota a gota vou bebendo,—que lhe encontrarei no fundo senão o sal de abrasada e mortífera amargura?! {45}

ANSEIO DA MANHÃ

I

Sobre as negras montanhas do horizonte, indolente rebanho fabuloso, de peregrinas formas em desordem, de prodígios, quimeras e abantesmas, domados uns em dócil mansidão, outros soltando fúrias e ameaças; sobre essa multidão tumultuosa que pela manhã tardia do outono alongara o dormir a custo afugentado;—crescia o rubor da aurora iluminando-a, sem que no céu, pouco a pouco embranquecido, uma só nuvem lhe lançasse um véu, embargando o pregão da claridade.

Apenas no poente, sobre o mar, ocultando o limite das suas águas, vagueavam em sonhos, arrastadas, nesse perpétuo e incerto devaneio, que é seu destino e glória, as comas violáceas das neblinas. Mas, humildes, deixavam conquistar-se pelos fachos da luz que além rompia.

Era a hora consagrada a esse culto, que ao Senhor os homens prestam no trabalho, reconhecendo {46} toda a sua fraqueza e sujeição. No bronze solene que difunde os mandados austeros da oração, segredando-a, igual e única, aos indigentes míseros e aos ricos, a sãos e enfermos, à fera e à borboleta, aos orvalhos e rios, ao vale e à encosta, ao mais timorato musgo e ao maior roble, à pulverizada argila solta ao vento e à firmeza invencível dos penhascos, sem escolher nem distinguir no seu vibrar, em mística insinuação de súplica indeclinável; no caminhar heróico desses servos que, enxada ao ombro, deixam seu lar e vão servir a terra nossa mãe, banhando-a com o suor do rosto, unção sagrada, para que a sua bênção nos proteja e ampare; no palpitar do jugo aureolado pela própria exalação do espesso hálito condensando-se em frescores de Novembro, que a leiva bebe enquanto o ferro a rasga para os trigais:—em todo o ambiente cantava uma só voz religiosa, como nenhuma outra tão pura e casta e tão fecunda e pródiga, jamais poderá ouvir-se nos apertados templos mesquinhos que somente por ilusões de orgulho foram grandes perante o louco imaginar dos seus obreiros.

E o sol rubro da aurora ia-se erguendo, pausado e lento, seguro da sua força e omnipotência, sorrindo ao esforço humano e afagando-o, latejante de brilhos sanguíneos, porventura misteriosamente repassados do mesmo filtro que repassa o coração e o inunda de amor quando o anima. {47}

Mas, de súbito, a luz esmoreceu no seu triunfo. Apressadas, correram-lhe ao encontro as névoas que dormiam sobre o mar. Cercam-na, ocultam-na, e, mal a têm vencida, logo a soltam e fogem dispersadas, por momentos vestidas de ouropéis que imediatamente deixam, por preferirem a doçura do manto lutuoso que em sorte coube à sua condição. Sem tardar, ei-las que voltam, prosseguindo na indecisa jornada flutuante; e—suave castigo dum orgulho ingénuo, bem de perto seguido de indulgência ou talvez de remorso ou contrição! as névoas renovavam seus combates, turvando a cada instante a opalina transparência da manhã.

Ao fim, o sol venceu. Quando ia alto, a luz avassalara o espaço inteiro, isenta de todo o anseio e hesitação. E assim soberana se manteve sempre, até que o véu da noite a submergiu na limpidez das ondas diamantinas, depois de haver semeado sobre a terra a alegria e o pão, suprema esmola.

II

Senhor! Fazei que a minha vida seja espelho do anseio divino da manhã, tal qual o vi nesse romper da aurora! Possa eu dissipar sombras funestas que me escureçam o céu fundo e claro, onde a alma se expande e voa, resgatada, a eternos {48} reinos de bem-aventurança! Que a ténue irradiação do meu sonhar fortalecesse os homens no trabalho e lhes abrandasse as dores e as fadigas, assim como o calor do dia os aviventa! E que ao fim em mortalha de pureza eu dormisse também, à semelhança de luz perdida em águas cristalinas! {49}

A ASA DO REMORSO

I

Em êxtase de luz rompe a manhã. Seus clarins sonoros de alvorada despertam o povoado, a serra e as águas. Dos salgueirais curvados sobre o rio erguem-se mansas neblinas, castas, sacrificando ao sol toda a pureza. Os píncaros severos da montanha desprendem da escuridão da noite a fortaleza. E na oficina e nos lares acordam fumos de carinhos e penas e trabalho.

E acordando também desse torpor em que, cansada, dorme a consciência exausta de torturas e de dúvidas, pensei, mísero e fraco, nas fadigas a que a luz da manhã me convidava. Por tenebrosa perversão da alma senti-me o escravo do ardor mundano, das cobiças, dos ódios, das vaidades, da cegueira que me oculta um irmão em cada homem e que me arroja a disputar-lhe o pão e que me afoita a exprobrar-lhe os erros, a mim que ouvi no peito voz divina de amor, de caridade e de perdão {50} e que ouvindo-a a deixei esmorecer, de culpa em culpa, traindo-lhe os mandados.

Enquanto à maldição desses infernos descia meu turvado pensamento, cantou a toutinegra na oliveira e ergueu seu doce canto à madrugada. Comungava na taça da alegria que na luz o Senhor oferece à terra. Isenta das cobiças e dos ódios, sem conhecer espinhos da ambição, confiando na suprema misericórdia que lhe alimente o sangue e o ninho e lhe module o inspirado enlevo dos seus hinos e a cada mágoa traga seu consolo, imaculada voz dum peito inocente, turíbulo sagrado, a toutinegra depunha no altar de Deus a sua oferenda, antes de partir em busca de sustento.

Então uma asa negra de remorso me fustigou o orgulho; e tremendo da própria impiedade, compungido de dor, eu perguntei que destino fatal e tão cruel me induzia em perjúrio à minha fé, sufocando em meus lábios, cerrados para o louvor da madrugada, essas canções benditas que a ave cantava e eram uma oração, que eu esquecera e eram redenção.

II

Minha mãe que do seu sangue me gerou, deu-me com o leite haustos de amor por ti, Senhor. Enquanto me criava o corpo e a forma, toda esta {51} ilusão da vida efémera, em seu último termo inexorável predestinada à consumpção dos vermes, ardentemente me ensinou a ver-te, ensinou-me a invocar-te, e em teu puro espírito renascer, liberto de corrupção, para a vida eterna. Ensinou-me a adorar-te em teu poder, a implorar humilde a tua graça, e prostrado sofrer tua vontade, contente por servir-te e em ti buscando a suprema alegria. E queria em sua fé, que dela recebi e é também minha, queria que ao despertar da minha consciência após suas horas de repouso e inércia, fosse teu nome o primeiro proferido por meus lábios; que para me sentir erguido à tua presença esquecesse eu o mundo e o seu tumulto e assim purificado, assim armado desse escudo inviolável, fortalecido contra todas as tentações de desvario, atravessasse a via dolorosa e de toda a fraqueza me isentasse.

Nessa manhã clara, entenebrecida em um momento fugaz e aflitivo pelo perpassar da asa do remorso, pequei, Senhor, porque transviado, perdido o meu espírito no tropel das cobiças orgulhosas, assaltou-me a miséria o pensamento e outro nome proferi que não o teu, antes que a ave me lembrasse a culpa cantando os teus louvores e a tua grandeza.

Perdoa-me, Senhor, se então traí essa fé que é o melhor dos meus tesoiros e me incendeia o peito em teu amor! Amparem-me as tuas aves, {52} teus arautos, mensageiros fieis da tua glória! Em cada aurora que os meus olhos vejam despontar nos céus, fazei, Senhor, que a toutinegra volte e me venha ensinar a repetir essas divinas orações de infância que à minha mãe ouvi no seu regaço! {53}

SERVAS DA LUZ

I

Logo após a cerração da noite, voltam-se para o oriente aquelas flores, servas da luz, cujo rosto olha o sol constantemente e por condição estranha o segue sempre no resplendente percurso da sua órbita. Ainda a escuridão é densa e vem distante o mais tímido alvor da madrugada, mal o poente se toldou de sombras, começam essas flores a volver sua face para os lugares onde o sol há-de romper. Por um segredo seu que nos perturba, subtil inspiração as ensinou a serem fieis à luz tão firmemente que nem a treva nem a tempestade nem a alvura do luar e a imensidade de astros brilhantes povoando o espaço puderam transviá-las e perdê-las naquela adoração do sol que é sua crença. Enquanto o sol se afasta divagando por ignotos mares, aprestam-se a servi-lo. O seu primeiro alento, o raiar da aurora, há-de aquecer-lhes o seio ávido de receber seus fogos. {54}

II

Porque, Senhor, assim inspiraste mudas flores, singelas e felizes, e deixas que os homens vão de treva em treva, rasgando o coração até à morte, ignorando donde a luz se ergue—aqueles mesmos homens aos quais deste a consciência do amor da luz?!...

Nas trevas da ruindade que escurecem a alegria e o riso e a bondade, divina aspiração da luz da nossa alma, possa eu, Senhor, como a flor em tua graça, pressentir constantemente a tua presença e só para a tua luz voltar a minha face, mortificada, ensanguentada, enferma dos tormentos fatais da escuridão! {55}

TROFÉUS DO ESTIO

I

Como gotas candentes destiladas de cristalinas urnas de safira que vertessem sobre a terra o azul dos céus para converter em luz a inércia e a treva, o Estio derrama sobre os campos queimaduras adustas dos seus fogos incendiando-lhes a fecundidade.

Mirrou-se a leiva. A fonte emudeceu. Endureceu-se o pâmpano na vide. O viço converteu-se em austeridade, denegrindo a espessura da floresta. Murcharam os prados e ali, onde exalaram suave embriaguez do seu frescor, levanta agora o vento nuvens ásperas de calcinado pó da terra nua. Rolam no chão as palhas trituradas como restos de vidas insepultas.

São troféus do Estio em sua glória. São os despojos que arrasta na vitória, na ufania cruel do seu triunfo. São mistérios duma maternidade santa e dolorosa. {56}

Para fecundar a terra e nos deixar o seu sagrado leite, o nosso pão, para lhe enriquecer os filhos de sustento, de calor, de abrigo e de doçura, para madurar os pomos e as searas e para criar o lenho que nos salve dos golpes traiçoeiros do inverno, abrasou o Estio em seus ardores aquela mesma terra que por amor beijou, vestindo-a de opulência, ao despertar-lhe sua paixão constante de abundância, o seu fascinante arfar de formosura e a pródiga caridade do seu seio.

II

Abrase-me, Senhor, o teu ardor! Que se me converta em pó o mísero invólucro deste ser que nasceu para servir-te, e desfeito em teus férvidos alentos crie uma gota desse imenso amor que é o teu eterno cálice de vida!—Tal qual o Estio abrasa e queima a terra para transmudar em pão a rocha árida e fria, incendeia de amor meu coração para em tua fé remir os infiéis! {57}

LOUCOS DE HUMILDADE

I

Á beira do paul, onde ele se estreita e recebe do vale o seu ribeiro, sobre a arcada da ponte que o transpõe, unindo e prolongando caminhos ensombrados das suas margens, quedei-me a ouvir o marulhar das águas, batidas pelas lufadas de Dezembro e, sombrias, reflectindo o céu sombrio.

Vindo do mar o rouco sudoeste, gerado na violência das tormentas, turvava a atmosfera escurecendo-a. Baniu do céu o azul, de todo oculto sob bandos de nuvens violáceas, fugidias, mudáveis como fumos, almas errantes, cinzas dispersas de apagados lares.

Crescidas pelo despenhar das águas da montanha que verteram nos rios as suas neves, as lagunas cavavam funda a vaga, nessa agonia que a inquieta e é seu destino. E incessantemente a repetiam—assim como no coração volta a saudade, sem fim, a repetir-se e sem desanimo, renovando {58} dorida a aspiração que uma estrela sinistra lhe converte no repetir da mágoa, no infortúnio de se sentir privado dos seus bens.

Inconsistentes algas sonhadoras, dos sonhos dessas ninfas que as protegem e gentilmente as levam no toucado, frouxamente flutuavam enleadas nas hastes de robustos nenúfares, em cuja espessura habitam mais isentas da mortal violência das correntes.

Também elas, imagem da nossa alma, naquela tão minguada vida que as anima, chorariam ilusões de liberdade e em desengano igual aos que sofremos, pensando haver nascido para expandir-se e seguirem erradias seus caprichos na luz de mansas águas transparentes, também elas sentiriam afinal um cativeiro na dureza das hastes que as amparam e enquanto lhes são arrimo as sujeitaram à própria imobilidade e à própria sorte?!...

Além, vai inundado o salgueiral. Parece naufragado, entregue às ondas, arrancado da terra em que medrou. Até despido e nu, de todo despojado da graça que no Estio lhe agitava sua abundante coma viridente, paira sobre ele um sonho, um palpitar de afago e de brandura. Ainda no mais áspero rigor, sob o queimar das neves, nos seus cinéreos gomos veludosos e nos ramos banhados em alvuras vagueia uma carícia que consola, uma tímida promessa de doçura, alentos da primavera que suspeita e de cujas primícias de alegria será para nós o portador bem-vindo. {59}

Para que na terra sempre permaneça uma esperança, um refúgio de toda a ira e toda a tempestade, a redenção de todo o desalento e toda a treva, sorri na encosta o prado. Serenamente, ignora a tormenta e os seus combates. Rebelde ao vento, unido ao chão e a salvo do transbordar das águas mais subido, repousa os nossos olhos, já fatigados desse tropel de lutas de extermínio, essa mancha de deleitosa cor e de brandura. Tranquila, em sua mansidão firme e piedosa, afronta e vence a túrbida violência em que astros funestos dilaceram, fúnebremente, a terra desolada.

II

Em andrajos, curvada, carregando o parco e mesquinho feixe de caruma, vem recolhendo ao lar da sua choupana, uma pobre velhinha. No rosto emaciado estão marcadas por fundas rugas, restos de agonias, as canseiras, velhice e privações. Nem uma só faúlha já lhe resta do fogo que algum dia entumeceu as veias duma face enamorada de ventura e prazer, e em ventura enlevando os que a buscavam. Aqueles sadios braços que acudiam a recolher o pão no sol do eirado, são mal definidas sombras esqueléticas de formosuras que passaram breves. E os olhos que brilharam amorosos, em zelos inflamando e fascinando os turbulentos moços {60} do arraial, esmoreceram todo o seu calor, amortecidos em descorados véus, quase sem luz.

Mansamente, quando eu cismava no turbilhão de vidas tão diversas que ali contemplava, no mistério sem fim dos seus combates para expandirem na luz os seus anseios, a velhinha, arrastando seus passos no caminho em que resignada arrasta a sua pobreza, saudou-me e disse, interrompendo o sonho e outros sonhos trazendo em sua voz:

—«Boa tarde, meu senhor, salve-o Deus!»

III

Delira de humildade esta velhinha que em seu santo delírio desvairada, aureolada de fulgores angélicos, me dá teu nome, Senhor, só porque a sorte cega em seu capricho me envaideceu com os falsos bens do mundo, enquanto a enriquecia de pobreza e me induzia, a mim, a ser soberbo, e a me esquecer de ti no meu orgulho? Foi por isso, por ser a mais humilde, por ser abençoada desse delírio santo de humildade que a enlouquece, mostrando-lhe os seus senhores nos desgarrados da tua larga senda de bondade, perdidos nos infernos das cobiças, foi por isso, Senhor, que a escolheste para a enviar dizer-me que além desse outro mundo que ali contemplava em confusão de esperanças, formosuras e terrores, mortal, incerto, atormentado {61} e turvo, além desse outro mundo um outro existe onde Deus tem seu reino e onde nos salva?!...

Possa eu sempre ouvir a sua voz! Resgate-me essa fé, essa humildade que no mais pervertido vê um senhor e o saúda e o serve obediente, e suplicante, por ele erguendo aos céus a sua súplica, fraternamente para ele implora a graça de salvação em Deus!... {62} {63}

ORAÇÃO DOS LARES

Et jam summa procul villarum culmina fumant,
Majores-que cadunt altis de montibus umbrae.

I

«Começam a fumegar ao longe os tectos dos vilares e lá dos montes altos vem crescendo as sombras que se alastram sobre a terra». Tingiu-se de ametistas o poente. O campo adormeceu. Calaram-se as enxadas na deveza. Entre rumores dos gados que recolhem, caminha para a morada o cavador. Erguem-se aos céus os fumos dos casais e, desprendidos da pureza do fogo em que se geram, em vespertinos cantos abençoam o repouso da noite a aproximar-se.

São sacramento que une os lares da vida humana à luz infinita. São oração, anelo, um palpitar, um voo, anseio de brandura transportando ao espaço sem fim aspirações que os nossos corações mal balbuciam, que palavras algumas traduziram. Confundem seu mistério de beleza, um tímido mistério que se abriga sob a pobre nudeza {64} das choupanas, em um outro mistério ainda mais alto que tem por templo a abobada celeste, por voz a voz de Deus e por fieis miríades de seres que se dispersam na vastidão do cosmos insondável.

II

Assim seja, Senhor, minha oração! Tão alto ela se erga e tão suave se eleve em vosso amor e o sinta e adore, como o fumo dos casais quando anoitece levando aos céus as orações dos lares. {65}

CANTARES DAS SEBES

I

Ao longo do caminho da jornada na qual, dorido, vou calcando a terra, ouvi o cantar das sebes nas vigílias em que constantemente nos defendem e nos guardam os pomos, as searas e os lírios, todo o bendito pão que nos anima de vigor o sangue e nos enleva em alegria a alma.

Valos fundos em volta do pinhal, tosco acervo de pedras que circunda o campo onde o trigal vem a brotar, viridentes cômoros abrigando os ninhos sob grinaldas de rosais floridos, ramos espinhosos protegendo o alfobre para que as sementes desabrochem e vinguem, os silvados que escondem os vinhedos,—se uma vida despontando teme a avidez ingénua dos rebanhos e de aves diligentes em buscar sustento tenro para mimosos filhos; ou se a cegueira humana pervertida pode quebrar a árvore que nasce ou desrespeitar ruimmente o suor alheio, ergue-se a sebe e entoa os seus mandados, {66} e cobre de fortalezas todo o chão traçando os seus limites à cobiça, à imprevidência, à malvadez e ao próprio dano da inocência instigada por amor—como um gládio de justiça austera repartindo toda a terra entre os seus filhos. Ora severa e rude na mudez, ora coroada de verdura errante, murmurando o agreste murmúrio desprendido pelo beijar de brisas fugidias, pacientemente a sebe nos protege a selva, o prado, o pão e as açucenas, quanto pode amparar os nossos braços e encantar nossos olhos em beleza.

II

Se para nos guardar na terra a formosura e alimentar nas veias o calor elegeste na sebe um missionário, servidor desvelado da tua graça, se nem esses teus bens mais preciosos viveram sem o abrigo e a caridade dos companheiros que lhes destinaste, como poderei eu, Senhor, criar no peito, neste peito gerado da fraqueza, o amor fecundo em que ele se arrebate, florindo em bondade e mansidão, se em tua misericórdia não mandares anjos bons que me guardem e dos teus inimigos me defendam?!...

Sinta eu sempre a meu lado, protegendo-me, o doce abrigo de filhos teus, Senhor, daqueles teus eleitos e inspirados que na tua bondade e em teu {67} amor souberam redimir-se! Que por sua voz e sua fortaleza arranquem meu coração ao sinistro abutre da descrença, do ódio e da avareza a que lugubremente se entregaram os que em solitário orgulho te ignoram! {68} {69}

COMPANHEIRO E GUARDA

Do vale aos cerros onde me encontrei, vai minguando a vida. Lentamente, a solidão alarga o seu domínio até que ao cimo, pela planura extensa que remata o encastelar de montes sobre montes, de todo impera na aridez ingrata que despiu de verdura a terra rasa e a adormeceu, estéril, semi-morta de avareza e silêncio.

No deserto severo a que subi, apagou-se distante e emudeceu quanto na veiga fértil me fascina, esse fremente rebrilhar de vidas irrompendo da terra alegremente que por seus anseios vinham demandando seu lugar e glória à luz do sol—a carícia agitada das ramagens, mugidos da manada no pascigo, o argentino rebater da forja, a espessura ondeante das searas, a viveza das rosas nos jardins, a murmurante faina dos casais, toda a abundância, toda a flor e toda a lida que no vale se expandiram opulentas, na abrigada largueza dos seus campos e nos bastos vilares que ela alimenta. {70}

Eis que, porém, no árido silêncio dessa terra sem viço, devastada, se ergueu um casebre humilde, o mais humilde, e dali se elevou um ténue fumo! E logo se povoou e foi amena a solidão austera desse chão que o desamor dos homens e dos astros asperamente votara ao abandono. Foi como se uma afeição dali emanasse e banisse, amorável, por encanto, todo o ermo da gândara desolada.

É a morada singela dum pastor. Recolhe agora ao aprisco o seu rebanho, o seu pobre rebanho, filho e imagem da pobreza da urze endurecida na terra recalcada dos invernos que nunca conheceu o arado e o jugo. E protegidas do rigor da noite as ovelhas, seu único tesoiro, por sua vez procura acautelar-se da aragem fria que lhe tolhe os membros, acendendo a fogueira mal nutrida das escassas giestas que juntou.

Outro alento de vida não pressinto em redor do bravio solitário. Mas só por magia desse ténue fumo, companheiro e conforto do pastor no ríspido exílio em que perfaz sua missão de amor servindo a terra, senti que até ali mesmo me guardava das sombrias visões do desamparo não sei que voz estranha e poderosa.

E pedi ao Senhor que recebesse em sua bondade eterna e eterna glória este infinito anseio da minha alma que sem cessar o vê e ao seu amor, na opulência da terra e na aridez, na maior chama como em débil fumo. {71}

REINO INFINITO

Dico vobis quod quemcumque locum calcaverit pes vester, vester erit.
( SACRUM COMMERCIUM , cap. III )

I

«Eu digo-te que é teu todo e qualquer lugar que os teus calquem»—assim o ensinava o Santo aos seus irmãos, voltando em puro espírito a ilumina-los, daquela eternidade em que resplendia o seu amor ardente, o mais sublime que ao mundo trouxe a vida e a salvação, depois que alguém morrendo no Calvário derramou por amor todo o seu sangue.

É nossa toda a terra que pisamos, toda aquela vastidão que nós sentimos, em seu alento respirando a fortaleza e em sua formosura extasiando os olhos e a nossa alma. E só é nossa aquela que sentirmos e enquanto o nosso coração a adora e louva; e é alheia, muda, estéril toda a terra que o nosso amor em tudo desconhece, ou distante dos olhos a não veja ou, estando a nossos pés, a não sintamos enchendo o nosso peito de bênçãos e {72} alegrias. As boninas, os lírios e os rosais não são dessa avareza pervertida que lhes pôs em redor um muro alto, para privar os homens de os tocarem, e só por isso julga possui-los como escravos do orgulho e da vaidade; são desse peregrino pobre e semi-nu que na estrada os sentiu e, cantando e bem-dizendo o seu enlevo, prosseguiu na jornada, iluminada a vida e exaltada na fragrância e frescor de formosura e na divina crença que ela inspira em tua fé, Senhor, em teu poder de eterna graça e beleza. Esse foi rico e, na verdade, teve na terra que os seus pés calcaram um reino infinito—tão rico quanto foi miserável, indigente, esse outro que quis contar os bens pela demência cega e malfazeja com que privara da terra quem a ama e nessa sinistra força resumiu seu ser e aspiração. Este foi pobre, tudo perdeu do salutar alento que lhe mostrou um Deus em cada flor, o resplendor duma essência divina imperscrutável; por mais terra que seus pés possam calcar, jamais possui um só e estreito palmo do chão bendito que as flores orvalhadas consagraram. Possuir é admirar e comungar, e só é nossa a terra e tudo aquilo em cujo amor sentimos consumir-nos.

II

Bens da terra, Senhor, também os quero! Também instantemente vo-los peço! Também avidamente {73} os apeteço! E reconheço os muitos, gloriosos, com que prodigamente enriqueceste os que têm como sua toda a terra que os seus pés vão calcando e os olhos vêem, enquanto a sua alma se extasia na beleza da vossa criação.

Riqueza é o coração que vós tocaste na perene harmonia incorruptível que é o vosso ser e vibra em todo o espaço e se espelha em luares e na açucena.

Dai-me, Senhor, a graça de a sentir, e nessa graça os reinos infinitos a que ela e só ela nos conduz! Para que então eu possua toda a terra e seja meu todo e qualquer lugar que os meus pés calquem. {74} {75}

PODERES DA TERRA

I

Rolam fundas as águas nos caudais. Fundiu-se em torrente a neve que cobria de doce alvura a aspereza da montanha. Nuvens negras do sul que o vento apressa, jorraram o seu dilúvio sobre os campos. A inundação cobriu sebes e vales, e a seara, o prado e o burgo que agasalha o cavador, os jugos e as enxadas. De outeiro a outeiro, onde ontem perpassava o suave esplendor de mansas vidas,—em tímidas boninas, em rebanhos, pascendo repousados a abundância, e nesse fecundo arranco heróico e hercúleo dos servos da gleba generosa—a devastação das águas desapiedadas estende turvamente uma mortalha. E onde se ouvia murmurar a paz, o embalar dos berços carinhosos e estrídulos descantes de ceifeiras, felizes e esforçadas na sua faina, lançou a inundação roucos pregões de ameaça e terror, tumultuosa e lúgubre no ímpeto. Dia e noite, ou brilhe o sol vencendo {76} a tempestade ou a escuridão se cerre impenetrável, rugem no vale horrendos clamores de morte, de ruína e de crueza.

Ouviram-nos ao longe os povoados; os montes e as quebradas repetiram-nos. E, sentindo como um grito de aves fúnebres que dos céus nos mandassem seus agoiros, um sombrio pavor me subjuga. Seus lívidos espectros de desgraça escurecem-me em mágoa o pensamento, mostrando-me os infernos neste mundo entregue sem resgate às suas penas.

II

Não me culpes, Senhor, se eu esquecendo, em momentos mortais de desalento, a sabedoria infinda do teu ser que o orbe rege e funde em harmonia, sucumbi de fraqueza e de descrença perante os poderes da terra no seu auge! Não me culpes, Senhor, se assim vencido, atónito de espanto e de terror, senti passar a cólera das águas e tremi de sofrer sua inclemência! Não me culpes, Senhor, se um instante de assombro me oprimiu perante as iras da vossa criação e nelas vi tiranias indómitas cruéis! Logo me emenda o erro, crê, e me resgata de vãos temores e de fraquezas ímpias a inteira fé na suprema perfeição de quanto é teu. Mais alta que os clamores da inundação, uma outra voz me ergue no desejo de que a «tua vontade seja feita, quer nos céus, quer na terra», eternamente. {77}

PERPETUAS DO ROMEIRO

I

Entardecer de outono tépido e quieto!.... O sol baixa ao poente, brandamente, em seu rubor velado de neblinas. A soberba do Estio esmoreceu. Há manchas desbotadas sobre os campos; empalidecem vinhas e pomares. A ceifeira já ergueu da terra a seara e deixou cor de cinza todo o chão. Os frutos coram derradeiras cores nas hastes semi-nuas e vergadas, e os mostos, refervendo capitosos seus túrbidos perfumes traiçoeiros, semeiam nos vilares visões pagãs de bacantes e faunos em delírio.

Descem do monte os bandos dos romeiros. A essa orgia da terra generosa, embalsamando a aldeia em seu deleite e remindo-a da fome com o seu pão, responderam na ermida da montanha descantes amorosos, plangentes, orvalhados da noite e abençoados do sereno fulgor de astros propícios.

Rebeldes à fadiga, alegremente, voltam à paz da {78} aldeia e ao seu trabalho os romeiros que foram à capela a confessar as penas e paixões, implorando do bem-aventurado santo que lá mora, nessa agreste pureza do seu ermo, que às suas penas lhes mandasse alívio e que às paixões lhes desse horas fagueiras. E para que dilatadamente se prolonguem confissões e promessas murmuradas candidamente em estos de ternura, para que jamais se apague a sua lembrança nos lares em que se abriga o coração cativo do juramento bafejado pelo resplendor do santo do altar que entre lírios e rosas lhe sorriu, trazem no peito um ramo de perpetuas os romeiros saudosos da vigília em que sonharam o céu e o paraíso. Querem que um tão breve instante de ventura, por magia de amor, se torne eterno e que perpétuamente o guarde a flor em que sempre o verão como em sacrário.

II

O mais rude como o mais experimentado adorou neste mundo a eternidade. Na hora mais breve que se esvai e passa, no sorrir e nos olhos dos que amou, quis ver e quis sentir luz que não morre; e fielmente, talvez para não cair em tentação de perjúrio ou fraqueza, quis encarnar a crença na flor, dar um cálice à fé e o seu quinhão da formosura que na terra a louva. {79}

A vida só é vida enquanto ama e traduz e adora a eternidade na beleza do mundo e da nossa alma. É a tua lei, Senhor!

Possa eu servi-la e fosse este meu peito perpetua do romeiro onde abrigasse um infinito amor e eterna graça! {80} {81}

PODER DO VERBO

I

No apolíneo sonho do poeta, à beira da torrente, sobre os montes, o pastor que além viu a moça linda e ingénua, revestida de viço e de frescura tão perfeitos como os da primavera em torno que o afagava, cativo o coração e confundindo no mesmo vago enlevo a graça e a formosura, cantou assim ternuras do seu peito:

«A erva cresce agora livremente. Há lírios sobre os prados. A maré verde de Abril transborda no seu crescer. E para traz, muito longe, perdeu-se cego o inverno.

«Assim como a primavera surge da tormenta, assim da morada escura surges tu.

«Em ti reside a luz, e qual espraiada no contorno dos lírios a primavera brilha, assim do teu coração, pelos lábios vermelhos entreabertos, vem palavras e amor aos feixes erguidos do acónito. E aquele que o movimento agita lança à terra a bênção, {82} pelo suspirar ardente e pelo amor, pelo desejo bom e pela alegria.»

«Quando tu partires, no inverno incerto, entre os fumos da morada e no rumor dos homens, então verei sempre os teus cabelos de oiro e os teus pés brancos ágeis no volteio. E do limiar da porta até ao lar, canções vindas do sul, as palavras da tua boca hão-de esvoaçar, aqui e além, a repetir-se em todo o espaço.» [1]

[1] William Morris. The Sundering Flood.

II

Oh, magia do verbo que converte passageiro murmúrio em eternidade!...

Por que subtil poder e invencível palavras dum instante, etéreamente aladas e fugazes, voltam do infinito espaço em que as lançou a vibração dum peito comovido, para de novo as ouvirmos tão altas e claras e tocantes como da vez primeira que as sentimos?!... Por que energia oculta se renovam, e nos povoam de visões os sonhos, e nos amparam os passos com o conselho, e nos fazem sangrar o coração, e nos desprendem o sorriso e o canto, e nos elevam na oração divina, as palavras que alguém, {83} um pequenino ser mortal e fraco, mínimo átomo no volver dos mundos, um dia segredou timidamente na mansidão dos seus lábios mortais?!...

São anjos teus, Senhor, são anjos teus! Pastores do teu rebanho louco e débil, os enviados bons do teu amor que vem a encaminhar nossa fraqueza no caminho da tua salvação!

Antes, Senhor, a inconsciência, a morte, o infindo dormir da própria alma, do que o errar no mundo ao desamparo, sem a bendita voz dessas palavras que de contínuo ouvimos repetir-se, «aqui e além, perpétuamente, em todo o espaço», e nos renovam quantas visões de amor nos enlevaram, quanta beleza e graça nos mostraram para além deste mundo os céus e os anjos! {84} {85}

UNÇÃO DE GLORIA

I

Nasce para vida curta e breve passa seu sonho de candura e de beleza a flor que a primavera descerrou. Brisas ligeiras que lhe baloiçaram ao sol do meio dia o seu turíbulo de dulcíssima seiva perfumada, essas mesmas virão rasgar-lhe as pétalas antes que o vento abrande no crepúsculo.

Foi um celeste instante de brancura aquela que poisou sobre o espinheiro florido entre a pálida verdura. Os oiros reluzentes do ranúnculo brilharam curtos dias entre os prados; e a desmaiada púrpura da olaia, no suave rubor que nos fascina, parece ter nascido para uma hora, tão cedo ela decai e junca o chão e se dissolve e perde emurchecida. E as rosas—é seu fatal destino, bem o sabem! «nasceram para viver uma manhã». O seu frescor é o beijo duma aurora e uma só vez na vida hão-de senti-lo.

Entretanto, na sombra, humildemente, a hera sempre verde, persistente, de contínuo cresceu sobre {86} a ruína, e ou a neve embranqueça no trigal a verdura da terra requeimando-a, ou o sol alente as seivas dos vinhedos, ou o inverno a castigue rudemente, ou o Estio sequioso a abrase, vai urdindo, incansável, esse manto de viço túmido e quente com que protege feridas da ruína e, remoçando-a, a veste de grinaldas. E caem desfeitas sobre as heras as flores que a primavera desfolhou, na vida curta e breve em que viveram seu sonho de candura e de beleza.

II

Ah! Bem feliz, Senhor, seria o filho teu cuja sorte escutando o seu desejo lhe deixasse escolher para seu quinhão a frescura das rosas passageira vivendo longa vida prolongada na robustez das heras caridosas; porque esse seria a tua imagem, bebendo sobre a terra dum só cálice a suprema beleza e o teu poder. Mas, pois que à imperfeição eu fui votado e nela hei-de cumprir o teu querer, vivesse eu como as rosas um momento de candura e de graça e de perfume, e morresse incensando heras robustas de caridade e viço imarcescível!... Passasse assim na terra, como passa, numa tarde de Abril embalsamada, a unção de gloria que os rosais verteram sobre o vigor das eras persistente!... E seria feliz, abençoado, tendo sonhado a tua eternidade envolta num alento de doçura. {87}

SACRO HOLOCAUSTO

I

O outono palpita nos orvalhos. Já a manhã é tardia em despontar e o cavador trabalha em bem prover seu refúgio para a aspereza do inverno. Antes que rasgue a terra para o trigal, há-de juntar em torno do seu lar a provisão de lenhas que alimentem calor e vida em noites de Dezembro, a alegre e rubra chama da fogueira.

No pinheiral da gândara, que dormiu prolongados silêncios abrasados quando o sol ia alto, fulminando verdes searas a beber seu leite da terra criadora, entre cantares dos filhos do seu seio e seus escravos que em suor a banhavam fecundando-a—no pinheiral da gândara, a árvore ferida, decepada do chão pelo aço luzente que o lenheiro vibrou em hercúleo arranco, solta tombando clamores tremendos; e a paz da floresta repetiu-os em ecos de saudade compassiva. {88}

II

Oh, sagrado holocausto duma vida austera e solitária, corajosa, vivida a todo o tempo, paciente labor de muitos sóis, de rudes provações que experimentaram a tempestade, a calma, a noite e o dia, águas violentas que flagelavam e águas de brandura, salutar afago, luares calados, doces sonhadores, e o desalento do ardor do Estio e a branca inércia das manhãs do inverno, toda a luz, todo o tumulto e toda a paz, todo o infinito ser de infinitos mundos!... Tu morreste bendita dando aos homens todo o calor que guardas nas entranhas, para agasalhares os berços e o trabalho, para retemperares os seios que amamentam e para aquecer os braços que se tisnam na escravidão da terra redentora!

Eu não sei se é de dor, se de gloria, se é louvor ou lamento que te envia, a ti, Senhor, que lhe traçaste a sorte, esse grito que ouvi no pinheiral quando ao cair da árvore bradou seu ansiado brado a sonorosa haste que cantara a mansidão das brisas que a tangiam. Mas ouvindo-o, Senhor, ouvi tua voz; e, turvado da abundância da tua caridade, implorei-a—não me abandonasse, como não me abandona a fé que eu tenho em teu mistério de bondade e amor. {89}

SAGRAÇÃO DO ESCRAVO

I

No alto da montanha, ao romper de alva, já moureja no campo o cavador a alentar essa terra de que é escravo, seu sonho e seu tirano, e sempre amada, fidelíssimamente obedecida, ou a sonhe feliz dando-lhe frutos entre rosais corados olorosos, ou a sinta opressiva, insaciável, bebendo-lhe no suor do rosto todo o sangue. O tépido conforto do seu lar, o dormir sorridente dos seus filhos, o desvelado afã da companheira no seu mudo lidar e em seus carinhos, quanto lhe afaga o coração e o tenta a esquecer na ternura a escravidão, tudo deixou por essa tirania, para fecundar a terra à qual o prende o rigor de apaixonada sujeição. Mal ao nascente a luz embranqueceu, ei-lo que parte, erguido e corajoso, a pelejar a peleja bendita de criar!

Dorme além a cidade ainda prostrada da tenebrosa orgia que a desvaira. No dissipar de pálidas {90} neblinas, que a madrugada rasga pouco a pouco, irrompem, lentamente, as sombras orgulhosas dos palácios em que o luxo entorpece seus filhos corrompidos e enfermos, de alma e do corpo, por suas vãs loucuras tão cruéis.

Surgem a par as torres das igrejas, onde a fé, a mentira e a hipocrisia lançaram de tropel em um só templo a cruz de Cristo, a mais santa das crenças, e a mais torpe traição, essa que oculta sob véus da pureza e na oração toda a cobiça sórdida de mundos que em podridões sustentam o seu deleite.

É frouxo ainda o fumo da oficina. Nos seus leitos de ferro e de granito mal despertaram os monstros que, rugindo pelos lúgubres antros denegridos, convertem todo o sangue em alavanca ou em um numero, como se fora a haste fria e rígida do mais frio aço endurecido. Toda a emanação de Deus que anime um ser em Deus criado e nele engrandecido, coração, formosura, o próprio seio que amamenta um filho, supremo alento dum supremo amor, qualquer impulso duma consciência iluminado por visões dos céus, o mais leve passar duma alegria,—morrem, são nada à porta da oficina, escoria inútil que os dragões arrastam àquelas profundezas tenebrosas em que ter alma é um crime, e o pensar e o sentir são uma traição, um erro, um prejuízo dos argênteos tesouros mercantis.

No declive estreito dos outeiros e na sombra {91} mais húmida das suas pregas, ao redor dos palácios e dos templos, como varridos em monturo abjecto para longe das grandezas que afrontavam, confundem-se e amontoam-se os casebres onde a fome e a sua negra corte de vícios, de loucura, de enfermidade e morte e blasfémia têm seus covís e dilaceram os mártires que a crueza dos ricos lhes votou.

O próprio rio que regara os prados e os tingira em verdura e macieza, que adoçara vinhedos das encostas e orvalhara os vergéis alcandorados na ribanceira que a pervenca esmalta, o próprio rio onde foi espelhar-se o rosto lindo da donzela ingénua cativada dos olhos que respondem comungando nos seus o seu anseio, o rio que serviu a obra de Deus, sua pura beleza salutar,—tristemente se roja na cidade, turvado por as suas maldições e servindo a avareza despiedosa que roubou o pão de míseros humildes para em opulências cobrir de oiro a soberba.

E perante a cidade em seu letargo, atormentada e pálida de dores, sucumbida nas suas maldições, o sol rompendo ao longe sobre os montes, na resplendente luz do seu nascer, aureolou de gloria o cavador, sagrando-lhe a sua crença e o seu vigor, a robustez hercúlea do seu peito e a consagração bendita de sua alma a esse tributo infindo, heróico e santo, de em suor pagar à terra o nosso pão. {92}

II

Senhor! Em vossa caridade reparti vossos bens por quantos, infelizes, a fraqueza condena a mendigar dos fortes o seu pão, embora o orgulho os traga confiados em pérfidas grandezas traiçoeiras! Por esses que o destino arrasta na tristeza, no cansaço e desgosto de viver, porque em hora sinistra se apartaram do caminho da vossa salvação!... Deixai que chorem sua desventura, e em seu queixume ouvi a minha voz!... Deixai que chorem em doloroso exílio esses proscritos que jamais comungam com o cavador na bênção de criar na terra o nosso pão com o suor do rosto! À luz da aurora que o beijou no monte, juntai as lágrimas dos que vão chorando sua desgraça, sua perversão!... Fossem elas incenso e ouro e mirra que os débeis reis do mundo tributassem à sagração divina do escravo!... Resgatassem humildes todo o erro que os desprendeu da escravidão da terra!... {93}

MALDIÇÃO

I

Entenebrecidas noites de tristeza afastaram-me da via iluminada para lugares distantes, desprezados dos escravos das seduções mundanas, prisioneiros fieis dos seus regalos.

Passei pelas vielas lobregas, estreitas, onde se acoitam multidões abjectas, que os ricos aviltaram condenando-as à ignorância, à fome, aos vícios do infortúnio, à loucura e ao crime, a epilépticas convulsões da embriaguez, à indigência, ora prostrada ou insolente, ora mendiga lacrimosa e tímida, ora cuspindo pragas e blasfémias em sua altivez irada, revoltada. Vi os negros covís dos desgraçados que a opulência arrojou longe dos olhos para os monturos humanos da cidade,—não fossem os andrajos e os vermes confundir-se entre vestes de purpura manchando-as!

Dos gemidos que vinham desses antros, tantas vezes castigando as nossas faces como um {94} viperino jacto de veneno, a procurar vingança; do rugido da miséria nos seus transes nenhum me tocou mais o coração do que o grito das crianças açoitadas, entre imprecações raivosas de possessos, flageladas com desprezo e ódio vermelho, somente por chorarem doloridas de fome e frio e ínfima indigência, sem carinho e sem pão, sem um leve consolo, que conforte e que alegre e vivifique dum reflexo de divina essência o corpo enfermo e a empedernida e bruta animalidade.

Longas horas depois de ter deixado os coitos dessa escoria penitente que sofre e geme em vão nos seus infernos, sem alcançar mover à misericórdia os soberbos e grandes que em seu fausto, emudecida e cega a consciência, lhe negaram justiça, ainda ouvia insistente o clamor desse tormento louco das crianças.

E nenhum mais cruel tenho encontrado!

Em nenhum—e são muitos entre os homens! encontrei maior dor e perversão.

II

Se o Estio esgotou fontes e rios e secou a campina, a ave infeliz, que tem filhos no ninho a sustentar, e em vão moureja, diligente e muda, por todo o abrasado e ingrato espaço, tem de voltar {95} ao poiso desprovida. Mas não castiga essas famintas bocas que a esperam, gritando e atribuladas, a pedir-lhe o alimento que não pode dar-lhes, pois lho recusam os calcinados campos adversos. Sofreu resignada o suplício, a fome, a sede, e a amarga invocação dos que um mau sestro confiou ao seu amparo.

Se o leite seca ao animal bravio, por qualquer contingência da sua sorte, oferece o peito exausto ao filho débil, todo o seu sangue quereria dar-lhe; e sentindo-o a morrer de inanição, responde com os carinhos ao queixume da vergontea que vai a definhar, aquece-a junto ao corpo, mas jamais se abandona a ímpetos de cólera, só porque um ser amado lhe suplicou, inquieto, angustiado e lacrimoso, o mantimento que carece para viver.

III

Que estranha aberração induziu o homem a negar a robusta caridade, comum, vulgar, no peito inconsciente?!... Que estranha perversão o fez acrescentar à indigência a crueldade, torturando, somente por lhes sentir as agonias, aquelas mesmas vidas que criou, carne da sua carne, almas da sua alma?!...

Discípulo de Cristo a quem adoras, por comunhão {96} na sua vontade e anseio erguido à plena luz do entendimento que te mostrou irmãos nas ínfimas partículas, na argila e na poeira, como no coração, na rosa e em tudo quanto existe! Senhor soberano dessas forças terrenas formidáveis que dominaste e trazes por escravas em proveito do teu gozo e teu triunfo, convertendo-as do terror à mansidão, dócilmente vergadas ao capricho!... Por maldição de trágico império, em tenebrosa queda degradado, foste sujeito, louco, em teu orgulho de virtude e de crença e de isenção, a repassar de fel a dor dos próprios filhos! {97}

PROFISSÃO DE FÉ

I

Não ajoelhei no adito do templo e, como o filho querido do poeta, fiquei também de pé, rebelde e incrédulo, «quando um povo fiel na sombra das abobadas se curvava ao passar de cânticos celestes, tal qual se verga a multidão das canas quando sobre elas sopra o vento norte.»

Irreverente e altivo, passei coberta a fronte por monumentos altos, insensatos, em que orgulhosa demência de grandezas, poluindo com o fausto a divindade, num estranho tumulto de blasfémia e súplica, de mentira e verdade, de confissão ingénua e de impostura, pôs o sinal da cruz e da oração ao sagrado retiro em que confunde religião, vaidade, amor e ódio, fanatismo e doçura, mansidão, crueldade, perdão, vingança, cobardia e coragem, o nobre e o mísero, o sacripanta e o santo.

Muita vez me afastei desse desvairo, satânica traição, em que o resplendor de Deus no cálice e {98} na hóstia se empana esmorecendo em nuvens de vileza que derramam em torno a escuridão da impiedade e das paixões mundanas.

II

Mas não te desamei, Senhor, porque assim fiz!...

Sempre que o coração tentou seus voos de candura, sempre que se sentiu sujeito a forças sobre-humanas para as servir guardando os seus mandados, no remorso e na dúvida, em todo o penar de angustia e em toda a esperança, em afecto e ternura, em sonhos de pureza, aspirando ao enlevo no Eterno, cansado deste mundo de fraqueza, ergui olhos chorosos ao azul, onde cintilam astros diamantinos, e invoquei-te, Senhor, meu Deus e Pai, a ti «que estás nos céus, nome santíssimo, para que tu me acolhas no teu reino e eu fielmente cumpra a tua vontade; para que me dês o pão de cada dia e me perdões quanto te dever, assim como aos meus devedores também perdoo; para que afastes de mim a tentação e de todo o mal me livres para sempre.»

E fui humilde então!... Nesses altares me despi totalmente da soberba e ajoelhei prostrado, submisso, a escutar tua voz e a adorá-la, religioso, confiado e crente, curvado como o canavial vergado ao vento. {99}

DRÍADE ENFERMA

I

Pelo musgoso atalho da floresta, entre o tojo bravio e urzes austeras, fui saciar meus olhos na beleza e reanimar o corpo na carícia que o sol esquivo e brando de Dezembro frouxamente derrama através da espessura do pinhal.

A custo ia abrandando o frio da manhã. São curtas nesse tempo as horas tépidas. Mal se fundiram os gelos da derradeira noite, logo vem renová-los mais profundos a palidez de frígidos crepúsculos.

Experiente, já certo dessa lei que dos astros nos vem e é impreterível, sorvia com avidez a delícia breve que eu sentia fugaz, quase uma ilusão de transitórios sonhos luminosos.

E lembrava o Estio e a primavera!... Ali, naquela mesma floresta, ali busquei abrigo da violência dos abrasados dias inflamados pela calma do mês de Santiago. Ali me defenderam dos seus {100} fogos as vastidões umbrosas impenetráveis. Ali ouvi passar no vale vizinho o sussurrar das águas que corriam a reanimar o prado emurchecido por aturadas horas refulgentes. Ali senti esse leve sorrir vindo da terra, desprendido dos borbotões das fontes do seu seio para redimir a vida extenuada, desfalecida à míngua de frescor.

Ali encontrei passando ao entardecer, em sua plena graça juvenil, como se alada rosa eu entrevisse, a moça que subia das lenturas fecundas do juncal a regalar seus gados com o pascigo, entre cantares ceifado alegremente, vibrando firme a foice, despiedosa, a traçar nos seus dentes a bonina mais branca, e o malmequer, e a mais esbelta haste do azevém onde já despontavam as palmas rígidas em que guarda a semente.

E eis que de novo a encontro agora na floresta, a essa mesma dríade que outrora, em perfumadas horas estivais, passou por mim turvando-me os sentidos de súbito embebidos, cativados, na gentil maravilha de seus gestos.

Mas quanto vem diferente e vem mudada!...

Que é da graça subtil que a envolvia, envolvendo na sua formosura os olhos confundidos, fascinados do latejar sadio que igualava o florir ingénuo da açucena?!...

Filha da terra e sua humilde serva, também ela conhece o outono e o inverno; também arrasta penas e fraquezas; também se empobreceu de seus {101} enleios. Não fugiu ao rigor da lei comum. Enferma, traz enfermo o seu encanto; vai quebrada a magia do seu poder divino. Curvada sob o feixe de duros ramos secos que para seu conforto esforçada colheu de orgulhosos robles, castigada a frescura rosada dos seus braços pelos espinhos ímpios dos silvados, tisnada a face pela aspereza cortante das manhãs, é agora a lenheira paciente, mortificada e débil, imagem do trabalho e do sofrer, aquela ceifeira airosa que ainda há pouco foi para mim missionário feliz da alegria sagrada de viver, afortunada voz e alto pregão das seduções da terra, claro espelho de todo o seu amor.

II

Se em toda a vida passa a enfermidade, se a formosura é incerta, e se o lírio e a estrela e a nuvem e o mármore mais duro, e a alegria e o riso e a doçura infinita da bondade e a própria luz do sol são perecíveis; se a criação inteira que os olhos vêem e que a nossa alma sente, toda a beleza íntima e a do mundo, decai e desfalece, sofre e se apaga: se só tu és eterno, Senhor! em tua caridade e teu saber, e se a suprema harmonia, que é o teu sonho, não distingue o prazer e a dor, a caricia, o flagelo, a rosa e o cardo, por igual divinos {102} em teu divino ser—se é esse o teu querer, bendita seja a hora em que encontrei a dríade enferma do inverno que em seu dissipado encanto e em sua mágoa correu a ensinar-me a crer em teus desígnios e me segredou louvor e obediência, a inteira abdicação em teu mistério! {103}

MONJAS DO OUTONO

I

Ouvi cantar no monte as urzes roxas.

Cantavam ao romper de alva, ainda banhadas do cintilante orvalho da manhã que pela noite calada e arrefecida as estrelas pousaram nos seus braços, trigueiros como a terra onde se criam.

Cantaram ao cair da tarde, iluminadas por brazeiros corados do poente que o tumultuar das nuvens inflamou, ao longe, sobre o mar, no extremo horizonte.

E enquanto assim cantavam nos seus bandos, vagabundos das fragas e dos seixos, cobriam toda a terra da sua purpura, esmorecida e branda, tímido murmúrio da vermelhidão que hesita em seu clamor e teme ferir quando só quer dar vida.

Cantavam livres percorrendo a gândara rasa onde nem um desgarrado arbusto se afoitou a erguer mais alto o ramo castigado, sem remissão votado a rastejar porque o pascer contínuo dos {104} rebanhos mais não consente. Pelos recessos húmidos das grutas, sob a curvada abobada do roble, entre ogivas audazes dos pinheiros, na alumiada encosta que conduz à azenha encastelada sobre o rio, ou adornando frígidos penhascos que só conhecem os rigores do norte—cantaram sempre e com a mesma voz as urzes roxas, monjas do outono.

Conformada doçura bem casada com o declinar das pompas do Estio, renuncia da opulência, resignação entre a pobreza árdua do inverno que o encurtar do dia já promete, um sereno caminhar para a austeridade, aquele desprendimento sobre-humano que descreu das grandezas deste mundo, da ansiosa tormenta da ambição, e procura o resgate em singeleza—tudo eu ouvi cantar às urzes roxas, monjas do outono bem-aventuradas, que aos olhos me trouxeram suavidade entre ameaças ríspidas da aspereza e a minha alma engrandecem conduzindo-a aos reinos religiosos da sua paz.

II

Senhor! Tu que me consentiste a graça de escutar a voz bendita com que no outono as urzes roxas vem a libertar-nos das dores de embriaguez obcecada que pôs sua ambição em querer {105} muito, em vez de a consagrar à fortaleza de se sujeitar à lei que em teu mistério deste ao universo, não permitas, Senhor, que eu desfaleça! Enquanto a minha jornada não findar, que eu não deixe jamais de te escutar no canto benfazejo das urzes roxas, monjas do outono!

Possa eu beber com elas no seu cálice a suave resignação da sua pobreza, seu valoroso animo que afronta, cantando e derramando suavidade, pressentimentos que aos demais oprimem, esse cair da noite do inverno, seus flagelos, suas privações, o gelo, a morte, todo o seu cortejo de crueldades sem fim, inexoráveis! {106} {107}

A TERRA ESCRAVA

I

Esta terra que no homem tem o escravo e, toda poderosa, o traz curvado a amá-la, essa mesma por sua vez foi também escrava quando, obediente e humilde, serve o esposo ao qual sorri ansiosa e abre o seu seio.

Há-de rasgá-la o aço da charrua para que a seara acorde nos seus sulcos; e há-de a foice resplender, ceifando o pão, para que ela aos servos dê o seu sustento. Se esse beijo de amor a não alenta, jaz infecunda, endurecida e nua, como triste proscrita da alegria, desamparada à beira do caminho, em vão sonhando caridade e gloria.

II

A escravidão é a tua lei, Senhor! A ninguém que tu ames a ocultaste. É o mantimento e guia {108} da jornada que à tua fé nos leva. Nem a estrela mais rútila dos céus deixou de ser escrava de outra estrela. Sintam os meus pulsos todas as algemas que me acorrentem a esse teu querer de fecunda bondade, sujeitando o meu ser a outro ser e perfazendo assim a vida eterna do amor e da humildade! Sirva-as o sangue, dê-lhes o calor!... Adore-as meu coração!... Por elas se resgate da treva das tristezas e das dores em que o solitário orgulho pena a culpa! {109}

MISTÉRIOS DE CERES

I

O nocturno ulular do negro inverno solta no pinheiral espectros clamorosos. Abrigam-se refugiados nos casais, em volta da viva chama que os aquece, os tímidos foragidos da tormenta e os colos que acalentam criancinhas.

E, heroicamente, afrontando a rudeza da inclemência, despontam nas campinas os trigais. E, alegremente, esvoaçam na levada alvas farinhas, bailando o seu delírio sob os colmos que protegem a azenha sonorosa. E, ardentemente, o brazido dos fornos vigilantes fabrica no seu fogo o doce pão que, quando alvorecer, nos reanime para seguirmos na terra essa jornada da via dolorosa, via ingrata.

São os mistérios de Ceres que do seu seio destila o abençoado leite que amamenta os infinitos bandos dos seus filhos.

A terra, o fogo, a água e o nosso braço, quanto {110} a criação sonhou de grande e belo e santo e generoso, desde a fecundidade casta duma leiva até ao nosso alento, consumido pela consciência do dever cumprido,—todos Ceres arrastou em seu mistério, todos são seus escravos, obreiros dóceis, servos diligentes da sua caridade. E a sua esmola, o pão, que por igual aviventa nos berços a inocência, renova a energia ao cavador, e piedosamente desce às geenas túrbidas dos míseros proscritos que em desgraça e no crime resvalaram—o pão gerado para criar o sangue é também sacramento que une a alma a todas as divinas forças que o geraram, partícula de insondáveis mundos e infinitos de poder e de amor.

O inspirado rude plebeu que, se o pão caiu no chão, o ergue e o beija, consagrou na candura religiosa esse mistério que une a nossa alma à terra e aos céus e só a religião suspeita e adora.

II

Conduzi-me, Senhor, ao altar de Ceres! Ensinai-me sua graça e os seus mistérios! Assim como o pão renova no meu sangue o calor que o agita e o move e o fortalece, fazei, Senhor, que ele nutra também meu coração para sentir, prostrado em {111} gratidão, tua eterna bondade generosa! Que por meu braço o louve e engrandeça!... Que, curvado, lhe tribute o suor do rosto!...

É o teu mensageiro o mais fiel. Seja eu o seu servo o mais humilde! Pois que, servindo-o, Senhor, te glorifico e em ti resgato a miseranda vida. {112} {113}

HORAS DO MEU PEITO

I

Fica à beira do rio o campanário que do alto da sua fortaleza conta as horas da vida passageira em que ao redor se agitam ou repousam os campos remansosos e os vilares, afadigados na fadiga humana. E quantas horas caem do bronze, lento e sonoro, que as solta ao vento, ou tormentosas sejam ou benignas, leva-as o rio para o mar profundo, na sua imensidade vão perder-se.

II

Assim caudais de amor, e esses somente, me recebessem horas do meu peito, quantas meu coração puder contar, ou na mágoa e na dor ou na alegria, e todas elas as levassem celeres, na candidez das águas baptizando-as, a perder-se, Senhor, na imensidade da bondade infinita do teu seio! {114} {115}

ÁGUAS VIÚVAS

I

Não distantes do mar, entre rochedos, brotam as águas que, em seu breve curso, desoladas se internam na aridez, até que de todo as bebe o areal adusto e as confunde perdidas na amargura de ondas salgadas que destroem e queimam.

Foi-lhes árduo o caminho. Apenas surgem da terra e viram o dia, encontraram a fragura impenetrável, madrasta avara de mirrados líquenes. Depois, como cativos escoltados por alcantis que os cingem ao caminho apertado no sombrio vale estreito, nem sequer por momentos gloriosos sentiram a liberdade das campinas que amorosas quisessem e se exaltassem em seu fecundante afago. Por fim, engolfando-se em mares insaciáveis, estéril se dissipa para sempre esse anseio de amor que prometia a rosa e o trigal e a sombra viridente e que, infeliz, nasceu só para sofrer, por negra sorte cedo condenado a jamais se expandir {116} em formosura e nunca amassar o pão que mata a fome. Malfadadas, essas águas das fontes junto ao mar beijaram o pequenino campo minguado entre rochas rebeldes e soberbas, e eis que o mar as vem beber e logo as lança nas suas profundezas insondáveis.

Foi seu destino serem infecundas!

II

«Águas viúvas!» disse o cavador. «Na vida não tiveram quem as ame. São viúvas do chão que as recebesse no seu seio profundo e generoso para as restituir á luz em flores e em frutos, para vestirem de doçura a terra, para salvarem da fome os que a padecem, para se alargarem em lagos dos açudes e para cantarem na levada alegre seu louco impulso, todo o seu folgar».

E o cavador cismava na sua leiva, naquela que rasgara no bravio, e era regada só do suor do rosto e pelos orvalhos breves da manhã, e em dias tormentosos dilacerada pela rispidez de invernos inclementes, severos, tanto ou mais que o sol de Julho. Por que erro ou mistério chorava ali a água a viuvez dum benigno chão que a desposasse, e lá no cimo do monte o campo pobre desfalecia à mingua da lentura que lhe acordasse {117} os germes e os trouxesse a viverem a gloria de crescer?!...

E o poeta, ao ouvir o cavador, pensou na viuvez das almas que no mundo, nascidas para a bondade e para o amor, voam seus voos na ruindade agreste dos egoísmos míseros dos homens e, à mingua de almas irmãs que lhes recebam seus anseios fecundos de carinhos, mirram-se estéreis entre desenganos, e do mundo se apartam dissolvido o seu desditoso anseio benfazejo nas profundezas da desilusão.

Por sua vez incerto e compungido, tremendo da desgraça dos infernos onde penam os corações desamparados que em desventura nunca sentem irmãos pulsando a par do seu pulsar de amor, o poeta responde ao cavador:

«Por que erro ou mistério do destino, andam perdidos e, chorando, sofrem a viuvez duma ternura irmã da que os alenta e ampara e os ergue a Deus, os corações que amam sem encontrarem amor que o seu fecunde e alimente para o florir em bênçãos e consolo dos que em desdita esmolam esses bens?!...»

III

Isentai-me, Senhor, do atroz martírio que o coração sedento de bondade padece nesta vida {118} quando à sua voz só responde a dureza das paixões e uma cobiça ardente, insaciável! Roubai-o a essa cruz, toda de espinhos, em que rasgado se desfaz e muda um infinito amor em amarguras! Ensinai-lhe, Senhor, a fortaleza e que, entre o desamor que o perseguir, saiba ao menos amar a desventura! {119}

PUREZA AMARGA

I

A pureza que a neve da montanha desprendeu gota a gota em claro fio, era doce nas pedras do regato onde o pastor bebia o refrigério das canseiras do monte e do rebanho.

E correu, correu sempre clara e doce, enquanto se despenhou de fraga em fraga, apressada, descendo ao horizonte que distante a chamava e a seduzia.

E foi doce ainda quando se juntou ao largo rio em que os cinceirais encaminhavam brandamente ao mar, entre verduras tenras rumorosas, as diamantinas, fúlgidas, correntes de peregrinas águas caudalosas.

Até que ao fim entregue à imensidade, porque ansiava louca de paixão, e a que corria desde o seu nascer, na pureza de neve assim lançada às convulsões das vagas sem repouso, transmudou-se em travoso amargor de ondas salgadas {120} quanta doçura tinha no seu cálice—como se por vontade e obra divina essa pureza que nos foi doçura, irmãmente nos dê sua amargura.

II

Senhor! Fosse a amargura o preço da pureza!... E eu quereria que quanta amargura em todo o mar se encerra, toda ela coubesse no meu peito, se por ela pudesse converter meu coração, turvado de paixões, na virgínia pureza que se gera da neve cristalina da montanha. {121}

TIRANIA DO FOGO

I

Após um breve e pálido crescente perdido além, ao longe, sobre o mar, na cerrada treva que se lhe seguiu, fulguram tragicamente as labaredas do incêndio que se ateia na montanha e enegrece o pousio, raso e nu, em toda a vastidão onde implacável o fogo apascentou os mortíferos rebanhos das suas chamas. É cinza a urze que tingiu de púrpura a aspereza mais ingrata dos fraguedos. É cinza o tojo que arrojadamente floriu doirando, de oiro precioso, o chão ainda gelado de Dezembro. E os renovos do sobro e o pinheiral, que entre os seixos avaros despontavam, em cinzas converteram a curta e tenra vida das suas hastes.

A tirania do fogo em sua gloria toda a beleza esquece e todo o bem. Em sua austeridade e em seu mistério, enquanto nos fascina e nos subjuga, ou nos avivente e exalte em manso alento ou em delírio lavre devastando, tem por escrava {122} toda a formosura, dissipa-a sem piedade em seus altares. A flor que canta a aurora e é o seu sacrário, a árvore que ao peregrino deu sombras e pomos, sumas riquezas, sumas alegrias desta vida mortal dos nossos olhos—são pó e em pó se volvem, se a pureza do fogo as inflamou.

II

Ser escravo, Senhor, é o meu anseio! Libertai-me o meu peito da miséria dos mundos vãos de vãs aspirações da vaidosa existência corruptível, e convertei-me em cinza o coração, na tirania de um amor ardente, por ele purificado e consumido—assim como o fogo abrasa o cedro e o roble, em chamas gloriosas redimindo na luz, que é vida eterna, do transitório orgulho da opulência que se nutriu das seivas da floresta!

FIM

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ÍNDICE

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Casa Editora de A. Figueirinhas
PORTO
Paulo Combes
O Livro da Esposa , br. 500, enc. 700
O Livro da Dona-de-Casa , br. 500, enc. 700
O Livro da Mãe , br. 500, enc. 700
O Livro da Educadora , br. 500, enc. 700
Jaime de Magalhães Lima
Rogações de Eremita , br. 300
José Agostinho
A Mulher em Portugal , br. 500, enc. 700
O Caminho das Lágrimas , br. 600, enc. 800
Cristo (Poema), 1.º vol. br. 500
A Religião e a Arte , br. 100
Frederico Mistral
Mireia —Tradução de João Aires de Azevedo e Manuel Teles—br. 500, enc. 700
Bossuet
Sermões , vol. I, br. 500, enc. 700
Sermões , vol. II, br. 500, enc. 700
Maria Pinto Figueirinhas
Contos das Crianças , br. 300, enc. 500
O Livro das Maravilhas , br. 300, enc. 500
Os Serões das Crianças , br. 100
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Livraria Portuense LOPES & C.ª—Sucessor