Title : Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra á opinião illustrada do paiz
Author : Antero de Quental
Editor : Rodrigo Veloso
Release date : September 15, 2009 [eBook #29996]
Language : Portuguese
Credits
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ANTHERO DE QUENTAL
ANTHERO DE QUENTAL
MANIFESTO DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Á OPINIÃO ILLUSTRADA DO PAIZ
1862-1863
BARCELLOS
Typographia da
Aurora do Cavado
Editor—
R. V.
1896
Tiragem apenas de 100 exemplares:
20 em papel de linho,
80 em papel d'algodão.
N.º___
{5}
O Visconde de S. Jeronimo, Bazilio Alberto de Sousa Pinto, por longos annos lente da Faculdade de Direito na Universidade, era seu reitor, e já desde tempos, no anno lectivo de 1862 a 1863. O antigo liberal de 1820, deputado ás Constituintes de 1821, esquecera, parece, nos fins de sua vida, os principios com que a inaugurara na scena politica, e tornára-se profundamente antipathico á Academia, sobre a qual fazia pesar todo o rigor da obsoleta legislação universitaria, a mais incongruente, {6} tirannica e injustificavel de todas as legislações, cujos artigos draconianos têm resistido a todas as evoluções da sciencia do direito e a todas as conquistas da civilisação, recordação ominosa, tetrica e funebre das edades inquisitoriaes.
E conhecendo bem o Visconde de S. Jeronimo a existencia d'essa antipathia, e que de dia para dia se ia ella exarcerbando, rasgando cada vez mais fundo abysmo insuperavel entre a Academia e elle, em lugar de algo fazer para a diminuir, se não extinguir, punha todo o seu empenho no contrario provocando em tudo e por tudo, sempre que para isso se lhe deparava ensejo, o exaspero dos animos dos estudantes.
A tal ponto se foram, em essa maneira, apurando as cousas, que {7} deliberada a grande maioria da Academia a dar ao reitor um testemunho bem solemne e frisante de sua incompatibilidade com este, para realisação d'elle foi aprasado o dia 8 de Desembro de 1862, por occasião da solemne distribuição dos premios aos estudantes laureados da Universidade, para a qual, desde longuissima data, destinado e consagrado o dia 8 de desembro em que a egreja commemora a Conceição de Maria, decretada por D. João 4.º Padroeira do Reino, e Protectora da Universidade.
Effectivamente n'esse dia inteiramente apinhada de estudantes a vastissima sala dos Capellos, onde a solemnidade da distribuição dos premios se soe realisar, apenas o Visconde de S. Jeronimo começou de falar, na sua qualidade de reitor, {8} inteiramente se evacuou o amplo recinto de todos os estudantes, que o enchiam, voltando-lhe as costas a immensa mole de batinas, que reunida no pateo da Universidade, enthusiasticos vivas soltou á liberdade.
O echo immenso que d'este notabilissimo acontecimento então resoou em toda a Coimbra e naturalmente se repercutiu por todo o reino, e as apreciações diversas que d'elle foram feitas, motivaram o Manifesto dos estudantes de Coimbra á opinião illustrada do paiz , impresso e profusamente distribuido. Elaborou-o Anthero de Quental, e este o motivo por que o trazemos a esta colleccão de seus trabalhos dispersos.
Rodrigo Velloso {9}
Ao Governo, aos homens desinteressados e liberaes d'esta terra, vamos dar razão do nosso procedimento. Oiçam-nos. Pedimos um quarto de hora de attenção: não é muito que ao prazer e ao interesse se roubem alguns minutos para attender {10} á voz da mocidade de um paiz. Essa voz parte d'alma: é a voz da eterna justiça.
Todo o facto pede uma explicação. Se o acontecimento é grave, graves devem ser os motivos que o produziram; e, mais que ninguem, homens novos, quando deliberam, pódem sim enganar-se, mas a intenção é sempre generosa e nobre.
Pergunta-se hoje em Coimbra, pergunta-se por todo o paiz:—Que querem os Estudantes da Universidade de Coimbra? Que significa a evacuação da sala dos Capêllos no dia 8 de dezembro de 1862? Que protesto é esse d'uma corporação contra o seu chefe?
Os Estudantes não são meia duzia de crianças turbulentas que, n'uma hora de galhofa, se combinem para pregar uma peça ingraçada; tantos homens não só intendem, como um bando de rapazes {11} de escola, só com o fim de se divertirem á custa de uma coisa muito séria. Não foi, pois, o prurido da infancia o motor d'aquelle acontecimento. Esta hypothese nem se discute. O bom senso da nação regeita-a como uma offensa feita a si mesma na pessoa dos seus melhores filhos.
Os Estudantes não são, tão pouco, instrumentos cegos de vinganças pessoaes, trabalhando á luz do dia, mas movidos por um braço occulto na sombra. São instrumentos sim, mas da propria causa. O braço que os impelle não vem de cima, nem vem de baixo o impulso que os leva. Escutam a voz da consciencia e obram.
Os estudantes não são discolos , amotinadores , facciosos ou assassinos . Pois o leite que se bebe no seio das mãis, transformar-se-ia em veneno ao primeiro sorvo do ar de Coimbra? Pois estará {12} tão gangrenado este paiz que o seu coração—um coração de vinte annos—só abrigue odios e trevas? orgulho e miseria? Pois será esta a esperança do futuro? Ah! a nação também é mãi; não póde calumniar seus filhos.
A evacuação da sala dos Capêllos no dia 8 de dezembro de 1862, o protesto da Academia contra o Reitor da Universidade deve, como todo o facto, ter um motivo e um fim. Partido de uma corporação onde o paiz reconhece o melhor, o mais puro de seu sangue, deve, mais que nenhum, ter um motivo justo, um fim grave e elevado.
Os que sobre nós lançam o estigma de amotinadores são esses os primeiros a reconhecel-o. Pois se assim não fosse, se contra si não temessem a justiça da nossa causa, com que motivo adulterar os factos para depois os combater? Quem calumnia, quem cria um fantasma para {13} ter a esteril gloria de o derrubar ante os olhos do paiz, é que teme luctar com a verdade, é que sabe que o venceria a verdade, se a confessasse.
Porque os factos foram adulterados. Debaixo da capa do anonymo fomos calumniados por cobardes que á luz do dia não se atrevem a dar com o seu nome garantia ás suas palavras. Julgou a boa fé dos nossos vinte annos que em questão tão grave sobrenadaria a justiça e a verdade acima da onda lamacenta do interesse pessoal, da calumnia, das miserias d'uma ou d'outra facção.
Foi ainda um engano. A boa fé do jornalismo do paiz foi tambem ludubriada. Quizeram desacredital-o, desacreditando-nos, fazendo-lhe repetir o que a melevolencia d'alguem lhe segredou em hora d'estulta inspiração.
Como homens, filhos d'esta época de liberdade, lamentamos que uma instituição {14} que amamos, porque é a educadora dos povos, a mãi das nações livres, que a imprensa fosse enganada por falsos informadores e, ainda sem o querer, mentisse uma vez á sua missão. Mas, como membros de uma corporação, é do nosso dever, é da nossa honra aceitar a luva que nos lançam, e esclarecer a opinião, salvando d'esta injustiça a imprensa portugueza.
Os Estudantes sairam da sala dos Capêllos, mas não sairam amotinados. Viraram sómente costas a um homem que não amam nem respeitam, porque se não sabe fazer nem respeitado nem amado. Ficar é que seria crime, porque fôra uma baixeza.
Os Estudantes, reunidos no terreiro da Universidade, deram vivas á independencia, vivas á liberdade, mas não tumultuaram, não se revolucionaram, não deram morras, não pediram {15} a cabeça de ninguem; por que os Estudantes sabem que a cabeça de qualquer homem é sagrada; por que nossas mãis não nos insinaram a soletrar em seus olhos a religião do amor, para nós virmos aqui transformarmo-nos em bandidos e homicidas, e a essa religião transformal-a em lei de morte.
A nós córar-nos-iam as faces de vergonha por este povo, se em Portugal um só homem ousasse tal acreditar.
Não se pediu a morte de ninguem, não se perturbou um acto solemne com vozes nem tumultos. Evacuou-se uma sala com o socego que tal evacuação comporta. Depois—fóra, no meio da praça-deram-se vivas á liberdade por que não sabiamos ainda aqui que esta palavra tivesse sido riscada, por ordem do Geral dos jesuitas, do diccionario politico d'esta nação.
Que infamia commetteram os Estudantes {16} da Universidade, saindo d'uma sala onde não podiam ficar, sob pena de ouvirem cousas desagradaveis para o seu brio, da bôca de um homem que se compraz em os amesquinhar?
Que crime commetteram, n'um paiz liberal, os filhos dos homens do Mindello, dando vivas á liberdade?
Sabemos manifestar-nos contra uma authoridade, nos limites da ordem e da lei. Ordem e lei, em terra de livres, não são circulo tão estreito que se não possa dar um passo sem lhes sahir logo da peripheria.
É esta a verdade. Para a restabelecer temos ainda voz que se erga, fale e se escute em todos os Angulos d'esta terra. Falamos: que nos oiça a nação: que a nação são nossos paes, são nossas mãis, é o coração de nossas familias, e aos vinte annos não se apprendeu ainda a linguagem da mentira para fallar {17} a um pae e a uma mãi. A verdade é esta. Que se levante alguem e, arrojando a mascara villan do anonymo, se atreva a desmentir-nos!
Eis o facto. Agora os motivos d'elle.
Que tem o Reitor da Universidade que mereça tal desapprovação?
Respondam por nós os jornaes do paiz que, ha tres annos, não cessam de registrar em suas columnas factos sobre factos, iniquidades e miserias. Respondam as representações, os pedidos de justiça, que cada acto seu tem promovido. Responda o corpo cathedratico, onde raras vozes amigas incontra a apoial-o. Responda a rectidão de nossas intenções,—de nós, que o accusamos, que somos moços, e não erguemos a voz contra um homem sem razão, sem muita razão.
Póde suppor-se que o corpo docente da Universidade, que devemos julgar prudente e illustrado; que a mocidade {18} portugueza, que abriga no coração tanta rectidão e justiça; que o jornalismo, echo da opinião publica; que sciencia, nobreza d'intenções, prudencia e illustração: que tanta gente, e da melhor, em tão diversos sitios, sem se passarem palavra, sem um fim qualquer, se conspire e combine contra um homem, o accuse e guerreie... e que esse homem não tenha dado motivo a esta declaração de guerra? Pode suppor-se isto?
Se assim fosse, se a nação suppozesse tal do que tem melhor em si... que idea formariamos então da opinião publica, da moral d'este paiz?
É uma hypothese que se não discute. Estranho caso, em verdade, é incontrar na historia o fado de um homem grande, menosprezado, accusado injustamente por tudo quanto tem em si de melhor uma nação. Será o Reitor da Universidade o Colombo que nós todos {19} desconheçamos?... Que lhe responda a consciencia.
Mas não é só contra o Reitor, o sr. Doutor Basilio Alberto de Souza Pinto, que nos manifestamos, contra a authoridade que não cumpre com o dever da justiça, o primeiro e unico que lhe impõe o seu cargo. Ha aqui mais alguma cousa, e alguma cousa peior. Gememos sob o jugo de uma legislação iniqua, porque é velha; necessariamente injusta, porque é confusa. Cumpre ao Reitor adoçar-lhe o rigor, e, no meio da liberdade que tal confusão lhe dá, escolher sempre em harmonia com a idea do seculo, que é a Justiça.
É isso que elle não comprehende, é isso que elle não quer; e é contra isto que nós protestamos.
Se uma vez não applica a lei, se muitas vezes é o arbitrio o seu unico codigo, é isto mau. Mas quando trata de a {20} cumprir, quando é justo, como executor da lei, porque se escuda com ella, incarnar em si todo o rigor da velha instituição, tirar-lhe as ultimas consequencias, ter na sua mão uma espada, e, podendo escolher entre o gume e as costas, preferir o gume... isto é peior, por que isto é pessimo.
A manifestação contra o Reitor da Universidade é tambem protesto contra a iniquidade d'uma legislação atrasada de tres seculos, porque este Reitor symbolisa todo o rigor d'essa lei, porque consubstancia em si tudo quanto ha de mau na instituição.
A lei pesa sobre nossas cabeças com o peso de muitos annos, mas o Reitor carrega ainda, com todo o pêso da sua mão, sobre o já enorme da lei, e quer-nos esmagar sob a pressão immensa dos annos e do rigor ainda.
Um e outro jugo nos é odioso; contra {21} ambos protestamos.
O Reitor que deu lugar a vermos, em toda a sua fealdade, a injustiça da instituição, abriu caminho a que, manifestando-nos contra elle, nos manifestassemos contra ella tambem.
São esses os nossos motivos. É este o duplo sentido do nosso protesto.
Em quanto ao fim é claro, depois d'isto, qual elle seria.
Substituir a voz dos opprimidos, forte porque parte d'um coração torturado, á voz da imprensa—essa defensora dos que soffrem, sim, mas que não póde erguer-se tanto, porque não pede em causa propria. O jornal fala, mas como quem discute; perde-se-lhe a voz no meio do tumultuar dos muitos interesses que por aí se agitam. Nós falamos, com o brado dos opprimidos, que todos escutam, que todos devem escutar, porque ninguem negará aos filhos dos heroes {22} do Mindello e do Porto, ainda pallidos pelo sangue que seus paes perderam, regando a arvore da liberdade, ninguem lhes negará, n'esta terra de Portugal, o direito de pedir que lhes alliviem o jugo d'uma lei d'oppressão e espionagem, que corrompe porque rebaixa e envilece; uma lei velha de seculos, que aqui se esconde temendo a luz da nossa era, a luz do progresso; uma lei que viu e tratou os jesuitas e o poder absoluto; uma lei contemporanea da Inquisição!
Que querem, pois, os Estudantes da Universidade de Coimbra?
Vamos responder a esta ultima pergunta.
Os Estudantes querem a reforma de um processo inquisitorial; garantias de justiça; que se seja julgado e condemnado como homem, como cidadão d'um estado livre, e não como relapso fugido {23} aos carceres do Santo-officio; que a igualdade perante a lei seja uma realidade aqui, e não risivel fantasmagoria; que nos julguem homens desapaixonados, e não os que mais estão no declive escorregadio das vinganças; que se distinga entre sciencia e costumes , e acabe por uma vez essa pena infamante que, com um traço negro de tinta, mata a reputação, o futuro de uma vida em começo, quando, muita vez tambem, não mata o coração de uma familia.
Que querem os Estudantes da Universidade?
Que se indague tudo da sciencia, que é patrimonio de todos, e nada da vida particular, que é asylo individual e inviolavel; que por detraz da cadeira do insino se não lobrigue o olho do esbirro; que se faça progredir a sciencia, e se deixe a moral desinvolver-se por si. {24}
Que querem os Estudantes da Universidade?
Justiça! Um olhar de pae d'esse Portugal, velho que por todos os lados se remoça, e só teima em esquecer no frio esmirrador da meia-idade... quem? os melhores de seus filhos!
Justiça! Um raio de sol tambem para nós, d'esse sol de liberdade e progresso que luz para todo o seculo, e só a nós nos deixa nas trevas do passado. Um logar no banquete das garantias-liberaes, que nos é devido, porque essa liberdade custou o sangue de nossos paes, o nosso sangue! Garantias para quem quer ser livre, digno e justo; auxilio a estes escravos que querem, um dia, ser homens e cidadãos.