The Project Gutenberg eBook of O Oraculo do Passado, do presente e do Futuro (6/7)

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Title : O Oraculo do Passado, do presente e do Futuro (6/7)

Author : Bento Serrano

Release date : March 23, 2010 [eBook #31741]
Most recently updated: January 6, 2021

Language : Portuguese

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O ORACULO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO (6/7) ***

  

O ORACULO

DO

PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO

OU O

Verdadeiro modo de aprender no passado a prevenir o presente, e a adivinhar o futuro

POR

BENTO SERRANO

ASTROLOGO DA SERRA DA ESTRELLA,

Onde reside ha perto de trinta annos, sendo a sua habitação uma estreita gruta que lhe serve de gabinete dos seus assiduos estudos astronomicos

OBRA DIVIDIDA EM SETE PARTES, CONTENDO CADA UMA O SEGUINTE:

Parte primeira—O ORACULO DA NOITE
Parte Segunda—O ORACULO DAS SALAS
Parte Terceira—O ORACULO DOS SEGREDOS
Parte Quarta—O ORACULO DAS FLORES
Parte Quinta—O ORACULO DAS SINAS
Parte Sexta—O ORACULO DA MAGICA
Parte Setima—O ORACULO DOS ASTROS

PORTO
LIVRARIA PORTUGUEZA—EDITORA
55, Largo dos Loyos, 56
1883

PARTE SEXTA

O ORACULO DA MAGICA

OU

O ESPELHO MAGICO DO ANÃO

SEGUIDO DA INTERESSANTE DESCRIPÇÃO DE UM

CASTELLO ENCANTADO

OU O

MONTE DO CASTELLO DAS FADAS

PORTO

LIVRARIA PORTUGUEZA—EDITORA
55, Largo dos Loyos, 56
1883

Porto: 1883—Imprensa Commercial—Lavadouros, 16.

O ESPELHO MAGICO DO ANÃO

Thomé e Joanninha viviam quasi sós na sua pequena casinha, fóra do bosque, tão sós como nunca tinham vivido. O pai era couteiro e guarda-matas, e por isso, ou o tempo estivesse bom ou mau, passava muitos dias sem ir a casa, a guardar as florestas e a matar a caça silvestre que era para a mesa do senhor das terras. A mãi tinha morrido, e na choupana ninguem estava com os meninos senão a avó, que já via mal e ouvia pouco. A avó passava todo o dia assentada ao lar, menos quando andava coxeando pela cosinha para preparar a pobre comida para os pequenos, ou quando dormia. De dous em dous ou de tres em tres dias vinha Luiza, que morava na aldeia, trazer o leite, o pão e o que era mais necessario; mas passavam-se semanas sem entrar um homem na choupana.

No verão pouco cuidado dava isso aos pequenos, porque iam todos os dias á escola da aldeia, e era isso para elles um divertimento. Os passaros faziam-lhes companhia cantando alegres; no caminho encontravam lirios ou morangos, que colhiam para venderem na aldeia ou para levarem ao mestre. Passadas as horas de aula, corriam á floresta, por onde andavam de um para outro lado com o pai, e espreitavam {4} esquilos e cabritinhos montezes, e já uma vez tinham visto de longe um bello veado. E assim, lendo nos seus livros na escola ou colhendo avelans nas matas, não sabiam o que era aborrecimento em todo o verão.

Mas no inverno era verdadeiramente triste, porque não podiam entrar na floresta, e tinham de estar em casa como dous ratinhos no seu buraco. O pai era obrigado a andar por fóra e levava comsigo Fiel, bonito perdigueiro, que era o compaheiro unico dos pequenos. Tambem, se o pai estava em casa era raro que dissesse alguma cousa; assentado á lareira, dormia ou limpava armas de caça. Em outro tempo contava a avó muitas historias bonitas, mas então já não contava nada, e se fallava era a meia voz e só comsigo. Joanninha assentava-se ao pé da avó com uma roca pequena e fiava; mas era um trabalho aborrecido por não haver quem conversasse. Thomé talhava em bocados de pau figuras de cães e de lebres; mas sahiam-lhe sempre mal feitas, e tantas vezes dava golpes nos dedos que perdia a paciencia e deixava a obra. O que mais o divertia era fazer casinhas com pedras e bocados de pau que ajuntava; mas as casas cahiam com grande barulho, e a avó dizia-lhe que não tinha geito nenhum para aquillo. Então dizia ás vezes Thomé com mau humor:

—Ora, porque não havemos nós de ser como os filhos dos ricos, como o filho de um fidalgo que uma vez passou na aldeia, ou como os do balio, que podem comer tudo que quizerem, ou como os filhos dos ciganos que andam por onde querem?

Em uma tarde, perto do Natal, tudo estava calado e triste. O azeite no candieiro estava quasi acabado, e o caminho para a aldeia estava tão cheio de neve que Luiza não tinha podido apparecer com as cousas {5} precisas. Não havia com que fazer arder o candieiro. Por fortuna o luar era claro como o dia; mas os pequenos tinham medo das sombras exquisitas que o luar fazia.

Joanninha chegava-se muito para a avó, e Thomé fez o mesmo e disse á velha avó em voz alta:

—Avósinha, conte-nos hoje uma historia, ainda que seja pequenina: ainda ha-de saber alguma.

—Não sei nenhuma, rapaz, resmungou a velha, mesmo nenhuma. Esqueceram-me todas.

—Só uma, avósinha; conte do anão da pedreira.

—Da pedreira, ah, sim, rapaz, espera; deixa vêr se me lembra. Onde está a grande pedreira, em baixo no barranco era em outro tempo uma rocha forte e a prumo como um muro, d'onde nunca tinha sahido nenhuma pedra, e defronte da rocha havia um pedaço de terreno coberto de viçosa verdura: por debaixo moravam os anões; descia-se por degraus ao pequenino castello da rainha dos anões, e debaixo da terra era uma cidade muito bonita. Na floresta não entravam caçadores nem cortadores de lenha nem montantes, e nos dias de sol subiam todos os anões e assoalhavam-se no musgo verde, e faziam banquetes e dançavam com muita alegria. Um dia começaram os homens de fóra a levantar casas na planicie, e entraram na floresta e cortaram arvores, e acarretaram grandes pedras para fóra. Ficou tudo cheio da entulho de redor do bello rochedo que ficava defronte do terreno cheio de verdura, e de redor da cidade dos anões. Para que os homens não podessem cortar mais pedras, foram os anões de noite todos juntos á floresta e cortaram pedras muito grandes e levaram-nas de rodo com toda a força até á entrada da mata. Os homens descontentes foram á rocha e fizeram saltar as pedras em pedaços, {6} e ellas cahiam com grande estrondo no prado. Assim ficou toda arruinada a bonita cidade dos anões, e houve muitas lagrimas e sentimento: Os anões que não tinham sido mortos, escavaram um subterraneo fóra do bosque. Lá vivem agora, e se edificaram outra cidade é cousa que não se sabe. Desde então tem rodado para fóra muitas pedras de noite; mas estão sempre a cahir outras lá dentro, e todos os annos na noite de S. Thomé, sahem elles para verem se ainda ha muitas pedras no terreno, e a quem de lá tirar n'essa noite tres pedras, não negam os anões cousa nenhuma que lhes seja pedida.

Assim contou a avó. Havia muito tempo que ella não tinha fallado tanto, e estava cançada. Joanninha estava cheia de medo e chegava-se muito para ella, mas Thomé, com as faces ardentes e olhos brilhantes, pensava na historia e bem quizera saber se os anões ainda appareciam.

Então Fiel ladrou fóra, e entrou o pai, cançado, carrancudo e gelado; mesmo ás escuras procurou alguma coasa que podesse comer; mas a velha esquecia-se d'elle muitas vezes, e elle teve de deitar-se com fome. No inverno dormia a avó na alcova e Joanninha com ella, e o pai com Thomé na salinha proxima. O pai, depois de pegar a dormir, roncava toda a noite, e não havia nada n'este mundo que o acordasse, só se fosse algum tiro dado na mata.

N'essa noite Thomé não podia dormir. Não era a primeira vez que elle ouvia contar a historia dos anões; mas nunca tinha sabido que estavam tão perto e que ainda appareciam. Batia-lhe o coração com desejos anciosos, pensando que podia com as riquezas dos anões alegrar aquella miseravel solidão dos bosques. E faltavam só dous dias para o S. Thomé! {7}

Não pôde calar-se que não dissesse na manhã seguinte ao ouvido de Joanninha:

—Joanninha, depois de amanhã, é o dia de S. Thomé; vamos tirar pedras do territorio dos anões.

Mas Joanninha olhou para elle com olhos espantados, e disse:

—Ora essa! Tu não vês que é só uma historia do que já passou ha mais de cem annos? E demais, eu morreria de medo se sahisse de noite.

Thomé ficou entendendo que nada faria com aquella maricas, apesar de Joanninha ser mais velha, e calou-se com o seu projecto.

Na noite de S. Thomé foi o pai cedo para casa, e antes de ter a avó apagado o candieiro já elle dormia como uma pedra. Thomé esperou que Joanninha tambem adormecesse; a avó sabia elle que não o ouviria ainda que estivesse acordada. Não tardou muito que tudo fosse silencio: elle não se tinha despido, puxou o barrete de pelles para as orelhas e sahiu. Fiel não estava acostumado a vêr sahir Thomé sosinho; e ficou muito espantado e resmungou quando Thomé lhe poz a mão pela cabeça.

A lua ainda brilhava clara, e no bosque havia um silencio de cemiterio que assustava Thomé; mas tomou animo, e metteu-se com passos ligeiros e firmes ao bem conhecido caminho da grande pedreira. Não se ouvia o mais leve murmurio quando elle entrou no barranco, e então estremeceu vendo a rocha escavada em que mal entrava um raio da lua. Com passos tremulos {8} foi andando até ao lugar onde tinha sido o territorio dos anões, e onde só havia então uma grande quantidade de pedras grandes e pequenas. Com as mãos a tremer, agarrou nas maiores que pôde levantar, e levou-as para fóra.

—Quem está ahi? perguntou uma voz fina, quando elle deitava fóra a ultima.

No unico lugar que a lua alumiava no barranco estava um homem muito pequeno vestido de verde, que era o que perguntava a Thomé:

—Quem está ahi?

—Sou o Thomé do guarda-matas, disse elle muito embaraçado, e tirando com todo o respeito o barrete.

—Que queres d'aqui?

—Só queria tirar pedras para que os senhores podessem viver aqui debaixo.

—Pouco podes fazer, disse o anão com tristeza, mas é uma boa obra que deve ser recompensada. O que é que desejas mais?

Thomé já tinha pensado em muitas cousas, mas n'aquella occasião não lhe lembrava quasi nada. Lembrou-se de um cavallo em que elle podesse ir á escola, de uma pipa cheia de azeite para que sempre houvesse que arder no candieiro, e de um sacco cheio de maçans e de nozes; mas nada d'isso valia o que elle tinha feito. Por fim disse gaguejando:

—Uma sacca de dinheiro.

O anão perguntou-lhe:

—Então já sabes o que isso é? Que queres fazer com o dinheiro?

Thomé respondeu um pouco animado:

—Em lugar da nossa choupana, fazia uma casa grande, muito grande, ainda maior que é na aldeia a casa do monteiro; e uma cavallariça cheia de bellos {9} cavallos em que eu podesse correr, quando tudo estivesse cheio de neve; e comprava á Joanninha um vestido novo, e um barril de azeite para não estarmos ás escuras.

—E que mais? disse o anão sorrindo; has-de fazer uma casa, mas não n'este escuro bosque; andarás por fóra da tua terra, mas para isso não precisas de cavallo; Joanninha poderá ter o vestido novo sem ser dado por ti, e quando quizeres ter azeite bastante, vai com a tua cestinha á pedreira onde acharás com que faças azeite sufficiente para arder no candieiro em dous annos. Entendo que a sacca de dinheiro não te serve de nada; ainda és muito pequeno.

—Ah, disse Thomé desanimado, a nossa vida não seria tão miseravel e tão aborrecida nas grandes noites de inverno, se tivessemos algum bonito livro de estampas.

—Lá isso, disse o anão, é cousa que póde ter bom remedio; vai descançado que depois da noite do Natal irei ter comtigo e cuidarei no modo de nunca mais te parecerem longas as noites de inverno. Alegra-te, os anões sabem pagar o bem que lhes fazem.

O anão desappareceu, Thomé ficou a tremer, e foi-se embora muito mais inquieto do que tinha sahido. Sem que ninguem ouvisse, levantou a aldrava de pau, entrou em casa, foi ao seu quarto, deitou-se, e toda a noite sonhou com o anão. Não quiz dizer nada a Joanninha, porque elle mesmo não sabia bem o que o anão faria, apesar de esperar com anciedade a chegada do Natal.

Chegou a noite de Natal, e não faltava alegria na cabaninha da floresta. O pai tinha trazido da aldeia grande quantidade de maçans e de nozes, a avó tinha dado aos pequenos duas bonitas estampas que ainda {10} achou na sua Biblia, e na manhã do dia de festa, chegou a criada da senhora do monteiro, que era madrinha de Thomé e de Joanninha, e trouxe dous bonitos corações de pão doce, um lindo gibão novo para Joanninha, e uma jaqueta bem forrada e quente para Thomé. O pai não sahiu de casa e cozinhou uma lebre. Havia muito tempo que elles não tinham vivido tão bem; mas Thomé não estava tão contente como nos outros annos, porque não sabia se o melhor ainda havia de vir.

Veio a noite e todos adormeceram, menos Thomé que se assentou na cama vestido, e pensava no que poderia trazer-lhe o seu novo amigo para passar o tempo enfadonho do sombrio inverno, quando ouviu bater de leve á porta de casa. Com algum susto e temor, mas a toda a pressa saltou da cama, e abriu ao homem pequenino vestido de verde, que não levava nada comsigo senão um vidro redondo, muito brilhante e de muitas côres.

—Leva-me ao teu quarto, disse o anão, entrando e andando mais ligeiro do que Thomé.

Foram ao quarto de dormir em que se via tudo claramente com a luz que o vidro dava. O que lá se via era um leito velho, uma mesa manca com tres pés, e duas cadeiras. O traste maior era uma alta e larga caixa, mettida na parede, ennegrecida pelo tempo, e que muitas vezes tinha sido um bom lugar para o jogo das escondidas. Nas costas da caixa havia um grande buraco redondo por onde Joanninha tinha medo de espreitar porque via tudo escuro. {11}

Esta caixa foi o que deu mais nos olhos ao anão, que entrou n'ella pela tampa meio aberta e esteve a trabalhar e a bater lá dentro algum, tempo.

—Agora, disse elle, depois que sahiu, já não haveis de passar o tempo com aborrecimento; quando as horas parecerem muito compridas, olhem pelo buraco redondo que está na caixa, seja de manhã ou seja de tarde, quando estejam sós. Adeus, rapaz; Deus te dê da sua graça.

—E antes de Thomé saber o que havia de novo, já o anão tinha sahido. Thomé não entendeu bem o que tudo aquillo queria dizer, e não se atreveu a ir logo vêr á caixa. Foi deitar-se ao pé de seu pai, e pensando e scismando se o anão fallaria seriamente ou a gracejar, adormeceu.

Na manhã seguinte o pai sahiu cedo, e Thomé não pôde calar-se, e ao pé da surda avó contou baixinho á irmã toda a sua aventura, de que ella se riu sem lhe dar credito, mas tremendo de susto. Por fim resolveu-a a ir de tarde com elle fazer a primeira visita á caixa, e como esperavam alguma cousa, não souberam n'esse dia o que era aborrecimento.

Á noite, ainda o pai não tinha entrado e a avó cabeceava com somno, quando ambos se metteram na caixa cheios de anciedade. Thomé, que era mais animoso, foi o primeiro que olhou pelo buraco onde brilhava o vidro do anão. Ah! que resplendor lhe veio bater nos olhos! Puxou logo Joanninha para si, porque a abertura era bastante larga para poderem vêr ambos ao mesmo tempo. Eram maravilhas o que elles viam, e mal se podiam conter para não darem altos gritos de espanto. Viam uma grande sala, muito grande, alumiada de um modo magestoso por lustres dourados, com muitos centos de velas de côres. E uma {12} mesa estava carregada com as cousas mais maravilhosas: soldados, de pé e de cavallo, regimentos inteiros com peças e armas, e uma cavallariça cheia de cavallos pequenos de todas as raças, e livros com ricas pinturas, e uma grande quantidade de objectos de brinquedo, que elles nunca tinham visto, e pequenas esporas de prata, e uma espingarda e espada, e um soberbo vestuario de velludo bordado a ouro. Todas estas cousas magnificas estavam dispostas sobre a mesa na melhor ordem, e ao pé havia açafatinhos e pratos com os dôces mais finos.

—Ah, de quem será isto! disseram os dous irmãos suspirando.

A porta abriu-se, e entrou um rapaz esguio e pallido, que teria dez annos, e atraz d'elle muitas senhoras e homens da nobreza vistosamente vestidos. Thomé e Joanninha pensavam que aquellas riquezas deviam pertencer a muitos meninos, e olhavam para todos os que iam entrando na sala; mas não havia outro menino senão o que entrou primeiro, e que passou por todas aquellas cousas tão ricas sem fazer muito caso d'ellas, em quanto que Thomé e Joanninha pregavam no vidro os olhos afogueados e parecia que queriam devorar todas aquellas maravilhas.

—Rapazes, onde estaes vós? gritou fóra a voz da avó.

Voltaram a cabeça assustados, e viram tudo ás escuras, como era nos outros dias, e a velha caixa estava sem luz como se nada tivesse acontecido. Aos dous irmãos ainda parecia tudo um sonho quando se assentaram ao pé do candieiro no quarto velho e defumado. N'essa noite chegaram a sentir quasi alegria por a avó ser surda, porque podiam fallar á vontade nas maravilhas que viram, e a cada um lembrava alguma {13} cousa muito bonita em que o outro não tinha reparado.

—Ai, diziam elles suspirando, que boas cousas tem aquelle menino fidalgo! Se nós tambem tivessemos cousas assim!

E ainda diziam o mesmo quando o somno lhes fechou os olhos, para ainda lhes mostrar em sonho tanta grandeza.

Antes de ser bem dia, foi Joanninha á sala da caixa. O pai não estava em casa, e por isso podiam á vontade ir olhar pelo vidro maravilhoso. Como elles desejavam ver ainda uma vez a bella sala de hontem! Agora era á luz clara do dia, mas, era quasi tão bonito como com os centos de luzes de côr: ainda havia todas as cousas ricas de hontem, mas não estavam em tão boa ordem, o menino que tinham visto estava vestido de sêda deitado sobre o sophá, com alguns dos bonitos livros espalhados de redor d'elle, e parecia estar muito aborrecido.

Quando Thomé e Joanninha se mostravam admirados de que podesse haver alguem que não estivesse contente com tão maravilhosas cousas, abriu-se uma porta da sala, e entrou um senhor de idade. Os meninos ouviram fallar como muito ao longe, mas entendiam bem o que se dizia. O velho perguntou:

—Já está enfastiado, meu caro principe, de tantas cousas que fariam felizes outros meninos?

—Outros meninos! disse o principe; os outros meninos não estão sós, e eu já vi todas as minhas cousas que me deram.

—Mas vossa alteza bem sabe que se lhe dá companhia quando a quer ter.

—Que companhia! Vem um, e diz: «Bons dias, principe»; e diz outro: «Que tem principe?»; e brincam {14} com o que eu tenho e conversam e riem uns com os outros; e quando lhes chega o aborrecimento, vão-se embora e eu fico só. Quem me dera sahir como sahem os outros meninos!

—Mas se vossa alteza quer, póde ir passear ou viajar

—Ah, sim, ir passear na sua companhia, ou andar em carro ou a cavallo acompanhado por camaristas. Que grande alegria! o que quizera era ir só e para onde me parecesse. Antes queria ser filho de ciganos do que principe.

Antes que Thomé e Joanninha podessem ouvir mais nada, chamou por elles a avó. Sahiram da caixa e o buraco ficou ás escuras.

Muito tinham os dous irmãos que dizer um ao outro! O que elles não podiam entender era porque estava o principe tão impertinente.

—Ah, como nós estariamos contentes com aquellas cousas tão bonitas! dizia Thomé suspirando.

—Sim, mas nós não estamos sós, dizia Joanninha.

—É verdade que os meninos ricos quando não estão sós, tambem estão contentes, dizia Thomé para si.

—Havemos de vêr, dizia Joanninha, se o principe ainda lá está hoje á noite.

Com grande alegria passaram elles todo o dia a conversar, e a anciedade não podia ser maior quando outra vez olharam pelo vidro.

Já não era a sala, mas sim um bosque, quasi como {15} aquelle em que elles moravam, e havia no bosque um grande pedaço de terreno sem arvores onde ardia uma fogueira; em que estava estendida uma bella peça de caça brava, e de redor da fogueira muita gente esfarrapada e enfarruscada, e alguns tocadores de instrumentos que tocavam uma musica alegre, e uma multidão de creanças que dançavam e saltavam com uma alegria de selvagens.

—Ah, isto é muito divertido, dizia Thomé.

Mas Joanninha abanava a cabeça porque não lhe agradava o que via. Um rapaz d'aquelles ciganos chegou com um grande sacco cheio de fructas seccas, e todos os pequenos o receberam com gritos de alegria, e elle despejou o sacco no chão. Todos se atiraram ás fructas seccas como quem tinha fome e comeram a bom comer. Depois começaram outra vez a saltar e a cantar desentoados, e Thomé começava a sentir desejos de tambem ir saltar com elles, quando o pai que chegava de fora os chamou para o quarto.

Toda a noute teve Thomé os ciganos na imaginação, de maneira que deu cuidado a Joanninha que pensava que Thomé podia muito bem sahir de casa de noite e fugir para os ciganos. Mesmo a dormir cantava Thomé o que tinha ouvido tocar aos ciganos.

Muito cedo, antes de acordar o pai, foi Thomé olhar pelo vidro, sem esperar por Joanninha, que só passado algum tempo é que foi ter com elle. O que viram era ainda o verde prado do bosque, mas já não havia festa. Era de manhã, a fogueira estava apagada, e os ciganos corriam para todos os lados muito afflictos e desvairados. Chegaram soldados e todo aquelle barulho e desordem acabou pela prisão dos ciganos que eram accusados de roubos. Com agudos gritos viram os pequenos dos ciganos que os soldados levavam {16} á força seus pais e suas mãis, e que outros soldados os levavam a elles para outra parte. Thomé e Joanninha não tiveram animo para vêr mais e desviaram os olhos do vidro. Joanninha disse depois a Thomé:

—Ainda querias ser filho de cigano para ter aquella vida livre que elles tem?

—É verdade, disse Thomé desanimado, quem rouba não pode ter uma vida livre.

—Os meninos ricos, tornou Joanninha, de certo passariam melhor vida, se não vivessem tão sósinhos como o principe.

Á noite não poderam ir para a caixa das vistas maravilhosas porque a avó nunca lhes deu tempo de sahirem da cozinha, e o pai foi para casa muito cedo. Por isso ainda mais desejavam que chegasse a occasião de poderem lá tornar.

Quando essa occasião chegou, viram um quarto muito bonito, não tão admiravel como a sala do principe, mas muito mais bonito do que o quarto da madrinha, com alcatifas de varias côres e bellos quadros nas paredes. O quarto estava cheio de lindas cousas para brincarem meninos e meninas. Um bonito quarto de bonecas, com senhoras e senhores muito bem vestidos, com sophás, cadeiras e caminhas pequenas, e uma cozinha cheia de louças brancas, panellas e pratos, muito mais do que havia na cozinha da avó; bonecas pequenas e grandes, quasi da altura de Joanninha, berços e cadeirinhas; e de outro lado um castello com soldados, e uma loja muito enfeitada com {17} uvas seccas, amendoas, confeitos e figos, e um carro com bahús e saccos, e lindos livros de estampas; em uma palavra, eram quasi tantas cousas como tinha o principe. Thomé e Joanninha não cabiam em si de contentamento e admiração.

Então entraram no quarto os donos de todas aquellas riquezas, que eram duas meninas e um menino. Parecia que vinham de passear. As meninas correram para as bonecas e o menino para a loja. Uma foi com um dinheiro pequenino e brilhante comprar dôces ao irmão, a outra começou a vestir as suas bonecas de uma caixinha cheia de ricos vestidos e chapelinhos.

Ah, como ficaram tristes Thomé e Joanninha quando a avó os chamou para a ceia, e como sonhavam, a dormir e acordados, com aquellas bonitas cousas, e como correram na manhã seguinte á caixa para continuarem a vêr como eram felizes os tres irmãos!

Mas já não era tudo tão bonito no quarto; as bonecas estavam no chão, e uma das meninas estava a chorar e a gritar; tinha deixado de noite as bonecas no chão e a porta do quarto aberta; a gata tinha entrado, tinha brincado com a boneca, e rasgou-lhe os vestidos de sêda e estragou-lhe as côres.

—A culpa é tua, gritou um dos meninos, porque não pozeste as cousas em ordem.

—Eu é que não tive culpa nenhuma, gritou a outra.

E n'isto correram aos empurrões para a loja, e entraram em desordem por causa de um pão de assucar que as meninas queriam ter na sua cozinha e o irmão não queria que se tirasse da loja. A questionar e a gritar entraram as meninas na loja, e muitos dos vidros do dôce foram deitados ao chão: o menino cheio de colera correu á cozinha e deitou tudo ao chão, e quebrou {18} a bonita louça que lá havia. Então foram tantos os gritos e queixas que Thomé e Joanninha não quizeram vêr mais.

Tardou muito tempo que elles podessem tornar a vêr pelo vidro. Quando chegou a occasião, o que viram foi um lindo quarto e uma mesa com quinquilherias, bolos dôces, uma bella torta, confeitos e pasteis. Estavam lá duas meninas, e parecia que era o dia dos annos de uma, que era a que tinha recebido todas aquellas cousas. Não ralhavam nem se zangavam uma com a outra como tinham feito os outros meninos, mas tambem não se podia dizer que tinham boa saude e que estavam satisfeitas. Dizia uma:

—Que te parece, Emma, vamos comer um bocadinho da tua torta?

—Eu não, Sophia; antes queria maçans.

—Maçans! pois tu não sabes que o senhor doutor prohibiu que comessemos fructa?

—Ah! tambem a torta me faz mal, e a avó foi que m'a mandou; e os dôces fazem-me doer os dentes e foram mandados pela tia.

—Então vamos brincar para o jardim, tornou Sophia.

—Pois sim, vamos; e levo o meu chapéo novo. Iam para sahir quando appareceu a mãi e perguntou:

—As meninas onde querem ir?

—Vamos só um bocadinho para o jardim, maman. {19}

—Deus nos livre d'isso: no jardim está um vento muito frio e a terra muito humida. Nada, nada. Emma viria de lá com dôres de dentes e Sophia com a tosse. Deixem-se estar aqui. Eu vou levar d'aqui para fóra todas estas cousas, porque já comeram muito, e Sophia devia agora tomar o seu remedio.

A menina Sophia fez uma careta de enjôo quando ouviu fallar no remedio. Joanninha não quiz esperar até que elle chegasse e deixaram tristes o vidro e a caixa.

Não faltava a Thomé e a Joanninha que dizer e em que pensar a respeito do que tinham visto.

—Diz-me cá, Thomé, perguntou Joanninha, parece-te que são infelizes todos os meninos que vivem no mundo?

—Não, acudiu logo Thomé, eu acho que não póde ser. Se o principe não vivesse tão só...

—Isso sim; e se os filhos dos ciganos tivessem bons pais; e se os tres irmãos não tivessem tão mau genio; e se as meninas não fossem doentes... Olha, quem é bom e de bom genio e tem saude, vive contente.

—Mas quem é pobre e só como nós? perguntou Thomé.

E Joanninha não soube o que havia de responder-lhe.

Á noite a avó adormeceu cedo, mas elles mal se atreviam a ir ao vidro receando que acabasse por cousas {20} tristes. Comtudo sempre foram. D'esta vez chegaram a gritar ambos ao mesmo tempo em voz um pouco alta: Isto é o nosso quarto e nós n'elle!

E na verdade assim era, mas o quarto era mais alumiado e mais alegre, estava com mais ordem e mais aceio e limpeza, as vidraças sujas estavam bem lavadas, na janella havia em vasos um par de plantasinhas da floresta, como Joanninha as conhecia bem, de umas que nasciam mesmo com a neve; em uma gaiola de vimes, como Thomé já tinha visto fazer aos rapazes da aldeia, saltava um passarinho, que parecia estar melhor n'aquelle quarto agasalhado do que estaria livre ao ar frio, porque cantava e trinava que era um gosto ouvil-o. E a avó assentou-se á roda de fiar e Joanninha ao pé d'ella e Thomé a pequena distancia e não estavam aborrecidos e tristes como era d'antes; e cantavam uma bonita canção que já tinham aprendido na escóla e que nunca se tinham lembrado de cantar em casa. Cantavam tão suavemente que a avó, que percebia alguma cousa, piscava os olhos de contentamento. Por fim quando acabaram de cantar, o Thomé que elles viam lá dentro pegou em um grande livro que já ha muito tempo estava cheio de pó no sobrecéo da cama da avó, desde que ella nem com as lunetas podia lêr. Thomé e Joanninha olhavam espantados, porque era verdade que sabiam lêr, mas lêr em casa era cousa em que nunca tinham pensado. O Thomé do vidro começou a lêr em voz alta de maneira que a avó o ouvia; ao principio não foi tão correntemente como o verdadeiro Thomé teria lido, mas não tardou que fosse melhor. Era a historia de S. José, que os meninos já tinham ouvido, mas já ha muito tempo, e agora parecia-lhe tão cheia de novidade e de belleza que ao Thomé do vidro escutavam com toda a attenção, {21} até que se ouviu um latido de cão. Era tambem exactamente como o latir do Fiel.

E a Joanninha que se via lá dentro levantou-se, poz um par de sapatos velhos ao calor do lume e dependurou tambem ao calor do lar uma jaqueta velha do pai, e quando o pai entrou com Fiel, tirou-lhe Thomé a jaqueta molhada e pegou-lhe na espingarda, e Joanninha deu-lhe os sapatos quentes e a jaqueta bem enxuta.

Thomé e Joanninha olhavam pasmados para aquelles cuidados com que trabalhavam as suas imagens dentro do vidro. Até então tinham visto o pai entrar e sahir sem ao menos pensarem em cuidar d'elle. O pai que elles viam pelo vidro estava muito admirado d'aquelles cuidados de seus filhos e mostrava-se muito mais meigo do que o verdadeiro pai costumava ser. Elle assentou-se á mesa, e Joanninha tinha uma ceia bem quente no lar, cousa que nunca lhe tinha lembrado, porque tambem a avó nunca pensava n'isso, e o pai batia-lhes no hombro, o que elle nunca tinha feito, e começou a fallar da mãi que Deus tinha levado para si, e que tambem cuidava muito d'elle; e tudo isso encantava tanto Joanninha e Thomé que não tinham vontade de tirar os olhos do vidro: mas a avó chamou por elles para se deitarem.

Na manhã seguinte começaram Thomé e Joanninha a viver uma vida muito differente. Joanninha limpava {22} e espanava, punha tudo em ordem e lavava a janella, de maneira que a avó, a quem aquillo parecia um sonho, perguntava: Então isto agora é uma igreja?—Como ainda não era tempo de flôres, Thomé levou do bosque alguns ramos verdes de faia, com os quaes adornou muito bem a sala. Depois ajudaram de boa vontade a avó a fazer o almoço, cousa que nunca tinham feito, e quando o comeram soube-lhes melhor do que nos outros dias. Depois assentou-se Joanninha com a roca ao pé da avó, e Thomé subiu a uma cadeira e abriu a Biblia, que estava cheia de pó como a que viram pelo vidro, e começou a soletrar. A avó escutou com muita attenção, e quando elle começou a lêr correntemente e ella ouviu pela primeira vez da bocca de seu neto a palavra de Deus, o seu coração cheio de annos sentiu-se mais novo, e ella ergueu as mãos ao céo, e não tirava de Thomé os seus olhos arrasados de lagrimas de alegria. Thomé ficou muito contente vendo o effeito da sua leitura e lia cada vez com mais fogo, e Joanninha escutava e fiava e não reparava como a manhã se passava depressa, até que a avó, que tinha o relogio na cabeça, se levantou para cozer as batatas. Então levantou-se Thomé e disse: Espere, avosinha, que eu ajudo-a.

Foram ambos os netos tirar agua ao poço e a avó não cabia em si de alegria. Nunca tinham comido tão boas batatas. De tarde lembrou-lhes cantar, e começaram baixinho, e depois foram subindo a voz, e a avó escutava ao principio como se sonhasse, e sorria com um contentamento como ha muitos annos não tinha tido.

Como passaram satisfeitos até que o pai chegou! E como elle se mostrou admirado d'aquelles cuidados que via nos filhos e que nunca mais vira desde {23} que sua mulher fôra para a sepultura. Aqueceu-se com o fato que elles lhe deram, e encantado com aquellas meiguices dos meninos começou a contar muitas cousas da sua querida Margarida que estava no céo. A avó escutava com grande alegria e de tempos a tempos dizia alguma cousa. Antes de irem deitar-se disse ella ao pai: Tu deves vêr como Thomé lê bem.

E foi buscar o seu velho livro de orações da noite. O pai, que já ha muitos annos não se lembrava de orações, escutou com viva alegria, e a voz de Thomé levava-lhe as santas palavras ao coração, que se abria para Deus. Quando Thomé fechou o livro, ergueu o pai as mãos ao céo e rezou.

Thomé e Joanninha nunca dormiram um somno tão dôce como n'essa noite.

Depois a mocidade foi passando, mas as boas obras davam alegria ao coração, o bom anjo da oração tinha entrado em casa, e fazia d'aquella socegada choupaninha um templo da paz e do amor.

Os meninos não tinham desejos de tornar a olhar para o espelho do anão, porque entendiam que não lhes podia mostrar cousas melhores do que aquella sua vida caseira, principalmente quando veio a branda primavera, e elles pensaram como haviam de dar alegria á sua casinha no proximo inverno.

Disseram-me que Thomé, passados annos, quando o pai e a avó já eram mortos, tinham corrido algumas terras, e veio a ser um habil e robusto carpinteiro que ajudou a construir muito bonitas casas e fez para si uma casinha muito aprazivel. Joanninha tinha ido para casa do padrinho, e veio a ser uma menina muito prendada e depois uma esperta aldean e boa mãi de filhos saudaveis. {24}

Os dous irmãos viveram sempre contentes com a sorte que Deus lhes deu, e quando viam de longe casas ricas, ou ricos vestidos ou custosas golosices, diziam comsigo: Aquillo talvez seja de um pobre principe, ou de algum menino de mau genio ou de alguma Emma doente. {25}

O CASTELLO ENCANTADO
OU
O MONTE DO CASTELLO DAS FADAS

TRADIÇÃO PRUSSIANA

Ao pé do rio Memer, e não longe da cidade de Tilsit, levanta-se um monte alto e redondo que se chama o monte do castello. Ha muitos e muitos annos houve alli um grande castello, como ainda hoje se póde vêr pelas ruinas das paredes, e por um fosso muito fundo e duas linhas de muralhas que estão de redor. A quem pertence e quem agora lá mora, é cousa de que ninguem sabe dar noticia, mas corre na terra uma tradição que reza que elle se aluiu de repente, e ainda hoje se mostra no cume do monte, mesmo no meio d'elle, um largo e escuro boqueirão, cujo fundo ainda ninguem pôde achar com cordas: diz-se que deve ter sido a chaminé do antigo castello. N'esses muros derribados reza a mesma tradição que é guardado um thesouro immenso por um porteiro, velhinho de cabellos brancos, que já tem sido visto muitas vezes pelos viajantes que sobem ao monte, e que ninguem até hoje tem podido ir aproveitar-se d'elle. {26}

Um dia andavam muitos rapazes de uma aldeia proxima de Tilsit a pastorear gado no monte do castello. O dia ia em mais de meio, o sol queimava e os rapazes deitaram-se á sombra de um rosal bravo e pozeram-se a contar historias. Entre outras cousas fallaram no muito ouro que estava no monte por debaixo d'elles, e mostraram desejos de que lhes apparecesse o porteiro do castello para irem atraz d'elle e deitarem mão ao thesouro. Mas mostravam esse animo por ser dia claro, porque nenhum d'elles era capaz de se deixar ficar só no monte do castello depois de escurecer.

—Sim, dizia o mais novo, fazia-me boa conta o ouro, e ainda mais a minha mãi que está velha, corcovada e trôpega e ainda se assenta á roda de fiar, ganhando assim com muito trabalho mas honestamente o escasso pão de cada dia; que alegria não seria a d'ella se eu podesse levar-lhe para casa uma boa mão cheia de dinheiro! Mas eu não quero nada com o tal phantasma do homem pequenino.

—Tolo! disseram os outros, elle não faz mal a ninguem; provavelmente descançaria e não lhe seria preciso andar a vaguear pelo monte, se alguem achasse o thesouro, porque então não teria mais que guardar.

Assim palravam elles até que um se lembrou de irem todos ao boqueirão e atirarem pedras para baixo. Mas por maiores que fossem as pedras que arrastassem até ao buraco e lançassem dentro, não ouviam cahir nenhuma no fundo.

—Se houvesse uma corda bem comprida, disse Fernando que era o mais velho, e rapaz forte e animoso, poderia um de nós descer um bom pedaço, e vêr se acharia alguma porta ou cousa semelhante que fosse dar onde está o ouro.

—Em casa de meu amo, disse outro, ha um poço, {27} e está uma corda no guindaste que com certeza é duas vezes tão comprida como este monte. Querem que a vá buscar? Em casa não está agora ninguem porque meu amo e minha ama sahiram para longe para um baptisado.

A proposta foi bem recebida por todos, menos pelo pequeno Theophilo.

—Nós, disse Fernando com os olhos afogueados, podemos talvez ser ricos com pouco custo, não precisando mais de guardar gado pelo ardor do sol; podemos mesmo comprar casa e campos e ter moços para o gado, se enchermos bem os bolsos lá em baixo. Vai buscar a corda, depois tiraremos á sorte quem ha-de descer á cova; os outros ficarão a segurar a corda em cima, e o que descer será içado logo que dê signal puxando por ella.

Todos estavam muito contentes, menos o pequeno Theophilo, que como medroso se oppunha áquella resolução, mas foi escarnecido pelos camaradas. Quando chegou a corda e foram lançadas as sortes, a quem tocou a vez foi justamente ao timorato Theophilo, que bem fugiria d'alli para longe se os camaradas não o segurassem e não o atassem á força com a corda. Gritando e bracejando, com grandes risadas dos companheiros foi lançado no boqueirão redondo e descido devagar. A ponta da corda foi atada com muita segurança ao tronco de uma arvore, e pouco a pouco foram os rapazes deixando ir cada vez mais para o fundo o seu pequeno camarada. Passados alguns minutos curvaram-se na borda do buraco e disseram: «Que vês lá embaixo, Theophilo?» Mas Theophilo só pedia que o puxassem para fóra.

A final já não se entendia o que elle dizia: a corda, que era mais comprida do que a altura da torre {28} da igreja de Tilsit, estava já a chegar ao fim, e ainda se sentia retesada e pesada, signal certo de que Theophilo ainda não tinha chegado ao fundo. Mas de repente viu-se que estava bamba. Os moços do gado deram gritos de alegria, vendo que por fim estava Theophilo em terra firme: estenderam meio corpo por sobre a borda do boqueirão; chamaram e pozeram-se a escutar, mas o silencio era de mortos. Assim esperaram muito tempo, uma hora e ainda mais; agora, diziam elles, já Theophilo tem tido tempo de ver tudo e de encher os bolsos com ouro e prata. Puxaram a corda para cima, mas a corda não trazia nada. Como esperassem ainda uma hora e outra hora sem que a corda trouxesse alguma cousa acima, começaram a affligir-se e a inquietar-se. Depois correram muito pezarosos á aldeia, e com medo de castigo disseram á velha mãi doente do seu camarada perdido que Theophilo tinha trepado sósinho ás ruinas do monte do castello e de repente tinha desapparecido.

Foi grande a angustia da pobre mãi do rapaz, cuja alegria unica era o seu Theophilo. Chorou e gemeu toda a noite, não houve somno que lhe fechasse os olhos, e bem quizera ella morrer para ir ter com seu filho ao céo, porque elle de certo tinha cahido no fundo do boqueirão do monte do castello, e lá estava despedaçado e morto.

Quando na manhã seguinte Fernando e os outros moços do gado levavam outra vez os rebanhos para o pasto da vespera, ainda afflictos pelo que tinha acontecido, correu Theophilo ao encontro d'elles na raiz do monte. Todos os seus bolsos, e o barrete, e mesmo as mãos, estavam cheias de ouro, e elle com grande alegria contou aos camaradas como tudo lhe tinha corrido bem. Disse elle: {29}

—Logo que me senti em chão firme e que me desatei da corda, vi uma porta diante de mim e por ella entrei em uma cozinha muito grande. Ardia no lar uma grande fogueira que não fazia fumo nenhum, e em toda a parte não se via senão cousas de ouro e de prata. De repente veio direito a mim um velhinho pequeno, pegou-me na mão com muito bons modos e me disse que não tivesse medo porque me assegurava que não havia alli ninguem que me fizesse mal. Então perdi o medo, e atravessei com o bom velho muitas salas cada vez mais bonitas, onde havia montes de ouro. Então deu-me o castellão differentes iguarias muito boas para comer, e mostrou-me uma cama em que eu podia dormir. O vinho muito dôce que bebi pesou-me na cabeça, e eu dormi como um morto até que o mesmo velho pequenino me foi acordar. Então encheu-me de ouro o barrete e os bolsos tanto quanto podiam levar, e disse-me: «Guarda isto em lembrança do porteiro do castello e tracta de tua velha mãi.» E pegando-me em uma mão, abriu uma porta pequena, e quando puz os pés fora, vi o céo azul e o sol da manhã, e ouvi o sino da aldeia que tocava ás ave-marias. Elle não sahiu, disse-me adeus com a mão, e desappareceu. A porta por onde tinha sahido não a tornei a vêr. Graças a Deus, tudo foi bem até ao fim. Como minha mãi vai ficar contente!

E Theophilo correu logo á aldeia, sem dar mais ouvidos aos seus camaradas que bem queriam ouvir contar mais alguma cousa.

—Agora, disseram elles uns para os outros quando viram as grandes riquezas com que Theophilo appareceu, devemos ir tambem ao bom porteiro velho e trazer alguma cousa do seu thesouro. Vamos vêr a quem por sorte caberá a vez de ir lá abaixo. {30}

—Para que ha-de ser á sorte? disse Fernando; eu sou o mais velho de todos, e hei-de ser o primeiro a descer. A quem não estiver pelo que digo, provarei que está do meu lado o direito do mais forte.

Os camaradas resmungaram, mas não se atreveram a resistir ao robusto rapaz, e por isso foi Fernando descido ao boqueirão, depois de ter primeiro tirado o seu pão da saccola pastoril, para ter onde deitar muito ouro que esperava receber do porteiro do arruinado castello. De novo se mostrou a corda retesada quasi até ao fim, e os outros a colheram sem que trouxesse nada, mas não esperaram que o camarada sahisse para fóra n'aquelle mesmo dia, porque sabiam que elle tinha lá em baixo boas cousas para comer e uma cama bem fofa para passar a noite, e que lhes appareceria de manhã muito alegre, como o pequeno Theophilo, ao pé do monte. A ausencia de Fernando foi pouco notada na aldeia; os companheiros levaram-lhe a casa o gado, e elle não tinha uma mãi que o chorasse.

Na manhã seguinte todos os outros cheios de impaciencia sahiram com o gado mais cedo do que costumavam, mas não encontraram Fernando. Esperaram um pouco, depois correram ao alto do monte, deitaram a corda ao boqueirão, e inquietos chamaram o camarada pelo nome. Mas não houve resposta. Depois ninguem tornou a ver Fernando, nem appareceu ninguem que tivesse animo para descer ao fundo do monte do castello, e apanhar o thesouro que lá está enterrado. {31}

GRATIDÃO DE UM FILHO
E
INGRATIDÃO DE OUTRO

(Hebel.)

Quem reparar um pouco, ha de ver muitas vezes que o homem na velhice é tratado por seus filhos exactamente do mesmo modo, como elle havia tratado seus paes, quando erão velhos e já sem forças. E isto comprehende-se bem. Os filhos aprendem com os paes; não veem nem ouvem mais ninguem, e por isso seguem o seu exemplo. Assim se verifica naturalmente o que tantas vezes se diz, e está escripto: «a benção e a maldição dos paes vem cair sobre os filhos.»

Ouçamos agora duas historias que se contão a proposito d'isto: a primeira é digna de imitação; a segunda merece ser muito meditada.

Uma vez um certo principe foi dar um passeio a cavallo, encontrou-se com um camponez diligente e alegre, que andava a trabalhar em um campo, e poz-se a conversar com elle.

D'alli a alguns dias soube o principe que o campo não era propriedade d'aquelle homem, o qual não passava d'um jornaleiro que pela modica quantia de tres tostões por dia cuidava do seu amanho. O principe, que para os pesados encargos do governo precisava {32} de enormissimas sommas, não podia comprehender como tres tostões diarios erão meios bastantes para o nosso homem viver, e de mais a mais de rosto tão alegre. Este porém respondeu-lhe: «Nada me faltaria, se eu pudesse dispôr de todo esse dinheiro: a terça parte chega-me bem; com um terço pago as minhas dividas e a terça parte restante pertence ás minhas economias.» O bom do principe ficou ainda mais admirado. Mas o camponez continuou: «O que tenho, reparto-o com meus paes, que são velhos e já não podem trabalhar, e com meus filhos, que andão por ora a aprender; áquelles pago-lhes o amor com que me tratárão na minha infancia, e d'estes espero que não me abandonarão tambem na minha cansada velhice.» Não é verdade que tudo isto foi muito bem dito, é ainda melhor pensado, e ainda muito melhor executado? O principe recompensou aquelle homem de bem, olhou com desvelo pelos filhos, e a benção que os paes lhe lançárão ao morrer, foi-lhe retribuida pelos filhos agradecidos com amor e amparo.

Havia porém outro homem que tratava tão mal seu pae, a quem a edade e as doenças tinhão na verdade tornado impertinente, que o velhinho mostrou desejos de entrar em um hospital de pobres, que havia na mesma aldeia. Alli esperava elle, apesar do pouco affecto, pelo menos vêr-se livre das reprehensões que em casa lhe amarguravão os ultimos dias da vida. O filho ingrato saltou de contente apenas soube dos desejos do pobre velho, e ainda antes de o sol se esconder por detraz das montanhas visinhas, já elles estavão satisfeitos. Mas no hospital não encontrou elle tudo quanto desejava, e passado algum tempo pedíu ao filho, como ultimo favor, que lhe mandasse dois lençoes, para não ter de dormir toda a noite na palha {33} estreme. Procurou este os peores que tinha, e chamando seu filho, creanca de dez annos, ordenou-lhe que os levasse ao hospital.

Ficou porém admirado ao vêr que o pequeno escondia a um canto um dos lençoes e só levava ao avô o outro; e apenas elle veio, perguntou-lhe porque tinha feito aquillo. O filho respondeu friamente que tinha guardado um dos lençoes para o dar ao pae, quando mais tarde o mandasse para o hospital.

Que lição tiramos d'aqui?

Honra teu pae e tua mãe, para que sejas feliz.

O CHAPELINHO VERMELHO
OU
A FADA E O LOBO

Era uma vez uma rapariguinha da aldeia, a mais bonita que-podia haver: sua mãe adorava-a, e sua avó, que era a Fada dos jasmim , ainda mais. Esta {34} boa mulher deu-lhe de presente um chapelinho vermelho, que lhe ficava tão bem, que a chamaram o Chapelinho Vermelho.

Um dia sua mãe, tendo feito alguns bolos, disse-lhe:—Vae ver como está tua avó, pois que me disseram que ella estava doente; leva-lhe este bolo e este pote de manteiga. O Chapelinho Vermelho partiu logo para casa de sua avó, que morava n'outra aldeia. Passando n'um bosque, encontrou um lobo com cara de gente, que tinha boa vontade de a comer; mas não ousou fazel-o, por temor de alguns carvoeiros que estavam na floresta. Perguntou-lhe onde ella ia; e a pobre pequena, que não sabia que era perigoso dar attenção a um lobo, respondeu:—Vou ver minha avó, e levar-lhe um bolo com um pote de manteiga, que minha mãe lhe manda.—Ella mora muito longe? perguntou o lobo.—Não, senhor, respondeu o Chapelinho, é além d'aquelle moinho, que vossê vê lá ao longe, na primeira casa da aldeia.—Pois bem, disse o lobo, eu tambem quero ir vel-a, vou por este caminho, tu irás por aquelle, e veremos quem chega lá primeiro. O lobo poz-se a correr a toda a pressa pelo caminho mais curto; e a pequenina foi pelo caminho mais comprido, divertindo-se a colher avelãs, a correr atraz das borboletas, e a fazer ramalhetes das flores que via. O lobo não tardou muito a chegar a casa da avó, e bateu á porta: truz, truz, mas ninguem respondeu, porque a Fada dos jasmins , sabendo quem era, quiz fazel-o persuadir que não havia gente em casa.

Tendo o lobo batido mais duas vezes, sem que lhe respondessem, suppôz que a avó do Chapelinho Vermelho havia saido, e resolveu entrar na casa, para esperar as duas e comel-as. Assim resolvido, levantou a aldraba, e abrindo-se a porta, entrou na casa, onde {35} não viu ninguem; porque a Fada se havia escondido em um armario, que estava á cabeceira da cama, d'onde via e observava tudo. O lobo deu duas voltas pela casa, e, vendo-a sósinha, fechou a porta com a aldraba e foi deitar-se na cama da avó, á espera da primeira que apparecesse. Pouco tempo depois chegou o Chapelinho Vermelho, que bateu á porta: truz, truz, —Quem está ahi?—O Chapelinho Vermelho, que ouviu a voz grossa do lobo, teve medo ao principio; mas pensando que sua avó estava rouca, respondeu:—É sua neta Chapelinho Vermelho, que lhe traz um bolo e um potesinho de manteiga, que minha mãe lhe manda. O lobo gritou-lhe, amaciando a voz:—Levanta a aldraba. A pequenina levantou a aldraba, e a porta abriu-se. O lobo, vendo-a entrar, lhe disse, escondendo a cabeça debaixo dos lençoes:—Põe o bolo e o potesinho de manteiga em cima da mesa, e vem-te deitar commigo. O Chapelinho Vermelho foi-se metter na cama; mas ficou muito admirada de ver sua avó despida. A pequenina lhe disse:—Ó minha avó! como os seus braços são compridos!—É para melhor te abraçar, minha neta.—Ó minha avó! como as suas pernas são grandes!—É para correr melhor, minha neta.—Minha avó! as suas orelhas são bem compridas!—É para escutar melhor, minha neta.—Minha avó! que olhos tem tão grandes!—É para ver melhor, minha neta.—Minha avó! para que tem dentes tamanhos!?—É para te comer. E dizendo estas palavras, este mau lobo lançou-se sobre Chapelinho Vermelho para comel-a; mas estacou de repente, ficando sem movimento, porque a Fada , saindo do escondrijo, lhe tocou com a sua varinha de condão . O Chapelinho Vermelho deu um grito de alegria ao ver sua avó, que tirou a netinha de ao pé do lobo, mais morta que viva, pelo susto que tivera. Então {36} disse a Fada para a netinha:—Que castigo se ha de dar áquelle malvado lobo, que te queria devorar?—Dê-lhe, minha avósinha, o castigo que quizer, respondeu o Chapelinho Vermelho.—Pois então vae para a janella, que verás o que nunca viste. Estando o Chapelinho Vermelho á janella, viu saír de casa o lobo, todo coberto de busca-pés (é d'este tempo que data o descobrimento da polvora) desde a ponta do rabo até á do focinho, e ouviu dizer a sua avó:—Vae, malvado, correndo por ahi fóra até que vás apagar o fogo no poço do moinho, onde morrerás afogado. Isto dito, começaram os busca-pés a arder, dando tiros tão medonhos, que o lobo fugiu espavorido, e julgando apagar o fogo com agua, foi lançar-se ao rio, que corria perto, afogando-se justamente no poço do moinho , que desde então ficou sendo o poço do lobo .

Depois d'isto disse a Fada para o Chapelinho Vermelho:—has de prometter-me que de hoje em diante, quando tua mãe te mandar a algum recado, não te has de demorar pelo caminho, nem conversar com quem não conheces, dizendo-lhe o que vaes fazer; e se assim o fizeres, dou-te por dom que serás mui formosa e casarás com um grande fidalgo.

E assim foi: pois crescendo o Chapelinho Vermelho, fez-se tão discreta e tão formosa, que foi pedida em casamento por um grande fidalgo da visinhança, com o qual casou e viveu muito feliz. {37}

O FATO NOVO DO REI

(Anderson).

Era uma vez um rei que gostava tanto de roupas novas, que empregava em se vestir todo o dinheiro que tinha.

Se passava revista aos seus soldados, se apparecia nos espectaculos ou passeios publicos, não tinha outro fim em vista que não fosse mostrar como ia vestido. Era um fato para cada hora do dia; de maneira que assim como é costume dizer-se de qualquer rei: «Sua magestade está em conselho de ministros», a respeito d'este dizia-se: «Sua magestade está no seu guarda-roupa».

A capital em que elle vivia, era uma cidade alegre, principalmente pelo grande numero de estrangeiros que alli concorrião. Um dia chegárão áquella cidade dois impostores que se annunciárão como tecelões, dizendo que sabião tecer um panno como nunca se vira. Era um estofo notavel, não só pela belleza das côres e do desenho, mas sobretudo porque tinha a maravilhosa qualidade de se tornar invisivel para quem não exercesse, como devia, o seu emprego, ou fosse demasiadamente estupido.

—Uma roupa d'esse panno deve ser impagavel—disse comsigo o rei;—por meio d'ella chegarei a conhecer quaes são os homens incapazes do meu reino, e poderei distinguir os intelligentes dos estupidos. Um {38} fato assim é uma cousa indispensavel.—Em seguida mandou adeantar aos homens muito dinheiro para poderem desde logo dar começo á obra.

Os aventureiros armárão effectivamente dois teares e pozerão-se a fingir que trabalhavão, embora nas lançadeiras não houvesse nem sombra de fiado. A cada passo estavão a pedir seda da mais fina e ouro do melhor quilate, que ião ensacando, sem todavia deixarem de trabalhar nos teares vasios até alta noite.

Passado algum tempo, lembrou-se o rei de sair para ver em que altura ia o artefacto. Sentiu-se porém seriamente embaraçado, quando se recordou de que o estofo não podia ser visto por quem fosse tolo ou não exercesse condignamente o seu mister. Não era porque duvidasse de si; em todo o caso julgou prudente, pelo sim, pelo não, mandar adeante alguem que examinasse o estofo. Toda a cidade sabia da qualidade maravilhosa que elle tinha; cada um estava ancioso por saber se o seu vizinho era idiota ou inhabil.

—Vou mandar o meu velho e honrado ministro,—disse comsigo o rei.—Ninguem, como elle, para avaliar a obra, porque alem de ser um homem fino, é irreprehensivel no desempenho das suas funcções.

O ministro entrou na sala onde trabalhavão os dois impostores, e arregalando muito os olhos, disse de si para si:—Meu Deos, não vejo nada!—Mas, nem palavra. Os dois tecelões pedirão-lhe que se approximasse, e perguntárão que tal achava o desenho, e se as côres erão ou não magnificas. Ao mesmo tempo apontavão-lhe para os teares, onde o velho ministro tinha os olhos pregados, mas onde não via nada, pela simples razão de não haver lá nada que vêr.

—Pois na realidade, serei eu tambem um asno?—perguntava elle a si mesmo.—É preciso que ninguem {39} o suspeite. Serei eu incapaz de exercer o meu cargo? Não! não darei a saber a ninguem que não vi o tecido.

—Então, que dizeis?—perguntou um dos tecelões.

—Admiravel, é uma cousa surprehendente!—respondeu o ministro, pondo os oculos.—Este desenho, estas côres... vou immediatamente participar ao rei que fiquei satisfeitissimo.

—Isso é uma grande honra para nós,—disserão os dois tecelões, e começarão a chamar-lhe a attenção sobre as côres e desenhos imaginarios, aos quaes elles tinhão o cuidado de ir dando um nome. O ministro ouviu attentamente, para repetir deante do rei tudo quanto elles dizião.

Alguns dias depois o rei mandou outro funccionario honesto examinar o estofo e vêr se estava prompto. Aconteceu a este o que tinha acontecido já ao ministro: por mais que olhasse, não via nada.

—Não é verdade que isto é um tecido admiravel?—perguntavam os dois impostores, e ião mostrando as côres e desenhos que não existião.

—Pois eu não sou tolo!—pensava o homem.—Dar-se-ha o caso que eu não seja digno de exercer o meu emprego? Isso é singular; mas eu farei por o não perder.—E em seguida elogiou muito o tecido, e louvou sobretudo a escolha das côres e do desenho. Foi dizer ao rei que o estôfo era magnifico, e d'ahi a pouco não havia ninguem que não fallasse nelle.

Por ultimo quiz o rei ir vê-lo pessoalmente, emquanto estava ainda no tear, e acompanhado d'um grande sequito de pessoas escolhidas, entre as quaes se encontravão os dois funccionarios honestos, dirigiu-se ao logar onde os dois trapaceiros continuavão {40} a trabalhar com todo o cuidado, mas sem fio de seda ou de ouro, nem especie de fiado algum.

—Então não é excellente?—perguntárão os dois ministros.—O desenho e as côres são dignas de vossa magestade.—E apontavão para os teares vasios, como se os outros pudessem ver ahi alguma cousa.

—Que é isto?—disse comsigo o rei—eu não vejo nada. Acaso serei eu imbecil?! Não serei digno de ser rei? Esta é a maior infelicidade que me podia acontecer.—Depois exclamou de repente:—Magnifico! Declaro-me completamente satisfeito.

Abanou a cabeça em signal de approvação, e contemplou o tear sem se atrever a dizer a verdade. Todos os do sequito contemplarão tambem, sem comtudo nada verem, e disserão com o rei:—É magnifico!—Depois aconselhárão-no que estreasse o fato novo numa procissão que devia sair d'ahi a pouco.—É magnifico! admiravel! excellente!—dizião todos á uma; e a alegria era indescriptivel.

Os dois impostores forão condecorados, e recebêrão o titulo de tecelões da casa real. Na vespera da procissão trabalharão toda a noite á luz de dezeseis velas.

A final fingirão tirar a peça do tear; cortárão, no ar, com grandes tesouras; coserão com agulhas desenfiadas, e depois de tudo isto disserão que estava prompto o fato.

Veio o rei em pessoa, acompanhado dos seus ajudantes de campo, e os dois trapaceiros com os braços levantados como se segurassem alguma cousa, disserão:—Aqui tem vossa magestade a calça, a casaca e o manto. Tudo isto é leve como uma teia de aranha. Ha-de parecer a vossa magestade que não traz nada {41} sobre o corpo, mas é justamente nisto que está a principal qualidade do tecido.

—É verdade,—respondêrão os ajudantes de campo, mas sem verem nada.

Em seguida os tecelões pedirão ao rei que se collocasse deante d'um espelho, afim de lhe provarem o fato, e depois de o despirem todo, fingirão que lhe vestião uma por uma as differentes peças. O rei ia-se mirando e remirando ao espelho.

—Que bem lhe fica! que bem talhado!—exclamavão todos os cortezãos.—Que desenhos! E as côres? É um fato precioso!

—Está lá fora o pallio, debaixo do qual vossa magestade tem de ir na procissão,—disse o mestre de ceremonias.

—Bom, eu estou prompto—respondeu o rei;—penso que assim não vou mal.—E viu-se ainda uma vez ao espelho, para contemplar o esplendor em que ia.

Os caudatarios apalpárão o chão, como se quizessem levantar a cauda do manto, e caminhárão com os braços estendidos como se segurassem alguma cousa, não querendo dar a entender que não vião nada.

Assim caminhava o rei debaixo do magnifico pallio, e toda a gente da rua e das janellas exclamava:—Que sumptuoso vestido! que bella cauda tem o manto! o feitio é irreprehensivel!—Ninguem queria dar a conhecer que não via nada, para não ser taxado de estupido ou incapaz de exercer o seu emprego. Nunca fato algum do rei tinha dado tanto na vista.

—Mas o rei vae nú;—gritou uma creancinha.

—Meu Deus! escutae a voz da innocencia—disse o pae.

Immediatamente correu por toda a multidão, que {42} uma creança dissera que o rei ia nú; e a final exclamárão todos á uma:—O rei vae nú!

Este sentiu-se extremamente mortificado, porque lhe parecia que tinha razão; mas cobrou animo e disse comsigo:—Seja o que for, é indispensavel que eu fique até ao fim.—Depois tomou uns ares ainda mais magestosos, e os caudatarios continuarão a segurar, com todo o respeito, a cauda que não existia.

AS FADAS
OU
A MENINA BEM CREADA

Era uma vez uma viuva, que tinha duas filhas; a mais velha parecia-se tanto no genio e na cara com a mãe, que quem via uma, via a outra. Ambas eram tão orgulhosas e tão desagradaveis, que se não podia viver com ellas. A mais moça, que era o retrato de seu pae, pela bondade, era ao mesmo tempo uma das mais lindas raparigas que se podiam ver. Como naturalmente {43} se ama o seu similhante, esta mãe era douda por sua filha mais velha, e ao mesmo tempo tinha uma forte aversão para a mais nova, que mandava comer na cozinha, e trabalhar continuamente.

Entre outras cousas era preciso que esta menina fosse duas vezes por dia buscar, a uma meia legua grande de sua casa, um grande cantaro cheio de agua. Um dia, que a infeliz creança estava n'esta fonte, chegou-se a ella uma pobre mulher, e lhe pediu que a deixasse beber.—Pois não! minha senhora, disse esta bella menina; e dizendo estas palavras, tomou agua no melhor sitio da fonte, e lh'a apresentou, sustendo o seu cantaro, para que ella podesse beber mais facilmente. A boa mulher, tendo bebido, lhe disse:—A menina é tão bonita, tão boa, é tão bem creiada, que não posso deixar de lhe fazer um dom . (Era uma Fada, que tinha tomado figura de uma pobre aldeã, para ver até onde iria a boa educação d'esta menina.) Eu dou-lhe por dom , continuou a fada, que a cada palavra que disser, sair-lhe-ha da bôca uma flor e uma pedra preciosa. Quando esta boa menina chegou a casa, a mãe ralhou-lhe por haver tardado tanto tempo.—Perdoe-me, minha mãe, por ter tardado. E dizendo estas palavras, deitou pela bôca duas rosas, duas perolas, e tres bons diamantes.—Que é isto? disse a mãe, admirada. Quem te deu isto, minha filha? (Era a primeira vez que a tratava por sua filha.) A pobre menina contou-lhe tudo o que lhe tinha acontecido, não sem deitar pela bôca uma infinidade de diamantes.—Realmente, disse a mãe, vou mandar lá tua irmã. Vem cá, Mariquinhas, vem ver o que sáe da bôca de tua irmã quando ella falla; queres tu ter o mesmo dom? Vae buscar agua á fonte, e quando uma pobre mulher {44} te pedir de beber, dá-lh'a com muita civilidade.—Pois não! respondeu a mal-creada; eu ir á fonte!—Quero que lá vás, disse a mãe, e já. Maria foi, mas resmungando. Pegou no mais bonito jarro de prata que havia na casa, e chegou á fonte. Viu logo sair da floresta uma dama magnificamente vestida, que lhe pediu agua para beber. Era a mesma Fada que tinha apparecido a sua irmã, mas que tinha tomado a figura e os vestidos de uma princeza, para ver até onde iria a má creação d'esta rapariga. Porventura eu vim cá para lhe dar de beber? disse a mal-creada orgulhosa. Era o que me faltava trazer eu um jarro de prata para dar de beber á senhora: ora beba na fonte, se quizer.—Sois bem pouco politica! replicou a Fada, sem se encolerisar. Pois bem, já que é tão mal-creada dou-lhe por dom , que a cada palavra que disser, sair-lhe-ha da bôca uma serpente e um sapo. Voltou a casa, e sua mãe gritou:—Minha filha! minha filha! então que ha?—Nada, minha mãe! respondeu ella, deitando pela bôca duas serpentes e um sapo.—Oh céos! exclamou a mãe; que vejo! É tua irmã que tem a culpa; ha de pagar-m'o. E dizendo estas palavras, correu a ella para lhe bater.

A pobre menina fugiu para a floresta visinha. O filho do rei, que voltava da caça, encontrou-a, e vendo-a tão linda, perguntou-lhe o que ella fazia alli sósinha, e porque chorava!—Oh! meu senhor, é porque minha mãe pôz-me fóra de casa. O filho do rei, que viu sair-lhe da bôca seis perolas e seis diamantes, pediu-lhe que lhe dissesse d'onde isto vinha. Ella contou toda a sua historia. O filho do rei ficou namorado d'ella; e considerando que um tal dom valia mais que tudo o que se podia dar em dote a uma princeza, levou-a {45} para o palacio de el-rei seu pae, onde casou com ella. Sua irmã fez-se aborrecer tanto, que sua propria mãe a pôz fóra de casa; e esta desgraçada, depois de ter corrido bastante sem achar ninguem que quizesse recolhel-a, morreu no meio de um bosque.

A RAPARIGUINHA DOS LUMES PROMPTOS

( Andersen —traducção de José Joaquim Rodrigues de Freitas.)

Estava horrivelmente frio, geava, e era quasi noite escura, a ultima do anno.

Estava assim escuro e frio, quando caminhava pela rua uma rapariguinha com os pés nús e a cabeça descoberta. Tinha calçado chinelas ao sair de casa, mas de que lhe servírão? Erão muito grandes, e tanto, que a mãe as tinha usado até então; demais, a pequena perdeu-as ao atravessar á pressa uma rua, fugindo de dois carros que rodávão com velocidade de pôr medo. Uma das chinelas não a poude tornar a achar; e a outra apanhou-a um rapaz, e lá foi a correr com ella; até se lembrou que lhe serviria de berço, caso viesse a ter filhos.

Assim caminhou a rapariguinha com os pésinhos {46} nús e rôxos de frio. Trazia num avental velho uma porção de lumes promptos, e na mão um maço d'elles. Ninguem lhe comprára nada todo o dia, ninguem lhe fizera presente de cinco réis.

Imagem da miseria, a pobre pequena ia-se arrastando a tremer de frio e fome!

Os flocos de neve cobrião-lhe o cabello comprido e louro, que em formosos anneis lhe caía pelo collo abaixo; mas, em verdade, n'isto pensava ella!

De todas as janellas brilhavão luzes; e vinha de lá um delicioso cheiro a ganso assado; era a noite de S. Silvestre; e n'isto pensava ella!

A um canto formado por duas casas, uma das quaes era mais saliente do que a outra, sentou-se ella, e, como poude, conchegou-se; metteu bem para dentro os pésinhos, mas ainda mais lhe arrefecêrão; e não ousava ir para casa por não ter vendido phosphoros, nem arranjado dinheiro.

Bem sabia que o pae lhe havia de bater, e em casa tambem estava frio; cobria-a só o telhado, pelo qual o vento assobiava, ainda quando se tapavão os buracos maiores com palha e farrapos.

O frio quasi lhe não deixava mover as mãos.

Ah! um lume prompto podia fazer-lhe bem; se tirasse um do mólho, se o accendesse na parede, e se aquecesse a elle os dedos!

Tirou um. Zahs! Como scintillava, como ardia! Era uma chamma quente e brilhante, era uma luzinha; poz sobre ella as mãos, era uma luzinha maravilhosa. Á rapariguinha pareceu que estava deante de um grande fogão de ferro todo guarnecido de latão polido. Abençoado fogo, que tão bem aquecia! Mas a chammasinha apaga-se, o fogão desapparece, ficárão-lhe na mão só os restos do lume prompto que ardêra. {47}

Accendeu outro na parede, este alumiava e tornava transparentes como um véo os logares da parede em que os seus raios incidião: podia assim vêr para dentro da sala.

A mesa tinha uma toalha branca de neve, sobre a qual luzia louça de porcellana; o ganso assado, cheio de maçãs e ameixas sêcas, exhalava deliciosos vapores. E o que ainda era mais bello: o ganso saltava do prato abaixo, cambaleava pelo chão adeante, e vinha até á pobre creança, trazendo no peito a faca e o garfo.

Lá se apagou o lume prompto, e só ficou a parede, espessa, fria e humida.

Ella accendeu ainda um phosphoro. E eis que lhe pareceu estar sob a magestosa arvore do Natal, ainda maior e mais adornada, que a outra que vira ao travéz da janella da casa d'um rico negociante. Milhares de luzes ardiam nos ramos verdes; e imagens variegadas, como numa vitrina, olhavão para a rapariga. A pequena estendeu para ellas as mãos; e eis que se apagou o lume prompto.

As luzes do Natal subirão mais e mais; parecião-lhe estrellas no céo; uma d'ellas caiu formando longo rasto luminoso.

Alguem que morre, disse comsigo a rapariguinha; porque a avó, unica que lhe tivera amor, e que já era fallecida, lhe contára que uma alma sobe para Deos, quando uma estrella cáe para a terra.

Accendeu mais outro phosphoro; a luz fêz-se de novo, e no meio do brilho d'ella erguia-se a velha avó, tão resplendente e pura, tão cheia de doçura e de amor!

Minha avó, exclamou a pequena. Oh! leva-me comtigo. Eu sei que tu desapparecerás quando o phosphoro se apagar. Has-de passar como o fogão quente, como {48} o delicioso ganso assado, e como a grande e magestosa arvore do Natal!

E rapidamente accendeu todo o mólho de phosphoros, a fim de ter alli a avó bem segura.

E os phosphoros fulgurárão com tal brilho, que havia luz mais viva do que em pleno dia; a avó nunca fôra tão alta nem tão formosa: tomou nos braços a rapariguinha, e ambas voárão pelas regiões da luz e da alegria até muito alto, muito alto; não havia lá nem frio, nem fome, nem angustia: erão perto de Deos.

Mas encostada ao canto da parede, quando veio o frio amanhecer, estava a pobre rapariga com as faces vermelhas e um sorriso nos labios; matou-a o gêlo na ultima noite do anno velho.

E o sol do anno novo passou sobre o seu cadaversinho.

Immovel estava a rapariguinha: alli estava ella com os phosphoros, dos quaes havia queimado um maço.

Ninguem suspeitava quanto ella vira de bello, e em que brilhante região entrára com a avó no dia de anno novo.

FIM DA SEXTA PARTE