The Project Gutenberg eBook of A Biblia da Humanidade

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Title : A Biblia da Humanidade

Author : Antero de Quental

Release date : June 18, 2010 [eBook #32868]
Most recently updated: January 6, 2021

Language : Portuguese

Credits : Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A BIBLIA DA HUMANIDADE ***

  

ANTHERO DE QUENTAL

ANTHERO DE QUENTAL

A BIBLIA DA HUMANIDADE

BARCELLOS
Typographia da Aurora do Cavado
Editor— R. V.
1895

Tiragem apenas de 100 exemplares:

20 em papel de linho.

80 em papel d'algodão.

N.º___

Collaborou Anthero do Quental, assiduamente, em verso e prosa, com João de Deus e outros vultos litterarios da geração de 1864, no Seculo XIX , periodico que n'esse anno se publicou em Penafiel, sob o influxo e direcção de Germano Vieira Meirelles, seu condiscipulo na Universidade, {6} como elle formado em Direito no anno de 1863, um dos mais pujantes e promettedores talentos d'essa geração, com cedo roubado ao renome que por certo conquistaria, se a vida lhe fôra mais longa, no mundo das lettras e da politica.

Entre outros escriptos de Anthero ahi sahidos, lugar mui saliente occupa A Biblia da Humanidade , trabalho philosophico de ancha envergadura e largos horisontes, que pena é ter ficado incompleto.

Não obstante isto entendi que deveria elle entrar, por seu incontestado valor, na collecção, em que tão piedosamente ponho empenho, de todas as suas obras esparsas, e para o presente opusculo o traslado. Constitúe elle já o duodecimo da mesma collecção, e no intento proseguirei eu de a esta trazer tudo o que de Anthero se não ache publicado em volume sobre si.

Nenhum interesse material me açula n'este meu proposito, que nem um só dos exemplares de qualquer dos opusculos, que vou fazendo sahir a lume, é exposto á venda, mas apenas e só n'elle me anima {7} o vehemente desejo de reunir e facilitar materiaes para uma edição completa da obra de Anthero do Quental, edição em que não ficarião, creio eu, na sombra e nem sequer na penumbra, alguns dos seus trabalhos ainda não reunidos em volume, e alguns até incompletos, tão radiosa a luz que d'elles resalta.

R ODRIGO V ELLOSO

{8}
{9}

A BIBLIA DA HUMANIDADE

I

Dentro do homem existe um Deus desconhecido, não sei qual, mas existe—dizia Socrates soletrando com os olhos da razão, á luz serena do ceu da Grecia, o problema do destino humano. E Christo com os olhos de fé lia no horisonte {10} annuveado das visões do propheta esta outra palavra de consolação—dentro do homem está o reino dos ceus. Profundo, altissimo, accordo de dois genios tão distantes pela patria, pela raça, pela tradicção, por todos os abysmos que uma fatalidade mysteriosa cavou entre os irmãos infelizes, violentamente separados, d'uma mesma familia! Dos dois polos extremos da historia antiga atravez dos mares insondaveis, atravez dos tempos tenebrosos, o genio luminoso e humano das raças indicas e o genio sombrio, mas profundo, dos povos semiticos, se enviam como primeiro mas firme penhor da futura unidade, esta saudação fraternal, palavra de vida que o mundo esperava na angustia do seu cahos—o homem é um Deus que se ignora.

Grande e soberana consolação a de ver essa luz de concordia raiar do ponto do horisonte aonde menos se esperava, {11} de ver uma vez unidos, conciliados esses dois extremos inimigos, esses dois espiritos rivaes cuja luta entristecia o mundo, echoava como um tremendo dobre funeral do coração retalhado da humanidade antiga! Os combatentes no maior ardor da peleja, fitam-se, encaram-se com pasmo, e sentem as mãos abrirem-se para deixar cair o ferro fratricida. Estendem os braços... somos irmãos!

Primeiro encontro, santo e purissimo dos promettidos da historia! Manhã suave dos primeiros sorrisos, dos olhares timidos mas leaes d'esses noivos formosissimos, que o tempo aproximava assim para o casamento mysterioso das raças!

Não ha no mundo palacio do rei digno de lhes escutar as primeiras e sublimes confidencias! só um templo, alto como a cupola do ceu, largo como o vôo do desejo puro, como a esperança do {12} primeiro e innocente ideal humano.

Esse templo tiveram-no. Naquella palavra de dois loucos se encerra tudo. Nenhuma montanha tão alta, aonde a olho nú se aviste Deus, como o vôo d'esta phrase, a maior revelação que jamais ouvirá o mundo—dentro do homem está Deus.—

II

Este facto unico, aos olhos dos que lêem a historia nas lettras impalpaveis mas luminosas das ideias, e não nos hieroglificos barbaros e confusos dos acontecimentos fataes, basta a explicar o misterio que segue tudo o que depois virá.

A adopção do ideal hebraico pelo genio grego: o christianismo, misterioso hospede oriental recebido com amor sob o tecto cheio de luz do Occidente; Jesus {13} sentado entre os philosophos da Alexandria escutado e applaudido no Agora de Athenas; Christo descendo da sua cruz da Judea para, subindo ao Capitolio romano, estender os braços e tomar posse do mundo—este drama da fortuna inexplicada d'um Deus desconhecido, esta Odisseia das perigrinações da religião d'um mundo, acolhida, amada entre os cultos d'outro mundo tão distante—que ha em tudo isto d'incrivel? No dia em que Socrates exclamou «ha um Deus no homem» o primeiro arco da ponte extraordinaria estava lançado: ficou firme, sustido no fundo do oceano. Christo completou este caminho maravilhoso, lançou o segundo arco! Desde essa hora os filhos da Sára oriental podem atravessar de novo o Mar Roxo a pé enxuto: e a terra promettida, o occidente de doce e humana luz, cá está para os receber em seu seio vastissimo. {14}

O milagre, o milagre verdadeiro, começara ha seculos—o ideal commum—a unidade na aspiração. A realisação devia para ambos ser igual. A mesma prece deve subir ao mesmo céo. Egual desejo devia tarde ou cedo affirmar-se na mesma realidade. Maria é a irmã das Sybilas... Jesus por que não será então o irmão de Socrates? As differenças de genio, de raça, nada são aqui: o ideal commum, isso é tudo. E esse que assentou sobre a sua solida base a fé eterna da humanidade, a unidade dos corações, a verdadeira cidade de Deus! O christianismo creou a humanidade (no grande e verdadeiro sentido da palavra) mas foi a humanidade toda que o creou a elle, não o genio estreito d'uma raça.

Fundando a unidade divina, construiu a unidade humana mas os elementos da obra todos é que suscitarem o operario, é que o fizeram. {15}

No dia em que Jesus se chamava a si Christo, n'esse dia deixou de ser judeu para se naturalizar homem. E o filho do homem—o filho da humanidade. Do desejo dos dois mundos brotou esse lyrio divino... mas o perfume que lhe sae do calix não ha templo bastante para o conter! Todo o ceu é essa cathedral: o templo de Jerusalem, o Parthenon e o Capitolio são naves, apenas, d'essa egreja universal!

III

Eil-a fundada em fim, idealmente, ao menos essa unidade, esse sonho milenario do mundo antigo! E quem dirá as dores, as lutas, as esperanças, as angustias de mil gerações esquecidas, cujas lagrimas regaram, e de cujo pó se alimenta ainda essa arvore d'immortal amor? {16}

Innumeras raças extinctas passaram curvadas sobre a terra; crusaram no perigrinar de cem odisseias misteriosas, todos os continentes, para que seus passos apenas deixassem como derradeiro vestigio sobre a face do globo as letras fatidicas d'esse epitafio de glorias, essa palavra unica—unidade! Tudo o mais é o segredo do tempo. Os seculos desconhecidos esconderam sob a dobra dos immoveis sudarios a memoria dos obreiros com o risco e os instrumentos do trabalho—e vê-se a prodigiosa obra anonima erguer-se recortando o perfil extranho no horisonte desmaiado do passado, como o vulto da esphinge incomprehensivel no ceu dos grandes desertos!

É a melancolia da historia! Por entre o canto das Epopeias antigas escuta-se a espaço o gemido surdo d'esse desconhecido e infeliz mundo de escravos sobre cujos hombros doridos os heroes {17} assentavam as suas cidades de luz...

E os palacios heroicos da humanidade, que são as horas solemnes da sua inspiração, encobrem-nos tambem os peitos escuros mas fortes sobre que se ergueram esmagando os talvez, esses torreões de brilho!

Mas que importam os sacrificios? O carro de triumpho não se lembra da mina sombria d'onde sahiu o metal das rodas que o levam.

A obra do misterio, a cupula esplendida da historia antiga ergue-se e ninguem, sabe ahi por que mãos se ergue. Mas solida é a sua base, que nenhuma convulsão lançará por terra como o canto de granito nos alicerces do circo romano.

A estatua ideal da Fé humana achou emfim o pedestal de marmore immaculado, onde se firmem seus pés divinos—a consciencia da nobresa do destino do {18} homem, a revelação da sua mesma divindade.

IV

Mas, esse Deus misterioso, que ceu o esconde nos paramos do ceu azul immensuravel? Que Sinai enubla a sua gloria? O seu altar em que monte o ergueram os profetas desconhecidos? Que rito é o seu—e em que taboas de marmore escreveu o fogo de cima a legenda prodigiosa de sua lei? No meio de nós por entre o tumultuar das gerações passa como o Deus antigo, por entre os combates da Iliada, e ao longe retumba o echo de suas passadas. E, emtanto, ninguem o vê. Só de longe a longe, algum profeta desce das solidões a mostrar ao mundo a palidez de suas faces emagrecidas, seus olhos cavos e fixos, da fixidez assustadora das visões, como testemunho {19} de ter entrevisto na sua noite um raio d'essa gloria que o deslumbrou e consumiu.

É o absoluto que deixa nas mãos do homem, que o tentou prender na sua fuga eterna, um fio apenas da sua tunica de brilho. Mas esse fio é um raio de tal luz, que basta a alumiar o trabalho de muitos seculos!

Toma-o nas mãos Moisés, mostra-o ao mundo, e chama-se Jehová. Ergue-o Mahomet entre os povos e chama-se Alláh. Deixa-o Christo cair do alto da sua cruz, e chama-se amor. De cima d'uma guilhotina o atira Robespierre para o meio das multidões e chamam-lhe Direitos do homem e Revolução. E Hegel, levantando a cabeça de sob as ondas immoveis e tristes da abstração, lança nos ventos, que a levam ao mundo, esta palavra—Ideia!

O que revela cada profeta não é o {20} Deus eterno, o Absoluto dominador, entre cujos braços se contém o universo, não confuso e multiforme nas mil apparencias do relativo, mas na verdade ideal da sua essencia—o ser puro.—Esse poderia por ventura, afirmal-o a creação toda, os soes e os insectos, o espirito e a materia; o visivel e o invisivel, o certo e o possivel, se um dia, esquecendo ao movimento lançar o metal ardente de suas creações nos moldes da variedade, se precipitasse todo sobre o seu centro ideal assumindo emfim a consciencia plena da sua universalidade.

Mas o homem não afirma nada mais além da sua mesma alma? E esse vulto immenso a que ainda chamam Deus, é apenas a sombra do ideal humano, que acha o mundo estreito e se alarga pelo espaço. Concebe o absoluto nos limites da sua relatividade.

Por seus mesmos passos mede o caminho {21} do infinito. E, nos ultimos limites aonde alcança o seu pensamento, ergue elle as ballizas extremas do possivel. As religiões são os marcos successivos das mais longas corridas do seu desejo no caminho do infinito: mas não são o termo d'essa estrada que se perde nas nevoas do inatingivel e cujos desvios ultimos pé algum pôde ainda pisar.

É por isso que os Deuses morrem, se succedem e transformam. Vê-se o fim d'essas eternidades—e o homem que as creára para perder cá a incerteza do seu transitorio destino, o homem, o seu coração, o seu ideal, sobrevive-lhes, é elle quem parece eterno ao pé d'esses absolutos passageiros!

Mas que importa esse Deus que nenhum olhar pôde ainda descobrir no deserto dos ceus, se d'um ceu interior, tão puro e tão bello, sae para cada ouvido attento uma voz divina, e uma sybilla {22} misteriosa deixa cair dos labios palavra a palavra, o oraculo successivo do destino dos homens?

Se a alma cria deuses e, respirando, espalha o infinito em volta de si—é que lá dentro alguma cousa infinita se concentra e o divino se esconde para se manifestar dia a dia na revelação constante chamada Vida. É que o mais humilde d'entre nós dá em seu peito morada a um grande desconhecido que ali existe, cuja voz grave se ouve a espaços e nos alumia a face com os relampagos da sua gloria.

Existe com effeito. Que somos nós todos senão uma forma visivel da essencia infinita—um momento determinado da existencia sem termo—uma vibração do movimento eterno—uma fase da Lei do todo, chamada aqui lei humana mas a mesma no ser, com igual fim, igual origem, que nos determina e de que vivemos? {23} A lei! Protheu prodigioso de mil formas d'innumeros vultos inesperados em toda a parte diversos, e em toda a parte o mesmo sempre todavia! Mil faces, e uma só alma! mil braços, e uma vontade só! por mil caminhos, e um unico o termo da viagem!

Uma d'essas do Protheu é o homem, a lei humana. A parte d'acção que exercemos no movimento eterno: a hora que nos é dado preencher na duração sem termo—é isso o que somos, por isso que nós agitamos, o nosso ser, o nosso misterio. É o Deus, que o universo esconde revelando-se pela consciencia. E o absoluto que fóra nem podemos entrever, eil-o vivo e palpitante em nosso coração e debaixo de nossas mãos, a ponto de o podermos palpar!—A alma da humanidade em cada homem; e, na humanidade a alma inteira do mundo—.

No mais estreito, no mais tremulo e {24} humilde raio de luz, coado a custo por entre duas nuvens, se estuda e está o segredo do brilho immenso e inefavel que innunda as alturas, se vê patente o misterio da maior gloria dos esplendores celestes. No gemer da onda indolente, que se espreguiça no areal, e nem assusta o folgar descuidoso d'uma creança, está a voz do oceano, a sua ancia, o porque de suas luctas, o motivo de tantas tempestades, tantos brados, tamanhas convulsões—. No que agita o peito do mais humilde e desconhecido dos homens está o segredo de anciedade, do desejo infinito, que commove os universos, o verbo do movimento que arrasta os imperios como os mendigos, as folhas do outomno como os astros do espaço—está a palavra do ser, a origem e o fim, Deus!

Sim. Esse Deus buscado em vão na vastidão dos ceus desertos, que não revela a immensidade desoladora e fria, eil-o {25} em fim que o vemos concentrado no fundo da consciencia, dormitando, mas em movimento, mudo, ao parecer, mas murmurando sempre, como um canto de lendas misteriosas, o oraculo successivo dos Destinos! É o Deus da humanidade; a parte do ser eterno, que se move n'ella, que a firma, que é ella mesma. Jehová, Brama, Sabaoth, Allá, Christo, por grandes, por luminosos que pareçam, não são mais que as sombras projectadas sobre a terra pelo vulto d'esse grande desconhecido—degraus da escada do desejo que essa alma sobe no caminho do seu Fim. É a luz, que nos sae de dentro, e diante dos nossos olhos se agita, convidando-nos a seguil-a em seu correr. É a columna de fogo do deserto—não aquella trazida de longe e sem se ver a mão que a trouxe, mas saida do mesmo seio do povo, como que a sua propria alma, adiante d'elle caminhando. Movemo-nos {26} porque a seguimos; não pelo capricho de nossos passos. O nosso trabalho o seu brilho nol'o indica, não é só o lavor escuro de nossas mãos.

Toda a esphera de nossas acções, as maiores, as melhores, fecha-a o circulo d'aquella lei—que é a nossa mesma.

Nem d'outra lei precisamos. Cumprir a tarefa d'este momento é cumpril-a na sua fórma rigorosa, correspondendo ao destino d'elle entre todos os movimentos de que se compõe a duração eterna.—O fim do Homem é ser homem. E, para o ser, viver segundo a nós, ao nosso fim, que mais se precisa que seguir a lei humana? É a nossa affirmação. A força que a determina não lhe vem de fóra, d'alguma mão escondida entre as nuvens gloriosas d'algum ceu inatingivel. De dentro vem, como as folhas do lyrio, que se abre, vem todas do botão que as continha em suas dobras, como todos os {27} suspiros vem do coração que deseja, e não do objecto que os accorda.

É o seu trabalho quem cria os absolutos que depois a esmagam. Mas a força primitiva reage; e os espectros caem por terra estalados os braços com que tentavam suffocal-a.

As revoluções, os cultos, os systemas, as philosophias, as revelações não são principios exteriores que dominem a historia, de cima, da altura de suas verdades determinando os sentimentos, os desejos, as crenças, a vida emfim. Pelo contrario.—São apenas evoluções d'um interior, que os cria e destroe, e faz o novo templo com as minas do templo antigo, e se chama Natureza.

O Deus da Humanidade é o mesmo homem: e o seu Ideal, a religião da Vida. {28}

V

É a negação do absoluto e, como tal a affirmação do homem.

O Deus sae da immobilidade do symbolo inalteravel: faz-se vida, move-se—é um Deus progressivo.

O seu dogma (semelhante á fonte nascida da terra e de continuo acrescentada) dia a dia o vai o tempo completando com tudo o que lhe sai do seio vasto e fecundissimo. É o culto de um misterio que descobrindo-se sempre, jamais se poderá ver todo. E a Biblia tem brancas as ultimas paginas, para que lhe possa cada geração nova escrever lá o verso d'oiro de cada novo Evangelho que se revelle.

Religião doce e humana, que não despreza uma palavra de creança, o sonho d'um coração de mulher, o presentimento da mais humilde consciencia! {29} É como o olho do sabio que se esquece horas sem conto na contemplação do mais estreito calice d'uma flor sem nome d'esses campos! No calix da flor, diz o poeta, se encerra a belleza toda do universo—e que profundos e desconhecidos thesouros de belleza e verdade não guarda o coração d'um simples?!...

É por isso que esta religião abraça no seu circulo maravilhoso a alma toda e toda a vida como o sol do meio dia vê quanto rasteja na terra e quanto paira nas alturas—porque não despreza ninguem. Como Jesus entre as crianças aprende tanto quanto ensina. Missiona, e recebe todavia lições do mais humilde catechumeno. O seu decalogo tem uma margem larga bastante para que o povo o commente, quando não acrescente um artigo á lei. É a religião do movimento—o Colombo dos mundos encobertos do espirito erecto na proa do galeão, {30} sondando o horisonte com os olhos, incitando, animando todos para a conquista do desconhecido. Sentado na tripode santa da sua inspiração, sente correr-lhe n'alma o espirito do Deus vivo: profetisa, improvisa de continuo e, como a chuva de perolas da bocca da fada legendaria, lhe caem dos labios as palavras nunca interrompidas da sua revellação—a lei, o ideal humano.

VI

A Edade Media não comprehendeu isto. Seu grande genio, sublime como Poesia, achamol-o aqui estreito e acanhado como Rasão. Porque do chão saío um dia essa flor maravilhosa, a mais bella entre todas no jardim do espirito, chamada unidade, pareceu-lhe ter morrido {31} a força geradora da terra e tornar-se impossivel outra florescencia, outra primavera, outro perfume.

Deu por concluido o trabalho das criações humanas, e fechado o cyclo dos poemas divinos chamados religiões. Declarou o coração incapaz de novos sonhos, a alma inerte para mais desejos, a intelligencia morta para outras concepções e outras fórmas que não fossem as suas—porque no ardor de sua fé, uma nobre illusão lhe fez ver o vacuo e o nada além do espaço que abrangia a sua vista halucinada. Grande e solemne dentro do templo santo da sua crença por isso mesmo desprezou o resto da terra aonde já se não avistava esse prodigioso edificio, e o resto da alma que o calor d'esse raio d'amor não aquecia. As tristes flores d'esse deserto não eram para adornar o seu altar—não era digno do seu Deus o perfume saído d'um {32} coraçao não alumiado pelo brilho de sua gloria... Fez o Dogma e fechou-se n'elle como n'um sepulcro. Largo sepulcro, em verdade, como para um Deus e todo marmores e oiro... mas ainda no tumulo de Christo, o frio que se sente é sempre o frio da morte!

A antiguidade pagã dava ás suas religiões um cinto elastico, para que a Virgem podesse crescer e engrossar, fazer-se mulher e mãe, conceber e criar o filho que lhe havia de succeder. Como as não revellava nenhuma voz encoberta, saíndo do meio das nuvens de fogo d'uma gloria sobrehumana—revellavam-se ellas por si, em toda a parte, em cada hora, e não já no cimo deserto do Sinai, mas em baixo, no valle, onde se assentam as tendas do povo, no ajuntamento dos homens. Por isso não havia palavra murmurada no meio da multidão, que se sumisse esquecida, que um deus amigo {33} não ouvisse e decorasse, como ensino d'uma bocca humilde, mas nem por isso despresivel. A onda mais imperceptivel, nascida nos ultimos confins da sociedade trazida com o sopro do vento, achava sempre uma doce praia aonde depositar o seu pequeno tributo, um canto, uma espuma branca, uma rara flor muitas vezes.

Cada modesto veio d'agua lá ia dar sempre ao lago d'essas religiões tão humanas, que não se pejavam de os receber, com elles crescer e alargar, ser por elles formado—fazendo assim a divindade com o melhor e o mais puro da humanidade. Essas religiões formavam-nas em collaboração as almas das gerações successivas, cada uma como que tinha de mais intimo em si, do mais elevado ao mais innocente. O sabio dava o forte pensamento, o simples a intuição profunda. Emprestava-lhes um facto o {34} heroe, e a virgem lançava-lhes no regaço uma lagrima de piedade. A praça publica lhes enviava um echo de seus rumores, e a familia um reflexo amoravel do seu lar. Cada qual tirava do coração a perola que lá tem todos escondida; e com essas gemmas, preciosas, quentes ainda e quasi vivas, se adornava a divindade. As paixões, os amores, os cuidados, as lutas dos homens, tudo isto idealisado e puro se via brilhar sobre o peito dos deuses, como penhor da fraternidade entre terra e ceu, e modelos de perfeição que buscava cada qual realisar. Ser bom e forte e grande para ser semelhante a um Deus—porque este era a ultima expressão da humanidade.

Era ella o que a criava. Ao lado da inspiração do augur caminhava a espontaniedade do Povo.

Ella transformava a legenda; desenvolvia a moral; compunha o rito: adoptava {35} cultos; erguia outros deuses ao lado senão sobre o pedestal dos antigos; vereficava a lei velha com o espirito novo: tinha autoridade em fim, autoridade, voto e força para obrigar um Deus progressivo a medir seus passos pelos d'uma sociedade sempre em movimento. Por detraz do Olympo havia muito ceu ainda e muito espaço. Alem da morada das divindades via-se o infinito sem termos—e Prometheu prophetisando a queda de Jupiter não era um impio; era um semi-deus. As religiões antigas não faziam da alma humana (e, com a alma as sociedades e o mundo) prisioneira d'um dogma immutavel. Sentiam ser ella mesma o verdadeiro dogma. Abriam o seio a cada palavra inspirada e transformavam-na em sangue do coração...

Religiões humanas! uma intuição profunda da mesma lei da vida—a diversidade, o movimento, a successão—dava-lhes {36} a largura, a flexibilidade e o vago necessarios para que correspondessem a todas ás formas innumeras e inesperadas do espirito, ás infinitas transformações das sociedades, ás mil apparencias da realidade. Dava-lhes a virtude d'esses cordeaes proprios para todas as idades e todas as compleições: para os fortes calmante; e para os fracos, balsamo e conforto. Eram como o vestido natural do corpo do homem acompanhando todos os movimentos, feito para todas as altitudes: simples ao pé do lar, nobre na praça, grave no repouso, e na luta ou na corrida ligeiro e facil.

Esta verdade humana que as fez tão animadas, por isso mesmo as impedio d'avistarem o outro termo correlativo, o extra-humano, o absoluto.

No coração d'essas raças como parte que é da alma, estava esse sentimento, por certo. Mas não vinha fóra em {37} fórma de luz, não inundava d'ali o mundo, não doirava a fronte dos deuses nem a cabeça dos homens. Viram-na, a essa luz, passar como relampago nos olhos d'alguns inspirados; mas o povo não a soube comprehender, deixou-a morrer, quando a não matou elle mesmo. No meio da diversidade, que o absorvia, o politheismo não pôde conceber a unidade existente com ella e n'ella mesma porventura. Ao sol da Grecia e do Oriente, a rosa viva, a flor intima da humanidade, a alma, abrira todas as suas petalas extranhas mas formosissimas! uma só ficou fechada; mas essa era a mais larga e a mais forte, que devia conter todas as outras—o sentimento da unidade.

Unidade de Deus! Unidade do Homem! n'esta onda mystica mergulhou o Christianismo a cabeça—com este Jordão baptisou o mundo! Esta contemplação {43} do absoluto fez a sua força: foi ella tambem quem o matou. Em vista d'este principio resolveu corajosamente o destino humano; mas vinculando-a a essa resolução, desconheceu a sua lei essencial—o movimento.—Não. A contemplação inerte não pode ser o ar que o espirito do homem pede para respirar! O ar da vida é outro... A vida! no seu vôo para o ceu, na sua sublime ambição ideal, foi isso que esqueceu ao Christianismo—a terra, a vida.—


FIM