Nota de editor:
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texto, foram tomadas várias decisões quanto à
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Rita
Farinha (Maio 2012)
Reservados todos os direitos de reproducção nos
paizes que adheriram á Convenção de Berne;
Brasil: Lei n.º 2577 de 17 de Janeiro de 1912;
Portugal: Decreto de 18 de Março de 1911.
HUMUS
DO AUTOR
EDIÇÕES DA RENASCENÇA PORTUGUESA
O Cerco do Porto, contado por uma testemunha,
o Coronel Owen—Prefacio e notas (2.ª ed.).
1817—A Conspiração de Gomes Freire (3.ª ed.).
El-Rei Junot (2.ª ed.).
Memorias, 1.º vol. (2.ª ed.).
Humus (2.ª ed.).
RAUL BRANDÃO
Humus
O que tu vês é bello; mais bello o
que suspeitas; e o que ignoras muito
mais bello ainda.
D'um autor desconhecido.
2.ª EDIÇÃO
EDITORES
Renascença Portuguesa—Porto
ANNUARIO DO BRASIL—RIO DE JANEIRO
AO MESTRE COLUMBANO
13 de novembro
Ouço sempre o mesmo ruido de morte que devagar
roe e persiste...
Uma villa encardida—ruas desertas—pateos
de lages soerguidas pelo unico esforço da erva—o
castelo—restos intactos de muralha que não
teem serventia: uma escada encravada nos alveolos
das paredes não conduz a nenhures. Só uma
figueira brava conseguiu meter-se nos intersticios
das pedras e d'ellas extrae succo e vida. A torre—a
porta da Sé com os santos nos seus nichos—a
praça com arvores rachiticas e um coreto de zinco.
Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a
humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se
na humidade. Nos corredores as aranhas tecem
imutaveis teias de silencio e tedio e uma cinza
invisivel, manias, regras, habitos, vae lentamente
soterrando tudo. Vi não sei onde, n'um jardim
abandonado—inverno e folhas seccas—entre buxos
do tamanho d'arvores, estatuas de granito
a que o tempo corroera as feições. Puira-as e a
expressão não era grotesca mas dolorosa. Sentia-se
um esforço enorme para se arrancarem á pedra.
Na realidade isto é como Pompeia um vasto
[10]
sepulchro: aqui se enterraram todos os nossos
sonhos... Sob estas capas de vulgaridade ha talvez
sonho e dôr que a ninharia e o habito não deixam
vir á superficie. Afigura-se-me que estes
sêres estão encerrados n'um involucro de pedra:
talvez queiram falar, talvez não possam falar.
Silencio. Ponho o ouvido á escuta e ouço sempre
o trabalho persistente do caruncho que roe
há seculos na madeira e nas almas.
15 de novembro
As paixões dormem, o riso postiço creou cama,
as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os
mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve
e neutralisa, e só um ruido sobreleva, o da morte,
que tem deante de si o tempo ilimitado para roer.
Há aqui odios que minam e contraminam, mas
como o tempo chega para tudo, cada anno minam
um palmo. A paciencia é infinita e mete espigões
pela terra dentro: adquiriu a côr da pedra e todos
os dias cresce uma polegada. A ambição não
avança um pé sem ter o outro assente, a manha
anda e desanda, e, por mais que se escute, não
se lhe ouvem os passos. Na aparencia é a insignificancia
a lei da vida; é a
insignificancia
que governa
a villa. É a paciencia, que espera hoje,
amanhã, com o mesmo sorriso humilde:—Tem
paciencia—e os seus dedos ageis tecem uma teia
de ferro. Não há obstaculo que a esmoreça.—Tem
paciencia—e rodeia, volta atraz, espera anno
atraz d'anno, e olha com os mesmos olhos sem
expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciencia...
paciencia... Já a mentira é d'outra casta,
[11]
faz-se de mil côres e toda a gente a acha agradavel.—Pois
sim... pois sim... Não se passa
nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos
as mesmas palavras, cumprimentamos com
o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras.
Petrificam-se os habitos lentamente acumulados.
O tempo moe: moe a ambição e o fel e torna
as figuras grotescas.
Reparem, vê-se daqui a villa toda... Lá está a
Adelia, o Pires e a Pires como figuras de cera.
Ninguem mexe. N'um canto mais escuro a prima
Angelica não levanta a cabeça de sobre a meia.
Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar.
Chega o chá, toma o chá, e apega-se logo á mesma
meia, a que mãos caridosas todos os dias desfazem
as malhas, para ella, mal se ergue, recomeçar a
tarefa. Um dia—uma semana—um seculo—e só
o pendulo invisivel vae e vem com a mesma regularidade
implacavel—p'ra a morte! p'ra a morte!
p'ra a morte!
Passou um minuto ou um seculo? Sobre o granito
salitroso assenta outra camada denegrida, e
as horas caem sobre a villa como gôtas d'agua
d'uma clepsydra. De tanto vêr as pedras já não
reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos
pés e ninguem ouve seus passos. Todos os dias
os leva, todos os dias toca a finados. O nada á espera
e a D. Procopia a abrir a boca com somno,
como se não tivesse deante de si a eternidade para
dormir. Tudo isto se passa como se tudo isto não
tivesse importancia nenhuma, tudo isto se passa
como se tudo isto não fôsse um drama e todos os
dramas, um minuto e todos os minutos...
Não há annos, há seculos que dura esta bisca
de tres—e os gestos são cada vez mais lentos.
Desde que o mundo é mundo que as velhas se
[12]
curvam sobre a mesma meza do jogo. O jogo banal
é a bisca—o jogo é o da morte... O candieiro
ilumina e a sombra roe as phisionomias,
a magestosa Theodora, a Adelia, a Eleutheria
das Eleutherias, o padre. Salienta-se do escuro uma
boca que remoe, a da D. Bibliotheca. Os padres
exaltam-na, a Egreja exalta a sua caridade, que
rebusca a desgraça para lhe dar tres vintens. Só
destingo, despegadas dos craneos, as orelhas do
respeitavel Elias de Melo e do impoluto Melias de
Melo, lividos como dois fantasmas. Ambos regulam
a consciencia como quem dá corda a um relogio.
Dividas são dividas. Tudo isto parece que fluctua
debaixo d'agua, que esverdeia debaixo d'agua.
A luz do candieiro ilumina as mãos da D. Leocadia,
que põe acima de tudo o seu dever, e
que leva para casa uma orfã a quem sustenta e
que lhe entrapa as pernas: osseas e seccas enchem
a sala toda, o mundo todo...
Não sei bem se estou morto ou se estou
vivo... Decorre um anno e outro anno ainda.
O relento sabe bem, e o tempo passa,
o tempo gasta-as como o salitre aos santos
nos seus nichos. Se o desespero augmenta
não se traduz em palavras. A D. Procopia odeia
a D. Bibliotheca, mas nem ella sabe o que está por
traz d'aquelle odio, contido pelo inferno. Toda a gente
se habitua á vida. Matar matava-a eu, mas varias
palavras me deteem. Detem-me tambem um nada...
Chegamos todos ao ponto em que a vida se
esclarece á luz do inferno. Mas ninguem arrisca
um passo definitivo.
As velhas com o tempo adquiriram a mesma
expressão, com o tempo chegaram a temer um
desenlace. Debruçadas sobre a meza as figuras
não bolem. Não bolem outras figuras que se envolvem
[13]
no escuro, e o que me interessa não são as
palavras do padre—Jogo;—nem o que a Adelia
diz baixinho á Eleutheria, para que a velha temerosa
ouça:—A nossa Theodora está cada vez mais
moça!...—o que me interessa são as figuras invisiveis:
é a dôr d'essas figuras imoveis, e sobre
ellas outra figura maior, curva e atenta, que ha seculos
espera o desenlace.
A villa petrifica-se, a villa abjecta cria o mesmo
bolor. Mora aqui a insignificancia e até á
insignificancia o tempo imprime caracter. Moram
na viella ingreme e cascosa, que revê humidade
em pleno verão, velhas a quem só restam
palavras, presas, alimentadas, encarniçadas, como
um doido sobre uma corôa de lata que lhes enche
o mundo todo. Mora d'um lado o espanto, do outró
o absurdo. E todos á uma afastam e repelem de si
a vida. Mora aqui a Telles que passa a vida a limpar
os moveis, só e fechada com os moveis reluzentes,
talvez resto d'um sonho a que se apega com
desespero, e velhas só mesuras, só baba, só rancor.
Ter uma mania e pensar n'ella com obstinação!
Creal-a. Ter uma mania e vêl-a crescer como um
filho!... Mora aqui a D. Restituta, sempre a
acenar que sim á vida, e a Ursula, cuja missão no
mundo é fazer rir os outros.
Cabem aqui sêres que fazem da vida um habito
e que conseguem olhar o céo com indiferença
e a vida sem sobresalto, e esta mixordia de ridiculo
e de figuras somiticas. Mora aqui, paredes
meias com a colegiada, o Santo, que de quando em
quando sae do torpôr e clama:—O inferno! o
inferno!—Moram as Telles, e as Telles odeiam
as Souzas. Moram as Fonsecas, e as Fonsecas passam
a vida, como bonecas desconjuntadas, a fazer
[14]
cortezias. Moram as Albergarias, e as Albergarias
só teem um fim na existencia: estrear todos
os semestres um vestido no jardim. Moram os
que moem, remoem e esmoem, os que se fecham á
pressa e por dentro com uma mania, e os que
se aborrecem um dia, uma semana, um anno, até
chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da
morte.
Mora aqui o egoismo que faz da vida um casulo,
e a ambição que gasta os dentes por casa, o que enche
a existencia de rancores e, atraz d'anno de chicana,
consome outro anno de chicana. Cabem aqui
dentro as velhas scismaticas, atraz de interesses, de
paixões ou de simples ninharias, dissolvendo-se no
ether, e logo substituidas por outras velhas, com
as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os
mesmos ou outros ridiculos, fedorentas e maniacas;
os homens a quem se foram apegando pela vida
fóra dedadas de mentira, promptos para a cova—e
o Gabiru e o seu sonho. Cabe aqui o ceu e as
lambisgoias com as suas mesuras, a morte e a
bisca de tres. E cabe aqui tambem uma velha
creada, que se não tira deante dos meus olhos.
Obsidia-me. Carrega. Obedece. Serve as outras velhas
todas. A Joanna é uma velha estupida.
Serviu primeiro na villa, serviu depois na cidade.
Serviu um anthropologista exotico, que fundira
cem contos a juntar caveiras, e de quem a
Joanna dizia ao amollecer-lhe os edêmas dos pés:—Este
senhor é um 2.º Camões!—Serviu a D.
Herminia e a D. Hermengarda. Serviu com uma
saia rôta, as mãos sujas de lavar a louça, uma
camisa, os usos e seis mil reis de soldada. Lavou,
esfregou, cheira mal. Serviu o tropel, a miseria,
o riso, que caminha para a morte com um vestido
d'aparato e um chapeu de plumas na cabeça.
[15]
Para contar fio a fio a sua historia bastava dizer
como as mãos se lhe fôram deformando e creando
ranhuras, nodosidades, codeas, como as mãos se
foram parecendo com a casca d'uma arvore. O
frio gretou-lh'as, a humidade entranhou-se, a lenha
que rachou endureceu-lh'as. Sempre a comparei
á macieira do quintal: é inocente e util e não ocupa
logar. A vida gasta-a, corroem-na as lagrimas, e
ella está aqui tal qual como quando entrou para
casa da D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar.
Os meninos borraram-na—adorou os meninos. Os
doentes que ninguem quer aturar, atura-os a Joanna.
Já ninguem extranha—nem ella—que a
Joanna aguente, e a manhã a encontre de pé, a rachar
a lenha, a acender o lume, a aquecer a agua.
Há sêres creados de proposito para os serviços
grosseiros. Por dentro a Joanna é só ternura,
por fóra a Joanna é denegrida. A mesma fealdade
reveste as pedras. Reveste tambem as arvores.
É uma velha alta e secca, com o peito raso.
O habito de carregar á cabeça endireitou-a como
um espeque, o habito das caminhadas espalmou-lhe
os pés: a recoveira assenta sobre bases solidas.
Parece um homem com as orelhas despegadas
do craneo e olhos inocentes de bicho. É d'estas
creaturas que dão aos outros em troca da soldada
o melhor do seu sêr, que se apegam aos filhos
alheios e choram sobre todas as desgraças. E
ainda por cima dedicam-se, e quando as mandam
embora, porque não teem serventia, põem-se
a chorar nas escadas.—É preciso escodeal-a—asseverou
a D. Hermengarda quando
lhe foi em pequena para casa. Escodeia-a. Noite
velha e já ella bate de cima com a tranca no
soalho, a chamal-a.—E não te servindo a porta
da rua é a serventia dos cães.—Mas ella
[16]
apega-se. Nunca teve outra ama como aquella senhora.
Venera-a. Annos depois diz das pancadas:—Merecia-as.—Já
não é preciso chamal-a: a Joanna
ergue-se n'um sobresalto, alta noite, noite
negra, e dorme com um olho fechado e outro aberto.
Velha, tonta, abre de quando em quando os
olhos, põe o ouvido á escuta num movimento
instinctivo, á espera de uma imaginaria ordem:
ouve sempre a voz da D. Hermengarda a chamal-a.
Mal se comprehende que depois d'uma vida
inteira, esta mulher conserve intacta a inocencia
d'uma creança e o pasmo dos olhos á flôr do
rosto. Trambulhões, fome, o frio da pobreza—o
peor—e, apezar de amolgada, com uma saia de
estamenha, no pescoço pelles, as mãos gretadas
de lavar a louça, uma coisa que se não exprime
com palavras, um balbuciar, um riso... Misturou
á vida ternura. Misturou a isto a sua propria vida.
Aqueceu isto a bafo.
Tem as mãos como cepos.
16 de novembro
Debaixo d'estes tectos, entre cada quatro paredes,
cada um procura reduzir a vida a uma insignificancia.
Todo o trabalho insano é este: reduzir
a vida a uma insignificancia, edificar um muro
feito de pequenas coisas deante da vida. Tapal-a,
escondel-a, esquecel-a. O sino toca a finados, já
ninguem ouve o som a finados. A morte reduz-se
a uma cerimonia, em que a gente se veste de luto
e deixa cartões de visita. Se eu podesse restringia
a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o môfo,
[17]
e a villa a côr de mataborrão. Seres e coisas criam
o mesmo bolôr, como uma vegetação cryptogamica,
nascida ao acaso n'um sitio humido. Teem o seu
rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito.
Desaparecem, resurgem sem razão aparente d'um
dia para o outro n'um palmo do universo que se
lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos
saes, exhalam os mesmos gazes, e supuram uma
escorrencia phosphorecente, que corresponde talvez
a sentimentos, a vicios ou a discussões sobre
a imortalidade da alma.
Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas
palavras, os mesmos habitos. Construimos ao
lado da vida outra vida que acabou por nos dominar.
Vamos até á cóva com palavras. Submetem-nos,
subjugam-nos. Pesam toneladas, teem a espessura
de montanhas. São as palavras que nos
conteem, são as palavras que nos conduzem. Toda
a gente forceja por crear uma atmosfera que a
arranque á vida e á morte. O sonho e a dôr revestem-se
de pedra, a vida consciente é grotesca,
a outra está assolapada.
Remoem hoje, amanhã, sempre as mesmas palavras
vulgares, para não pronunciarem as palavras
definitivas. Toda a gente fala no céo, mas
quantos passaram no mundo sem ter olhado o
céo na sua profunda, na sua temerosa realidade?
O nome basta-nos para lidar com elle. Nenhum
de nós repara no que está por traz de cada sylaba:
afundamos as almas em restos, em palavras, em
cinza. Construimos scenarios e convencionamos que
a vida se passasse segundo certas regras. Isto é
a consciencia—isto é o infinito... Está tudo catalogado.
Na realidade jogamos a bisca entre a
vida e a morte, baseados em palavras e sons.
E, como a existencia é monotona, o tempo chega
[18]
para tudo, o tempo dura seculos. Formam-se assim
lentamente crostas: dentro de cada sêr, como
dentro das casas de granito salitroso, as paixões
tecem na escuridão e no silencio, teias de escuridão
e de silencio. Na botica somnolenta ao pae succede
o filho sobre o taboleiro de gamão. Quero resistir,
afundo-me. Começo a perceber que o habito é que
me fez suportar a vida. Ás vezes acordo com este
grito:—A morte! a morte!—e debalde arredo
o estupido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como
sobre um sepulchro vazio. Oh como a vida peza,
como este unico minuto com a morte pela eternidade
peza! Como a vida esplendida é
aborrecida
e inutil! Não se passa nada! não se passa nada e
eu sinto aqui ao lado outra vida que me mete medo
e que não quero vêr. Essa vida talvez seja a minha
verdadeira vida. Mas o peor é que eu percebo
que, se se apodera de mim, não posso mais viver.
Agarro-me com desespero ao habito e ás palavras.
Tu não existes! tu não existes! O que existe é
isto com que lido todos os dias, as palavras que
digo todos os dias, os sêres com quem falo todos
os dias.—E tu rodeias-me, tu reclamas-me e
queres viver comigo para todo o sempre. Não
te posso vêr!...
Se há momentos em que o caixão que um
galego leva ás costas me chama á realidade, ao
espanto, desvio logo o olhar e reentro á pressa
na vida comesinha. Finjo que sorrio e esqueço.
Mas sempre não posso! Anno atraz d'anno não
posso! Não há mais nada! não há mais do que
estas figuras paradas, e as horas verdes que de
espaço a espaço caem como gôtas d'agua no fundo
d'um subterraneo. Outro anno ainda! outro passo
ainda para a morte! Sinto uma dôr sem gritos
por traz da immobilidade. Cada hora é menos uma
[19]
hora na minha vida. E o tempo foje, o tempo côr
de mataborrão que ao granito salitroso junta camada
denegrida, e ás almas sepultadas outra pazada
de cinza... Há momentos em que as figuras
teem tanta vida como os santos imoveis nos
seus nichos—mas há momentos em que cada um
redobra de proporções, há momentos em que a
vida se me afigura iluminada por outra claridade.
Há momentos em que cada um grita:—Eu
não vivi! eu não vivi!—Há momentos em
que deparamos com outra figura maior que nos
mete medo. A vida é só isto? Por mais que
queira não posso desfazer-me de pequenas acções,
de pequenos ridiculos, não posso desfazer-me de
imbecilidades nem d'este sêr esfarrapado que vae
de pólo a pólo. Tenho de aturar ao mesmo tempo
esta idéa e este gesto ridiculo. Tenho de ser grotesco
ao lado da vida e da morte. Mesmo quando
estou só o meu riso é idiota. E estou só e a noite.
Por traz daquella parede fica o céo infinito. Para
não morrer d'espanto, para poder com isto, para
não ficar só e o doido, é que inventei a insignificancia,
as palavras, a honra e o dever, a consciencia
e o inferno.
E ainda o que nos vale são as palavras, para
termos a que nos agarrar.
É então um mundo de formulas a que eu
obedeço e tu obedeces? Sem elle não poderiamos
existir. Se vissemos o que está por traz não podiamos
existir. O nosso mundo não é real: vivemos
n'um mundo como eu o comprehendo e o
explico. Não temos outro.
Estamos
aqui
como peixes
n'um aquario. E sentindo que há outra vida
ao nosso lado, vamos até á cóva sem dar por
[20]
ella. E não só esta vida monstruosa e grotesca
é a unica que podemos viver, como é a unica que
defendemos com desespero.—Pois sim... pois
sim...—Estamos aqui a representar. Estamos
aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar
a bisca de tres. Estamos aqui a matar o tempo.
Este passo, que é unico e um só, damol-o como
se fosse uma insignificancia. Mais fundo: não
existem senão sons repercutidos. Decerto não passamos
de echos. Submeto-me, subjugas-me. Já não
reparo, já vejo turvo.—Jogo!—E de repente
todo o meu sêr é sacudido pelo espanto que tacteia
á minha roda. Raras vezes entramos em contacto,
mas sinto-o aqui ao meu lado—sem nos chegarmos
a entender. Nem quero! nem quero! Se me alheio
um momento dou um grito de dôr. Escaldo-me.
Na verdade o que eu não posso é vêr, o que eu
não quero é vêr! A villa regula-se por habitos e
regras seculares—mas há outra coisa enorme
para lá do scenario de que me rodeio. Para não
ter medo criei eu isto, para a não vêr criou o Santo
o inferno. Há outra coisa esfarrapada e dorida.—Jogo!—Cada
vez me sinto mais reles, cada vez
as palavras me parecem mais gastas. Há outro
sêr que vae de pólo a pólo... Esta figura grotesca
não é a minha figura. O salitre roeu os santos
nos seus nichos—roeu-os tambem o sonho...
Curvado sobre a mesa repito os mesmos gestos
inuteis para não desatar aos gritos.—Jogo!—Isto
para fingir que é indiferente o que nos rodeia,
que estamos habituados ao que nos rodeia, que
sorrimos ao que nos rodeia! Está alli a morte—está
aqui a vida—está aqui o espanto—e só a
ninharia consegue deitar raizes profundas.
[21]
20 de novembro
Fecho os olhos. A chuva desaba interminavelmente
do céo, e na luz turva vejo sempre a
villa, com as mesmas figuras de museu sentadas
na mesma sala... Insignificancia, insignificancia,
insignificancia. Portas chapeadas que rangem
nos gonzos como portas de prisão, fachadas
com os vidros partidos, e uma, duas, tres camadas
de pó sobrepostas. Lojas terreas d'onde vem um
bafo humido que trespassa... Como todas as almas,
todas as janelas estão perras, e o tempo vae substituindo
uma figura por outra figura, uma pedra
por outra pedra. Ponho-as em fila deante de mim,
com os seus penantes usados, grotescas e maniacas.
Considero. Vejo vir os gestos, as cortezias,
as acções do confim dos seculos. Isto é nada—é
vulgar e quotidiano. É uma aparencia.
A villa é um simulacro. Melhor: a vida é um
simulacro.
Atraz desta villa há outra villa maior. A
lentidão, o gesto usado, a meia tinta mesmo em
plena luz, toldam-me a visão. Sobre cada sêr cahiu
uma camada de pó. A villa é isto—e a villa
não é isto. Que me importa a Adelia, um dia d'inveja,
um dia de aquiescencia, um sorriso, baba,
mesura atraz de mesura? Outra velha mexe por
traz desta velha mesquinha. As lettras assignadas,
as lettras protestadas d'este sêr absorto, o
exagero minusculo, teem outra significação. A realidade
é a manha, a astucia que cada um
põe em
jogo. Não há velhas com cartas na mão; há orgulho,
soberba, inveja paciente. Há intuitos, cautela
[22]
de quem caminha na ponta dos pés. Há forças
e experiencia, avareza e astucia. E mais fundo
outro, outro sobterraneo... Todas as palavras que
se empregam teem, além da significação banal,
uma significação que cada um peza e calcula,—e
outra significação superior. Há palavras que
requerem uma pausa e silencio, e há palavras
que é preciso afundar logo n'outras palavras.
Há pelo menos dois sêres n'este homem que toda
a gente conhece, pautado, regrado, methodico.
Elle e o doido morto por fazer esgares. Elle e
o doido que só consegue comprimir á força de
pontualidade. Esta velha não é a velha com quem
lidamos—é outra. Tem tido um trabalhão para
fazer mal, nunca conseguiu fazel-o. Se se arrisca,
há-de contar comsigo mesma para se contrariar.
É uma discussão que não acaba, com a bocca amarga,
arrependimento—e por fim não realisa uma
catastrophe authentica, que a engrandeça. Curvada
sobre o lar remexe sempre as mesmas cinzas
frias...
Todos se defendem. Por isso existe uma certa
grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa.
O homem só vive de detalhes e as manias teem
uma força enorme: são ellas que nos sustentam.
Reparo melhor na vida secreta e na vida
subterranea. Comprehendo como é dificil viver todos
os dias e todas as horas, como atravez de tudo
é forçoso seguir um fio invisivel—e ser reles e
sorrir. Gasta-me uma força superior, e com todas
as chagas e todos os vicios, com a vida mesquinha
e a vida quotidiana, o nada, o penante usado,
o fel e o vinagre, tenho de arcar com uma coisa
immensa de que me separa apenas um tabique.
Tudo o que faço é um arremedo. Está alli outra
[23]
coisa quando falo, quando me calo, quando me rio.
E falo mais alto porque a ouço mexer... Todos
suportam o drama de todos os dias, o cinzento de
todos os dias, as aflicções e a usura que tornam
as figuras ridiculas e coçadas. Todos suportam
os tratos que envelhecem e preparam para a cóva,
os pequenos interesses, a inveja, a ambição, a
dôr phisica. Todos os dias a Hermengarda amarga
os brazões da Bibliotheca, a Bisborria todos os
dias scisma na sua respeitabilidade, e aturam o
azedo que pouco e pouco se deposita nas almas—e
com isto uma coisa desconforme, que se levanta
e deita comnosco, não se tira do nosso lado,
em quem ninguem fala e com quem temos por
força de cohabitar; deante de quem é forçoso
ser vulgar e dissimulado, fazendo que a não vemos
e com ella á cabeceira da cama...
Atraz da insignificancia andam os céos, os
mundos, os vagalhões doirados. Anda o desespero.
Anda o
instincto
feroz. Atraz disto
andam as enxurradas
de soes e de pedras, e os mortos mais
vivos do que quando estavam vivos. Atraz do tabique
e das palavras anda a Vida e a Morte e outras
figuras tremendas. Atraz das palavras com que
te iludes, de que te sustentas, das palavras magicas,
sinto uma coisa descabelada e phrenetica,
o espanto, a mixordia, a dôr, as forças monstruosas
e cegas.
Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificancia
desaparecessem da vida, só ficava de pé
o espanto.
Só a insignificancia nos permite viver. Sem
ella já o doido que em nós prega, tinha tomado
[24]
conta do mundo. A insignificancia comprime uma
força desabalada.
Para não vêr, para não ouvir, é que nos curvamos
sobre a mesa de jogo. Para te não ouvires
a ti mesmo, para não vêres o que te gasta a todos
os minutos e a todas as horas, usura immensa
que não sentes e que te vae levar para o escantilhão
sofrego, que te vae mergulhar no silencio
profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos,
desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais
velhos, todos os dias acordamos mais inuteis. Todos
os dias acordamos com mais fél. E todos os
dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos
sobre esta mesa de jogo, não vendo, fingindo
que não existe, o espanto que está ao nosso
lado, e o espanto peor que trazemos comnosco.
Chama-se a isto o quotidiano. Isto não tem importancia
nenhuma. Com isto enchemos a vida até
chegar a morte. Esta mesa de jogo é a nossa
existencia vulgar, a vida de todos os dias, com o
galope da outra vida ao lado. Não se passa nada!
Não se passa nada! No verão o calor sufoca,
d'inverno a mesma nuvem impregna
o granito, e apega-se, amollece, dissolve pilares
das janellas, casebres e a oliveira da
praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas.
Em volta um circulo de montanhas, descarnadas
e atentas, espera a tragedia—e as montanhas
não desistem. De quando em quando, na solidão
que á noite redobra, cahem do alto da Sé as badaladas,
uma a uma, pausa a pausa. O som tem
um peso desconforme.
Estamos aqui todos á espera da morte! estamos
aqui todos á espera da morte!
6 de dezembro
Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez
tenho mais medo. Estamos enterrados em convenções
até ao pescoço: usamos as mesmas palavras,
fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada
sufoca-nos. Pega-se. Adhere. Há dias em
que não distingo estes sêres da minha propria
alma; há dias em que atravez das mascaras vejo
outras phisionomias, e, sob a impassibilidade, dôr;
há dias em que o céo e o inferno esperam e desesperam.
Presinto uma vida oculta, a questão é fazel-a
vir á supuração.
Esta manhã de chuva é um minuto no rodar
infinito dos seculos, e os sêres que passam meras
sombras. Tudo isto me pesa e pesa-me tambem
não viver. Do fundo de mim mesmo protesto
que a vida não é isto. A arvore cumpre, o bicho
cumpre. Só eu me afundo soterrado em cinza.
Terei por força de me habituar á aquiescencia
e á regra? Crio cama e todos os dias sinto a usura
da vida e os passos da morte mais fundo e mais
perto.
—É necessario abalar os tumulos e desenterrar
os mortos.
[26]
É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem
som. Um homem absurdo. Olhos magneticos de
sapo. É uma parte do meu sêr que abomino, é a
unica parte do meu sêr que me interessa. Ás vezes
deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos
o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero
ser pratico, gesticula dentro do casaco arripiado:—A
alma! a alma!—Singular philosopho! É capaz
de desejar a morte para vêr o que há lá dentro;
é capaz de achar vulgares até as coisas eternas.
Ao lado da vida constroe outra vida. Sonha,
e os seus sonhos são sempre irrealisaveis, transformam-se-lhe
nas mãos em barro informe. Toda
a gente se ri—já sonha outra vez... Para elle
a vida consiste, encolhido e transido, em embeber-se
em sonho, em desfazer-se em sonho, em atascar-se
em sonho. Mezes inteiros ninguem lhe
arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar
no fundo de mim proprio. Ignora todas as realidades
praticas. Na arvore vê a alma da arvore,
na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a
mão e molha. Destinge sonho...
—A alma—diz elle—ao contrario do que
tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna
o corpo como um fluido envolve a materia.
Em certos homens a alma chega a ser visivel,
a athmosphera que os rodeia toma côr. Há sêres
cuja alma é uma continua exhalação: arrastam-na
como um cometa ao oiro esparralhado da cauda—immensa,
dorida, phrenetica. Há-os cuja alma
é d'uma sensibilidade extrema: sentem em si todo
o universo. D'ahi tambem simpathias e antipathias
subitas quando duas almas se tocam, mesmo
antes da materia comunicar. O amor não é senão
a impregnação d'esses fluidos, formando uma só
alma, como o odio é a repulsão d'essa nevoa sensivel.
[27]
Assim é que o homem faz parte da estrella
e a estrella de Deus. Nos vegetaes, nas arvores,
a alma é interior, pequenina emoção, pequenina
alma ingenua e humilde, que se exteriorisa em
ternura a cada primavera: tocada pelo grande
fluido esparso, onde andam as nossas lagrimas,
vem á tona em oiro e verde, em deslumbramento.
Nos mineraes, na pedra concentrada e recalcada,
que dôr inconsciente, que esforço cego e mudo
por não poder abalar as paredes e comunicar com
a alma do universo! A pedra espera ainda dar
flôr.
Para elle estas coisas ethereas são visiveis.
Vê tão exactamente como eu te vejo a ti a paixão,
o odio, o amor, os grandes fluidos desgrenhados
d'oiro, de piedade e de genio. Há noites em que
não resisto: fecho-me com elle a sete chaves.
Tem-me estragado tudo. É o doido que em nós
préga e nos deixa aturdidos. Ás vezes consigo
afastal-o, mas succede que fico sempre com pena:
se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado...
Desdenho-o, e sinto-lhe a falta quando
o não tenho ao pé de mim. Deita-me a perder
se me apanha desprevenido. Quasi sempre é elle
quem manda em minha casa, e, mesmo quando
falo como toda a gente fala, e quando rio
como toda a gente ri, só a elle o ouço no mundo.
Diz-me coisas que nunca ouvi, isola-me n'um valle
apertado e scismatico, longe de toda a terra, arrasta-me,
ou desespera-me. Desaparece como um cão
vadio, e quando volta, com lama de todos os caminhos,
folhas de todas as florestas, reflexos de
todos os enxurros, vem exhausto, mudo e feliz.
Vem feliz! É elle que me préga:—Toda a agitação
é inutil. Não tenhas medo da desgraça!—E
eu tenho medo da desgraça. Á força de habito
[28]
cheguei a mantel-o no seu logar, mas nunca o
pude suprimir, e quanto mais me aproximo da
morte, mais saudades levo do Gabiru, que me
estragou a vida toda.
Mora n'um velho pardieiro encostado á muralha,
abafado d'um lado pela muralha da villa,
que á noite redobra de porporções. O granito
enegreceu, poliu-o a chuva, e a escadaria de pedra
dá calafrios a quem entra.
—Essa alma, essa alma disforme, que vae
de mundo a mundo, e que em cada sêr realiza
uma primavera é que é tudo. O resto insignificancia.
É ella que nos devora e faz da morte a
vida e da vida a morte...
D'um lado a muralha de dentes arreganhados
para o céo, do outro o sordido pardieiro, no
alto a noite de luar como uma camelia gelada.
Dentro d'isto sonho.
Ponho-me a olhar para elle—ponho-me a olhar
para mim. Passou a vida n'aquella inutilidade,
de que sae a revêr sonho, e com os côtos partidos
a esvoaçar na noite dorida. Primeiro afundou-se
em experiencias do laboratorio, á procura da pedra
philosophal.—Ridiculo. Depois na aplicação
da electricidade aos vegetaes, que se consomem
de febre, que se desentranham em flôr, sem produzirem
fructo.—Grotesco. Agora ninguem o arranca
a infindaveis monologos cahoticos:—A
morte! a morte! a morte!— Incongruencia, obscuridade
e dôr tambem; a dôr de quem vem da irrealidade,
encolhido e transido; a figura estranha
de quem se debate com o sonho e sae da lucta
esfarrapado e doirado. Se o tiram do sonho titubia
e não sabe onde põe os pés. Tem as azas partidas.
Comprehende então a sua inutilidade e desespera-se
[29]
até reentrar na nuvem que o envolve.
Puxa a si o misterio, e, entre as arvores e os fios
eletricos que correm todo o quintal e ligam todas
as arvores, ouço a sua voz magnetica, que impregna
de sonho o luar todo branco:
—Isto é um fluido dôr, falta-me condensal-o.
É uma nuvem que envolve tudo, que vem do turbilhão
da Via Lactea, arrasta tudo comsigo, e
ascende em espiral até Deus. Não, a sensibilidade
não é individual, é universal. Basta ferir a sensibilidade,
que vae dos nossos nervos até á Via
Lactea, para transformar as noções do tempo, do
espaço, da vida e da morte—basta deitar dentro
d'um tanque uma gota de vermelho para tingir
toda a agua. Deito-lhe sonho dentro...
7 de dezembro
A villa é tumular e encardida, mas oculta
dentro dos seus muros um sonho desconforme.
Talvez desconexo, mas desconforme. O sonho é
d'elle: a propria casa de granito revê sonho. O
Gabiru mistura, revolve, extrahe sonho do sonho.
Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes:
o Gabiru não ouve, não vê, não sente. O sonho
isolou-o da propria mulher transida de frio, no casarão
que deu á costa como uma nau do passado,
com o cavername roido pelo mar das trevas.
É um sêr quasi ethereo. Nem sei dizer se existiu,
se a criei; sei que se sumiu n'um sôpro cada
vez mais ephemera, com dois olhos verdes de
espanto. Sei que me pegou sonho, e que fui levado,
perdido, como uma coisa inerte...
Morreu transida de frio. Uma mulher palida—o
[30]
que vale um passaro. Ternura e dois olhos
verdes de espanto. Hesita, mal pousa os pés no
chão, chora baixinho, e vae talvez acordal-o, queixar-se...
Não se atreve, e esboça um sorriso
logo molhado de lagrimas. Morre de frio. Agosto—morre
de frio. Até para lhe sorrir se esconde,
e põe-se então a olhar o muro (vou-te dizer o
sitio) a falar com o muro, a queixar-se á grande
nodoa de humidade da parede. Dois olhos verdes
de espanto, um vestido de seda, e as meias
rotas nos calcanhares. Um nada de ternura tel-a-hia
salvo—ninguem o arranca áquelle sonho informe.
Morta...
Ninguem. Depois que a perdeu tresvariou.
Estende fios no chão entre as arvores, e as arvores,
sob o fluido electrico, todo o inverno se desentranham
em flôr. Pegou-lhes sonho tambem. É
um desbarato, uma profusão que as devora. Absurdo.
O quintalorio ao pé da muralha, que há
seculos revê humidade, não é maior que um lenço;
a primavera só chega aqui tarde e de mau modo,
com pena das arvores de saguão. Arrepende-se
logo. Já veem que o absurdo é maior ainda...
Dezembro e primavera. O céo gelado, um brilho
de estrellas em engastes novos, e, entre a carie
das paredes, as macieiras baixinhas e humildes
como exhalações de ternura. Mortas. Mortas, seccas
de sonho. Mortas as arvores desfeitas em
flôr.
—Este efluvio é que é tudo: a torrente de
ideias e a torrente de paixões. A minha athmosphera,
a alma, penetra a tua athmosphera, e dissolve-a,
domina-a, conquista-a. Recua, tacteia,
hesita. Mas escusas de falar para que eu te entenda.
A materia muitas vezes não me deixa comprehender,
mas é raro que eu não saiba logo quem
[31]
tu és, e, mesmo que seja a primeira vez que te
fale, as vezes que te tenho encontrado no mundo.—E
logo:—A vida perdi-a a sonhar. Depois de
morta é que dei com ella. Mas que importa!
Acabei com a morte, vou resuscital-a. Viveremos
sempre, amar-nos-hemos sempre...
A noite é d'aparato. A lua de coral sobe por
traz da montanha em osso, e depois na chanfradura
das ameias. Mais flôres—todos os galhos
dão flôr. Sente-se, quasi se ouve, a dôr das arvores,
dos sêres vegetativos, ao terem de apressar,
de modificar a sua vida lenta, dispersos em ternura.
—Perdi-a, perdi a vida! Esqueci-a como esqueci
tudo. Perdi-a e mais dois dias e tinha suprimido
a morte!
Sob o fluido electrico o quintal tresnoita. Cae
neve e abrem os primeiros botões. A arvore transforma-se
n'um sêr dorido e esplendido—transforma-se
em sonho—em sonho desfeito em flôr,
em flores espezinhadas uma atraz das outras por
camadas sucessivas. Os ramos espremidos escorrem
dôr. Até as pedras deitam tinta. O quintal
escorre sonho como a alma do Gabiru. Atrevem-se
e acordam as coisas apodrecidas, e velhas pedras
iludidas põem-se a cantar n'esse pio triste dos sapos,
que sae da fealdade como uma inutil queixa
de desventura. A noite concava e branca—gelada—cobre
indiferentemente tudo isto. Que não
cobre a noite? Quatro paredes negras, no fundo
remexe o sonho. Perco tambem a noção da realidade.
—Tanta flôr!
—Para a sua cóva.—E pondo em mim os
olhos atonitos:—O que é preciso é ir buscal-os
ao fundo da mixordia, arrancal-os á obscuridade,
[32]
juntar outra vez as boccas dispersas. Não morrer
é nada: vou resuscital-os...
Imagina o negrume d'um poço—imagina dentro
o espanto, e não sei que luz viva, não sei que
dôr recalcada, não sei que de humilde, que quer
viver apesar de dorido. Vivo, e a pata enorme
que espezinha e esmigalha. Escuridão e oiro—silencio
e oiro—espanto e oiro.
—Vê tu a arvore... Uma camada de flôr—um
grito; outra camada de flôr—outro grito.
Vê tu a arvore como se transforma n'um phantasma
d'arvore, e depois em emoção!...
Suprimir a morte! É uma coisa grotesca. O
sonho transborda, o luar transborda—branco e
dôr—branco e sonho. Depois o silencio, depois
a sua voz magnetica—depois a sombra immensa
que ameaça desabar sobre nós, no quintal do tamanho
d'um lenço. Desato aos gritos quando todas
as roseiras, fartas de dar rosas, seccam, quando
da cathedral e do silencio caem uma, duas,
tres badaladas, que me apertam uma, duas, tres
vezes o coração. E o Gabiru com olhos de phrenesi
insiste:
—Não morrer é nada, suprimi a morte. O
que é preciso é arrancar os outros ao silencio. É
uma coisa simples, é uma questão de synthese.
—A morte,—afirmo-lh'o—é o repouso
eterno.
—Repouso eterno, estupido! É exactamente
o que está vivo, a morte. É o que está mais vivo.
10 de dezembro
Na escuridade e no silencio o sonho deita
braços desconformes. Pega-se-me. Debalde lucto
[33]
contra o fluido que avança para mim como uma
exhalação de phrenesi e de nervos. A teia invisivel
rodeia lentamente a inutilidade, a teia dissolve
as almas, e fios impalpaveis apoderam-se da villa
quieta e absurda onde só elle se atreve e scisma...
Isto é possivel ou isto não passa d'um sonho
grotesco, de mais outro sonho grotesco?
De que é feita a tibornea, o liquido viscoso,
côr de sabão, com filamentos verdes, que o Gabiru
com olhos de sapo revê no vidro, atravez
da luz—a maior descoberta do seculo, o sôro
que acaba de vez com a velhice e arreda a morte
para confins ilimitados? Alguns saes, o sodium,
o enxofre, o magnesio, o bromio, o carbone—e
sonho. Dezasete elementos, entre os quaes a prata,
o cobre, o oiro, o arsenico—e dôr. Materia, espirito
e concentração. O misterio é este e mais nenhum:
é exprimir como o que é espirito se transforma
em materia, como a poeira se condensa,
como a alma se faz corpo. Gritos, mais desespero.
Contar o quê? As noites infinitas, as mãos que tentam
arrancar farrapos ao manto em que o misterio
se envolve e procuram retel-o quando elle
se dissipa? Outra vez absorpção, outra vez o rebuscar
em ti mesmo o inexplicavel, e os nervos que
tendem e quebram o cerebro que doe, o lento acordar
das vozes submersas, a discussão, o tumulto,
e poder distinguir entre tantas boccas que falam,
a unica que tem direito a falar. É d'esta obscuridade,
d'esta discordancia, que emerge a ideia de
suprimir a morte. Não te rias. Já t'o disse: é um
sêr aparte com côtos em vez d'azas, que se agitam
n'um desespero para voar. Não se contenta
com esta vida nem dá por ella, mas fica sempre
a meio caminho, e tão dorido que não é possivel
[34]
tocar-lhe. Já t'o disse: é um sêr grotesco que põe
em mim os olhos turvos e teima, insiste, repete:
—Sobre a villa, repara, paira uma athmosphera
cinzenta, composta de todas as athmospheras:
é a alma da villa.—E afirma cheio de convicção:—Deito-lhe
sonho dentro.
Queira ou não queira faz-me scismar... Na
realidade morrer é absurdo. Nunca me capacitei
a serio que tivesse de morrer. Morrer é estupido.
Não comprehendo a morte, e, por mais que desvie
o olhar, prendo-me sempre a essa hora extrema,
só essa hora me interessa... Um sêr grotesco,
um unguento verde, e aquella voz aos meus ouvidos.
É caricato e pega-me doirado.
E o peor é que este sonho é afinal o meu sonho
e o teu sonho. Ninguem o confessa senão a si
proprio. O nosso sonho é não morrer. Quando a
gente se esquece a vida tem já passado. E quando
a vida tem já passado é que nos agarramos com
mais saudades á vida. A resignação custa muitas
horas doridas em que ficamos alheados e suspensos.
A morte... A morte é inevitavel?—pergunto
baixinho. E como a morte é inevitavel,
como não lhe posso fugir, para não perder tudo,
criei a outra vida. E afinal quem sabe se este
sonho que a humanidade traz comsigo desde que
pôz o pé no mundo não é o maior de todos os
sonhos e o unico problema fundamental?
A verdade é que teima. Não nos larga na vida
e levamol-o escondido para a cóva. A verdade é
que foi esta sempre a nossa maior aspiração, que
há-de acabar talvez por se converter em realidade.
Temos construido o universo assim, podemos construil-o
de outro modo. Falta só um passo... A
vida eterna admitimol-a, mas, no fundo, o que nós
[35]
queremos é este sol, esta pobreza, esta dôr, estas
ilusões moídas e remoídas. Deixem-nos a vida
que acceitamos tudo. Aqui há, portanto, um erro
primario. Protestas do fundo do teu sêr: a morte
é absurda. É preciso cortar um nó que não existe.
E passar do imperio do possivel para o imperio
do impossivel é talvez uma questão de vontade.
A vida é um acto de fé de todos os instantes. Acordo
e grito:—Eu não vivi! eu não vivi!—E
cada vez o meu protesto ascende mais alto. Quero
tornar a viver a mesma vida aborrecida e inutil,
quero recomeçar a desgraça.
Ninguem pode com semelhante peso. Não há
quem possa com elle. Na solidão, a primeira coisa
que procuro é a ninharia para esquecer a morte.
Um minuto sós a sós com o espanto, recamado
de mundos, que caminha desabaladamente no silencio,
dura um seculo e outro seculo ainda. Não
posso, nem tu nem eu, viver sobre o fio d'uma
espada e olhar para a voragem d'um e d'outro
lado; não posso arcar todos os dias com esta
usura que me gasta sem mergulhar na insignificancia.
E agora até a insignificancia me é impossivel.
O silencio... O peor de tudo é o silencio
e o que se cria no silencio, o que eu sinto que
remexe no silencio...
Carrega em cima de nós tal peso que ninguem
o suportava se désse por elle. É o peso do espanto.
Juntem a isto a villa comesinha, e o negrume
que levanta os côtos esfarrapados, como se fosse
voar, quando o padre Thimotheo dá o seu passeio
habitual no pateo da Misericordia, e, na meia duzia
de metros quadrados com arvores ethicas do
[36]
jardim, as Souzas arrastam os vestidos, ultima
moda do Grandella. Juntem a isto a grande nodoa
de humidade a que ella costumava queixar-se.
Juntem a isto a Morte e aquela voz de desespero
cada vez mais phrenetica, que não cessa de prégar,
e que me põe em frente de mim mesmo, que
é o que mais temo no mundo.
—O que eu quero, é tornar a viver. A minha
saudade é esta. O que eu quero é recomeçar a
vida gota a gota, até nas mais pequenas coisas.
Não reparei que vivia e agora é tarde. Sinto-me
grotesco. Recomeçal-a nas tardes estonteadas da
primavera e na alegria do instincto. Encontrei
há pouco uma arvore carcomida: deixaram-na de
pé, e um unico ramo ainda verde desentranhou-se
em flôr... Podesse eu recomeçar a vida!—Cala-te!—Terei
de confessar a mim proprio que
nunca amei, que nunca fui arrastado até ao amago
pelo desespero ou pela paixão e que de tal forma
se me entranharam as palavras e as regras, que
passei a vida a mascar palavras e regras? Terei
de confessar a mim mesmo que vou para a cóva
com a bocca a saber-me a vulgaridade e a pó?
Antes me soubesse a fél—antes a dôr!...—Mas
sonhaste, estupido!—Sonho. E o que me resta nas
mãos inermes, nas mãos para que olho com espanto
e terror, nas mãos de velho, senão grotesco, farrapos
de grotesco, restos de grotesco, com alguma
tinta em cima?... Não; viver é que é bom, viver
com o instincto, como os ladrões e os bichos, os
malfeitores e as féras, sem pensar, sem sonhar,
sem palavras nem leis, até cahir a um canto, morto
e feliz, de barriga para o ar. Isso sim! isso
sim!...—Quantas conversas temos tido juntos! quantas
discussões inuteis! quantos desesperos de que
não há sahir, batendo com a cabeça na mesma parede!
[37]
Ás vezes subjugo-o:—Cala-te! cala-te!—Ás
vezes fala elle mais alto e domina-me. Rio-me de
ti e impões-te-me. És ridiculo e só tu te atreves;
só tu és feliz porque te atreves a dizer inconveniencias
sem fé nem lei. Só tu não tens methodo,
só tu te fechas a sete chaves á tua vontade, livre,
feliz e despresado. No fundo invejo-te.
Aquilo incha, trasborda, como um rio que
alaga tudo. Pega-se-me e molha-me. Aturde-me.
É só elle que fala no mundo, cada vez mais obsecado
e mais alto, com interjeições e gestos desordenados
pelo meio:—Estupido!—Hei-de falar!
quero falar! hei-de por força falar!—E há aqui
dôr e ridiculo. Há um esgrouviado a dizer vulgaridades,
e uma coisa que vem da raiz da vida n'um
fremito e que me mete medo. Um bafo, e logo mil
vozes que aproveitam o momento e desatam a
prégar sem tom nem som.—Toda a gente se ri
de ti...—Deixal-o.—Toda a gente se ri! toda a
gente se ri!—Quero por força tornar a viver!
hei-de por força tornar a viver! Sinto que a minha
vida não termina aqui. Este sonho hei-de leval-o
a cabo.
Debalde lhe aconselho calma, o Gabiru insiste:
—Entrevejo na morte um sofrimento atroz.
O inferno não é uma palavra vã. É um desespero
sem consciencia nem gritos. A vida não é senão
uma tregua—um ah—e logo um mergulho n'esse
inferno de dôr. Na dôr estreme. Eis o que é a
morte: a dôr estreme, a dôr emudecida. O terror
instinctivo da morte é uma advertencia. Não quero
morrer e vou resuscital-os!... Viver sempre! amar
sempre! sonhar sempre!—que esplendido sonho!
A vida é quasi nada. Tudo que custou tanto
desespero, tudo sumido n'um buraco para sempre.
Ouves? Para todo o sempre. De que serviram os
[38]
gritos, as lagrimas, subir, trepar, chegar ao tôpo
do calvario? Para todo o sempre! Bem sei: aquillo
a que me apego é impalpavel: é a mulher que
passou, assomando-lhe ao focinho uma expressão
de ternura, e que nunca mais tornarás a encontrar;
é aquella manhã de chuva em que nos molhamos
juntos (e ainda me sinto molhado) e que
se não repete, é o minuto que nos escorre das mãos
como um fio d'agua, mas doira-o o sol, e é esse
mesmo minuto translucido que quero tornar a viver,
sem a sombra da morte a meu
lado. É
a essa mesma
ninharia que é a vida a que deito as mãos com
desespero. A vida é nada—é esta côr, esta tinta,
esta desgraça. É saudade e ternura. É tudo. É os
meus mortos e os meus vivos. Levo pena de tudo,
até da fealdade. Agarro-me a tudo, tudo me prende,
o sonho que não existe, as horas inuteis, o possivel
e o impossivel. A floresta não faz parte do
meu sêr, e eu tenho aqui a floresta, o som e o
aroma da floresta, a vida da floresta; o céo não
faz parte do meu sêr, e eu sou o céo profundo, o
céo tragico e o céo esplendido. Dá-me a vida—dou-te
tudo em troca... Agarro-me como um naufrago,
agarro-me com uma saudade, que vem não
só de mim, mas de muito mais longe, da base mesmo
da vida. Para sempre! para todo o sempre!—E,
com um suspiro mais fundo, repete:—Suprimi
a morte, vou resuscital-os!
Trago comigo um pó capaz de doirar a propria
eternidade. Não sei d'onde me vem, nem porque
nome lhe hei-de chamar. Todas as noites sufoco
deante do negrume—elle reanima-me. Insiste deante
das forças desabaladas e da imagem da morte.
[39]
Quero a vida! quero-a! quero-a vulgar, tumultuaria
e cega. Inerte não! inconsciente não! Tenho-lhe
horror.
Se com o nosso esforço colectivo forjamos o
mundo, porque deixamos a morte de pé? Criei o
universo. Destaquei da massa confusa o tempo—destaquei
o sonho.
Fui eu que dei valôres e perspectiva ao quadro.
Fui eu que lhe entornei ilusão. Na verdade
só existem côres como só existem gritos. Porque
não hei-de acabal-o? É talvez uma questão de
vontade. Se até para dar o primeiro passo precisamos
de crêr, porque não havemos de dar o
ultimo passo? Ilusão, mentira? Mas eu é que faço
a verdade e a mentira. Dou-lhes o meu bafo.
Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade
pode não existir. Com uma mentira posso forjar
outro mundo. Arredemos de vêz este suor frio.
A noite vem, a noite avança. Sinto os mortos.
Ainda vivo, já estou em seu poder: faço parte da
legião. Noite immensa sem gritos. Peor que sofrer
é não sofrer—para sempre. É nunca mais sentir.
É ter as orbitas vazias voltadas para o céo e n'ellas
não se reflectir a luz das estrellas. Mais um passo
e é o silencio absoluto. Mais um passo e tapas-me
para sempre a bocca.
Não me importa ser feliz—não me importa
ser desgraçado. O que me importa é o que há depois,
é o que está por baixo da terra e o que está
por cima da terra.
Já não lucto. E elle insiste e cada vez préga
mais alto:
[40]
—Eu não vivi. Que importa, vaes morrer!
Para sempre, para todo o sempre, o mesmo buraco
d'onde não sae rumôr. Escuta isto: d'onde
não sae rumôr. Repete isto: para todo o sempre.
Nenhuma explicação te é licita, nenhuma transacção
é possivel. A morte não espera nem atende.
É estupida. Primeiro é estupida, depois é incomprehensivel.
É tremenda porque contem em si mistificação
ou belleza. Absurdo ou uma belleza com
que não posso arcar. O nada ou uma coisa que a
minha imaginação não atinge. Se é o misterio, e
se desvenda d'um golpe, apavora-me. Se é o nada
repugna-me. Apenas um minuto, e lá em cima
as mesmas estrellas, e outros vagalhões de estrellas...
Para ella tanto vale um segundo como um
seculo, carrega um sêr inutil ou um sêr delicado
com a mesma indiferença para o tumulo. Tens
passado a vida a esperal-a. Que outra coisa fizeste
na vida senão esperar a morte? É a tua maior
preocupação. Debalde a arredamos: a vida não
é senão uma constante absorpção na morte. Então
para que nasci? Para vêr isto e nunca mais
vêr isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca
mais sonhar? Para presentir o misterio e não
desvendar o misterio? Levo dias, levo noites a
habituar-me a esta ideia e não posso. Tenho-te
aqui a meu lado. Nunca se cerra de todo a porta
do sepulchro. Estou nas tuas mãos... Adeus sól
que não te torno a vêr, e agua que te não torno a
vêr. Arvores, adeus arvores que minha mãe dispôz;
adeus pedra gasta pelos seus passos e que
meus passos ajudaram a gastar. Para sempre!
para todo o sempre! Tenho-te horror e odeio-te.
Interrompes os meus calculos. És o maior dos
absurdos. Vêr para não vêr, ouvir para não ouvir,
viver para morrer!...
[41]
E aqui te faço uma confissão: o que mais me
custa a largar é, como á cobra a pelle, a vida comesinha.
Se é a vida superior é tambem o meu
lume. É o ruido monotono da chuva nas vidraças.
Além da alma há outra alma que se apega ás pequenas
coisas, á columna d'oiro perfumada que
me entra de manhã pela janella—outra alma humilde
e pequenina, que se acomoda com um fio
d'agua, um cantinho de lume... É a alma da materia.
Não, o fim logico da vida não é morrer, é viver
sempre, é ascender sempre. Até onde? Até Deus. Vou
resuscital-os! Vou resuscital-os! E em elles se pondo
a caminho vaes vêr doirado. A vida toma novo impulso.
Desaparecendo a morte é que tu abranges
a vida. Vaes vêr a côr que toma o mundo, as tintas
que o mundo escorre, e as flôres que as arvores
criam... Vou resuscital-os! Vou resuscital-os!...
A terra remexe. Sinto um esforço e revive
o suor da desgraça; um arranco na profundidade,
e todas as primaveras dispersas não tardam, uma
atraz de outra, a reflorir. Há sepulchros até ao
fundo do globo. De mais longe vem um impeto—são
outros mortos ainda. Uma sombra desmedida,
uma sombra que se despega da obscuridade,
com todas as lagrimas que se choraram no mundo
condensadas, vae desabar sobre nós. As suas palavras
criam. O peor foi tocar-lhe! Neste debate
entra agora o mundo todo. Entram as arvores
e as pedras. Não há duvida para mim: quando
sahir disto tenho renascido: o mundo não é o mesmo
mundo, o céo o mesmo céo, a vida a mesma
vida. O que existe é outra coisa doirada e immensa,
esfarrapada e immensa. Põe-se a caminho outro
panorama, como se todo o infinito de repente se
aproximasse de nós, com os seus mundos, o seu
misterio indecifrado. Põe-se a caminho a immensa
[42]
floresta apodrecida, outras arvores como nunca
vi arvores, e outros sêres desmedidos e phreneticos.
Põe-se a caminho uma vida que há muito
sentia aqui ao lado, sem me atrevêr a olhal-a.
Tudo mudou de repente. Repara que o céo augmentou
em profundidade. O que existe são gritos, o
que existe é o espanto. O peor foi tocar-lhe...
Um remexer de treva, que até agora podémos
recalcar, soltou-se da escuridão e pôz-se a caminho.
Já não há esforços que a contenham...
Um borrão tragico avança—outro borrão informe
prepara-se. Os mortos empurram os vivos—desde
profundidades desconhecidas...
Passa no mundo a estranha ventania: é a
morte que custa a separar da vida. O rasto que
fica atraz, a perspectiva que fica adiante foi cortada.
A morte está aqui d'um lado, está do outro
a vida. Tinha raizes enormes: arrancaram-lhas
de vez. Agora atrevo-me a tudo. O turbilhão colerico
abala o mundo, oiro e negro, esplendido
e feroz. Desenraiza tudo. As almas acordam n'um
sobresalto, e não há homem que se não ponha á
escuta. Passa no mundo a doida ventania das
nossas aspirações secretas, das nossas duvidas,
dos nossos desesperos. É uma voz—são muitas
vozes. É um grito—são muitos gritos.—É o grito
contido há milhares d'annos, o grito dos mortos
libertos.
18 de dezembro
Em logar do uso de palavras fazia isto melhor
com o emprego de dois tons—cinzento e oiro:
uma nodoa que se entranha noutra nodoa. O sonho
turva a villa. A primavera toca n'este charco
só lôdo e azul: tinge-o e revolve-o. Mas o habito
de tal forma se entranhou na vida, que cohabitam
com o espanto e continuam a ir á repartição.
Horas na torre. Mais silencio. A morte roda aqui
por perto, alguem fala:—Então como passou? passou
bem?—O habito tem profundidades de legoa.
A principio olham-se desconfiados, com medo
uns dos outros. Sem duvida gostam de viver mais
um seculo, mais dois seculos, mas não sabem ainda
que emprego hão-de dar á existencia. Não se lhes
dava mesmo de morrer com tanto que continuassem
a jogar o gamão no
infinito
. O que lhes custa
mais
a perder não é a vida, são os habitos. Veem-se
e não se reconhecem. Há almas embrionarias,
velhos lojistas que olham para si proprios com
terrôr. A maior parte da gente, nasce, morre sem
ter olhado a vida cara a cara. Não se atrevem ou
ignoram-na: a outra existencia falsa acabou por
os dominar. Não há mascara que não custe a arrancar—há
[44]
mentiras que teem raizes mais fundas
que a verdade. Por isso, para uns não morrer é
continuar a jogar o gamão pela eternidade, para
outros é juntar uma moeda a outra moeda, um
dia a outro dia inutil. Sempre... Já na botica dois
idiotas recomeçaram com escrupulo uma partida
que deve durar cem annos, e o bocal amarello,
as moscas mortas estão alli com outro ar. Fixaram-se.
Estão alli embirrentas e sordidas para
toda a eternidade.
Pouco e pouco o sonho dissolve, a nodoa d'oiro
alastra. Vae mexer com o subterraneo, acorda os
mortos, desenterra o sonho submerso há dois mil
annos, sobresalta o instincto, bole com todas as
almas sobrepostas até ao fundo da vida. Transforma,
volta a existencia do avesso, deita o muro
abaixo. Por ora é só uma idéa, mas sae-nos de
cima o peso do mundo... Mexe em tudo, revolve
todas as raizes que se apoderaram da villa. O sonho
cae na regra, no charco de interesses, na hypocrisia
que se não atreve, nos dentes afiados
que se transformaram em sorrisos, na paciencia
de quem espera uma herança com vagares de
quem tece uma teia. Certas existencias são formidaveis,
outras existencias são como alcovas onde
nunca entrou a luz (cheiram a relento) e onde agora
se agita e gesticula um sêr desconhecido. Certas
existencias são feitas de odio minusculo, de inveja
que sorri—porque nem a inveja se atreve. Certas
existencias são crepusculares. Em certas existencias
são os mortos que ordenam, muito mais vivos
e imperiosos depois que estão no sepulchro. Quasi
toda esta gente se desconhece. Nunca se atreveram
e agora perguntam-se:—Sou eu? sou eu?
Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo
por fingir toda vida. A minha vontade era anular-te—e
[45]
finjo, e o sorriso acaba por ganhar
cama, a bocca por se habituar á mentira, a ponto
de já não saber discernir o meu sêr, do sêr artificial
que criei peça a peça.—Pois sim... pois
sim...—Mas atraz disto há outra coisa—há fél;
E quando tiro a mascara? Mas eu já não posso
tirar a mascara, mesmo quando me fecho a sete
chaves: a mentira entranhou-se-me na carne.
Este phantasma chegou a ter mais vida que a
propria realidade. E aqui andam outros sêres.
Eu não sei quem sou e até o meu metal de voz
estranho. Eu não sou quem falo. A meu lado,
atraz de mim, vem um cortejo de phantasmas,
uma cauda disforme que me conduz e empurra, e
adiante de mim há uma projecção de vida até
aos confins dos seculos.
Acaba a hypocrisia. Acaba principalmente a
hypocrisia para comnosco, mais dificil de largar
que a propria pelle. Eu minto mais a mim mesmo
do que minto aos outros, finges tanto com a tua
alma como com a minha. Primeiro é a hipocrisia
que descasca. Acabou! acabou! E com espanto
ouço e desconheço a minha propria voz.
É que a morte regula a vida. Está sempre ao
nosso lado, exerce uma influencia oculta em todas
as nossas acções. Entranha-se de tal maneira
na existencia, que é metade do nosso sêr. Incerteza,
duvida, remorso... Nunca se cerra de todo a
porta do sepulchro, sentimos-lhe sempre o frio.
Agora não, a vida pertence-nos. A morte não
existe, desapareceu a morte...
Ali a um canto um sêr desata a rir, a rir, a
rir como nunca ninguem se riu.
[46]
E, atravez da pedra d'estas physionomias,
transparecem já outras physionomias: as velhas,
como uma roda de aranhas de penante na cabeça,
apertam o circulo em volta da magestosa Theodora.
São annos de paciencia, d'inveja e de fél—são
annos de tragedia. Sobresaltam-se as futilidades
que estavam para durar seculos, mas ninguem
arrisca ainda um gesto que o comprometa.
Teem-lhe obedecido de rastros. O tempo passa,
e com o tempo esta lucta entre o inferno e o sonho
revestiu-se de cimento e de grandeza.
Obedece e sorri a Eleutheria. Moe, tem moido
a vida inteira. Moe-se a si e aos outros.—E o
tempo passa...—Obedece e sorri a Adelia, que
esperou, tem esperado a vida inteira. A miseria
conserva: tem os cabelos pretos. Seis, doze vintens
desiquilibram-lhe o orçamento: perde-os todas
as noites com um sorriso d'angustia. Obedece
e sorri a Porphiria, que é a peor de todas; é feita
de destroços e de restos. A aquiescencia tambem
está presente com a D. Restituta, de guardachuva
na mão, acenando sempre que sim á vida:—Pois
sim... pois sim.—Faz-se um pouco surda
para só ouvir o que lhe convem. Nunca diz mal
dos outros, nunca repete n'uma casa o que ouviu
cá fóra. Ás vezes, de noite, vira-se revira-se na
cama, mas nem sósinha se explica: suspira. É na
aparencia um pouco trôpega, um pouco adoentada
e surda: tem uma saude de ferro e um filho
escondido. E ao passo que a D. Restituta, tendo
dito a tudo que sim, tendo dito a tudo e a todos
que sim, já não pode dizer, com o mesmo esgare,
senão que sim:—Pois sim... pois sim...—a Adelia
é rispida: um vestido, um chale, um chapeu
de plumas, e o desejo exasperado de toda a
sua vida (tem sessenta annos) de ter uma sala de
[47]
visitas com dois castiçaes de prata e um album.
O album lá está, na sala que cheira a bafio, e há
vinte e dois annos que dois paninhos redondos
de crochet esperam os castiçaes de prata. Obedecem
as figuras secundarias, atentas e imoveis sobre
o jogo, dependentes umas das outras, ligadas
pelo mesmo interesse. A alma d'esta velhas chegou
assim a ser prodigiosa. Façam o favor de entrar...
Algumas flôres murchas n'um cantinho
com môfo. Depois paciencia, avareza, depois um
vasto campo funerario, onde passa o vento da desolação
como na retirada da Russia. E dominando
a paisagem dois ou tres marcos geodesicos. Lá
no fundo uma pégada de vida empoçada e que
reflecte o céo: alli se miram e remiram na sua
mocidade. Notem: nenhuma disse uma palavra
mais alto. Tudo isto se fez pelo lado de dentro—tudo
isto cresceu pelo lado de dentro, de tal forma
que se fosse material não cabia no mundo, com
colunatas, porticos, destroços e subterraneos, como
uma cathedral gotica. Aqui nesta cripta está o
relento, branco e molle, creado na escuridão e no
silencio, branco e molle, branco e sem olhos. Varias
sepulturas com estatuas jacentes e, mais adiante,
sobre sarcophagos, a Tradição e a Formula, que
durante os annos que durou a bisca, defenderam
a magestosa Theodora d'um envenenamento. Aqui
agora—cuidado!—a escuridão é viva, a escuridão
é sonho, é sonho requentado, como um acrescento
de todos os dias, sonho com que não podem
mais ao lado da vida quotidiana. Como sempre
as velhas deitam-se cedo, rezam o terço, e antes
de dormir juntam um pormenor ao sonho inutil,
uma figura aos nichos, um portico aos porticos,
um terraço aos terraços—até que adormecem com
um sorriso candido e um cheiro pela bocca que
[48]
tresanda... Aqui com o tempo acrescentou-se um
alto relevo esquecido; aqui as figuras são figuras
de delirio; aqui a nave atinge alturas desconexas
sustentada n'um unico pilar; aqui abre-se uma
ogiva com vitrais, que esclarece a uma luz funerea
um quadro indistincto, e que é talvez a
recordação d'um amôr já morto—porque ellas
tambem amaram—aqui o misterio envolve-se em
sombras condensadas, onde agoniza um Christo
exanime que mete medo. Adiante n'um friso incompleto
com uma cidade phantastica, campeia
o diabo; depois um remate enfumado, cachorros
sustentando uma arcatura, onde se admira a delicadeza
e a abundancia de ornamentação (é a
paciencia); e, n'este canto, mais sonho, entre negrume
acumulado, treva viva num buraco de treva,
que a si propria se enovela num desespero, até
que não cabe na cathedral, irrompe para o lado
de fóra e chega n'um jacto ao céo... Isto não é
a cathedral de Burgos—é a cathedral do fél e vinagre.
Todas aceitavam, a morte e a vida quotidiana.
Resignavam-se. Mas o que esta palavra representa
de sonho desfeito em fumo, de coleras inuteis,
de inveja inutil, de bolôr e de despeito, tradul-o
a paciente D. Herminia por este grito feroz:
—Estou farta senhor padre Ananias! Estou
farta de o aturar a si, de aturar os outros, e de me
aturar principalmente a mim mesma!
Toda a gente dá a mesma ferocidade, odio e
instincto. Espremidos deitam as mesmas paixões.
Uns ignoravam-se. Outros usavam a vida em manias.
Outros gastavam-na em grotesco. Outros habituavam-se.
A paciencia era pegajosa. A paciencia
[49]
tinha uma côr especial, verde desbotado,
que mal feria a vista, e um filho, a cobiça, tal qual
como a D. Restituta, que encrespa o pello e se põe
de pé com o guarda-chuva em riste.
Cada sêr me perturba como se contivesse em
si o céo e o inferno. Bem sei que a formula não
é inutil: ao contrario a mascara é indispensavel
e é por ella que nos julgam. Mas, apezar de crearmos
o mesmo
bolôr e e nos
sepultarmos ao mesmo
tempo com certa comodidade sob alguns palmos
de terra, há qualquer coisa que remexe e
que faz parte integrante da vida. Até o escuro se
eriça—até a grande sombra se deforma.—Muita
gente na vida só conta com a morte. A D. Desideria
desata aos ais. E é com secreta satisfação
que vejo esfarelar-se este edificio tão bem construido
sobre bases, que pareciam inabalaveis, do
interesse, da hipocrisia e das conveniencias...
Impelidos por uma mola dão todos um passo em
frente, e há tres dias que os padres se descompõem
na colegiada sem se chegarem a entender:—Lá
vae o inferno! lá vae o inferno!—E, efectivamente,
d'um instante para o outro, lá vae o inferno
que tanto custou a fazer, e outras sombras temerosas
reduzidas a cisco. Lá vae o scenário admiravel
e monstruoso, todas as regras, todos os papeis
pintados, que atravancavam o mundo, e eram pelo
menos metade da nossa existencia. O que tinha
uma importancia extrema passou a não ter importancia
nenhuma; o que parecia indispensavel á
vida, e sem o que se não dava um passo na vida,
reduziu-se n'um minuto a zero. E outras coisas
insignificantes assumiram proporções enormes...
Os padres clamam n'um côro desesperado:—Acabou
o inferno acabou tudo!—Descompõem-se
na sala da colegiada que deita para o passado—o
[50]
claustro com um pé de oliveira, e dois tumulos
encravados na parede, scenographia para o Hamlet,—sêr
ou não sêr eis a questão... Cheiram
a ourina e a ranço.—A religião sem inferno está
perdida.—Mas lá por o homem ter suprimido
a morte, não deixa de haver inferno—observa
o estupido conego Fazenda.—Isso está claro que
não deixa, obrigado pela observação, mas é um
inferno tão distante que não mete medo a ninguem.—Protesto!—Lá
vae o inferno! acabou o
inferno!
Lá vae tambem o céo, mas o céo não faz falta
nenhuma.
Já não há esforços que contenham o mundo
subterraneo que se pôz a caminho. Aos mortos
cheira-lhes a vida, a saque, a infamia. A poeira
remexe. Por mais que queiram conter a vida
dentro de certos limites, ella extravasa, e vem
á supuração; por mais que a queiram comprimir
estala por todas as costuras. É inutil. Alem da vida
aparente, há outra vida de odio, de sonho, de interesses
occultos. É a vida, é o que eu scismo de
noite e me sustenta de dia. É o desejo de exterminio,
é o sonho que arredo e que me pega fuligem:
são os restos de sonho de toda a gente. Em
todas as almas, como em todas as casas, além da
fachada, há um interior escondido. Saem dos antros
entontecidos e respiram, olham o céo e respiram.
Saem dos buracos e põem-se a rir, ou falam
só, o que é a primeira vez que succede na
villa. Emergem da noite e vão deixando cahir os
farrapos. Respiram com sofreguidão, os gadanhos
afiam-se-lhes, e o mesmo desejo os domina: a
vida! a vida! a vida!
[51]
Só esta velha parou de remexer nas cinzas
frias. Petrificou-se mais, petrificou-se mais ainda,
e a figura curva exprime, na imobilidade tragica,
sonho e desespero, dôr e desespero, noite e desespero...
É um erro supôr que o homem ocupa um espaço
limitado no universo: cada homem vae até
ao interior da terra e até ao amago do céo. A
parte de cima foi cortada, mas o que resta da
alma é um poço sem fundo. Uma obscuridade.
Por vezes fala a lei e o habito. Intrometem-se
coisas abjectas a que não sei o nome. Agora é a
vez de impulso—agora é a vez do interesse. A
mania tambem tem os seus direitos. De mais baixo
ascendem ordens que se não chegam a formular.
Desço mais fundo no poço e encontro restos sordidos
e candura. Por baixo sonho—por baixo
fragmentos e gritos... As velhas, por exemplo,
não são más, mas teem atraz de si seculos de
ruina e de destroços. Há-as que acordam sempre
com a bocca amarga. Já tiveram vinte annos, e
cada uma d'ellas suporta uma cauda de desespero,
de ilusões desfeitas, de ilusões intactas, de desejos
irrealisados, que lhes peza como chumbo. Cada
velha arrasta comsigo uma porção de cadaveres...
De mais fundo vem outro impulso... Começo
a ouvir vozes que supunha de todo extinctas.
Acordam e de tal forma se impõem, que a D.
Procopia desata a falar sem tom nem som. Nessa
vaga, n'esse lôdo adormecido, jaziam sêres ignorados
que veem á superficie: sente-se no silencio
as mãos agarrando-se ás paredes. Um a um todos
deitam raizes tremendas. E a nodoa immensa alastra,
a nodoa desordenada, que satura d'oiro a insignificancia
e o genio, a nuvem que envolve a D.
[52]
Inocencia, encrespa os cabellos á D. Leocadia,
fez esquecer a dispepsia ao D. Prior, arreganha
os dentes a D. Restituta. Pega-se. Torna uns mais
ridiculos, concentra outros. Vae remexer no que
estava sepultado há dois mil annos, no bolôr e no
bafio, nas paredes compactas da Sé, nos santos
immoveis nos seus nichos, na inutilidade e no
habito. E doira, doira, doira, doira o Telles e o
Reles, doira a hipocrisia e o medo, o egoismo e o
interesse. E ao mesmo tempo que os transforma,
põe-nos frente a frente a uma coisa estranha que
não admite subterfugios—á realidade.
Desaparecendo a convenção e as palavras, que
vae sahir d'aqui de temeroso e de ridiculo? Transformado
o mundo, com que olhos vamos vêr o
mundo? Tudo isto eram phrases e só existem
instinctos? A honra era uma phrase, o dever uma
phrase e a vida um scenário? Cada sêr é capaz
de todas as perguntas e de todas as respostas.
Escorre todas as tintas e possue todas as côres,
e só por habito adquirido há seculos é que conseguimos
olharmo-nos cara a cara, quanto mais
alma a alma.
Há dialogos na obscuridade em que se empregam
palavras que nunca se usaram, e figuras que
já não são as mesmas figuras. Todos nós somos
disformes.—Deixem-me! deixem-me!—Agora
quando falam já não é para dizer coisas convencionaes.—Estou
á espera, tenho estado aqui á
espera toda a minha vida.—Á espera de quê?—Á
espera deste hora suprema, á tua espera...—Mas
fala...—Não posso, só com gritos é que
posso falar...—A outra coisa temerosa sacode-os...—Tu
ouves?—Não te quero ouvir. Se
consegues ficar comigo sós a sós, sinto que estou
perdido. Tudo que me deu tanto trabalho a construir,
[53]
alue-se n'um unico minuto. Teimo em me
defender—teima em se fazer escutar...—Tu ouves?
tu ouves?...—Mas tu não existes... Ou
tu não existes ou só tu existes no mundo...—Estremecem
até á base da vida, e, n'este cataclismo,
ainda se lhes pégam coisas vulgares e
coisas inuteis—o que se faz e o que se não faz, o
que se usa e o que se não usa, as conveniencias
e os habitos rançosos. Há dialogos formidaveis na
obscuridade. Há almas extacticas, há-as reduzidas
ao espanto.—Ouves?—tu ouves?—Não tenho a
que me apegue, mal ouso pôr os pés. Até agora
sabia quem era, ou fingia sabel-o, agora pergunto
se sou a D. Leocadia, a D. Procopia e a
D. Penaricia? Só posso viver ligado a certas palavras,
a certos factos, a certas bases que julgava
indestructiveis, e um nada destruiu tudo isto, transformou
de todo a vida. O sonho tem outra côr,
e a nodoa de oiro alastra, corroe, mistura-se a
nodoas mais escuras e mais fundas, penetra, dissolve,
produz logo manchas corrosivas como ulceras.—Phrases
ainda elles as teem, mas o peor
é que cada um sente com espanto que já não
subverte a verdade. Pergunto a mim mesmo se a
deixo morrer, ou se a deixo viver mais duzentos,
mais trezentos, mais quatrocentos annos? Agora
que a sua vida só depende de mim, pergunto
a mim mesmo se a deixo viver—contra os meus
interesses? Eram tremendas as questões de dinheiro
que a morte resolvia. Quem as resolve
agora? Debatem-se em cada consciencia problemas
que só teem uma solução—a morte. Excusas
de desviar o olhar: só teem uma solução—a
morte. E de mais fundo ascendem outras vozes
e falam cada vez com maior desespero.—Não
desvies o olhar. Tu ouves?...
[54]
Assim como esta clamam as vozes interiores,
mais alto, sempre mais alto, imperiosas, as vozes
da multidão que constitue a tua alma. Isto coincide
com o grotesco dos homens de calva e ventre
gorduroso, meios nus em plena praça, sem se
atreverem a vestir-se ou a largar de vez os trapos
convencionaes; isto coincide com uma primavera
antecipada, em que as arvores, sentindo talvez
que vão ser a nossos olhos apenas coisas utilitarias,
se apressam a dar flôr, em que os céos nocturnos
e sem macula parecem ter gelado em
azul com fundos d'oiro revolvido...
Alguns põem-se a caminho e marcham com
olhos inquietos. Passa essa sombra tragica, a mulher
do Anacleto. Estes dois que foram sempre
pessoas consideradas, com assento na existencia,
e que usam a cabeça como quem usa um resplendôr,
o Elias de Mello e o Melias de Mello, sentem
um baque que os amolga. Porquê? Elles teem
tudo em dia, as contas, os livros, os escrupulos.
A praça considera-os, Deus considera-os.—A nossa
mãe morre...—E não tiram o lenço dos olhos.—Veneram-na.
Mas o respeito pelos paes só resiste
emquanto os paes respeitam o interesse dos
filhos. Há decerto uma lei moral, mas há
sempre por traz uma bocca a prégar. Uivos,
gritos, exasperos. É a transformação do
grotesco em ferocidade, é a camada de hipocrisia
que custa a romper. Imaginem isto:
imaginem o lojista em debate com a vida subterranea,
o lojista deparando pela primeira vez com
uma alma esplendida, e a D. Adelia, de chinó
postiço, fechada n'uma gaiola com a verdade, e
aos saltos uma á outra.
Foi grotesco, começou por ser grotesco. Mas
escuta-te: é um mundo que lá tens dentro, é
[55]
uma multidão que se prepara para o assalto. Estava
adormecida, acordou. Mete medo. E prégam,
açulam-se, avançam direitos aos seus apetites, ao
saque, á guerra,
á luxuria
. Continham-na arames
enferrujados, o medo da morte, o habito de
crêr em Deus (sabendo bem que Deus já não
existia) phantasmas, cacos d'armadura que derruiram
d'um dia para o outro. Descobrir que não
há Deus que alegria! Põe a gente á vontade. Respira-se
d'outra maneira. Descobrir que a morte
não é inevitavel endurece. O mundo muda d'aspecto.
Agora é que eu contemplo a vida—e me
perco na vida. Começo a ter medo de mim mesmo
e não me posso olhar sem terror. Que é isto, este
sonho, esta dôr, esta insignificancia entre forças
desabaladas? Onde hei-de pôr os pés? Eu sou a
arvore e o céo, faço parte do espanto, vivo e morro
ligado a isto. Sou temeroso e ridiculo. Não me
desligo do turbilhão azul, sem nome, que me leva
arrastado, estonteado, iludido, e ao mesmo tempo
discuto, nego e afirmo. Sou ridiculo e construi o
mundo. Sonho e acabo reduzido a pó. Sou capaz
de tudo e um nada me abate. Sou sordido e futil
e não tenho limites—vou de mundo a mundo e
de espirito a espirito. Dei alma ás coisas inertes,
significação ao universo, vida ao que não existe,
luz ás estrellas—e no fim acabo grotesco. Sou
nada entre o pelago e sem mim tudo se afunda
no pelago. O que olhava com indiferença mete-me
agora medo. Não posso com o mundo transformado,
com outros sêres, e onde não me desligo
d'uma força cada vez maior e mais desabalada.
Preciso de olhar para mim, sou forçado a
olhar para dentro de mim mesmo, a encarar comigo
mesmo, e ou desato a rir ou fujo transido
de pavôr. Não me posso comprehender no universo,
[56]
não entendo esta luz insignificante no negrume
gelado, nem esta discussão interminavel
no silencio absoluto, nem este ridiculo, nem esta
figura mesquinha que representa o mundo. Com
que destino rio ou choro entre o enxurro de oiro
e os impulsos tremendos que veem não sei d'onde
e caminham desabaladamente para um fim que
não distingo? Tenho medo de mim mesmo! tenho
medo de mim mesmo! Nunca o acaso pariu
nada tão monstruoso e tão grotesco como isto a
que se chama a vida. Tenho medo de mim mesmo!
Cada vez me sinto mais abjecto e mais transido—cada
vez me sinto maior e mais capaz de tudo.
Não me posso olhar nos olhos, com medo de vêr
o que nunca vi, em todo o seu horror e em toda
a sua nudez. Grito.
Gritos—gritos—gritos ainda sufocados. Ouço-os
na noite imperturbavel, na harmonia esplendida,
na arvore e na pedra. Mais gritos no
turbilhão dos mundos, e atraz desse turbilhão outro
maior—e mais gritos ainda. A ternura sou
eu que a presto ao absurdo e á dôr. O que fica na
realidade são gritos. A harmonia parece immensa
porque as coisas não teem bocca para prégar—ou
não as sabemos ouvir. Tudo isto se reduz a
dôr muda, a dôr intoleravel n'um escantilhão de
desespero—de desespero sem significação—de
desespero cada vez maior. E sempre outras boccas
prégam mais alto na noite que não tem limites,
outras boccas que nem sequer existem. Levanta-se
a poeira tragica, a poeira que anda espalhada
há milhares de annos, a poeira dos mortos
e a poeira dos vivos. Mais poeira ainda, que vem
dos confins, toda a poeira dispersa, que já foi ternura
[57]
e desgraça, poeira desaparecida que foi sonho,
poeira inutil que foi dôr.
Os maiores dramas passam-se porém no silencio.
23 de dezembro
«Se ella morresse...» Esta ideia ao menor
obstaculo, esta ideia a que eu fujo e a que tu foges,
e que ambos arredamos, mas que se obstina
até a proposito dos que mais amamos—esta ideia
transforma-se logo em acção:—Vou matal-a.
Desapareceu a morte e eis-me aqui preso a
esta creatura de olhos tristes fitos em mim. Para
sempre! Até as coisas mais bellas se transformam
em absurdo e me pesam como
chumbo
.
Peza-me a
tua amizade, peza-me o teu amôr—para sempre.
A pobreza e a humildade não se toleram para
sempre.
A ninharia a poder d'annos e de persistencia
impõe-me respeito. A ninharia um seculo, outro
seculo, transforma-se em grandeza.
Quanto menos sinto a morte necessaria para
mim, mais a julgo necessaria para o outros. É
um muro que é forçoso deitar abaixo. Para respirar
é preciso deital-o abaixo.
Muitas vozes, a d'este, a d'aquelle, a de tantos
mortos, a imporem-me a sua lei... Agora só eu
falo e com a minha propria voz.
[58]
Agora só eu mando. A vida vou julgal-a com
os meus proprios olhos. Vou tomar folego, vou
tomar peso á vida. Sei-a de côr e salteado. Sei o
que valem os preconceitos, as ilusões e as palavras—sei
o que vale o dinheiro. Não torno a ser iludido.
A vida é um combate, que só se vence pela
bajulação, pela manha ou pela audacia—todos
os meios são bons. Os escrupulos não servem
para nada, a convenção tolhe-nos os braços. Meia
duzia de regras afiadas bastam. Honestidade a
precisa para que confiem em nós—piedade a bastante
para que não nos assaltem os cofres. Fóra
d'isto logro.
Se tenho forças uso-as.
A vida n'estas bases é talvez monstruosa, mas
não posso modifical-as. Aproveito-as. Tiro da vida
o que ella me pode dar. Com ilusões podia-se ser
pobre—sem ilusões só se pode ser rico.
25 de dezembro
O peor é que se passa no silencio. É a outra
coisa que acorda, é a outra coisa desconhecida
que começa a empurrar o tabique. Deitamos-lhe
todos as mãos para o segurar, mas, no escuro e no
silencio, a pressão redobra... Está outra coisa
por traz do tabique, outra coisa que eu não quiz
vêr, e que o sacode com desespero. Bem sei, bem
sei que existes! Bem sei que estiveste sempre
ao pé de mim. Nunca te deixei discutir comigo.
Senti sempre que estava perdido se te deixasse
[59]
abrir a bocca. Há tragedias de que desviava o
olhar, fingindo não as vêr. Agora hei-de vel-as
por força. Há misterios que não queria debater
e agora se me impõem. Há vozes que não queria
escutar e que falam mais alto que a minha voz.
Há sêres que não queria conhecer e que discutem
agora tu cá, tu lá comigo. Tenho de os aceitar.
Romperam pelos sepulchros fóra—despedaçaram
todas as tampas. E esta intrusão na vida modificou
de todo a vida.
Cada um vê doirado. Tem de pôr o problema
alli na frente e de o resolver. Tem de ir até ao
mais profundo do inferno e até á vacuidade do
céo. Cada um tem de se olhar a si mesmo, nu e
ridiculo, nu e esplendido. Cada um vê por uma
fresta a força desabalada, e põe-se a scismar como
Dante com a mão ferrada no queixo. Temos todos
de resolver o problema.
Debalde
amontoamos
inutilidades ou palavras, ahi está na nossa frente
o mundo real, o mundo da verdade, o mundo
sem subterfugios. Traz flôres como uma primavera,
traz enxurro. Arrastou-se pelas folhas apodrecidas
e pela lama. É doirado—é feroz. Tem
todas as tintas e todas as côres, e sobre isto
phrenesi. É humilde, leva comsigo no mesmo impeto
ternura, dôr e desespero. Está dorido e vae
tão fundo como a propria desgraça. Impele-nos.
É a vida e o sonho, é a tragedia—não existe.
Não tem nome. Chama-se a vida e a morte. É
uma coisa absurda. Mete-me medo e extasia-me.
As velhas já não dizem:—Jogo!—Houve
uma coisa que se meteu de permeio. Os passos
aproximam-se e o esforço augmenta. Sinto-lhe o
bafo monstruoso, sinto-o mais perto de mim e
encostado ao meu sêr.
[60]
As velhas ouviram passos apressados dentro
das proprias almas, o sonho veio á tona, e ficam
absortas com as mãos agarradas aos queixos e
as boccas espremidas a remoer em secco...
O medo acabou, e o escrupulo, a hipocrisia da
gente que vive
á roda d'uma ideia sem atrever
a encaral-a.—É preciso matal-a!—São annos e
annos, são seculos de inveja paciente, que sobem
á superficie: até as figuras de pedra ressumam
dôr e desespero. Agora metem-me medo. As velhas
somem-se, e ficam gritos, fica o espanto, ficam
phantasmas.
O que se passa em cada casa, dentro de cada
sêr, no fundo de cada poço? Ouve-se as almas,
como se fossem facas, afiarem no escuro. Estão
promptas. Bem sei, falam ainda enteramelado, não
dizem o que sentem, mas já caminham segundo
o interesse, o odio e o sonho. As resmas de
papeladas são inuteis, a lei todos os dias se reduz
a zero. A nodoa alastra. E agora é que se vê bem
o que cada um trazia dentro de si. Nesta primavera
há duas primaveras. Agora é que eu comprehendo
que as palavras que se pronunciavam
eram rituaes, que os gestos, com seculos de existencia,
eram necessarios e significativos. As phrases
rançosas das velhas nos dias de enterro, as
phrases banaes, eram as unicas capazes de amortecer
a dôr; este habito ridiculo de jogar o gamão
um opio, como esta historia que a Bacellar conta
a si mesmo, com um ar idiota, um principio de
sonho. Tanto vale uma tragedia. É preciso fugir
á realidade. Comprehendo tudo. O que ellas odeiam
no Gabiru é a sua immensa capacidade de sonho;
o que a villa escarnece é o que a villa inveja.
Bem se importa esta roda de velhas, em volta
[61]
d'uma meza de jogo e o candieiro ao centro, com
a bisca lambida: durante algumas horas esqueceram
a mediocridade da vida—esqueceram tambem
a morte. O chale velho a que a D. Leocadia
se achega todas as tardes mesmo no
pino do
verão
, pego n'elle e, quanto mais no fio, mais
peso tem: está encharcado de sonho...
26 de dezembro
O que me impede de vêr a tragedia da vida, é
a ninharia da vida.
A alegria é a luz. A luz suprema é Deus.
Se elle não existe—nós creamol-o.
Cheguei a um ponto da vida em que nem os
outros me interessam, nem eu interesso os outros.
Não falamos a mesma lingua. Só entendo
alguns desgraçados.
Tudo na natureza são fórmas da minha alma.
Minha alma passa como uma luz em frente da
escuridão. Extincta só resta a treva.
Se não fosse o habito uma arvore matava-me.
Não posso olhar o céo sem terror, e tenho de fechar
todas as portas para voltar á vida comesinha.
Para o outro mundo é preciso uma iniciação.
Sinto que cada passo que dou é irremediavel.
[64]
Se me perguntassem o que queria ser—queria
ser isto mesmo. Assim na eternidade te queria,
minha alma, com o mesmo sonho, a mesma vida
e os mesmos erros. Não te troco por outra alma.
Não há belleza completa sem uma pontinha de
saudade.
A pobreza, a desgraça e a dôr metem-me medo.
Mas que prestigio! Ser alimentado pela desgraça
dá outra fibra, que só á desgraça pertence.
Faz-se parte d'uma legião esplendida.
Há uma porção melhor do nosso sêr, não há
negal-o. Luz entre residuos, gritos e instinctos.
Se não existe outra vida, pergunto para quê?
Se fosse possivel suprimir a ilusão—morriamos
todos á uma. Vivo entre quatro paredes, e
entre quatro paredes analizo e commento e construo
o universo. Fora d'esse casulo nada existe
para mim. Succede, porém, que da parte de fóra
é que está o resto...
Se me perguntam o que é a vida—não sei o
que é a vida. Sei que me devora—sei que tenho
ao pé de mim a morte.
Que faz de nós a vida? A vida gasta-nos, reduz-nos
a linhas essenciaes. Habitua-nos a viver,
e, quando estamos habituados a viver, suprime-nos.
Sei que tudo são aparencias, com uma unica
realidade, a morte. Para morrer não valia a pena
viver, para me encher de saudade não valia a
[65]
pena viver. Só para ser mistificado não valia a
pena viver.
A melhor parte da vida—é a saudade da vida.
A que se reduz afinal a tua vida? Algumas
ideias mesquinhas—e a uma coisa que não cabe
cá dentro.
Sim a vida tem minutos bellos, quando a
gente a esquece. E acima de tudo o sonho. O
sonho vale a vida.
É nada e menos que nada. Impulso, desconcerto
e logica, e no fundo do teu sêr uma ancia
superior a tudo, que é a melhor parte do teu sêr.
Melhor, que te faz desgraçado. Melhor que teima
em querer um universo a seu modo, e que pouco
e pouco, apezar de tudo, contra tudo, tem construido
o mundo a seu modo. Foi ella que fez
Jesus. É ella que te impele para cima, cada vez
mais para cima.
Ouço-me viver com terror—e caminho nas
pontas dos pés para a morte.
Se a vida futura é um absurdo, esta vida é
um absurdo maior. É tudo uma questão de habito.
Tanto sonhei comtigo que te construi.
Sou aqui tão necessario como as estrellas do
céo. Aqui estou, creatura mesquinha, com a dôr
a meu lado, com sonho a meu lado. Hei-de acabar
por te dominar. Não há morte que te valha!
Isto é abjecto, ás vezes é grotesco—mas se
isto desaparecesse, desaparecia Deus, e, com o
maior dos sonhos, todos os outros sonhos.
[66]
30 de dezembro
A vida é tecida como o linho: um fio de dôr,
um fio de ternura. Eu intrometo-lhe sempre um
fio de sonho. Foi o que me perdeu.
Só dei por ella depois de morta. As horas
mais bellas perdi-as a sonhar, quando a vida estava
a meu lado. Eu não vivi! eu não vivi!
Agora é que me lembro della, como d'uma
tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e
se fixasse n'um minuto, no silencio, nas coisas
suspensas na luz—nos botões quasi a abrir.
Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a
sua vida.
O dia d'hoje não existe para mim: só penso
com sofreguidão no dia d'amanhã. Ora amanhã é
a morte. E succede tambem que só dou pelas coisas
bellas da vida, depois que passaram por mim,
e que as não posso ressuscitar.
Há na vida um unico momento. Um momento
que sorri. Que concentra em si todos os momentos.
Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela
morte.
Só agora seus olhos verdes d'espanto me chamam,
seus olhos que exprimem o irreal e o mundo
todo, seus olhos cheios de dôr represa e de sonho
coado por lagrimas...
Agora é que ella está viva! agora é que ella
está viva! E tão viva que a confundo com a morte.
10 de janeiro
O tabique cahiu, e contemplo a vida. Mas entre
mim e mim interpõe-se um muro. O drama não
tem personagens nem gestos, nem regras, nem
leis. Não tem acção. Passa-se no silencio, despercebido,
entre mim e mim. É um debate perpetuo.
Que duvidas? Pois se a minha vida é esta e
não há outra vida; se o minuto é este e não há
outro minuto, que força me póde deter para que
eu não realise o meu destino contra ti e contra
todos?
Há um sêr que ocupa o meu sêr e me domina
quer eu queira ou não queira. Quem há ahi capaz
de dizer que a mesma ideia o não persegue?—Se
ella morresse...—Arreda-a. Tambem eu. Mas
saio d'isto aos gritos. Esfacelado. Tenho por força
de o admitir na minha companhia. Subjuga-me.
Peor: faz-me falta quando o não tenho ao pé
de mim.
Talvez eu seja um sêr complexo, talvez os outros
sejam tão complexos como eu. Tudo me faz
sofrer—mas metade do meu sofrimento é representado.
[68]
Tenho é certo duvidas—mas metade das
minhas duvidas são postiças. Hei de acabar por
não crer em mim como não creio nos outros.
Eterna contradição de todo o teu sêr. Não
sabes o que queres nem como o queres. Não sabes
no que crês nem no que não crês. És um
impulso. Vaes até á cóva levado por todos os
ventos, sempre a barafustar sem sentido. Explicas
tudo, ignoras tudo, adivinhas tudo. És um mar
d'inverno n'um dia de verão.
Está tudo decidido—dizes—está tudo prompto.
Só uma coisa me falta: pôr isto em acção.
E essa coisa, que é um nada, tem o infinito de
comprido.
Desde que este phantasma se pôz a caminho
nunca mais consegui detel-o.
Começa por uma idéa que afugento. Começa
por um pensamento tenue, por uma simples palavra
que afasto.
Insiste. Há ainda dias em que discuto. E por
fim domina-me, tem mais vida que a minha vida,
tem mais realidade, mais sonho e dôr, do que eu.
Assisto á sua acção e não o posso conter.
Acaba por acampar entre os destroços do meu
sêr como um dominador.
Mas eu não o criei! não fui eu que o criei!
Não só o não tolero como lhe tenho horror. Mas
para ser sincero devo dizer que há occasiões em
que me submeto com alegria. Para ser sincero
[69]
até ao amago, devo dizer que n'esta dôr, n'este
desespero, é que me sinto inteiramente viver. Com
elle é que eu grito. Decerto eu não sou isto—não
quero ser isto. Tenho-te medo e pertenço-te. És a
melhor e a peor parte do meu sêr.
Felizmente não vemos senão detalhes. Se alguem
podesse encarar uma alma até ás maiores
profundidades, e vêr ao mesmo tempo de que ternura,
de que ancia, de que desespero e de que
tempestades essa alma é capaz, nunca mais podia
desviar os olhos d'esse espectaculo. Fosse ella a
minha alma ou a tua alma. Era o mundo todo,
era o universo. Era Deus.
Que posso eu contra a vida? E se me recuso,
se lucto, que me espera? A renuncia? A estupida
renuncia, e cada minuto que passa me aproxima
do nada, me leva, queira ou não queira, para o
nada? Na cóva, na podridão, desfeito em pó, arrastado
por todos os ventos, d'aqui a um seculo,
d'aqui a milhares de seculos, ainda todas as particulas
do teu sêr, que não soubeste impregnar
de vida e alimentaste de simulacros, te hão de
prégar:—Estupido! estupido!
Remorsos? Eu não tenho remorsos. Duvidas?
Eu não tenho duvidas. Desde que te vi—vi o
universo. Comprehendi tudo. Comprehendi que não
tinha vivido, e que toda a minha existencia tinha
sido ficticia—que mais valia um minuto na vida,
que cem annos de vida. Que só há uma hora
na existencia e que é preciso aproveital-a. Que
tudo é simulacro e só tu és a verdade. E apercebi
o universo como força e destino a tal profundidade,
que n'esse rapido segundo passou por
[70]
mim n'uma rajada todo o turbilhão da vida, com
as suas vozes, os seus misterios e toda a sua grandeza
feroz. Vi tudo. Senti tudo. Bastou vêr-te.
Portanto não tenho duvidas nem remorsos. Ao
contrario estou calmo, ao contrario estou decidido.
Mas há uma coisa temerosa, uma coisa inexplicavel
e immensa—um fio que não posso cortar.
Tenho a sensação de que, cortando-o, aniquilaria
a vida. Não a minha vida, que não importa—mas
o que há de mais extraordinario e de mais
tenue na vida. Se houvesse Deus, diria que aniquilaria
Deus.
Há uma atmosphera de mentira que ninguem
deve ultrapassar—há uma atmosphera viva que
todos nós respeitamos.
Mergulho. Mergulho mais fundo ainda e não
encontro nada. E no entanto tu existes. És muda
e existes. Quando me imagino livre de ti, é que
tu tens mais força. Procuro explicar-te por palavras,
por convenções, por regras aprendidas, por
habilidades... És muito maior do que eu.
Ponho o ouvido á escuta d'encontro ao mundo,
ouço-me para dentro, para surprehender as
coisas fundamentaes que elle me ordena e são
duas ou tres simples, d'instincto e ferocidade. E
além d'isso outra coisa immensa—que não existe.
Como te chamas tu? E tu, dôr, como te chamas?
[71]
11 de janeiro
Ponho-me a olhar para ti consciencia, e exijo
que me fites nos olhos e que me fales claro. Não
entarameles a lingua. Em primeiro logar diz-me
o que és e o que significas: medo, receio, uma
vóz que se cala se a miseria aperta ou a luxuria
levanta a cabeça. Um nada, uma voz tão timida e
tão prompta a sumir-se... Incommodas-me é
certo, mas não impedes nada. Falas quando devias
estar calada, não sabes o teu papel e nunca entras
a tempo. Herdei-te: és convenção e egoismo alheio
entranhado no meu egoismo, synthetisado em duas
ou tres regras para commodidade dos outros. Fazes
de mim uma prêsa facil para quem a não tem.
És escrupulo, e o escrupulo é, pelo menos, inutil.
Estás em perpetua contradição. Inutilisas-me
metade da vida e nunca me pude desfazer de ti.
N'esta lucta de todos os dias, quando me julgo
livre, é quando te sinto todo o pezo.
Isto é decerto a vida. Mas a vida é tambem o
instincto que me diz:—Aproveita, não deixes fugir
o unico minuto. Se a vida é um momento entre
o nada e o nada, o que vale a pena é aproveital-o.
A questão suprema é esta e só esta: Deus
existe ou Deus não existe. Se não há Deus, a vida,
producto do acaso, é uma mistificação. Aproveitemol-a
para satisfazer instinctos e paixões. Se Deus
não existe, não há força que me detenha. Não há
palavras, nem regras, nem leis. Tudo é permitido.
Questão logica: pois eu hei-de ir para a cóva, para
todo o sempre, para toda a eternidade, sem ter
[72]
extrahido da vida tudo que ella me possa dar,
preso a palavras ou a meras questões de forma?
Oh! ponhamos a questão, consciencia: se Deus
não existe tu não és senão um estôrvo, meia duzia
de regras aprendidas ou herdadas. Ponhamos
emfim a questão com toda a clareza, porque este
é o unico problema que me importa e que te importa
resolver.
Escusas de encher a bocca com o dever. O dever
não me interessa nada. A questão fundamental,
a questão que eu debato com todo o meu sêr,
e de que me não consigo desligar, é a da morte
eterna e a da vida eterna.
Se Deus existe eu sou um homem,—se Deus
não existe eu sou outro homem completamente
diferente.
Não existindo tu consciencia, o que tu te intrometes
na minha vida! E tanto faz analisar-te,
discutir-te, negar-te, incomodas-me sempre. Estás
morta—estás viva. Na cóva hei-de chorar inutilmente
por te ter obedecido. Hei-de revolver-me
com desespero, por teres conseguido amolgar-me
e amesquinhar-me. Por mais que queira desfazer-me
de ti, tu impões-te-me. Quando te julgo
aniquilada, ahi começas a falar outra vez.
Vens de muito fundo!
Ás vezes protesto e imponho-me. Decido passar
sem ti: humilhas-te. Humilhas-te para logo
levantares a cabeça e revolveres o punhal na ferida.
Pesas-me como chumbo. És de ferro. Bem
tento explicar-te: são os escrupulos que me não
[73]
deixam trahir, mentir, subir. O que é eficaz não
é ter escrupulos, é fingir tel-os. É tudo o que os
outros nos pedem.—Mas tu não transiges. Se te
abaixas, é para te ergueres de novo, para de novo
me atormentares. Não me largas. Acompanhas-me
por toda a parte.
Se me livrasse de ti! se me livrasse de ti!
18 de janeiro
O que eu tinha era medo. Medo da morte,
medo da sombra. Só isto existia? Quando tudo
em mim me prégava que aproveitasse este momento,
que deste unico momento extrahisse tudo
que elle me podia dar—alguma coisa me detinha.
Eras tu consciencia. E tu não existias!
Fale a logica, fale a razão, fale tambem o instincto...
A consciencia é sempre religiosa. Mal
posso dar um passo no mundo sem tremer. O
mundo é Deus, Deus rodeia-me. Tudo para mim
é uma causa de espanto—e atravez d'este espanto
presinto ainda um espanto maior. Sinto-me como
balouçado n'um sonho immenso. Ando nas pontas
dos pés. Mal ouso respirar no cantinho onde contemplo.
E a minha consciencia era um reflexo
deste universo. Mas se tudo isto se converte em
forças, se arredo de vez a sombra temerosa, se
tudo é acaso no acaso, se nada existe, se é indiferente
o que eu penso e o que tu pensas, se só
eu sou ao mesmo tempo o bem e o mal, a consciencia
já não é a mesma consciencia e a sentimentos
novos corresponde uma consciencia nova.
Bem te procuro encontrar no fundo do meu sêr.
Rebusco-te. Ás vezes, nos momentos tragicos, já
[74]
não é comtigo que eu deparo—é com outro sêr
que assiste sempre, como um espectador, a todos
os meus exageros. Deitavas-te comigo, levantavas-te
comigo, ferrada como um punhal—e não
existias. Neguei-te. Expliquei-te. Reduzi-te ás tuas
verdadeiras proporções—e tu não existias! Atormentaste-me
e fizeste-me sofrer mesmo quando
já comprehendera que não existias. E agora mesmo,
quando o universo é outro universo, ainda te
encarniças sobre mim como um phantasma.
Escusas
de te rir—tu não existes. Dependias
da morte, e o que eu tinha na realidade era medo.
Talvez medo para depois da morte—medo da minha
alma em frente da minha alma, medo de aparecer
nu e com pustulas diante do que é eterno.
Carreguei-te como um fardo inutil. Põe-me a questão,
põe-me todas as questões que quizeres. Tenho
diante de mim este mundo e a voragem, este
mundo e o nada. Não te metas de permeio, que já
não tens razão de ser. Seria mistificação sobre
mistificação. Não me atrever agora é absurdo.
Porque, consciencia, o que importa é a parte interior—é
a verdade sós a sós comigo, fechado a
sete chaves, e essa é temerosa. Não tentes iludir-me.
Não podes mentir a ti mesmo. Vê que
passaste a vida a conter o mal—e o mal fez
parte, queiras ou não queiras, da tua vida. O mal
é pelo menos metade do teu sêr. Agora sim—agora
estou livre e atrevo-me. Para sempre livre
da morte e livre do tempo, calco-te aos pés. Nenhuma
sujeição. Nenhum temor, nenhum phantasma.
Sem escrupulos! sem escrupulos! Uma força
entre forças e mais nada. O mundo pertence-me.
Pertence-me e olho-o cara a cara sem desviar
o olhar. Sou a unica força consciente, sem palavras
[75]
que me diminuam, nem escrupulos que me
contenham...
Agora fala! Aproveita o minuto unico, a infamia,
o enxurro, o sabor a fél e a lagrimas da
vida, ou enfileira-te, se podes, no estupido rebanho,
e reentra na vida quotidiana, feita de pequeninas
regras e interesses. Vem-me um vomito: tenho
vontade do fugir de mim e dos outros: só o
que é selvatico me interessa e acorda em mim sonho,
perfume e ferocidade... Quero saber o que
me impede agora de matar, quero saber o que me
impede de olhar nos olhos o inferno, de seguir
o instincto e de obedecer ao impulso...
20 de janeiro
Eu sou um desconhecido para mim mesmo.
Ia para a cóva sem me têr encontrado um momento
sós a sós comigo. E é com dôr, é com espanto e
dôr, que me reconheço; é com olhos de pasmo
e dôr...
Tudo mudou. A sofreguidão que todos os dias
da vida—sempre! sempre!—nos empurra e leva;
o sentimento da vida ephemera e o horrôr da
morte—mais perto! cada vez mais perto!—; esta
coisa imponderavel que debalde tento deter—sem
nome e a que se chama o tempo—que nos usa, a
que não ouço os passos e que caminha inalteravel—tudo
desapareceu de vêz. Respiro. E, modificada
a ideia do tempo, todas as outras se alteraram
profundamente. Os sentimentos não são os mesmos.
A vida assenta n'outras bases, a vida fica amarga.
Resta-nos a logica e a consciencia. Mas a
consciencia admito-a, comtanto que não me embarace.
A consciencia que quizeres, comtanto que
não me amesquinhe, ou não me iluda. O unico
juiz sou eu. O fim da minha vida não é dominar-me,
é dominar-te.
[78]
Todos temos de matar, todos temos de destruir,
todos temos de deitar abaixo.
A paciencia acabou, a resignação acabou—e
acabou a morte. Suprimida esta ideia, suprimido
tambem o tempo e o espaço, as velhas não existem;
o que está vivo é a ferocidade, a paciencia
e a mentira—e tudo espera a ocasião. Espera
e desespera. A parte de dentro é que está viva
e reclama de pé e de ferro a sua vêz. Notem:
nenhuma arriscou um gesto mais brusco. Por mais
fél
que
lhes venha á bocca estão habituadas a
engulil-o. Nem com a cabeça tapada se atreveram
a olhar a verdade. P'ra dentro! sempre p'ra dentro!
E assim succede que não se construiu nunca
cathedral com alicerces mais fundos. Está viva.
Uma sustentou-se de côdeas, outra sustentou-se
de fome. A inveja tambem sustenta, o fél tambem
sustenta. Á Araujo só a paciencia e o calculo
lhe permitiram viver. Ás vezes tem fome—nunca
disse a ninguem que tinha fome. Sabe logo quando
entra n'uma casa as palavras que agradam á
velha rancorosa e á filha cheia de pretenções a
quem ensina as escalas; de quem há-de dizer
mal esta semana e bem para a que entra. Esperou
como a aranha espera com o estomago vasio.
Nunca pediu esmola. Melhor: conseguiu dar-se ao
respeito. E calcula, calcula, cheia de fome, o tempo
que a magestosa Theodora pode durar. A D. Penaricia
é abjecta, mas só a abjecção lhe tem
permitido viver. A mentira tem razão de ser—sem
abjecção a sociedade repele-nos. Admitimos
alguma abjecção, não completa e total, que repugna,
mas a precisa para servir de realce e moldura
ao nosso quadro. Acresce a isto que teve
de viver com despreocupação, de sorrir com despreocupação,
[79]
de mentir com despreocupação—com
a miseria atraz de si.
Com fél constróe-se uma vida—o fél dá certa
solidez. O peor é meter logo para dentro toda a inveja
que lhe vem á bocca. Peor ainda: na velhice
misturou-se tristeza ao fél. Não só a D. Penaricia
tem inveja, não só a D. Penaricia odeia, mas a D.
Penaricia chega ao ponto em que percebe a inutilidade
do fél. A Theodora pode aniquilal-a de
um gesto. Fél e vinagre—mais fél e tristeza.
É um vasto campo de destroços de que desvia
o olhar. Foi-lhe então inutil o fél? Se não fosse o
fél já tinha morrido. Quando passou fome, quando
deu dinheiro ao homem para o jogo, quando perdeu
na bisca para a Theodora ganhar e sorrir,
o que a sustentou foi o fél. Quando vestiu a filha
e a passeou no jardim, com trapos como os outros
trapos, o que a sustentou foi o fél. Juntem a isto
coisas inverosimeis que se lhes pegam e as reclamam,
velhas coisas esquecidas, velhos sapatos d'ourelo,
desaparecidos para sempre nas profundidades
do nada; velhos habitos, costumes aferrados,
miserias chronicas, adquiridas pela vida fóra e
que erguem a voz, cabelos postiços, sentimentos
postiços, gritos, e o exaspero de quem não pode
berrar:—O que eu quero é gosar! o que eu quero
é encher-me!—o que representa ainda mais fél
e tristeza, mais fél e vinagre. Alli estão frente
a frente, e pergunto se estas velhas que passaram
a vida á espera d'uma herança não teem direitos.
Pergunto se é possivel que a magestosa Theodora
continue a viver mil annos e a impôr-se,
a mandar, de quico na cabeça e com o cofre atraz
de si, e as outras agarradas á meza do jogo e á
espera da morte. Pergunto se ter inveja não é
sofrer, se ter paciencia não é sofrer. Há que
[80]
tempos que cada uma d'ellas só pensa em matal-a
e arreda a ideia com medo ao inferno. A teia aperta-se.
Mais um momento e a teia torna-se visivel.
A magestosa Theodora não pode escapar. Todos
os dias se tecem fios que a envolvem, todos os
dias aquellas vontades actuam, todos os dias o
sonho constróe. Sufoca. Formou-se um sêr que
tem vida propria, uma atmosphera, uma alma
commum, de que fazem parte todas aquellas almas.
A magestosa Theodora pertence-lhes. Hoje a Adelia
cravou de repente a agulha sobre a meza,
e a magestosa Theodora desatou de subito, aos
ais, aos ais, como se visse alli lavrada a sua sentença
de morte. Todas as phisionomias mudaram
alteradas e profundas, subindo á tona das profundidades
do universo ou de poços mais profundos
ainda. Agora o sonho não é um segundo, o
sonho vae ser a vida.
—Está certo o senhor? Está certo o senhor
padre Ananias, que depois d'esta vida há ainda
outra vida de que nos têem falado? Ou há só esta
vida? só esta?! E isto é uma
comidela
?
O que ellas estavam era sepultadas n'um vasto
cemiterio do tamanho da villa. Sobre cada velha
havia pó, sobre cada interesse pó, sobre cada phisionomia
outra phisionomia. Efectivamente a
Theodora é uma insignificancia. Só dá leis. O melhor
é matal-a. E todos os olhos se cravam nos
olhos do padre, todas as velhas mastigam em
secco, todas as velhas dão de repente um salto
brusco no vacuo.
Ó paciencia que já não és paciencia e trazes
veneno na algibeira, com que despeito olhas para
traz, para o Hymalaia de inutilidades. Debalde a
paciencia tenta dizer ao sonho:—Amanhã—;
[81]
tenta iludil-o:—Espera...—e a mentira propor-lhe
uma transação. O sonho toca na paciencia
como quem toca n'um nervo, e quando a Restituta
vae mais uma vez dizer-lhe á pressa:—Pois
sim...—aperta-lhe o gasganete e pela primeira
vez na vida a deixa desorientada... Comediante,
vê se aproveitas o excesso da tua dôr para praticares
uma nova infamia!
21 de janeiro
A mesma interrogação se formula em todas
as almas: quer então dizer que só vivi uma vida
ficticia ao lado da vida e que perdi o melhor da
existencia com aparencias? Quer então dizer que
tudo para que vivi não existe? Ponhamos a questão!
ponhamos a questão! A maior conquista do
homem, Deus, desapareceu para sempre—desapareceu
tambem a morte. Ponhamos a questão: façamos
taboa raza. Está tudo em terra, o dever, a
honra, as formulas e as regras. Ponhamos a questão
por uma vêz, nitida, clara e sem subterfugios.
Ponhamos a questão e todas as questões...
Avançam e recuam logo. Do sonho grotesco
ou explendido, ridiculo ou feroz, á realidade vae
um passo desmedido. Interpõe-se um muro...
Todos passamos os dias a resignarmo-nos. Muitos
nem dão pela vida. Há sêres que tanto faz estarem
vivos como mortos. Outros nunca repararam
sequer na sua verdadeira phisionomia (porque até
a nossa phisionomia é mais verdadeira que real).
Em alguns o murmurio das vozes é tão afastado
que não chegam a interpretal-o... Há-os que sahem
da lucta esfarrapados, há-os cheios de reticencias
e que mal visionam o mar morto indiscriptivel.
[82]
O que os farrapos custam a largar! o que o muro
custa a deitar abaixo! Pesa-lhas a vida anterior,
o habito reclama-os. Adhere-lhes o infinito e as
colicas, a usura e o fél. E sobre tudo isto há a
contar tambem com a imbecilidade e a apagada,
inepcia. Há a contar com a langonha que tambem
tem o seu sonho. Há a contar com o que se arrasta
no escuro, com olhos brancos, com olhos vagos
para a lua e para o sonho. Há a contar com as velhas
encardidas de habitos e de fistulas. Em sêres
amorphos e aguados, quasi inertes, no fundo remexe
ainda um resquicio de sonho, que se traduz
no mesmo gesto pautado, na mesma mimica, e no
olhar, onde, até na imbecilidade cerrada, se distingue
não sei que de temeroso. Por isso a questão
não é facil de resolver. Por isso o Anacleto
ainda não a matou. Ainda não conseguiu deitar o
muro abaixo. Não é o que se pode dizer na praça,
porque a praça venera-o. Não é tambem que a
ideia de a matar o assuste. A villa conhece o seu
escrupulo e honra-o. Nunca deixou de pagar uma
lettra. Mas há não sei quê que o contraria e se
opõe. Tambem as velhas se deteem, tambem o Santo
se detem. Mas a maré que ahi vem sobe sempre.
Ao mesmo tempo entontece-os e ao mesmo tempo
perturba-os.—Eu não quero vêr! eu não posso
vêr!—e tenho de me olhar cara a cara, tenho por
força de te admitir, tu que és o meu verdadeiro
sêr, immenso e profundo, com raizes em toda a
lama e braços que chegam ao céo.—Eu não sei
d'onde vem isto, e isto aturde-me. Olha como sorrio
para ti, como finjo que sorrio de mim e de ti que
te pões a falar. O gesto que eu faço, não me pertence,
perturba-me o som da minha voz. E a
noite é cada vez mais cerrada...—Ninguem quer
achar-se frente a frente com o seu proprio phantasma.
[83]
Nem tu, nem eu. Fugimos-lhe sempre. E,
se succede encontrarmo-nos, quedamo-nos com um
sabor que nunca mais se esquece. Um passo está
dado, falta dar outro passo. Custa...—Ao que quasi
todos se apegam não é a grandes acções, é a
simples peripecias. As existencias que se nos afiguram
dramaticas são cheias de ninharias, de ideias
fixas e de paciencia. O Torres engrandece a mania
de copiar inutilidades: d'aqui a dois dias ou d'aqui
a dois seculos, ainda o encontras curvado sobre o
mesmo manuscripto, onde traslada o folhetim do
Seculo
. Á Araujo que dá lições de piano é desespero
inteiriço. O honrado Elias de Mello vê o tratante
Elias de Mello pôr-se a caminho e não o pode
deter.—Ahi começas tu tambem a perceber que
a tua vida foi um mero simulacro, que, a tua bondade
for sempre um simulacro, que a tua felicidade
não passou d'um simulacro...—A D. Fufia,
que há muitos annos está morta por dizer mal,
que nunca se atreveu a dizer mal, e que, quando
ia a dizer mal, dizia logo bem de toda a gente,
rompe agora a abocanhar todos os ridiculos, todos
os orgulhos, todas as vaidades:—O que isto
consola!...—Divagam, falam queiram ou não
queiram com os proprios phantasmas, monologam,
discutem, gritam. A cada passo uma interrogação
exige resposta, a cada passo um abysmo aberto...—D.
Leocadia, o meticuloso dever foi a tua
vida e agora descobres que o dever não existe,
descobres que tudo aquillo para que viveste não
existe, e que existe outro dever maior e mais
vivo. Descobres que as palavras não te servem
de nada. Descobres que tens d'ir de encontro ás
questões e não as podes desviar do caminho. Descobres
que por tuas proprias mãos criaste uma
creatura disforme, que alimentaste de mentira. E,
[84]
a esta luz que te dá de chapa, descobres que a tua
caridade e os teus escrupulos eram uma lucta de
vaidade e de medo, de palavras e de instincto,
onde não entrava uma unica verdade. Descobres
que criaste um sêr falso que abominas e te abomina,
e que não te podes separar d'esse horrôr. Descubro
tambem que errei a vida, e não sei recomeçar a
a vida, e que tudo que fiz não fui eu quem o fiz,
mas o outro que me mete medo, e que tanto vale
a minha vida que perdi a arcar com Deus, como
a da Telles de Meirelles que a gastou com um
trapo. Com um trapo e palavras, ambos subvertemos
o mundo—um dia, uma semana, um seculo.—Examinando
bem a questão, meticuloso Anacleto,
uma palavra bastou para te deter... Examinando
bem a questão reconheces que foram as conveniencias...
Has-de arrepender-te até a consumação
dos seculos. O mundo vesgo que em mim descubro
no outro compartimento, é o mesmo que em
ti descobres. Faz esgares como certos rictos indecisos
que se formam á tona dos pantanos. Todos
sentimos atraz de nós um mundo, outro mundo,
outro mundo de ninharias, de palavras sem nexo,
de coisas que perderam a expressão, de apetites
que nunca se realisaram—todos cobrimos isto de
aparencias. Passamos a vida a conter outro sêr—outra
coisa—outro espanto. Há um fio invisivel
que ninguem se atrevia a ultrapassar. Uma
ordem que ninguem rompia. Até a colera e o desespero
mantinham certo verniz. E agora descobrimos
todos ao mesmo tempo, ó meticuloso Elias,
ó impoluto Melias—com risca e vinco, com vinco
e risca—que resolver matal-a é facil, mas para
a matar temos de deitar abaixo legoas de espessura.
Deixamol-a morrer ou não a deixamos morrer?
E nem sequer podemos iludir a resposta.
[85]
A mesma coisa desconforme entra pelo nariz e
pela bocca do Santo. Entupe-o. Esvasia-o e endireita-o
depois de amolgado. Outro sêr, n'um estonteamento,
bate com a cabeça pelas paredes.—Mas
então?... pergunta atonito.—Mas então
posso, atrevo-me?... Tudo isto era uma mistificação?
Mas então tudo é possivel e posso realisal-o
ámanhã, hoje, logo? E estas teias de ferro
eram teias d'aranha?... Mas então o medo, a
morte, o inferno...—Aqui estou eu com esta mulher
a meu lado, e sem querer pergunto a mim
mesmo...—Mas então?...—Sim, resta-me certa
pena e saudade, mas o interesse levanta a cabeça
e deita as suas contas tão baixinho que mal lhe
ouço fazel-as...—Teçamos, teçamos todos a nossa
teia esplendida, vulgar ou grotesca..:—Mas então...—E
encaro com um mundo novo, a que por
ora nem eu, nem tu, nem nenhum de nós se afoita.
Só as interrogações são cada vez maiores em
todas as almas. Todos os bonecos arreganham
os dentes e a Porphiria sua inveja. Efectivamente
não se comprehende para que vivem certos sêres
inuteis, que atravancam a nossa existencia e um
pequeno incidente podia suprimir. Efectivamente
não se explica que bastem alguns fios imateriaes
para nos conterem, e que um vidro de vidraça
seja suficiente para nos separar da vida.
Até a D. Restituta que era um poço sem fundo,
desata a repetir os segredos de toda a gente,
fazendo gestos na obscuridade com o guardasol
de panninho.
—Acuso! acuso! acuso!
Tocou-lhe tambem a vez. Usou-se a obedecer, a
dizer a toda a gente que sim. Hoje uma gota de fél,
ámanhã outro resto amargo. Já não sabe dizer
senão que sim, já não consegue apagar as dedadas
[86]
que lhe imprimiram. Coçada, coçada, coçada.
Fez as vontades á D. Procopia, á D. Felizarda,
á D. Herminia. Sujeitou-se ás vontades do conselheiro
Pimenta, quando por desfastio lhe fez um
filho. Orgulho? Ninguem tolera, ninguem concebe,
que a Restituta tenha orgulho; ninguem tolera,
ninguem concebe que a Restituta tenha vontade.
Habituou-se, apelintrou-se. A Restituta é um
reflexo. Diz-se tudo deante d'ella. Há familias separadas
por odios seculares: só ella entra e sae
n'essas casas quando precisam communicar. Naquella
alma incutiu-se até profundidades desconhecidas
o respeito ás pessoas ricas, a consideração
ás pessoas importantes. Que tem a Restituta
que desata aos gritos:
—Acuso! acuso! acuso!
Debalde lhe tapam a bocca. É um vomito, um
chorrilho de palavras precipitadas—a vida de
toda a gente—são os despejos entornados. Em
vão dez, vinte mãos anciosas se lhe agarram ás
guellas abertas: aquillo sae n'um jôrro impetuoso—tudo
quanto estava recalcado, todos os segredos
que ouviu, todas as miserias que lhe deitaram
para dentro, e, se pára um momento, é para
tresvariar n'um riso feito de todos os risos postiços,
n'um esgare feito de todos os mil e um esgares
que acumulou durante a vida:—Eu tambem tenho
um filho! eu tambem tenho um filho como
voces!—Impurram-na, escorraçam-na, e ella agarrada
ao guarda-chuva ainda brada:
—Acuso!
A vida irrompe, o sonho irrompe como hastes
de cactus, nascidas d'um dia para o outro, com
escorrencias nas extremidades ridiculas e pueris.
Arredei sempre isto—isto que estava ao lado da
vida. Nunca quiz vêr isto, fingi sempre que isto
[87]
não existia. Tambem tu o arredaste... E isto existe.
E isto é enorme. O que ahi está fede. Tresanda.
Sua viscosidades. Apega-se. É uma marcha furiosa
e desordenada. É a Vida. São todas as ancias
soterradas que se não chegaram a exprimir.
É um inferno de gritos e de impulsos, sonhos impossiveis
de sonhar, aquecidos a bafo e ternura,
sem forma nem côr, ou admiraveis sonhos de
tragedia. Mais um passo e tudo que estava recalcado,
tudo que estava morto e sepultado, toda
a podridão, todo o desejo encarniçado e oculto,
toda a mistella que lucta ás cegas na escuridão
para vir á superficie, desata a falar á tôa. Mais
um passo e o sonho é realidade. Fala a infamia
e o grotesco, fala a candura ao mesmo tempo.
23 de janeiro
Ao Santo só lhe resta orgulho. O sonho descarna-o
e deixa-lhe o orgulho intacto. Debalde
préga, debalde lucta comsigo mesmo.—Eu já não
creio no inferno.—E detem-se com espanto deante
dos destroços, das formulas, da insignificancia,
dos simulacros que foram a razão da sua vida.
Tudo que lhe enchia o mundo não existe, tudo que
não existia lhe parece maior:—Eu quero crêr!
eu quero crêr e não posso crêr!—Debalde insiste
comsigo mesmo:—Nossa vida aqui é nada, nossa
vida eterna é tudo. Nosso destino é a morte.
Só assim posso explicar o universo, só assim
posso comprehender o universo.—Tudo o que se
tinha apoderado do seu sêr até ás mais intimas
raizes, tudo o despedaça até ás mais reconditas
raizes. Dilacera-o.—Não me atrevo sequer a olhar
a vida, a olhar para mim, a olhar o pelago desordenado.
[88]
Eu quero vêr e não ouso! Eu quero crêr
e sinto-me pequeno e grotesco ao lado d'isto!
D'esta coisa monstruosa que não posso arredar.
Não posso arredal-a.—Para ti tambem o problema
é insoluvel, D. Leocadia, que resurges com o vestido
coçado, mais secca e mais verde. Estaes ambos
encalacrados.—Tu viveste sempre para Deus
e para o inferno e nem sequer o inferno existe.
E tu procedeste sempre segundo a tua consciencia,
regulaste tudo conforme a tua consciencia—e tu
e tu—e ahi estaes ambos atonitos e verdes, resequidos
e verdes, desesperados e verdes, sós a
sós em frente d'uma figura que vos não larga.
—Trouxe-a para casa, sustentei-a, mas nunca
a pude vêr, diz ella—Deste-lhe codeas mas não
podeste amal-a. Sustentaste-a por caridade, sustentaste-a
de restos para calares uma voz tremenda.
Ella foi peor que uma creada, foi uma creada
que se não pode despedir, presa pela gratidão—observa
a outra D. Leocadia—Fala claro, fala
alto. Atreve-te.—Atrevo-me. Toda a minha vida
fiz o sacrificio de a manter, toda a minha vida
por caridade a tive junto de mim, calada e subalterna,
amachucada e sem vontade, para cumprir
perante Deus o meu dever. E agora a consciencia
exige de mim?...—Exige.—Exige de mim, porque
o meu filho lhe fez um filho, que o case com
a orphã, sustentada de esmolas, calada e viscosa?—Exige.—Por
quem eu só sinto repulsão?—Exige,
e o peor de tudo é que lhe deste restos, mas
não podeste amal-a.
Torce-te, torce-te mais ainda. A cada camada
de verde pega-se-te logo outra camada de sonho.
A D. Leocadia coçada e secca sacode em vão e
arreda outra D. Leocadia inteiriça e coçada. Tambem
o Santo está aqui, só e o pecado, só e Deus,
[89]
só e o desespero: «Deus existe—ou Deus não
existe. Se Deus existe, se tenho a certeza que
Deus existe e se interessa pela minha dôr, esta
vida transitoria é um unico minuto com a eternidade
á minha espera. Tudo me parece facil. Que
exige o meu Deus? Que me reduza a pó e despreze
a aparencia? Tudo é vão deante da eternidade que
me espera. O meu Deus enche o mundo. Só o
meu Deus exista, e todo o resto no universo é tão
pequeno e tão futil, que reclamo mais dôr, mais
sofrimento, mais fome. Que a desgraça caia sobre
mim com todo o peso da desgraça; que a dôr me
descarne até á medula. Despreso a dôr. Exijo-a
deante da eternidade. Sou capaz do andar de
rastro com a bocca no pó, sou capaz de sofrer todos
os tormentos, com a certeza de que me livro
d'uma eternidade d'angustias para vêr Deus. Venham
todos os escarneos, todos os gritos, todos
os suores da agonia—venha meu Deus a cruz!
Até á morte hei-de crêr no que creio. Sem crêr
não sou nada—sem crêr não existo—sem crêr
não comprehendo a vida. Preciso de caminhar
para um destino. Crêr é uma necessidade absoluta,
um sentimento primario, a propria vida, sua
razão e seu fim. Tenho necessidade de Deus, como
do ar que respiro. Sem elle a vida é desconexa
e atroz; peor, é monstruosa. Creio porque
creio. Se a vida se reduzisse só a isto, a vida seria
abjecta. Dentro em mim tudo me fala n'uma
lei, n'uma logica, n'uma razão de ser, n'um sentido.
Eu vejo Deus, eu sinto Deus.
Mas se Deus não existe—se Deus não existe
que me fica no mundo? Sou nada no infinito.
Fui tudo—e sou nada. Leva-me a força bruta.
Sou o acaso na mistificação. Sou menos que nada
no monstruoso impulso. Se Deus não existe tanto
[90]
faz gritar como não gritar. Não tenho destino
a cumprir: saio do nada para o nada. Nas mãos
da força bruta que sou eu no mundo que grito,
que discuto, que clamo?... Atraz deste infinito
vivo, há outro infinito vivo. Atraz d'esta
impenetrabilidade, há outra camada de impenetrabilidade,
outra vida ainda, outro desespero sofrego.
Não encontro aqui logar para Deus que
me ouça, que me atenda, ou que saiba sequer
que existo.
Os gritos são inuteis, tu não me ouves. Estou
só n'este absurdo que me impele e esmaga...
Que não houvesse o céo, que existisse o inferno
só o inferno! E nem o inferno existe!...
Se Deus não existe... O peor de tudo é que
eu digo e afirmo,—Deus não existe!—mas na
realidade não sei se Deus existe ou não. Não há
nada que o prove—ou que prove o contrario.
O peor de tudo é que eu sinto uma sombra por
traz de mim e não sei por que nome lhe hei-de
chamar. O peor que podia acontecer no mundo
foi alguem pôr esta idéa a caminho. Mas mesmo
que Deus não exista, tenho medo de mim mesmo,
tenho medo da minha alma, tenho medo de me
encontrar sós a sós com a minha alma, que é
nada, o fim e o principio da vida e a razão do
meu sêr. Mesmo que Deus não exista e a consciencia
seja uma palavra, há ainda outra coisa
indefinida e immensa diante de mim, ao pé de
mim, dentro de mim. Vem a noite e com a noite
interrogo-me:—Existe?—O que existe é monstruoso.
Não ouve os nossos gritos. O que existe
é o espanto. O que existe reclama dôr. Sustenta-se
de dôr e não dá por ella.
[91]
O que existe então é isto—é um ulular de
dôr na noite—no turbilhão, no escuro. O que
existe são gritos, e eu sou levado, arrastado n'esta
mistificação. Por traz de mim há uma coisa que
me apavora, por traz de mim há uma coisa cada
vêz mais sofrega, cada vêz mais phrenetica—e
que de cada vêz exige mais dôr. Espera: a
harmonia não existe—existe a dôr; a belleza não
existe—existe a dôr; Deus não existe—existe a
dôr. E há um momento apenas para realisar a vida.
Nesse momento de paixão todas as forças se concentram
e ponho o pé no mysterio. Tenho de aproveital-o.
Tudo o que exista na noite immensa, na noite
ignobil, é peor que Deus. Tudo o que existe me faz
horrôr, tudo o que existe entre as forças desordenadas
me causa espanto... E por mais que
grite, por mais que proteste, estou aqui diante
do incomprehensivel, vivo no nada, de pé na voragem.
E para lá há uma coisa infinita, um negrume
infinito, uma vida infinita. É immenso—é
inutil. Sou menos que nada. Só deparo na minha
frente com infinito sobre infinito, com o negrume
sufocado, com o negrume impassivel, com
o negrume vivo e immenso, desesperado e immenso.
Só contei comtigo meu Deus—e agora
quero crêr e não posso crêr. Estou aqui defronte
do espanto e sinto-me perdido na vastidão infinita.
Tudo o que disse—disse-o deante do vacuo,
tudo o que sofri—sofri-o deante do vacuo. Todo
o meu desespero, a minha dôr, a renuncia, os esforços,
o calvario deante do vacuo!»
O maior drama é o das consciencias. O maior
drama é arredar todos os trapos da vida, para
[92]
poder olhar a vida cara a cara. O maior drama
é ficar só com o vacuo e em frente do espanto,
É dizer: nada disto existe. Só dou no meio d'este
assombro com uma coisa desconexa e abjecta, a
discutir comigo mesmo, levada por impulsos. O
maior drama é não encontrar razão para isto que
vive de gritos e se sustenta de gritos—e ter de
arcar com isto. Perceber a inutilidade de todos
os esforços e fazer todos os dias o mesmo esforço.
E isto não nos larga. Sacode-nos e abala-nos até
á raiz, n'uma discussão que nunca cessa. Nem
em mim, nem em ti, D. Leocadia. Essa figura
tremenda insiste cada vez mais alto, cada vez
mais sofrega, cada vez mais desesperada. Ouvel-a
diante de ti, ao pé de ti, dentro de ti, mais coçada
e mais verde, com outra camada de sonho
e outra camada de verde?
—O dever? que dever? Antes a deixasses
morrer de fome.
—Mantive-a para cumprir o meu dever.
Aqui tens tu a minha consciencia, aqui tens
tu a tua consciencia, e aqui está a consciencia da
D. Penaricia. E tanto vale para o caso o genio
em frente da consciencia, como o ridiculo em frente
da consciencia.—Valeu a pena não
matar?—pergunto—perguntas—perguntam.
Aqui estou em
frente d'isto, com um segundo e todo o seu esplendôr
e todo o seu espanto e todo o seu desespero,
e pergunto, perguntas, perguntam, se o
que se chama a honra e o que se chama a consciencia
e o que se chama o dever, teem forças
para se me impôr. Oh palavras não! A pergunta
não é como as outras para ser iludida com subterfugios.
É a unica que carece de resposta imediata
como um punhal que vae direito ao coração.
[93]
Vê tu que, apezar de tremulo, estou calmo...
O problema é capital. Pergunto se toda a lucta
foi inutil, se todo o fogo do inferno que recalquei,
foi inutil? Pergunto, perguntas, perguntam se as
horas para nos contermos foram uma estupida
mistificação. E as boccas remoem em secco no
escuro, e as mãos sofregas palpam os vestidos
de ceremonia. Estão decididas a tudo. Vem-lhes
á supuração o antigo fél e vinagre, os pequenos
desesperos, e os grandes desesperos. Tudo está
vivo. Cada sêr formula uma interrogação. Segue-se
que se os paes teimam em viver, transtornam
todos os planos, todas as regras e todos os preconceitos
estabelecidos. Segue-se que acima de teu
direito está o meu direito. Segue-se que a construcção
antiga desabou, e a um mundo novo correspondem
creaturas novas. Segue-se que todos
os problemas se reduzem a um só problema—o
dos mortos. Segue-se que o muro é uma insignificancia.
Tapa o céo e a terra, não existe montanha
de tanta espessura—é uma teia d'aranha.
Sôa a hora da outra coisa disforme o aluir para
sempre. Por traz do muro é que está a paixão,
o crime, o desespero e a vida esplendida e feroz.
É preciso deital-o abaixo. Os tumulos estão
gastos d'um lado pelos passos dos vivos e do
outro pelo esforço dos mortos.
1 de fevereiro
Chega fevereiro. Primavera. Dá logo rebate
o tojo bravio. A aspereza é a primeira a sentil-a.
O tempo está funebre. Ouço o ruido calamitoso
das aguas. Só os botões dos salgueiros estalaram.
Nos galhos despidos entreabrem-se flocos
friorentos e pelludos.
Corre um vento glacial e as arvores encolheram-se
transidas. Mas n'esta frialdade sinto já
ternura.
O ar de fevereiro é outro: é morno. As rãs,
de barriga no lôdo, coaxam de satisfação, pegajosas
e molles como a herva verde e humida.
E, d'um dia para o outro, crescem á tona da poça
azul, encastoada na terra negra, fios d'herva a
reluzir. Tinta entornada.
O ar sabe bem: sabe a bravio.
Ao longe o sol trespassa os montes. Manhã
de nevoa e oiro gelado. Uma arvore nova cobre-se
entontecida da primeira flôr. Apressou-se,
[96]
enganou-se... É uma haste de pele luzidia, tres
raminhos abertos no azul. E isto envolto em ternura,
tanto faz que se trate d'uma arvore como
d'uma rapariga.
Sente-se n'esta atmosphera humida a seiva
inchar os botões tumidos das arvores. Volta a
chuva gelada: a primavera tenta, vem com hesitações.
Muda o scenario. Acinzentam-se os montes por
onde sobem arrasto pelas pedras rôlos de fumarada.
Acastelam-se no céo as grandes nuvens esponjosas.
Chove. A voz é outra. D'onde a onde
descerra-se a cortina vaporosa e emergem os montes
brutos e compactos.
Nos abrunheiros bravos estalam os primeiros
botões. E quanto mais bravos, mais flôr deitam.
É uma prodigalidade.
Noite. A escuridão, o silencio, o esplendido
céo todo d'oiro sobre a massa negra dos montes.
É isto e os gritos da moichela aos ais d'aflição.
Eis torna o silencio, e a alma sufoca de espanto...
O pio triste dos sapos irrompe de profundidades
ignotas. E outra vez o silencio, a noite imutavel
cheiinha de estrellas—e sempre o mesmo
fio d'agua, misturando ternura a este espectaculo
d'assombro. É só isto, e a muralha disforme
ao fundo, ainda palida de luz.
A primavera é um phenomeno electrico.
Na primeira tentativa da flôr há fealdade
e ao mesmo tempo candura; depois, da noite para
[97]
o dia uma gôta de tinta como uma gôta de leite.
Basta que á nevoa se mistura o sol, para entreabrir,
ainda informe. Todos os sêres, antes de se
vestir, são abôrtos: teem medo de nascer bellos.
Ás vezes basta um dia. D'um instante para
o outro, poeira azul, entontecimento, sonho...
E isto não é só material. N'este mysterio
há certa dôr, certa tontura, há até espanto. É um
olhar que se abre para o mundo. Pela emoção a
arvore comunica com o universo e manifesta uma
vontade que triumpha sobre a dôr inconsciente.
Entre a arvore, o céo e a terra há um compromisso
de ternura.
5 de fevereiro
O que isto custou na obscuridade do mundo
cahotico!... Houve decerto uma primeira primavera,
mas as flôres, que hoje são ternura eram
então espanto—tentativas frustradas de sonho.
Os gritos da floresta primitiva, não os ouço mas
estão aqui contidos. E ainda hoje a terra se perturba,
porque vae assistir ao mesmo drama.
Todo o universo se concentrou para gerar a
vida, todo o universo se concentra para a destruir.
A villa estremece ao sentir a primavera estranha.
Noiva. Noiva a D. Ursula, pergaminho
[98]
e escrupulo, que fez da vida um pecado, e ao réz
de cuja alma liquida se espalmam flôres venenosas.
Não há sêr que fique indemne. Até que
chegou a vêz á macieira anainha, que um bafo
humido-lilaz turba e perturba. Há aqui um encolhido,
que nunca sahiu do saguão, que nunca olhou
para o céo nem sabe que o céo existe: sente
tambem a primavera. Assim me succedeu com um
tronco decepado que no inverno meti no fundo
d'uma loja: na primavera seguinte tinham-lhe crescido
ramos: sentiu-a atravez dos muros, e, com
gritos represados, botou um simulacro de flôr.
Fevereiro. Primeira noite de luar e de loucura.
A primavera toca mais fundo, mais fundo ainda—esta
primavera que revolve os vivos e os mortos.
Todos deitam flôr. Acordam na profundidade
dos sepulchros, com o sonho que levaram para
a cóva, com todos os sonhos desfeitos em pó.
Há-os que nunca se atreveram a declaral-o. Há-os
que o sumiram com receio de sonhar. Há-os
estonteados...
Ouvel-os falar baixinho, surprehendidos, como
se soltassem todos o mesmo ah—de espanto, e
se puzessem a falar baixinho uns com os outros?...
Fala a poeira, fala a sombra desconforme,
fala o pó desaparecido.
Na frente uma aparencia—a vida está na
multidão que nos impele, a vida está nos mortos.
Massa atráz de massa, os mortos empurram os
vivos. Sente-se o esforço doloroso. Atraz d'estas
mãos, outras mãos de desespero; atraz d'estes olhos
[99]
sem orbitas outros se esforçam para a luz. O peor
era o silencio. O esquecimento é que é a morte
definitiva, e por isso o esforço augmenta. Formam
uma cadeia infinita, a caminho para a vida
e para a dôr; a todo o momento nos falam e nos
guiam, e toda a sua ancia é viverem depois que
estão no sepulchro. A velha que sahiu da existencia
mirrada, continua a trazer o menino ao
collo. Outros caminham tropegos, sacudindo a
terra que se lhes pegou aos ossos. Eil-os dispostos
a sofrer por uma nova ilusão. A vida foi um
nada, impregnou-os para toda a eternidade: um
instante de luz bastou para lhes dar gosto á dôr.
O que elles tentam misturar as suas lagrimas ás
nossas lagrimas! o que elles arfam para que o
mesmo fluido que nos prende aos sepulchros—onde
estremecem—se não desligue da vida que
ainda se não tornou visivel! É que não só os
mortos mandam nos vivos, tambem os vivos mandam
nos mortos. E avançam, empurram-nos...
Conservam no fundo do tumulo as manias da outra
existencia. Esta velha aperta um trapo ao peito
como um filho, com medo de o perder. A moça,
mesmo na cóva, dá um geitinho tão lindo
ao lençól! Este conserva na concha da mão uma
moeda de cobre, e áquella, Maria Antonieta, René
reconhece-a mais uma vez por a têr visto
sorrir nas Tulherias... Estendem as mãos mirradas
para se aquecerem ao nosso lume; guardam
nos ouvidos pela eternidade os ruidos vulgares—os
mais bellos—o das folhas cahindo uma a
uma, o da fonte que corre e que nunca mais tornará
a correr, o da voz que lhes falou na hora
extrema; guardam nas mãos o ultimo contacto
das mãos, e a restea doirada d'este sol doirado
ainda lhes reluz nos buracos das orbitas...
[100]
Deitam-se ao mesmo tempo a caminho do
fundo dos fundos e de mais fundo ainda. Mesmo
morto o que eu não quero é morrer... Primeiro
rebate, da primavera doirada e phrenetica, primeiro
impulso que estonteia e deslumbra...
Os mortos é que estam vivos! os mortos é
que estam vivos!
7 de fevereiro
Do sonho que revolve o mundo cabe tambem
uma parte á mulher da esfrega. Arrasta tudo
comsigo. Cae o inverno dentro da primavera. Engrandece-a,
espalma-lhe os pés, esfarrapa-lhe os
vestidos.
Está aqui a figura—está aqui outra coisa.
Muda de expressão, como se fosse possivel as lagrimas
usarem por dentro as figuras humanas,
como a chuva ou os passos gastam a pedra.
Aquillo dura um momento, transparece um minuto,
mas esse minuto chega. Logo á submissão
e á humildade se mistura um nada de entontecimento.
Quasi nada. Trouxe sempre comsigo debaixo
do chale um resto de sonho amargo. Remoeu-o transida
de frio pela vida fóra, quando
fez recados, aqueceu a agua e rachou a lenha. É
um nada e ampara-a. Atreve-se... Toda a gente
precisa de qualquer estonteamento para suportar
a vida. Sonho gasto que andou por todos os caminhos,
com pés espalmados como a recoveira.
Há sonhos humildes que ninguem quer sonhar:
servem á Joanna que quando os usa os vira do
avêsso.
Velha quer dizer experiencia e seccura, e a
[102]
Joanna não tem experiencia nenhuma da vida.
Conserva a ternura intacta. Ninguem na ouve.
Tem uma filha, nunca fala na filha. Ás vezes
pousa em mim os olhos turvos:
—O corpo pede-me terra.
Ainda hoje não comeu senão uma côdea que
lhe deram. Aproveita tudo. Anda sempre absurda
a fazer contas como um avaro. Os trapos são
sempre os mesmos: secca-os no corpo. O monologo
é sempre o mesmo com que enche a vida
toda. É sempre a mesma obstinação desconjunctada,
como se as palavras gesticulassem para o
lado de dentro, e a mesma ideia que a persegue
o que debalde repele. Seja o que fôr, a Joanna
esconde-o muito fundo. Ás vezes fica suspensa e
alheada. Mal pode arrastar as pernas trôpegas.
É pelle, meia duzia d'ossos, um cangalho, que
sente uma absoluta necessidade de repouso, de
terra para dormir. O frio é de morte. Entranha-se-lhe
até aos ossos, e a velha lá segue com o
saquitel de borôa e os olhos turvos de tanto ter
chorado. Vê sempre não sei quê que a não larga.
—A tua filha?...—E nunca fala da filha.
N'aquelle desespero percebo uma palavra outra
palavra. Sobre isto choro, sobre isto lagrimas
em barda, como se nascesse uma fonte na escuridão.
A Joanna chora sempre, chora por tudo e
por nada, chora por si e pelos outros. Não se sabe
onde vae buscar tantas lagrimas.
A ternura é humida.
Não comprehendo este sêr. Viro-o, reviro-o.
É um nada com duas ou tres idéas no caco.
Cheira mal, cheira a aziumado. Passou a vida a
aturar os doentes e a vida repele-a. Apega-se e a
[103]
vida acaba por fazer de Joanna de unhas roídas,
pelles no pescoço e olhos turvos, uma figura disforme.
Irrita-me e prende-me. Sei como a Joanna
se encortiça d'um lado e se faz sensibilidade do
outro. Posso dizer quasi dia a dia como as mãos
se lhe deformam, como os olhos se lhe aguam,
explicar como a mulher da esfrega se parece com
o panno da esfrega. Não sei explicar o resto. Com
este molho d'ossos e alguns farrapos no corpo,
há um fiosinho d'oiro a reluzir, um fio que teima
em aparecer á tona e em se misturar a agua de
lavar a louça. Annos, velhice, desgraça—e teima.
Teima até ao caixão. Reluz sempre. Tem o mundo
contra si, a vastidão sofrega, o rodilhão do universo
em perpetuo inferno. Resiste. Parece facil
de suprimir n'um sôpro. Resiste a tudo, esse pó
necessario como o polen á aza para voar. Um
nada com a noite deante de si, com a voragem
deante de si. Tudo se gasta e desgasta—não o
usam.
Tenho passado noites em debate com este sêr
absurdo. Acabo pelo desespero. Enfurece-me e
apega-me ternura. Uma bocca enorme que se fecha
sem emitir palavras, os mesmos olhos inocentes
de pasmo, e um ronco que lhe vem dos
gorgomilos como do fundo dum fole. Mais nada.
Sacudo-a—deita sempre a mesma agua. O mundo
é uma voragem. Tanto faz. A vida é uma mistificação.
Debalde. Responde-me com ternura. Responde-me
com uma vida humilde de desgraça e
lagrimas. E outra coisa exprime a figura: surprehendo
atravez dos farrapos e do ridiculo, um
nada immenso, uma força immensa que transmite
outro nada: algumas lagrimas para chorar, outro
ventre para parir. Um poder de se perpetuar—para
gritos. Impelem-na—impele. Debalde a
[104]
dôr sua, a Joanna caminha molhada e tropega,
mas caminha. É inutil a desgraça agarrar-se-lhe.
Mais funda porque é muda como a noite. Faz
parte da velha. Envolve-a, cresce, enrodilha-se-lhe.
Sua. Só geme:—Anh...—Resiste á desgraça,
resiste á vida, resiste ao ridiculo. A velha
consegue ser maior que a desgraça. Nem toda a
agua de lavar a louça suprime este facto.
O meu desespero termina aqui, deante d'esta
creatura que não comprehendo, de mãos roidas e
um chale velho sobre o corpo mirrado de ternura.
Estraga-me a vida toda. Perturba-me a logica.
Mete-me medo. Tanto faz que a Joanna
viva ou morra, que grite ou se cale: as mesmas
estrellas no céo, a mesma grandeza absurda, o
mesmo mudo espanto. E no entanto n'esta confusão
esplendida só a sua alma comunica com a
minha alma. A sua dôr, a sua mentira é que importam
á minha vida e á tua vida. Negrume e
um arranco: exaspero para manter de pé um
resto de ilusão. Mal se fecha abre os olhos atonitos.
Não diz palavra. Por fim chora, as lagrimas
correm-lhe pelos sulcos das lagrimas e mistura-as
ao pó de sonho com que foi entretendo a vida,
a pequeninas coisas gastas e poidas—ao sonho
que ninguem quer, ao sonho que ninguem usa,
o que em todo caso a sustenta e a enleva, como
as bonecas das creanças pobres, de trapo e com
dois olhos abertos a retroz, que se lhes afiguram
rainhas.
Há um misterio na vida de Joanna, e no entanto
na sua alma lê-se como atravez d'um vidro.
Tudo n'ella será falso excepto a dôr. Não
sei, ninguem sabe o que tem. Sinto que se obstina
como se fosse de pedra e dentro houvesse
[105]
outra Joanna a dar com a cabeça pelas paredes.
Não ouço o que diz, nem sei o que sofre—mas
a desgraça sua n'aquelle monologo sem pés nem
cabeça, a que não ligo sentido. Debalde o sonho
se encarniça. O sonho, que não cabe no mundo,
cabe entre as quatro paredes daquelle caco e revolve-a.
Fecha a bocca como se tivesse medo de
falar. Não quer vêr—e há-de por força vêr. Persiste
em manter de pé o resto da ilusão em que
passou a vida, obstina-se o ciclone vivo em pol-a
frente a frente á desgraça. É sonho contra sonho.
O que ella não quer é vêr, e só ella sabe o que
não quer vêr. Não pode com o pezo desconforme
que a torna grotesca, e de todo se assemelha
agora á arvore do quintal: mais sonho—mais flôr.
Abre uma bocca enorme, fecha-a sem emitir som.
Mostra as mãos, aperta os gorgomilos e o sonho
arranca-lhe farrapos. Há-de acabar por lhe extorquir
a dôr...
Sua vida é um monologo, que eu não sei traduzir.
Nossa vida é sempre um monologo de interesse
e de sonho. Sempre o mesmo monologo
interior, de dia, de noite, quando acende o lume
ou quando põe em mim os olhos turvos. Talvez
os bichos monologuem assim, muito baixinho, p'ra
dentro, só dôr, sem entenderem a vida nem explicarem
a vida. A desgraça está alli ao pé, cada
vez mais secca, e nem o sonho nem a desgraça
conseguem arrancar-lhe aquillo de vez para fóra.—A
minha filha...—Mas isso não basta! não
chega! Mais dôr, mais sonho. Abre a bocca cada
vez maior e não tira outro som dos gorgomilos:
só emite um ronco. A desgraça e o doirado tingem
e entranham-se na agua de lavar a louça. Há-de
acabar por falar... Até agora por mais que faça
sae-me das mãos ridicula.
[106]
—E vae eu disse-lhe...—E estaca, esfarrapada
e atonita. Sacode-a o sonho com desespero.—Anh...—E
como n'aquelle caco espesso só há
duas ou tres idéas como traves mestras, e ternura
n'aquella alma obscurecida, não avança mais
palavra. E a desgraça sua e tresua. Grotesco,
grotesco, e desespero n'este grotesco, e dôr n'este
manequim desconjunctado, com um chale a esvoaçar
e a bocca espremida. Anda aqui um sêr
immenso que lucta com um sêr humilde e o
amolga até á caricatura. Não pode mais—e ainda
aperta a bocca... O que tu lhe fizeste, sonho!
o que tu lhe fizeste!... Tornaste-a disforme como
a sombra d'um bonifrate projectada sobre um ecran.—Creou
aquillo a bafo, trouxe-o sempre comsigo
debaixo do chale, com olhos agudos e tal
ar de aflição que parece tonta.—A minha filha...—e
tu arrastas-lho com um trapo por todos os
esgotos. Debalde se debate: tem de falar...
—A minha filha casou rica, a minha filha tem
uma sala de visitas (é o que a Joanna mais admira
no mundo) como a das outras senhoras. A minha
filha... não posso! não posso!...
E para não avançar mais a Joanna ri-se de
si propria. Quem a não soubesse capaz de exagerar,
diria que exagera. Ajunta pormenores embaraçosos
a essa historia que se parece com a
mulher da esfrega pelos empurrões e pelos trapos.
Repete-se, hesita, volta ao principio, sem termos
para se exprimir. E atraz das palavras sem ligação
sente-se cada vez mais dôr: o panno sujo
da esfrega está embebido de lagrimas.
—Tenho uma tristeza metida em mim...
A narrativa desconjuncta-se: ganha em dôr
e em grotesco. Enche a bocca, perde em naturalidade,
adquire em imponencia. O tom carregado
[107]
é de farça com residuos de lagrimas. A desgraça
ri-se da desgraça. Augmenta as côres de exagero,
carrega o traço, e a tinta engrossa:
—A sala de vizitas! a sala de vizitas!...—Representa
com ademanes e mesuras grotescas a
sua entrada n'uma sala em passo medido de procissão.
Avança um passo, recua um passo. E ahi
surgem agora as vizitas da filha, umas atraz das
outras com espalhafato. A Joanna prolonga demasiado
a scena para as velhas se rirem—e
tem os olhos arrasados de lagrimas. Insiste, para-lhe
na bocca o riso desdentado como se tivesse
um nó no gorgomilo. Teima, e desata a chorar.—E
vae eu disse-lhe...—Reage e começa logo
a rir. É um quadro extranho e sem realidade.
No fundo, a tintas que resumam desespero, agitam-se
figuras com penantes desconformes e sedas
amarellas. Primeira dama, segunda dama—e
os chapeus teem penachos doirados, os vestidos
recortes de espanto. E as mesuras repetem-se
n'um acesso. Terceira dama de cauda a rasto,
outra dama, cumprimentando para a direita e para
a esquerda, e já nos longes enfumados, sempre
com exagero e grotesco, outras damas de
espavento—da alta roda... E o sêr esfarrapado
mexe o craneo, para cima e para baixo, com
um sorriso á sobreposse. Postiço sobre postiço.
Representa—e todas estas figuras parecem sufocadas,
todas estas figuras que ella cria ridiculas,
mal dão dois passos, estão mortas por desatar
aos gritos—todas estas damas inverosimeis,
de rôxo, de amarello e de verde, pariu-as o grotesco
com dôr. A Joanna imita as contumelias,
olha em roda, e recebe-as pé atraz pé adeante.
E já o absurdo augmenta, a dôr augmenta e trasborda,
quando
outras
damas de farça, outros manequins
[108]
forjados pelo sonho, se agitam de cá para
lá na sala de vizitas, engrandecida e transformada
na sua bocca n'um salão doirado. É o ponto
em que as velhas gosam, sentadas á roda da Joanna,
em que a D. Felicidade exclama:—Ai que
eu não posso mais! ai que eu até fico doente!
Vem-me a sufeca.—Estão ali todas. Está a D.
Herminia, e com a D. Herminia um mundo de
inveja paciente; a D. Penaricia, e com a D. Penaricia
uma alma onde repousam exhaustos, como
n'um vasto dormitorio, todos os despeitos d'uma
existencia inutil; a D. Fufia com os cabelos arripiados,
e por traz da D. Fufia as ruinas devastadas
de Carthago. Está a mulher tropega, amachucada,
com olhos aguados de cão. E com isto
ridiculo, e sobre esta tragedia ridiculo.
Já a historia entra n'outra phase. Tantas vezes
se lhe tem perguntado porque é que a filha
a deixa andar na esfrega, que a velha acrescenta
pormenores embaraçosos. A narrativa torna-se obscura,
dolorosa, hesitante, como se fosse arrancada
aos pedaços d'uma alma espesinhada.—E
vae eu disse-lhe...
—Hoje é que ella está que até parece o Taborda!
Na realidade a Joanna é insuportavel. Repete
sempre as mesmas coisas, depara-se por todos os
cantos como um trambolho. De noite, quando se
pilha na enxerga, cuido que moe ainda o mesmo
sonho:—A esta hora lá está ella... a esta hora...
A esta hora a minha filha...—E os olhos
cerraram-se-lhe de extasi, de dôr ou de espanto
no sordido buraco.
Todas as noites a velha, quando sae da esfrega,
dá uma grande volta no negrume, alta,
[109]
ossuda, molhada até aos ossos. Ninguem sabe
onde a conduzem os passos tropegos, a falar só,
a remoer o sonho que a sustenta e ampara. Por
vezes palpa um pilar de granito, por vezes debate
com um sêr mysterioso, uma questão insoluvel.
Sigo a sombra esgalgada, que gesticula e
reza. Pára n'uma ruella, senta-se á porta d'um
casebre. Bate, não lhe respondem. Espera, e outra
vez timidamente se atreve a chamar...—De
dentro sacodem-na palavras bruscas, e a velha
torna por o mesmo caminho, encharcada até aos
ossos... Esta casa não é como as outras casas,
esta sala não é como as outras salas, nem esta
rua como as outras ruas.
8 de fevereiro
O sonho é um—a realidade é outra: a realidade
é uma figura só dôr. Remoeu aquelle sonho
quando seguiu a filha pelas viellas. As mãos seccas
de desespero tentaram em vão arrancal-a á
desgraça. A filha desceu mais fundo, a Joanna
desceu mais fundo. Deu-lhe a vida e suportou
o escarneo. Andou nas mãos dos ladrões e tem
tal ar de aflição, que parece tonta. A desgraça
pega-lhe pela mão e leva-a mais fundo ainda:
aperta-a de encontro ao peito descarnado... Não
faz idéa nitida da vida e da morte, nem d'aquella
viella com mulheres. Atura a miseria e a desgraça.
Suporta os vestidos encharcados no corpo.
Foi d'isto que ella fez sonho—das noites de dôr
e do riso dos ladrões.—A usura da vida e a dôr
represa, engrandecem-na. Nunca se queixou. Escondeu
de todos a sorte da filha. Guardou aquillo
para si, noite a noite, toda a vida. Bronco e dôr,
uma carcassa e farrapos, e nos olhos não sei que
[110]
expressão que a faz mais baixinha:—Aqui estou
para te servir.—Passou por tudo, e um resto d'ilusão
bastou-lhe para poder viver. Sós a sós a figura
tem uma expressão descarnada e reflectida.
Nessa noite, á meia noite, nasce o menino
entre ladrões. Vem morto ao mundo. A Joanna
pega-lhe a tremer com as mãos da esfrega e deita-o
no chale. Quatro cabeças se curvam á luz do
candieiro de petroleo para verem o menino—tres
cabeças de ladrões e a cabeça da velha.
—O menino está vivo!—afirma a Joanna.
—É preciso enterral-o de caminho—diz o
ladrão mais velho, encolhendo os hombros. E juntam-se
á porta falando baixo, enquanto a velha
lhe aquece o corpo pegajoso com o bafo. Dentro
a mãe geme.
—Vamos.
Os gritos cessaram de todo.
—Venha d'ahi.
E, tomando o braço de Joanna, que achega
a si o menino embrulhado no chale, levam-na
para a rua. Vão adiante o ladrão e a velha. Caminham
até um terreno de construcção, lama
calcada e recalcada: ao fundo o panno d'um muro
e um resto d'arvore mutilada. Escolhem o sitio
e o pae abre a cóva com o alvião. Nenhum diz
palavra. Só a Joanna aperta mais o menino de
encontro ao seio murcho, como se fosse possivel
aquecel-o. Agazalha-o dando voltas ao chale roto,
e vae depois no escuro palpar a terra encharcada.
Tira-lho o pae para o meter na cóva, e ella ainda
protesta:
—O menino está vivo.
Nenhum dos ladrões se ri. O que ella quer é
outra vez crear. Está disposta a recomeçar a vida,
[111]
a deitar mais ternura, a tiral-o á bocca para o
dar aos outros. E insiste:
—O menino está vivo.
—Vamos embora.
Sacodem as mãos: só a Joanna conserva nas
mãos a terra da cóva. Rodeiam-na tres sombras
enormes e ella sente-lhes no escuro o bafo monstruoso.
A seu lado caminha o ladrão mais velho.
Os outros adiantam-se.
—O estafermo da velha rica está só. Tu podes
abrir-nos a porta...
—Roubar!...
—Ouve o que te digo... Tu não sentes o frio
e estás molhada até aos ossos, tu de tanta fome
já não sentes a fome.
—Ainda hoje comi uma tigela de caldo que
me deram.
—Nem dás pela desgraça. Tu não vês a tua
filha n'uma viella e nas mãos dos ladrões?
—As bagadas que eu tenho chorado, senhor
ladrão!...
—A desgraça tral-a escripta na cara. Ainda
hontem lhe bateram. Nem a lama das ruas é
mais baixa e mais calcada. Tu ouves?...
E a Joanna mastiga:
—N'aquella terra tão fria, chegado á terra...
—Para não sofrer. Deixa lá os mortos. Os
mortos podem mais que os vivos. Ouves o que te
digo?... O menino matou-o ella ao parir...
—Jesus!
—Matava-o eu para não ser ladrão. Deixa
lá o menino que está na terra. Excusa de ser
ladrão... O estafermo da velha rica está só. Tu
podes fazer-nos a entrega...
—Senhor ladrão, vossa senhoria... Assim
Deus me ajude... Como a terra está fria!...
[112]
—Que me importa a terra! O que me importa
é o dinheiro do estafermo. Ouve! ouve! ouve!
Ella é rica, tu és pobre...
—O Senhor fez os pobres para servirem os
ricos, e os ricos para ajudarem os pobres...
—A minha vontade era esganar-te... Por
tua filha! Se não nos abres a porta elle estorcega-a.
A tua filha é menos que nada nas mãos
d'elle...
—A minha filha... Vocemecê, senhor ladrão,
tambem teve uma filha, que eu sei...
—Cala-te! Esta noite é por força noite de desgraça.
Tive uma filha e não lhe pude valer. Vi-a
morrer com os olhos enxutos. Morreu tisica, morreu-me
á fome e não lhe pude valer! Fiz-me depois
ladrão. Deixemos os mortos... Uma madrugada
fui de prego em prego. Tinha despido o
casaco para o pôr no prego. Á porta d'um estava
um cavallo á carroça, com a cabeça metida n'uma
ceira, a comer. O que eu invejei aquelle cavallo!
Morreu-me. Foi n'esse dia que me fiz ladrão.
—A sua filha morreu-me nos braços...
—Tu não te calarás! Esta noite já me não
serve. É noite de desgraça. Vae-te p'r'o diabo!
Repele-a, e ao por-lhe a mão no hombro, repara
que só traz a camisa extreme sobre o corpo:
—O chale? que é do chale?
—O chale dei-o ao menino.
—Fizestel-a bonita!
Tal é a figura esfarrapada. Maior. Maior pela
desgraça e pela mentira. A Joanna, quando faz
rir as velhas de cuia postiça, mente. Tem duas
existencias, uma vulgar, outra oculta. Lava as
escadas, calada e submissa: á noite vive com os
ladrões e as mulheres das viellas. E mente. Mentiu
sempre. Mentiu emquanto pôde. Mentiu a si
[113]
e aos outros. Fez da dôr mentira e da mentira
sonho. Quanto mais desgraça, mais exagero e mais
grotesca a sala de vizitas—maior a sala de vizitas—mais
doirada a sala de vizitas. A Joanna
não se atreve a sonhar a felicidade: contenta-se
em sonhar a desgraça, e não lhe tira os olhos de
cima, para não vêr outra desgraça maior. Ilude-se.
E debate-se n'uma cogitação profunda como
a noite. Toda a noite lhe parece negra. É como se
pela primeira vêz désse com a vida. Deita as mãos,
não encontra a que se apegue, e faz gestos para
repelir o negrume. Remoe coisas que não percebe
bem, que se lhe confundem na alma e que
traduz em palavras descosidas e sem significação.
De quando em quando pára, com os olhos
fixos, e diz uma phrase fóra de propósito, a scismar
com obstinação n'outra coisa:
—Casa de mulheres, casa de ladras.
Ou monologa parada a um canto:
—O Senhor lá sabe porque a gente anda
n'este mundo e para que se criam estas coisas...
Estas coisas...—E abre os olhos espantados.—Tudo
está escripto no livro do futuro... Sempre
elle há gente muito boa n'este mundo! É o que
vale á pobreza.—Depois um salto dentro d'ella:—Onze,
não, doze vintens é que são. Quatro vintens,
do bahu que levei á cabeça, seis vintens da
esfrega...—E conta pelos dedos:—Seis, sete,
nove vintens... Depois aquillo remexe, vae ao
fundo do fundo:—A desgraça não nasceu comigo
nem há-de morrer comigo.—Ou explue n'um grito
de quem não pode mais:—Não posso com este
peso, com esta desgraça, com esta desgraça sobre
esta desgraça, e com isto!... A dôr que a gente
cria aos seus peitos! E ainda por cima isto!
Depois cala-se. É peor. Fica confundida e atonita,
[114]
como um cavallo prostrado, que não sabe
porque sofre e mantem os olhos abertos—ridicula
deante da desgraça e deante do assombro.
Cala-se e outro sêr immenso começa a falar dentro
d'ella. É um debate ao mesmo tempo futil
e cheio de grandeza, que não posso fixar, mesquinho
pelas palavras que emprega e grande pelo
sentimento que o reveste. É uma coisa triste,
uma coisa dolorosa, uma coisa desconexa, feita
de nadas, de gritos, de mudez. A Joanna fala
com o Sonho tu cá tu lá e atira-se ao Sonho.
E quando emfim o espanto se acumula sobre ella,
a Joanna dispõe-se a arrancar-lhe farrapos. Misturem
a isto a dôr, misturem a isto ridiculo, porque
a Joanna revolve tudo, phrases, sentenças,
palavras que lhe acodem e que não formam sentido—veem
de muito longe...—lagrimas, sonho,
e ranho. Assoa-se ao avental.
—Eu não sei dizer! eu não sei dizer!...
E sem falar á sombra que a não larga, a velha
gesticula para o escuro: a desgraça tapou-lhe
a bocca, meteu-lhe outra vez a bocca para dentro.
Avança com as mãos abertas. A noite é
immensa. Cabem na noite os mundos infinitos,
mas só me interessa a alma de Joanna. Quer
comprehender e não pode. Peor: o sonho humilde
já lhe não é possivel. Parece perdida, tão inutil
no mundo! A ternura não lhe serviu de nada. E
há outra coisa em que é preciso insistir: não sabe
porque sofre, não lhe cabem lá dentro a desgraça
e a explicação da desgraça. Outra vez recorre á
perlenga com que amortece a dôr:—A sala...
a outra sala...—Mas na sala disforme vomitam-se
injurias e as boccas transformam-se em bocarras
monstruosas, que a Joanna não consegue
tapar. Está só e a noite, só e o sonho. Fica dôr
[115]
pelo lado de dentro, como a fuligem d'uma chaminé
quando se incendeia e fica doirada pelo lado
de dentro. O negrume é cada vez mais compacto
e o esforço da velha cada vez maior. Quanto mais
negra é a sala, mais a Joanna insiste. Augmenta-a,
e agitam-se as vizitas em delirio: quem as
recebe de pé a fazer cortezias de espalhafato é a
propria desgraça vestida de amarello. As cadeiras
tomam outra expressão, o doirado dos moveis apega-se
á noite espessa. Estes cacos são expressões
de dôr e é a desgraça quem os arruma.
A noite irrita-me com a sua imobilidade imperturbavel,
e ao lado este sêr que só tem uma
forma grotesca de exprimir o que sofre. Esta
sala com um gato bordado a retroz, interessa-me
muito mais que a noite negra, a noite funda, a
noite cahotica com esta vida e outra vida. A
noite é inutil.
10 de fevereiro
Ella foi uma flôr que se aspira e se deita fóra—quasi
sem reparar—scismando na imortalidade
da alma.
Se eu pudesse cinematographar a vida e a
morte d'uma flôr, cinematographava a sua vida.
Não sei dizer se existiu se a criei, e o que na realidade
me interessa, é o que ella disse á grande nodoa
de humidade da parede.
Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguem
a ouviu, ninguem deu por ella. Passou como
uma sombra. Habituou-se. As lagrimas sumiu-as,
meteu-as para dentro. A dôr aprendeu a contel-a.
Habituou-se a queixar-se á grande nodoa de humidade
da parede.
Entre mim e ella interpoz-se o sonho.
A ternura tambem cansa. Deixem-me! deixem-me
sonhar!
O principal para mim foi a queixa que ninguem
ouviu no mundo; foi o que os seus olhos
[118]
verdes d'espanto decifraram n'aquelle arabesco da
parede. Podes por ventura conceber isto? Uma
dôr que não deixa vestigio, um sonho ignorado
que não deixa vestigio, que passa no mundo
e não deixa vestigios—a dôr despercebida, as
lagrimas contidas que se não chegam a chorar?
Não valia nada o que vale um passaro, e em
questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade
do mundo—a do silencio—a do sonho.
Tanto se queixou baixinho que morreu de
frio!
Deito-me debalde aos encontrões á noite. Nem
um grito. Os remorsos são inuteis. Um passo na
vida é sempre irremediavel: não há forças humanas
que o possam apagar.
11 de fevereiro.
A vida tem dois periodos: o do entontecimento,
o da saudade. Não sei qual é melhor.
Talvez aquelle em que se ouvem os passos da
morte, mais perto! mais perto! O frio da morte
dá á vida um encanto superior e um prestigio
maior.
Deixem-me! deixem-me! Deixem-me só com
isto, deixem-me viver para isto. Deixem-me fechado
a sete chaves com o sonho que me enche
de ridiculo, que não existe e é a razão da minha
vida. Deixem-me ir para a cóva agarrado a este
nada immenso, que me doirou as mãos e me deixou
[119]
atonito. Só no fundo da cóva é que estou
bem, sós a sós, fechado com elle para sempre.
Se o sentimento de belleza é a unica coisa
humana que não nos engana—se só a isto ficamos
reduzidos—como não prever outra belleza
maior?
De sobresalto em sobresalto, de assombro em
assombro, de vulgaridade em vulgaridade e de
contradição em contradição, assim vim até ao fim.
Não consigo desprender-me de um, nem libertar-me
do outro.
Atraz d'este assombro há outro assombro—e
depois outro assombro ainda.
Qual é a minha experiencia da vida? Nenhuma.
Qual é a lei que extraes da vida? Nenhuma.
Só o espanto. Só uma coisa cada vez maior, sempre
assumindo maiores proporções, que sinto desabar
no silencio, mais doirada e phrenetica que
o sonho. Tudo se reduz a coisas a que damos
valor, e a coisas a que não damos valor. E
entretanto
ao nosso lado passa o tropel magico, desesperado
e cahotico. Alli fóra desabam os seculos
e a torrente misteriosa que leva comsigo
estrellas em vez de calhaus. O jacto de portento
vem do infinito e caminha para o infinito, levando
comsigo a alma, o universo, o logico e o ilogico,
o absurdo e Deus.
Uma vida resume-se em duas linhas, synthetisa-se
em dois ou tres factos. Se a vida fosse só
isso não valia a pena vivel-a. A vida é muito
maior pelo sonho do que pela realidade. Pelo que
[120]
suspeitamos do que pelo que conhecemos. Se nos
contentamos com a superficie, não há nada mais
estupido—se nos quedamos a contemplal-a faz
tonturas. É por isso que eu teimo que a Morte
não tem só cinco lettras, mas o mais bello, o
mais tremendo, o mais profundo dos misterios.
Prepara-te.
O problema capital da vida é o problema da
morte. Elle resolve tudo. Não há factos isolados;
não há acontecimento no universo que não gere
outro acontecimento. O inconsciente não pode criar
o consciente. É impossivel dar um passo a que não
succeda outro passo. A vida gera a morte—a morte
gera a vida. Mas que vida?
Sou nada diante do universo. Mas teimo, mas
discuto comigo e comtigo, ó espanto, mas defronto-me
com o enigma, encarniço-me e saio d'aqui esfarrapado,
despedaçado—mas teimo e hei-de vencer-te.
Não quero morrer de vez. Não quero perder
a consciencia do universo nem a sensibilidade
do universo. Eu sou o nada, tu és o infinito—hei-de
por força vencer-te!
E no entanto sinto-me tocado de hesitação e
de duvida. Do que tenho saudades é d'esta vida.
Ao que eu aspiro é a esta vida. O gesto que o moribundo
faz ao arrepanhar o lençol é um gesto de
naufrago.
D'um lado a materia, do outro o espirito.
D'um lado consciencia, debate, lucta, do outro
a impassibilidade, a fatalidade inexoravel. Nenhum
grito a perturba. D'um lado a vida gasta
n'um segundo, do outro a successão ininterrupta
[121]
dos seculos, indiferente e eterna. Como acaso é
atroz, a não ser que outra coisa nos espere.
Se não nos detivessemos com palavras, se
avançassemos todos ao mesmo tempo, esquecendo
o que é inutil, para esta coisa que nos devora,
subjugavamol-a. Conquistavamol-a por uma vez,
por maior que ella fosse. Mas nenhum de nós
se atreve e passamos a vida a fingir que não
existe. E só ella existe.
12 de fevereiro
O tempo era limitado, a paciencia pegajosa,
o gesto lento. Agora que a vida dura seculos ninguem
espera um minuto.
Tenho aqui a villa sufocada de espanto, e,
n'este momento de silencio e mudez, todos encaram
com desespero os proprios phantasmas. Está
aqui o fel—e o fel está vivo. Está aqui a mentira—e
a mentira está viva. Está aqui a D. Leocadia
e o dever, a D. Bibliotheca e o postiço, o Anacleto
e as conveniencias. Estão todos. Não falta ninguem
á chamada. Está aqui tambem o espanto e a
mania, e a mania tem os cabellos em pé. Custa-me
a admitir-te na minha companhia, custa-me a arrancar-te
de profundidades ignotas... Tudo o que
fiz era um simulacro, reconheço-o. Passei a vida
a arremedar a vida. Passei a vida com uma voz a
prégar-me:—Não metas ahi o nariz.—E a minha
vontade era meter alli o nariz.—Passei a vida a
cumprir o meu dever e a amargar o meu dever.
Passei a vida a arredar-te e agora tenho por força
de viver comtigo. E tu?—e tu?—e tu?...—Gastei-me,
gastei-a...—exclama a D. Leocadia. Cumpri
sempre o meu dever. Cumpri-o com fel. Para
[124]
cumprir o meu dever lhe repeti a toda a hora que
os pobres teem um logar marcado na vida. Fil-o
por dever. Não transijo nunca com o meu dever.
Assim como devia tiral-a do asilo por ser do meu
sangue, assim o meu dever era educal-a para pobre
e reduzil-a a um sêr passivo e inerte. Vesti-a
com um sacco e gastei-me um dia, gastei-a outro
dia, a ponto de usarmos as feições e de não nos
reconhecermos. Espiamo-nos ambas, uma em frente
da outra, no silencio gelido da villa, onde se ouvia o
trabalho lento das aranhas no fundo dos saguões.—Dei-te
o sustento, tens de ser agradecida. Tirei-te
do nada, livrei-te da fome, é preciso seres agradecida.
Cumpre o teu dever. Eu cumpri sempre o
meu dever. Cumpri-o contrariada, n'um perpetuo
dize tu direi eu, n'uma eterna contradição, mas
cumpri-o. Cheguei a tiral-o á bocca para a poder
manter. Cumpri o meu dever e amarguei o meu
dever. Usei assim a vida a arremedar a vida. E tenho-a
aqui na minha frente, com a barriga á
bocca, á espera que eu cumpra o meu dever até
final. Qual é o meu dever? Reconheço que a odeio—odiei-a
sempre. Mas qual é o meu dever? pergunto.
Qual era afinal o meu dever? Se fazia o
bem, amargava o bem; e tu não me largavas se
tentava o mal. A minha vida tem sido um perpetuo
inferno, contrariada e impelida, e sempre a
cumprir o meu dever amargo, o meu dever estupido.—E
os olhos não se lhe despegam do phantasma
coçado e verde, de ferro e verde. Grita-lhe:—Cumpri
sempre o meu dever! Se não cumprisse
o meu dever ia parar a uma viella.—Queda-se
estrangulada e surpreza, mais estrangulada
e surpreza ainda, diante da voz que lhe
diz não sei o quê de temeroso...—E tu?—pergunto—tiveste
inveja?—Tive e recalquei-a. Arranquei
[125]
tudo, destrui tudo, por ti que não existias.—Mas
isto é infame, isto não sou eu!—És, és,
mais do que nunca o foste.—Eu mesmo reconheço
que sou outra casta de intrujão. Tenho outros preconceitos,
falo outra lingua e julgo-me superior.
Na realidade sou outra casta de intrujão. O que
me falta é desplante. Prendo-me a inutilidades,
e, para me engrandecer, admiro os meus escrupulos
e dou importancia ás minhas teias de aranha.
A minha vida é uma serie de transigencias secretas—e
por cima medo...—Fala mais alto!
fala mais alto!—A minha vida tão bem construida
é uma aparencia, a minha serenidade, aparencia.
Talvez um pouco de logica, um pouco de acaso
e mais nada. No fundo de mim mesmo tudo isto
me parece um sonho monstruoso e sem nexo,
e ás vezes surprehendo-me a pensar:—Sou um
doido? sou um doido?—É que me vem não sei
d'onde, não sei de que confins ou de que recanto
d'alma que tenho medo de explorar, um bafo que
me entontece. Serei eu doido?—Cada velha se
põe a recuar deante de si mesma; cada sêr procura
afastar-se; cada um a si proprio se repele.
Mas todos são enrodilhados no pé de vento, que
os leva sufocados e atonitos, balouçados entre a
vida e a morte, entre o assombro e o inferno.
E é grotesco este encarar com o sonho, pé atraz
pé adeante, esta hipocrisia que teima em ser hipocrisia,
esta mentira que quer ser mentira até
á ultima extremidade.—Tu não deste um passo
na vida sem obedeceres ás conveniencias e sem
consultar o teu codigo de meticulosidade. Tens
um
Deve
e
Haver
do tamanho d'um
predio. A
praça considera-te, Deus considera-te. E tu torturaste-a
segundo as conveniencias, habituaste-a a
conter as lagrimas e a ser correcta com o mesmo
[126]
grito recalcado ao fundo do coração. E esse drama
correcto, torna-se mais correcto ainda, e, seculo
atraz de seculo, há-de acabar por atingir a
correcção suprema.—Não tenhas medo, avança
um passo, outro passo ainda...—Que é isto? que
é isto que se me pega, diz a Telles, diz a Reles—e
que me não deixa pensar na mania?—E nos
olhos de idiotia, a vida, camada atraz de camada,
chega a vir á superficie.—Ah, a mania D. Telles,
das Telles das Reles, a mania! Pensar n'este
trapo um dia, e só pensar n'este trapo! Fazer
de ti e de mim mania e só mania!—Dois castiçaes
de prata foram a minha vida. Pensei n'elles
com minucia. Um nada—ou Deus—bastou para
me encher a vida. Acordei com elles, dormi com
elles. Taparam-me o mundo. Isto foi o meu sonho
e a razão do meu sêr. Criei-o. Dei-lhe o meu
leite. Vivemos juntos; ia morrer com esta mania,
levava-a para a cóva, sem ter pensado no resto,
e agora encontro-me sós a sós comtigo, desprevenida
e sósinha. Foste para mim um filho. Alimentei-te
e alimentaste-me. Reservei-te sempre o
melhor cantinho do meu sêr. Salvaste-me do desprezo
de mim propria, peor que o desprezo alheio.
Quando me sentia mais humilhada e mais pobre,
recorria a ti, e encontrei-te nas horas em
que a gente até de si duvida, quanto mais dos
outros. Trouxe-te sempre comigo. Sorrias-me. Foste
a carne da minha carne e o osso do meu osso.
Um filho podia-me morrer; tu não me deste um
desgosto. Escondeste-me a vida e a morte—e
eras um trapo, uma corôa de lata, dois castiçaes
de prata! Agora mesmo procuro agarrar-me—mas
isto pega-se-me, deslumbra-me e ofusca-me...
Há só uma coisa que eu queria ainda dizer,
e não a sei dizer diante de isto que tenho ao
[127]
pé de mim, dentro de mim e me não larga...—Ai!
ai! ai!—Tambem tu, tambem tu, prima Angelica,
que passaste a vida debruçada sobre a
meia, tambem tu te ergues n'um arrebatamento,
passa-te não sei que dôr na escuridão cerrada, e
procuras, com a agulha afiada como um punhal,
furar os olhos de todas as pessoas que te fizeram
bem!... Mas tanta inveja ruminaste que sorris e
te curvas submissa sobre a mesma meia eterna,
a que mãos caridosas já não desfazem as malhas,
e que tem tres metros de comprido...—A meza
da bisca lambida cahiu por terra, e de tal maneira
se olharam nos olhos, que não foi possivel tornar
a juntal-as. Só a mesma voz persiste dentro
de nós mesmos, no silencio e na mudez da noite
infinita, tal qual a D. Leocadia:—Mas eu não posso!
eu não posso! Tu obrigas-me a fazer o que não
devo! Tenho aqui fel e hei-de, para cumprir o meu
dever, fazer o contrario do que sinto: dominar-me
todos os dias, moer-me todos os dias, prégar-me
todos os dias:—A gente só vem a este mundo
para cumprir o seu dever!...—O que há de peor
no mundo é arrancar os desgraçados á desgraça!
O que há de peor no mundo é não haver outra
vida e passar esta vida a arremedal-a!
15 de fevereiro.
Até agora a mentira fez-me suportar a vida,
a insignificancia e as palavras tornaram-me a
vida possivel, a vida onde á custa de palavras
cheguei a ser Eleutheria da Fonseca, Balsamão,
Elias de Mello ou Melias de Mello. Só á custa
d'isto pude aturar a vida e o horrôr da vida. Só
por não a vêr, pude encaral-a. Só emquanto fui
[128]
feito de pequenas miserias e de palavras inuteis
a pude suportar. Mas agora que me resta se
tudo é vazio de significação?
Custa muito a construir uma vida ficticia, a
ser Telles ou a ser Santo, a crear um Deus ou
uma mania. Custa a melhor parte do nosso sêr.
É certo que metade d'isto—metade pelo menos—é
representado. Se te confessasses dirias:—Eu
sou um actor, eu sou um actor de mim mesmo:
represento sempre até quando sou sincero; até
quando digo o que sinto, é outro, e noutro tom
de voz, que diz o que sinto... Cá estou a vel-o representar...
Mais de metade, muito mais de metade
dos meus sentimentos, são postiços. Todos
estamos ligados por compromissos, aceitamos certas
leis e vivemos de aparencias. Existe entre
nós e dentro de nós um acordo tacito. No fundo
bem sei que o que me dizes é mentira, mas sei tambem
que tenho obrigação de ajudar a mantel-a.
Respeitamos um compromisso vital. Mais alto!
mais alto!... Para podermos viver só lidamos
com uma parte convencional da vida. A outra
não existe: se existisse seriamos bichos. Esta
vida é uma mentira—a outra vida é monstruosa.
Desabada a architectura aparente, ficamos ignobeis.
Isto que ahi está por terra custou muito desespero,
primeiro na inconsciencia e na obscuridade,
atravez da inconsciencia e da obscuridade,
e depois atravez de terrores e de indescriptiveis
esforços. Custou aos vivos e aos mortos a dôr
das dôres, poderem discernir dois ou tres factos
essenciaes na treva condensada, na treva compacta
d'uma noite que durou seculos. Esforço inconsciente
de larva, com um destino a cumprir
e legoas de granito a romper. Tiramos o mundo
do nada. Levou seculos e seculos—mas tiramol-o
[129]
do nada. No principio só fomos almas, creamos
depois a casca. Tambem as arvores só a poder
de tempo se revestiram d'um envolucro. Eramos
todos phantasmas. Creamos tudo—e a mentira.
Tudo—e o habito. Tudo—e a paciencia. O sonho
não é senão uma reminiscencia. Todas as inutilidades
não passam de adaptações á vida. Essas
pequenas coisas são ao mesmo tempo temerosas
e ridiculas. Bem encarada a ninharia é uma tragedia.
D'estes sêres saem outros sêres grotescos
e terriveis—terriveis e grotescos. No silencio a
mania toma proporções chimericas, e não sei como
hei-de juntar estas duas coisas—mania e desespero.
Dentro de cada sêr resurgem os mortos. Crescem
dentes ás velhas, afiam-se-lhes as unhas debaixo
dos chales. Adquiriram outra expressão. Quasi
toda a gente emagreceu. Aguçam-se ferros no escuro.
Procuram-se. Qual é o teu verdadeiro ser? Eu
mesmo não sei. Dá-me um trabalhão encontral-o e
acho-me sempre em frente de cacos, a que não consigo
dar unidade. Uma ninharia—um impulso—um
habito. É isto que constitue o meu ser, ou é esta serie
de imagens, já desaparecidas, que formam a minha
e a tua vida? Não, o meu verdadeiro sêr sacode
a poeira na colera, na paixão, no amor ou
no odio,—porque aos sentimentos tambem é preciso
desenterral-os—e actua n'um phrenesi. Acabaram
as hesitações e as duvidas, porque já não
sou eu quem mando, a minha razão ou a minha
vontade: são os mortos. E é quando me sinto
viver.
E a insignificancia? Até a insignificancia. A
[130]
insignificancia com orgulho, a insignificancia com
desespero.
21 de fevereiro
Aqui está a villa toda—mas as figuras mudaram.
São disformes. O proprio Santo cheirou
as velhas, sacudiu as velhas e atirou com as velhas
á rua. Do alto dos montes vomita coleras
sobre a villa passada de terrôr. O silencio redobra,
a dôr redobra. E com isto uma alegria a que
falta o resaibo de tristeza que se misturava a
todos os nossos sentimentos. Falta-lhe equilibrio
e harmonia. Tem a maior ferocidade. E produz o
mesmo efeito que este scenario d'assombro, que o
vento e a chuva esfarelam, e onde sobrenadam
restos. E com isto a voz que não nos dá tregoas
e que atinge o desespero:—Não grites, D. Leocadia,
não grites. Reconheço que és feita d'uma
peça só. Foste sempre inteiriça.—Tirei-o á bocca
para a manter...—Tiraste-o. Tomaste a vida a
serio. Entendeste sempre que pobres se educam
como pobre, passaste a vida a azedar a vida, e o
dever, que fizeste amargar aos outros, começou
por te amargar a ti. E a esta luz intoleravel as
coisas tomam a teus olhos aspectos ignorados...—Mas
então não há dever nenhum e eu não sou
a D. Leocadia, 29-3.º-D.?—Outro passo, D. Leocadia,
mais outro passo ainda...—Que exiges tu
de mim então, que não comprehendo? Que exiges
tu de mim contra a minha vontade? Que me aniquile?
Que me dispa para te vestir?—Não grites...—Que
exiges tu de mim de absurdo com
que não posso arcar? Um esforço sobrehumano?
[131]
Ou exiges apenas que eu faça o bem que posso,
uma parte do bem? Ou é o mal que tu exiges de
mim e o bem é um pecado? Melhor será deixar
a cada um a sua parte de desgraça e de colera?...
Eu posso talvez despir-me, posso cumprir o meu
dever, mas que mais exiges tu de mim com que,
ainda que queira, não posso! Que exiges tu de
mim?!—Mas, D. Leocadia, eu não exijo nada
de ti, cada um se aguenta conforme pode n'este
balanço...
—Mas então não há dever nenhum? não há
bem nenhum? Que fiz eu d'este sêr apagado e
inerte com um filho do meu filho na barriga?—Oh
D. Leocadia como tu educada sempre com
as mesmas palavras e no mesmo dever, um dia
de dever, outro dia de dever, e erguendo, no
silencio e no tedio, uma construcção de trapos e
de palavras que chegou ao céo e substituiu o céo—como
tu tapas os olhos com desespero para não
vêr! Hás-de aguentar com este pezo, que não
podemos suportar... Talvez fiquemos cegos, talvez
saiamos d'aqui aos gritos, os maniacos sem a
sua mania, os bons sem a sua bondade, e os pobres
só fél e vinagre, mas temos de ver o que não
nos estava destinado. Para largar a pelle, D. Leocadia,
até a cobra adoece. Tanto importa que
resolvas como que não resolvas o problema—todos
temos de dar o passo. A villa é a mesma villa,
as pedras as mesmas pedras. Nós mesmos não
mudamos. A nova vida obriga-nos apenas a discutir
o que estava ao nosso lado. Tudo existia
no mundo, até este desespero; tudo estava vivo,
até este grotesco. Nós é que estavamos mortos.
Passou no mundo a extranha ventania, e a
morte de tal maneira se entranhou na vida que
[132]
custa a separal-as. Mas já lá vão as formulas, os
alicerces e os usos... No alto, sobre este absurdo,
entre o borralho remexido, com a cinza e as faulhas
atiradas indiferentemente para a escuridão,
só a Via Lactea mudou de côr e alastra de lez
a lez na aboboda recurva uma nodoa viva de sangue.
25 de fevereiro
Dormi n'um taboado, cingiu-me uma cadeia.
Vesti-me com um sacco. Todos os dias arranquei
de mim proprio um farrapo e um grito. Arredei
tudo para ficar só comtigo no mundo. Sacrifiquei-te
tudo. Fiquei nu e Deus, nu e a vida
eterna. Tinha o horrôr da lepra, vivi com os leprosos.
Calquei todas as afeições inuteis, e se uma
andorinha me fizesse ninho na banca, como ao
frade d'Assis, torcia-lhe o pescoço. Encheste-me
a vida toda.
E agora a morte não existe, Deus não existe,
a vida eterna não existe. Uma luzinha e depois
a escuridão!
Tenho diante de mim esta força cega, este
absurdo a escorrer ternura e lepra, como uma primavéra
escorre morte, a irromper contra tudo e
apezar de tudo, d'uma profundidade cada vez
mais sofrega e cada vez maior. Não quero vêr
e hei-de por força vêr!
Este inferno, a que dei vida e a melhor
parte do meu sêr, não existe! Tinha conseguido
só te vêr a ti no mundo. Com uma palavra enchi
[134]
o vacuo. E este Deus por quem sacrifiquei toda
uma vida e a melhor parte da vida, não existe!
Foi tudo inutil. Dilacerei-me. Dei-me a mim proprio
em espectaculo. Assisti a esta tortura, e tu
não existias! Vivi fóra de mim mesmo e de repente
tive de me aceitar a mim mesmo. Toda a
minha vida foi inutil! tudo o que fiz foi inutil!
Foi grotesco e inutil!
Sacrifiquei tudo a quê? Sacrifiquei o melhor
da minha vida ao vacuo. Ofereci-lhe em espectaculo
a minha dôr. Mas então que existe? Qual
a directriz da minha vida? Qual a ilusão com que
hei-de encher isto? E para que hei-de viver? Qual
o sonho immenso capaz de substituir este sonho?
Que é Deus agora? Deus é tudo e nada. É uma
força. Deus é uma lei inexhoravel. Mas então tu
que podes tudo—tu não podes nada. És uma lei—e
hás-de cumprir essa lei. És um destino e
não podes dar um passo fóra d'esse destino. Não
vês, não ouves, não sentes. Eu sou uma insignificancia,
e valho mais do que tu. Porque eu grito,
eu sofro, eu atrevo-me. Amanhã quebro o meu
destino. Tenho uma consciencia. Sou ilogico e
absurdo. Debato-me. E tu, Deus, não passas d'uma
força cega e estupida. Não me serves de nada.
Preciso d'um Deus que me atenda, que me
escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer.
Preciso d'um Deus que me salve ou que me condemne.
Preciso d'um Deus que me ampare. Preciso
d'uma inteligencia superior á minha e em
comunicação com a minha.
Um Deus-força, um Deus que não se comove
com os meus gritos nem com as minhas suplicas,
[135]
não me interessa. Um Deus que caminha para
um fim que não atinjo, é um Deus absurdo. De
que me serve este Deus? Não ouve os gritos—destróe;
não sente a dôr—destróe. Destróe e caminha.
É inalteravel. Ilude-nos. Deixa-nos um
segundo deante d'este espectaculo, para nos mergulhar
no nada. A nossa aspiração não cabe aqui:
entrevêmos, sonhamos, e, a meio do caminho,
talvez no inicio de sonho maior, destróe-nos.
Peor: tem uma necessidade de sofrimento cada
vez maior, de sofrimento inocente ou culpado.
Revê-se na dôr. Deus é cego.
Debalde grito—não há quem me ouça. Debalde
sofro—ninguem o detem. Tanto faz viver
como morrer. Deus, tu és monstruoso! Destróes—caminhas.
Destróes e não sentes. Vens do infinito,
e atraz de ti fica um infinito de dôres, uma
massa de gritos e de sêres espesinhados. Segues
e destróes. Constróes não sei o quê de portentoso
com que não posso arcar. D'essa pata monstruosa
escorre sempre ternura. Não é indiferente que
calques e recalques. Quanto mais espesinhas, mais
gritos, mais ternura nas arvores, mais estrellas
nos céus. Parece que a dôr é inseparavel da ternura,
como a morte é inseparavel da vida.—Até
aqui eu tinha uma taboa a que deitar a mão.
Até agora tinha um nome—agora não sei como
me chamo. Agora tenho medo de mim mesmo,
agora sinto-me isolado n'este cahos infinito, n'este
repelão desabalado, que me leva sem sentido e
sem fim. Eu e a noite—eu e o doido! Até agora
supunha-me tudo, eu e Deus, eu e a mão enorme
que me conduzia e amparava.—Sofras ou não sofras,
vaes para a mesma cóva, para o mesmo
nada, para o mesmo silencio. Antes o inferno!
[136]
antes o inferno! Tu que foste desgraçado, ou tu
que foste feliz, tu que te descarnaste até á medula
e tu que passaste indiferente pela desgraça—vaes
para a mesma cóva profunda, inutil, absurda
e muda. Antes o inferno, antes a dôr
pelos seculos dos seculos a vir, do que a mudez
e o horrivel silencio atroz!—Tudo foi indiferente
tudo é indiferente ao monstro que passa e esmaga,
que não ouve e esmaga, que não vê e esmaga.
Indiferentes os teus gritos e as tuas suplicas;
indiferentes a tua renuncia, a tua dôr, as tuas
lagrimas. Foi indiferente que fosses bom ou mau,
que tentasses subir ao topo do calvario. Não existe
na realidade nem vida nem morte—não há na
realidade senão chimera e dôr—não há na realidade
senão este monstro que passa e esmaga, que
caminha e esmaga.
Deus é cego! Deus é cego!
Emquanto te importaste comigo no mundo,
foste o meu unico pensamento e só tu me importavas
no mundo. Agora não posso, agora não
dou comtigo. Agora não te encontro. Agora sou
mais pequeno, e maior. Agora meto-me mêdo. Que
voz pode echoar e sobresaltar esta solidão infinita,
este mundo infinito, onde os gritos se não
ouvem a cem passos, e tudo que chamamos amargura,
dôr, grandeza, se apaga logo e se reduz a
zero? O meu dever já não é o mesmo dever, a
minha consciencia já não é a mesma
consciencia
.
Só os meus instinctos se conservam de pé.
Acuso-te de teres comprometido a minha situação
no universo. Acuso-te de não me deixares
ser infame. Acuso-te de me dares o remorso. Acuso-te
[137]
de impedires o instincto. Acuso-te de teres
transformado a vida e criado a consciencia. Acuso-te
de me deixares sósinho com este peso em
cima, com a ideia da vida e com a ideia da morte.
Acuso-te de me levares para um calvario como
o teu, para me tornares grotesco, e de me colocares
em frente de ideias com que não posso
arcar. Acuso-te de não poder mais, e de me
instigares a mais ainda. De me obrigares a olhar
cara a cara o assombro que não existe; a morte
que não existe; a consciencia que não existe.
Subverteste o mundo. Forçaste-me a criar outro
mundo, a olhar para cima e a clamar no vacuo.
Acuso-te de não me deixares atascar á minha
vontade em lôdo, de não me deixares mentir,
matar, chafurdar. Acuso-te de me impelires
para cima, quando a minha vontade era ir para
o fundo. Acuso-te de não me deixares ser bicho.
Estou prompto para tudo. Desde que não há
Deus tudo são palavras. Desde que não há outra
vida, só há esta vida. Só há este minuto, esta
hora presente. Sinto-me capaz de tudo. Estive
annos a rezar a uma comoda, a falar a uma comoda,
a sofrer deante de uma comoda. Fui grotesco!
fui grotesco e tu não vias! fui grotesco e
tu não ouvias! fui grotesco e tu não existias!
Doe-me tudo, doe-me principalmente sentir-me
grotesco! sentir que perdi a vida e sou
grotesco! sentir que me deti e fiquei descarnado,
impotente e grotesco!
Por uma palavra fui absurdo. Por uma palavra
tenho atraz de mim uma architectura desconforme
[138]
e destroços que enchem o mundo—por
uma palavra e mais nada. Tu não existias!
Mas então—pergunta esta voz colerica—todo
o esforço é inutil? todo o sacrificio é inutil?
Creaste estas ideias falsas de dôr, de renuncia—e
não existes! Um santo viveu sobre uma columna:
«Desde que se punha o sol até que amanhecia
o dia seguinte, estava de pé na columna com as
mãos levantadas ao céo». Oitenta annos de grotesco.
Outro amaldiçoou-te: «Ai de ti cidade sensual
onde os demonios fizeram sua habitação!»—Grotesco!
grotesco! grotesco! Tu não existias!
Que se levantem todos do sepulchro, uns atraz
dos outros, que se erga o pó e te grite:—Tu
não existias! Chamaram-te. Imploraram-te. Carregaram
com a tua cruz. Andaram de rastros,
reduziram-se a osso e a lepra. Foram indiferentes
ao sofrimento e ao sarcasmo. Renunciaram
á vida, deram-te o espectaculo da sua dôr, a ti
que não existias! Das profundas do mundo vem
sempre a mesma ancia, das profundas da dôr
ergue-se sempre o mesmo grito. Isto tem alicerces
como nunca se cavaram alicerces. Cimentaram-n'os
os vivos e os mortos. E por mais esforços
que empregue—tu na realidade não existes.
Há outra coisa peor que está viva, outra coisa
monstruosa que avança dentro de nós e direita
a nós e que ninguem pode deter. Tu não existes
e eu tenho de caminhar por força, não sei para
que estupido destino. Tu não existes e obrigas-me
a avançar para um fim grotesco—desmedido e
grotesco—que não comprehendo nem abranjo. Tu
não existes—e estou nas tuas mãos. Tu não existes
e n'este mundo absurdo, onde não encontro
quem me condemne e quem me salve, há ainda
[139]
quem me empurre, quem me arraste e me faça
sofrer, uma força cega que trago comigo, que
me rodeia e me não larga!—Tens de existir por
força. Tens de existir pelo que sofremos e pelo
que creamos. És a unica luz n'esta escuridão cerrada,
a unica razão como verdade ou como mentira.
Existe aquillo que eu quero que exista, é verdade
aquilo que eu quero que seja verdade, aquilo
que eu e os meus mortos transformamos em verdade.
A fé é maior que todas as forças desabaladas,
mais viva que todas as vidas. Comprehendo a inutilidade
de todos os esforços e faço pela mentira,
o esforço que fazia pela verdade. Tenho de te manter
á custa de desespero.
Se não existes é forçoso que exista um dictador
moral, que extirpe sem piedade o pecado da terra.
Que não ouça os gritos e condemne, que realise o
pensamento de Saint-Just e obrigue os ricos a trabalhar
nas estradas, e cujo poder ignorado e oculto
submeta a humanidade a uma lei de ferro, e a salve
pela mentira, já que a não pôde salvar pela verdade.
Cinja-me a mesma cadeia, durma no mesmo
taboado, e empregue o mesmo esforço, por um sentimento
de desespero contra ti que me iludiste. Por
mim proprio, para fugir de mim e de ti que não
existes! Resisto, teimo. Só vejo treva e teimo.
Levo-me todos os dias ao mesmo espectaculo. Rasgo-me
com gritos. Ó desgraçado, aquillo em que
tu crês é mais negro que o negrume!
A mesma força cega nos impele. Queira ou
não queira sou levado para um fim que não comprehendo...
Cahi nas suas mãos! Outra coisa
me envolve a que não sei o nome, outra coisa que
espera de mim uma acção que ignoro, outra coisa
[140]
a quem eu me quero manifestar e que talvez se
queira manifestar, sem nos chegarmos a entender.
Rodeia-me. Sinto-a. Há occasiões em que me
toca. Ouço-lhe os passos. Debato-me. Constrange-me.
Há momentos em que me iludo, para fingir
que estou sósinho. Há momentos em que me
escarnece. Sufoca-me: vou ouvir-lhe os gritos—tenho
medo que me fale! Só ella vive no mundo,
só ella anda á tôa no mundo! Debalde apélo para
mil manhas, debalde tento mil explicações. Estou
nas suas mãos! estou nas suas mãos! Outra coisa
inexplicavel e immensa, temerosa e immensa, anda
por traz de mim, dentro de mim, outro abysmo
maior, outra coisa que sua e me escalda até á medula.
Procuro esquecer-me—ella aqui está ao pé
de mim. Na vida e na morte estou nas suas mãos
monstruosas. Sou a consciencia—tu és o impulso.
Sou a razão—e não sou nada. Lucto até á
morte, finjo até á morte, vou até ao fim dilacerado,
escarnecido e iludido.
Estou nas tuas mãos! estou nas tuas mãos!
1 de março
D. Leocadia o dever é um contrato. Um contrato
com um ente superior ou um contrato com
os outros. Há deveres para com Deus e deveres
para com os homens. O contrato com Deus falhou,
porque Deus não existe; o contrato com
os homens não o cumpro, porque, se me sujeito
a respeitar-lhe as clausulas sósinho, expoliam-me.
Restam os deveres para comtigo, os deveres perante
a tua propria consciencia. Oh D. Leocadia,
eis o fundamento da questão!... Tu tens passado
a vida com uma personagem importante, que te
julga, te aplaude ou te condemna, e para ella, e
só para ella, deste as tuas melhores representações.
Para a enganares, enganaste-te, mentiste
para lhe mentires. E reduzida a trapo, só desespero
e orgulho, atiraste-te aos pés d'essa avantesma
que não existe, D. Leocadia—que afinal
não existe! Como se consegue edificar uma vida
sobre um broche com um sujeito de suissas e uma
redoma de vidro com a imagem d'um santo, e
intercalar-lhe um drama baseado na ideia do devêr,
até ao ponto de se apoderar de ti até ao amago,
é que eu não comprehendo e admiro, ó sordida
antrópopiteca com uma cuia de retroz! O devêr
[142]
era frio e amargo e tu cumpriste-o; o devêr era
coçado e hirto e tu cumpriste-o. Foi a razão da
tua vida. Azedou-te e sustentou-te. Quando te vencias,
vencias-te com orgulho. Deu realidade á tua
existencia ephemera. Fôste ao mesmo tempo actor,
tablado e publico. Sem esse dialogo entre
ti e ti, entre uma D. Leocadia de cuia de retroz e
outra D. Leocadia de cuia de retroz, desesperado
e pertinaz, articulado ou mudo, que te fez de fél
e vinagre, a tua vida não tinha tido directriz.
Nas noites solitarias, em que não conseguias aquecer
os pés com dois pares de coturnos, aqueceu-te.
Deante do frio da pobreza teimaste:—Cumpri
sempre o meu devêr.—Deante da sordida velhice,
avançaste com autoridade:—Cumpri o meu
devêr.—E até deante da imagem pavorosa da
morte, exclamaste sem receio:—Cumpri sempre
o meu devêr!—E só tu sabes o que é cumprir o
devêr dos devêres, o que é tiral-o á bocca para o
meter na bocca que se detesta, entre quatro paredes
d'um terceiro andar (29-3.º-D), desde o principio
da vida até ao isolamento da cóva. Cumprir
o devêr minucioso e exigir o devêr minucioso.
Com elle dominaste-te e dominaste-a, gastaste-te
e gastaste-a, esqueceste a vida e a ti propria te
esqueceste. Com uma palavra e mais nada. Arreganha
os dentes se queres ao teu proprio phantasma...
Com uma palavra e mais nada. Subordinaste
a tua vida ao devêr, e o devêr não existe:
é um mundo d'orgulho e de escrupulos. Custa
a entrar na cachimonia que a côdea que tiraste
á bocca para a mantêres, o vestido que cortaste ao
teu proprio vestido para a vestires, as noites de
discussão interminavel, tu e o devêr—tudo fôsse
irrisorio e inutil. Mas foi. O devêr não existe,
o mundo construido com alicerces por
omnia seculo
[143]
seculorum
não existe D. Leocadia. Perdeste a vida
e transtornaste a vida atraz d'uma sombra. Restam-te
mil annos e um dia, para cumprires, se
queres, o teu devêr inutil, o teu devêr atroz, para
obedeceres a um
phantasma
absurdo, a quem
dás
o ultimo leite d'um peito exhausto. Repara bem,
atende bem... Chegou o momento em que vaes
aparecer deante do universo com as tuas ideias
fundamentaes e sem o teu vestido de lemistre,
e, se te obstinas, mesmo no fundo da cóva e
com a bocca cheia de pó, hás-de gritar de desespero,
quando te compenetrares de que o devêr
postiço, o estupido devêr, fede que tresanda. Queiras
ou não queiras chegou a ocasião de me rir de
mim e de ti com dôr e lagrimas, e de te expôr tal
qual és, nua e reles, nua e grotesca... Despe-te
D. Leocadia!
Mas a figura verde não cede: traça o chale
como quem se fecha com os sete sêlos do Apocalipse
e exclama do alto do seu pedestal:—Eu
sou de muito bôa familia!
(O peor foi d'ella, o peor foi d'esta figura
secca e coçada, desagradavel e sêcca,
que eu conheço desde que me conheço, sempre
a prégar contrariada o seu devêr, sem um
dia de descanço e na eterna duvida:—Cumpriria
eu afinal o meu devêr?—Vai para a cóva farta
de cumprir o seu devêr e ignorando se na realidade
cumpriu o seu dever nem para que serve
cumpril-o. Ninguem a pode aturar. Odeia o devêr
que cumpre, e cumpre-o sem desviar um passo
como quem cumpre um destino. Até te digo mais:
o que lhe custa a abandonar na hora extrema não
é a tua, mas a sua companhia. Olha-o com desvanecimento.
Faz-lhe falta. Mais falta do que Deus,
[144]
essa avantesma de cuia de retroz com quem passou
os melhores dias d'uma existencia incerta.
É talvez o seu verdadeiro Christo, que continua,
mesmo sem existencia real, a reclamar que cumpra
as clausulas d'um contrato já rôto. Tem de
cumprir o seu devêr não acreditando no seu devêr.
A D. Leocadia é uma figura secca e coçada, enorme
e secca, vêrde e grotesca, que desvia o olhar
da vida, para cumprir, seja como fôr, o devêr estupido,
o devêr atroz. Tenho vontade de chorar)...
Foi buscal-a ao asylo e trouxe-a para casa,
com o cabelo cortado como um recruta. Deitou-lhe
a mão e fechou-se com ella por dentro. As
paredes tomadas de frio salitroso, transiram de
frio sepulchral. Quando se atreveu a rir, cortou-lhe
logo o riso cerce—para não se tornar a rir,
ao primeiro assômo de vontade, cortou-lhe logo
a vontade rente—para não tornar a ter vontade;
e, quando cahiu de cama, postou-se dia e noite
á sua cabeceira, hirta e solemne como o devêr. Um
pobre não tem vontade, um pobre não tem orgulho.
Nem pode tel-o; veio ao mundo para cumprir o seu
devêr. Veio ao mundo para sêr obediente. Pobres
educam-se como pobres e ricos educam-se como
ricos.
Só tu D. Leocadia te deste ao goso superior
de têres uma alma á tua descripção. E isto sem
gritos, com um ou outro soluço logo represado,
noite e dia, dia e noite, e um olhar d'espanto,
uma luz que se extingue até á impassibilidade,
n'um terceiro andar de rua da Bitesga. Levou
tempo a morrer essa ternura dorida, que teimou
em vir á superficie, até que a D. Leocadia a conseguiu
esmagar sob o calcanhar de ferro—para
[145]
sempre, para todo o sempre. Por fim uma curvou
a cabeça submissa, e a outra ergueu a cabeça
triumphante.—Para a livrar da fome, para a subtrahir
á desgraça. Se não fosse eu ia parar a uma
viella. Cumpri o meu devêr.—Sim, e para a
crear, para que não fosse parar a uma viella,
o vestido que lhe durava uma eternidade, teve
de lhe durar outra eternidade ainda; a côdea,
que mal chegava para lhe matar a fome, repartiu-a
com a orphã, guardando para si o bocado
mais pequeno. Cumpriu o seu devêr de ferro, o
devêr que pesa toneladas, e cumpriu-o sem desviar
uma polegada da linha do devêr. Obrigou-a
a levantar-se de noite, mas levantou-se primeiro
do que ella. Pobres querem-se como pobres, sempre
na regra e no devêr e sem levantarem a cabeça.
Quando a orphã a olhou transida de dôr e a D.
Leocadia lhe bradou:—Cumpre sempre o teu devêr!—já
ella tinha cumprido o seu devêr até
final. Passaram-se annos ou seculos, morreram
as aranhas de velhice no fundo dos saguões deshabitados;
nas paredes mestras de granito a camada
de frio salitroso juntou-se camada de frio sepulchral,
e a camada do frio sepulchral sobrepoz-se
camada de frio deshumano. E sempre tu
cumpriste o teu devêr e ella cumpriu o seu devêr
d'hora a hora como um pendulo. Incutiste-lh-o
tão fundo que ahi a tens na tua frente, palida e
inerte, com um filho do teu filho na barriga...
Não te queixes D. Leocadia, porque afinal foste
buscal-a ao asylo para te sentires maior no teu
orgulho. A desgraça dos outros não comove, a
desgraça alheia consola. Mas tinhas de cumprir
o teu devêr: ao magestoso edificio que architectavas,
faltava-lhe ainda o remate. A côdea que tiraste
[146]
á bocca manteve-te melhor que se a comesses,
e o vestido que lhe deste, agasalhou-te melhor
que se o vestisses. Engrandeceste. Amargaste e
doiraste. É verdade que tambem resequiste. Espera,
espera... Resequiste, mas como o mundo
é extraordinario, como a vida é prodiga e teimosa
e irrompe até das pedras, extrahiste não
sei que ternura azêda do mais duro de todos os
peitos—ó contraditoria D. Leocadia, 29-3.º-D., que
eu não chego a decifrar. Não podes com isto, não
explicas isto, não aturas isto! Não comprehendes.
Nem eu.—Tambem eu D. Leocadia! Lé com cré. Tambem
eu, se me liberto d'isto que não tem significação,
não encontro nada que tenha significação.
Chegamos ambos ao ponto e estamos ambos estarrecidos.
Moeste-te e moeste-me por uma palavra
apenas... Olha bem para ti! olha bem para dentro
de ti! Moras na rua da Bitesga, entre duas ou
tres curiosidades seculares. Usas um vestido de
lemistre, luvas d'algodão no fio e um broche pendurado
ao pescoço. Não sei por que bamburrio
se te encasquetou no toutiço a ideia de Deus e do
devêr, e de que o infinito tem de dar importancia
ao teu problema, aos teus flatos e ao teu broche,
onde um retrato de suissas não tira de mim os
olhos de peixe... Não mastigues. Bem sei que só
nós, tu e eu, eu e tu, com o teu vestido de lemistre,
é que somos capazes de contrahir noções,
talvez erroneas mas profundas, do bem e do mal.
Os outros bichos teem mais que fazer. Mas é por
isso mesmo D. Leocadia que te cahiram os dentes
postiços e que começas, n'esta nova situação,
a comprehender que o bem e o mal é tudo a mesma
coisa. Talvez a gente não possa fazer o bem senão
a si mesmo...—Mas então—e crispa a mão sobre
o broche—talvez o bem seja uma monstruosidade,
[147]
talvez todos tenhamos de destruir. O mal é que
eu sinto. Para o mal é que eu fui creada!—E sua
d'aflição toda a tinta que lá tem dentro, quando
outra D. Leocadia irrompe da carcassa da D. Leocadia:—Pergunto-te
se o que tu não consegues
é prolongar o mal. Pergunto-te se esse orgulho
humano, se esse orgulho sobrehumano, não é um
mal maior, e essa piedade que sentes não é por ti
que a sentes.—E eu, e eu pergunto-te se a minha
verdade falsa não me serviu melhor que a tua
verdade amarga.—Pergunto-te a ti—e sacode-a—se
não é isto que eu sinto cá de dentro, do fundo
dos fundos. Pergunto-te de que te serve a mentira
com que cohabitavas. Nunca conseguiste bem
nenhum, nunca cumpriste o teu devêr. Logo que
te puz a ti e a ella na mesma situação de egualdade
já não pudeste cumprir o teu devêr.
D. Leocadia, quem recebe o bem fica sempre
humilhado. O bem constrange. O que tu chamas
a piedade, e o bem põe quem o recebe na situação
de te morder as mãos. E continuar a fazer o
bem é elevar-te pelo bem que fazes e rebaixar-me
pelo bem que recebo. Acabas por gastar o que
em mim há de melhor. Oh D. Leocadia, se eu podesse—eu
é que te fazia o bem, para tu veres
o que é o bem recebido, o bem agradecido e o bem
amargurado. Antes tu me fizesses mal, D. Leocadia,
porque o mal põe-me ao teu nivel, e o bem
acostuma o desgraçado a ser mais desgraçado
ainda. Degrada-o. Põe-no na tua dependencia e na
dependencia da desgraça. Cria uma
superioridade
,
a tua, e um azedume, o meu. Classifica
para todo o sempre. Estou perdido se não reajo
em odio.—Mas então...—e a D. Leocadia atira-se
com desespero á outra D. Leocadia, e interrompe-a,
[148]
primeiro com mudez, depois com gritos:—Ia
parar a uma viella!—Avança e repete
mais alto:—Ir parar a uma viella é o que há
de peor no mundo!—E a outra torna com escarneo
e diz-lhe ao ouvido não sei que segredo temeroso—e
a D. Leocadia torce-se com pavor
mas sustenta:—É o que há de peor no mundo!
é o que há de peor no mundo!—E com dôr, com
angustia, com desespero, pergunta a si propria
(a outra teima e não a larga):—É o que há
de peor no mundo!?—Eu não sei se é o que
há de peor no mundo, não sei se reduzir uma creatura,
a trapo é o que há de peor no mundo. A tua
piedade amesquinha-me. O que eu reclamo é o
meu logar na vida e o meu quinhão de desgraça.
Não m'o tires! Mas ella é d'aço. Não transige e
protesta:
—Matei-lhe a fome.
—Mataste-lhe a fome mas não podeste amal-a.
—Nem posso! nem posso! nem posso!
E encara-se mais atonita e mais verde, mais
resoluta e mais verde, sem desviar o olhar.
3 de março
Sombras. Tres cabeças monstruosas projectadas
n'um muro, que se aproximam e afastam
depois de confundidas. A velha a um canto agacha-se
aos pés da filha. E ao lado as tres sombras
fundem-se n'uma unica sombra disforme. Duas,
tres horas talvez... A sombra da velha reduz-se
a nada, a menos que nada, á sombra da dôr.
Por fim erguem-se, mergulham e dissolvem-se na
caligem da noite, as tres sombras dos ladrões
e as sombras das mulheres, a quem não distingo
as feições... Eu já vi isto algures, em
outro mundo onde me custa a entrar. Metem-me
medo. E não é só medo, é dôr. Vivi com estas
sombras n'um pesadelo, de que sahi atonito e
exhausto, n'um sonho em que tudo isto fazia parte
integrante da minha propria alma, e que sonhei
lavado em lagrimas. As tres grandes sombras
levam, não sei para que destino, as outras
enrodilhadas.
Duas, tres horas da madrugada talvez...
Caminham sem se lhes ouvir os passos á beira do
rio que corre para o mar desde o principio do
mundo.
E o silencio é cada vez maior. Só a agua fala
nos buracos poidos das pedras, em dialogos que
[150]
nunca cessam, n'um côro de vozes ininterruptas
e indistintas—ameaças, suplicas e gemidos. A
Joanna cala-se: só se lhe ouve um anh... anh...
de cançasso, como se arrastasse na escuridão uma
cruz do tamanho da escuridão. A seu lado o
côro inutil da agua corre sempre para o mar,
com gritos, risos, vaias e apupos.
Uma voz, a do velho ladrão compadecido,
diz-lhe baixinho:
—A tua filha... Se teimas levantas a desgraça
a teus pés.
E lá deslisam no escuro, e o rio sempre a
correr e a prégar o mesmo presagio de dôr no
chape que chape onde se percebem échos de todas
as desgraças que sucederam no mundo, levando
para o mar todas as lagrimas que se choraram
no mundo.
Outra vóz no escuro:
—Ou tens de sofrer mil mortes na tua filha,
ou tens de me fazer a entrega. Agora escolhe.
Uma ou outra. Agora ouve: ella é nada n'estas
mãos.—E pergunta-lhe:—Tu és ou não uma coisa
que me pertence? Posso matar-te?—Podes—E
essa voz rouca, essa voz implacavel torna:—E
ou... Tu ouves velha? A mim ninguem me engana...
Tu riste? (Ella faz anh... anh...—cançasso
ou dôr)—Aqui tens... Ouve mais... Tu
ouves ou finges? Tu que dizes? A velha é rica
tambem te cabe uma codea. Ninguem te pede
mais nada. Eu cá é que executo.
E lança a dois metros um jacto de saliva.
A Joanna recua: avançam logo e não a largam
as sombras que a envolvem.
—Tu hás-de abrir-nos por força a porta!
—Estafermo! estafermo!
—Tu abres-nos a porta. Á velha deito-lhe a
[151]
mão ao gasganete e não dá pio. Aperto no escuro—eeeh...—e
sinto no escuro um estremeção e
mais nada...
—Jesus!...
—Ó pandorca! És um trapo! és peor que um
trapo!...
—Deixem a velhota sósinha comigo, que nós
dois entendemo-nos—intervem o ladrão mais velho.
E leva-a suspensa pelo braço como quem
leva uma pluma.
Cobre-os o céo profundo, onde palpita uma
vida intensa. Arqueia-se sobre a velha e o ladrão
de lez a lez a abobada recurva. Ao longe seguem-n'os
sempre as outras sombras temerosas.
—Estupida! estupida! Passaste a vida a servil-os.
Aproveitaram-te e deitam-te fóra. Só te
deram restos e enchiam-se até aos gorgomilos.
E tu apegaste e tu defendel-os!... Ouve tu abres-nos
devagarinho a porta...
—Jesus Christo veio ao mundo para nos salvar!...
—Isso! Até me metes nojo! Isso! Até me
fazes rir! Só tu, calhordas, eras capaz de me
fazer rir n'esta hora aziaga. Pilhasse-te eu no
meu tempo!...—E aperta-lhe o braço contra o
peito, leva no ar aquelle molho de ossos e ri-se
com escarneo.—Tu lavas, tu esfregas, tu comes
os restos, tu até cheiras mal! Tu metes nojo. E
hesitas... Que se te pede? Que nos abras a porta
e mais nada. Só há uma ocasião na vida, toca
a aproveital-a.... Se nos abres a porta, ficamos
ricos.—Abraça-a. Vomita uma risada. Peor que
matal-a, enlameia-a. Aquillo vem do fundo da
terra, vem do boqueirão da noite e traz escarneo
pegado. Sobre isto chove: parece que toda a
lama fetida da rua subiu ao céo para tornar a
[152]
cahir. A Joanna geme. Uma risada e um gemido
que se amalgamam, gemido que se extingue para
depois subir mais alto, para se confundir com a
risada, sempre o mesmo gemido, sempre a mesma
risada. E a noite é pó de desgraça, cada vez mais
moído e mais negro.
—Não te cabe n'esse caco que ninguem tem
pena de ti. Escuta o que te digo. Rouba-a, estupida!
rouba-a! Na cadeia tambem se come pão.
Ao menos lá enches essa barriga. Abres-nos devagarinho
a porta...
—O que havia de dizer a minha senhora!
—Ninguem no sabe. E ouve: se não nos abres
a porta, a tua filha nunca mais a vês.
O silencio e a noite com outras noites em
cima, as sombras que caminham, e aquella sombra
humilde cada vêz mais pequena, reduzida á
sombra da sombra e do escarneo. E teima, e teima
contra a desgraça, contra as injurias e as vozes
do rio. Há milhares d'annos que o dialogo nas
pedras dura, sempre nas mesmas ameaças, que
vem do fundo da agua e a Joanna não ouve. Devagar
palpa a algibeira e tira do bolso e entranha
na pele um pedaço de ferro gasto e poido.
Outra vóz na noite:
—Mãe!
A vida d'essa mão de rachar lenha,
d'essa mão de arvore e dôr! Como ella se
contrae, emquanto a Joanna caminha absorta.
Talvez uma hesitação instantanea, e depois, sem
que ninguem repare, a mão abre-se e deixa cahir
a chave nas profundas da agua, que continua
a correr e a prégar, a correr e a falar ás pedras
e ás estrellas nas mesmas palavras inuteis, ao
lado da vida sem destino.
[153]
Chegam emfim á muralha do predio, e outra
vêz as sombras se juntam n'uma unica sombra,
outra vêz se ouve aquella vóz sahir da noite:
—Mãe, olhe p'ra mim! olhe bem p'ra mim!
E a velha sente na cara tres bafos monstruosos,
ao mesmo tempo que as vozes roucas reclamam:
—A porta... Depressa! depressa!
—A chave
perdi-a
.
Um repelão e um grito, um grito que se afasta
e sae da noite, cada vez mais longe e cada vêz
mais alto...
Sobre este sêr humilde encarniça-se mais o
sonho. Lá vae a mulher da esfrega empurrando
o farrapo monstruoso que se agita na noite.
A sombra e a mulher da esfrega, o espanto e a
mulher da esfrega, o sonho doirado de grandes
azas esfarrapadas no negrume e as mãos encortiçadas
de lavar a louça, a vida phrenetica e a
vida humilde. Uma bocca enorme d'um lado, a
voz da Joanna do outro, sentimentos cahoticos
impossiveis de traduzir em palavras, o que exprime
a natureza impulsiva, o que responde uma
creatura agarrada á ideia do sacrificio.—Anda
para deante.—Estupida! estupida!—A bondade entranhou-se-lhe
até ao amago. Tudo está nos seus
logares: as coisas simples e as coisas eternas,
e há outra coisa que ella não sabe exprimir,
que a alma d'esta mulher não abrange: a intrusão
do sonho na sua vida
humilde. Bronco e
sonho. Até agora só com a desgraça arca, agora
o doirado tinge-a. Sacode-se como um cão molhado.
Debalde tenta desfazer-se do sonho immenso
que se lhe pega: irrompe em palavras
baixinhas, hesitantes, que voltam atraz. Uma pausa
[154]
e o monologo recomeça logo. Há não sei que de
monstruoso no mundo, que bebe todas as lagrimas
e leva todos os gritos. E não se farta. Há
não sei quê que reclama dôr. Toda a noite se
desespera. A desgraça sua, a desgraça trôpega e
ridicula. A desgraça enche a noite de esgares.
Depois o sonho desgrenha-se. Depois sacode-a
uma rajada, e lá torna, sem uma palavra, sem
um grito, a grande sombra que se envolve em
si mesmo e a si mesmo se estorcega. A desgraça
sua de aflição sem poder exprimir-se. E quando
a dôr se concentra, quando a dôr se torce como
quem torce um farrapo e a velha não pode—a
velha irrompe n'uma toada estupida. Mais doirado,
mais fundo...
Caminha e depara com a D. Restituta, que
atravessou a vida com o guarda-chuva incolume
e que faz gestos desordenados no escuro:
—Acuso! acuso! acuso!
—Senhora D. Restituta...
A senhora D. Restituta está cheia de lama.
Tem a penna do quico partida: é uma figura feita
com tres traços de tinta e algumas manchas de
desespero. O sonho doira-a, esfarrapa-a tambem.
A penna em frangalhos agita-se como um pendão
de revolta, esgarçado e chamuscado. Todas as
vontades a compeliram e a esmagaram—quer retomar
a forma primitiva. Dir-se-hia que cresce
na noite, e que a sua bocca é uma bocarra cada
vez maior, para prégar, para açular, para vomitar
injurias. Sómente não emite outro som senão
este:—Acuso!—a velha gasta, a velha inutil,
a D. Restituta da Piedade Sardinha.
—Senhora D. Restituta...
A outra não vê, não ouve, não mexe.
—Minha senhora...
[155]
—Acuso!
—...para o que se vive n'este mundo não
paga a pena ruindades.
Debalde a Joanna lhe fala. Resta deante do
sonho com a mandibula despegada e o velho
guarda-chuva que conserva intacto desde a primeira
virgindade—teve duas—metido debaixo
do braço. Nem uma nem outra entendem aquillo.
Uma empurra, afasta de si o sonho com as mãos
de lavar a loiça, a outra com as mãos pacientes,
as mãos diaphanas da mentira. Tem feito sempre
todas as vontades, e se a figura um momento se
engrandece, amarfanha-se logo, como um trapo
suspenso que se deixa cahir ao chão.
—Acuso! acuso! acuso! De repelão—mete
para dentro! uma vergonha mete p'r'o sacco!
desprezo, escrupulo, fome—mete tudo p'r'o sacco!
Para um sacco sem fundo. Passei tudo, passei
mortes para o poder crear e nunca pude dizer
que tinha um filho. Para o crear, para o poder
crear nunca pude vêr o meu filho. Meti tudo p'r'o
sacco, sem poder abrir bico, senão matavam-me á
fome... E nunca pude vêr o meu filho, senão
matavam-me á fome. Criei-o longe para o poder
crear, criei-o como pude, de vergonha, de restos,
de codeas, de dizer a tudo que sim. E este
filho! este filho que nunca pude vêr, vi-o agora!
Este filho que criei de mentira, este filho que criei
d'abjecção, sem nunca o poder vêr, vi-o agora!
Este filho que tinha sonhado ás escondidas, com a
bocca tapada para não gritar: Tenho um filho, tambem
tenho um filho!—vi-o! vi-o! vi-o!
Meti tudo
p'r'o sacco! meti o diabo no sacco! Só a noite me
ficava livre para
sonhar
com elle, para o vêr
rico, para o vêr como os filhos das outras... Aqui
está a Restituta que é idiota, aqui está a Restituta
[156]
que é um poço sem fundo. Deante d'ella
pode dizer-se tudo, a Restituta serve para tudo,
a Restituta mete tudo para o saco. Cala-se que é
o que lhe vale—mete a viola no saco. Só a Restituta
sabe o que se passa, o que está no prégo
e o que está no fundo das almas. Calei tudo,
disse a tudo que sim para o poder crear. Mete
p'r'o saco! mete tudo p'r'o saco! mete a viola no
saco!—E n'um crescendo de desespero:—Acuso!
acuso! acuso!
Debate-se a Joanna n'uma cogitação a que não
suporta o pezo. É como se pela primeira vez
désse com a vida e quizesse atalhar a vida. Tudo
para ella mudou de expressão: a desgraça muda
de expressão, a filha muda de expressão. E o
sonho envolve-a, deforma-a, besunta-a. Sente-se-lhe
o ranger dos gorgomilos.
A dôr descarna-a e redul-a ás linhas principaes,
á secca realidade. Um ulular de tempestade,
e tudo quieto. Nunca o concavo se concentrou
em
mais
serenidade. Gritos, um desabar
monstruoso, e este sêr abjecto, que, como uma coisa
que andou a rasto por todos os sitios suspeitos,
não tem fórma nem côr: tem cheiro, e dois olhos
de tanto pasmo que fazem aflição. Desapareceu
tudo: ficou a velha, ficou a desgraça aos tropeções
pela vida fóra.
É como se tivessem metido a dôr dentro de
um saco e déssem com elle pelas paredes.
Aqui está a mulher da esfrega e a desgraça
que tem os seus direitos e não os perde nem
transige. Não a larga tambem o sonho. Agora
é que ella destinge todo o doirado e toda a agua
de lavar a louça. Agora é que ella ouve uma bocca
[157]
enorme falar no escuro, e queda-se atonita e confusa
feita trapo e horrôr.
—Para que é que vocemecê me creou?
Um soluço, um ranger d'arvore que se deita
abaixo, um estalido de cruz que não suporta o pezo.
—Antes vocemecê me tivesse esganado ao
parir. O que eu tenho chorado!
—Anh!...
—Olhe p'ra mim! olhe p'ra mim!
É um sêr diferente, um sêr aparte, que a
Joanna vê pela primeira vez. Como pôde creal-o
aos seus peitos? Crear vida é crear um grito que
não se extingue? que nunca mais se cala? Sempre
o mesmo grito:—Para o que tu me creaste!
para o que tu me creaste!—Juntem a isto o
escarneo e todas as vózes que lhe prégam:—Estupida!
estupida! Toda a gente se ri de ti!—Andou
nas mãos dos ladrões.—Rouba! rouba!...—E
sente ainda nas mãos um pedaço de ferro
gasto e poido como o aço, que entranha na pelle.
Um gemido lucta com uma risada e tenta subir
mais alto, cada vez mais alto... Juntem a isto
que a Joanna quer ser má e não pode, e misturem
a isto humildade. Aqueceu a vida a bafo.
Incutiram-lhe para sempre a subordinação, só lá
tem dentro ternura. Faz o gesto de quem tenta
abrir uma porta; quer levantar a cabeça, mas
tanto tem obedecido que curva logo a cabeça. Ridiculo
sobre ridiculo.
Agora vejo a figura, vejo-a agora completa.
Pouco e pouco tomou relevo, tornou-se humana.
Sumiu-se a velha tonta, caldeou-a a desgraça. Á
força de gritos represados obsidia-me. Engrandece-a
a mentira e a dôr. E aquillo persegue-a, encarniça-se
sobre a velha tropega, n'um espectaculo
[158]
ao mesmo tempo desmedido e reles. A velha
d'um lado, do outro a grande sombra tragica que
subverteu o mundo; o escantilhão sôfrego, e o
gesto que a mulher da esfrega faz para o afastar
de si. Ao mesmo tempo a alma dorida, a ternura
que a não larga, e o contacto feroz que não explica
e a que sente o pezo.—Para o que tu me
creaste! para o que tu me creaste!—Atormenta-a,
sufoca-a, e como não pode mais, como não comprehende—não
consegue—e como aquillo se encarniça,
a Joanna mostra-lhe as mãos enormes,
as mãos roídas, as mãos só dôr...
Tem as mãos como cepos.
12 de março
Há em mim varias figuras. Quando uma fala
a outra está calada. Era suportavel. Mas agora
não: agora põem-se a falar ao mesmo tempo.
Sintiste-o avançar, pouco e pouco, no
silencio?
Sentiste o teu pensamento disforme avançar
mais um passo no silencio? É porventura possivel
que o que se passa no mais recondito do teu
sêr, alguem o presinta e o ouça avançar no silencio?
Perpetuo combate a que bem quero pôr termo
e que só tem um termo—a cóva. Eu e o outro—eu
e o outro... E o outro arrasta-me, leva-me,
aturde-me. Perpetuo debate a que não consigo
fugir, e de que sahimos ambos esfarrapados, á
espera que recomece—agora, logo, d'aqui a bocado—porque
só essa lucta me interessa até ao
amago... Estou prompto!
Todos nós pelo pensamento somos capazes de
hecatombes. Detinha-nos a vida artificial, uma architectura
mais temerosa que todas as cathedraes
do globo postas umas em cima das outras.
[160]
Se me esqueço o meu pensamento disforme
deita-se logo a caminho...
Vejo-o caminhar e não o posso deter. Por
mais esforços que faça não o posso deter. É como
se eu creasse figuras, que se puzessem logo a
caminho. Todos os phantasmas se dissolviam á
luz da madrugada. Agora estas figuras teem de
cumprir um destino. E pergunto a mim mesmo
baixinho se na verdade eu não desejo que avancem
um passo—e outro passo ainda...
Tinha medo de aparecer no outro mundo deformado
e grotesco, e agora tanto faz entrar na
morte repulsivo, como transfigurado e só dôr.
Olhava este momento que ia desaparecer, com
saudade—porque nunca mais se repetiria no
mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na
luz, nem vibração, nem na ternura... O momento
em que me sorriste, balouçado entre o nada e o
nada, nunca mais se tornaria a repetir, identico e
completo, em todos os seculos a vir! Estava alli
a morte—está aqui a vida. Agora pergunto a
mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta
obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo,
tudo o que me podes dizer—já eu o disse a mim
proprio. Até hoje falava a alguma coisa que me
ouvia, hoje só interrogo a mudez, a mim mesmo
me interrogo.
Tu luctas contra esta figura que dentro de ti
te impele;—tu queres fugir de ti proprio, queres
separar-te de ti mesmo, e não podes. Só consegues,
á custa de esforços desesperados, manteres-te dentro
da formula ou da mascara que escolheste, e
[161]
arredar o crime e a loucura, e fingir e sorrir; tu
podeste iludir o phantasma, seguindo pelo caminho
trilhado. Iludiste os outros e a ti proprio te
iludiste. Agora não. Agora sentes-te capaz de
tudo. As grandes sombras que te entravaram a
vida, eil-as reduzidas a dois punhados de cinza.
Valia a pena a lucta? O homem é sempre a
mesma lama, os mesmos despeitos e os mesmos
rancôres, com resquicios d'oiro á mistura. O que
pode fazer é dominal-os. Mas sae sempre da lucta
esfarrapado e perguntando a si mesmo baixinho:—Valeu
a pena? valeu a pena?—Depois que se
venceu que lhe resta? Elle e o vacuo, elle e a saudade
da lama que fazia parte integrante do seu
sêr. Ficou diminuido. A escuma tambem tem os
seus direitos.
Há entre as figuras que compõem o meu sêr,
duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma
que crê, outra que não crê. Há uma capaz de
todas as cobardias, outra capaz de todas as audacias.
Há uma prompta para todos os rasgos e
outra que a observa e comenta.
Mas há entre as figuras que compõem o meu
sêr, uma que está calada. É a peor. Olha para
mim e basta olhar para mim para que eu estremeça.—Por
muito que me accuses, já eu me
tenho accusado muito mais!
Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos
teus olhos, a sofreguidão verde dos teus olhos,
que me reclamam como um abysmo de dôr e de
espanto onde encontro emfim a vida!
Se te quizesse descrever, não te podia descrever.
Sei que me pertences e que te pertenço.
[162]
Talvez as almas fossem mal
conduzidas
,
talvez já adivinhassemos o universo e depois o esquecessemos.
Creio que se não complicassemos a
vida e a dirigissemos n'outro sentido, presentiriamos
tudo e resolveriamos tudo. Há em todas
as existencias alguns segundos em que sentimos
o contacto do mysterio—de que nos separam
logo leguas de impenetrabilidade.
Alguma coisa porem se interessa pela minha
dôr. Todas as noites grito, todas as noites sufoco
os gritos. Todas as noites me debato com o mesmo
problema e a mesma angustia. E há uma coisa
que assiste a este espectaculo e se interessa, que
cada vez me mergulha mais fundo para que eu
me despedace—e se interessa...
15 de março
Com que saudades me aparto da mentira!
Dos nadas, das pequenas coisas que dão sabôr á
vida. Já reparaste que são as
pequenas
coisas da
vida que nos fazem chegar as melhores lagrimas
aos olhos? Na natureza os ultimos dias d'outomno
que se despedem de nós com saudade, o
oiro humido, o ultimo sol nas fôlhas molhadas;
as noites cheias de estrellas, em que se adivinham
outras estrellas ainda; a ternura que não tem
existencia real, a sensação que passou por nós
n'um segundo, sem deixar vestigios; e as horas
que creamos, esquecidos e penetrados um do outro,
ao pé do lume, já sumidas tambem na voragem.
Nada—tudo. A tua expressão em certos momentos,
em que uma figura transparece sob outra
figura, como se me fôsse dado contemplar,
[163]
n'um rapido instante, a tua alma limpida—todos
os sentimentos que geramos de ilusão, de
sonho e de tristeza. Tudo e nada.
Agora a vida é amarga. Acabou a saudade
e este sabôr amargo é o sabôr da vida nova
que começa.
Até hoje bastava uma palavra tua para me
prender, ou a ternura que os teus olhos exprimiam.
Um fio detinha o meu horrivel pensamento.
Tu sorrias... Um sorriso e mais nada,
ternura e mais nada. Uma forma transitoria, sonho
e mais nada.
Das estrellas a luz phosphorescente envolvia
o mundo. A noite tinha é certo negrumes profundos
e espaços tão negros, que n'elles só morava
o vacuo, mas no silencio a vida das estrellas estava
mais perto do meu coração. A impressão que
me sufoca deante da eternidade sem limites e
da duração da vida astral, misturava-se a ternura
de teus olhos, que me faziam ascender do
subterraneo para a luz, que me ensinavam a soletrar
o
abc
do céo, que antes de mim, na vida
ephemera, outros tentaram decifrar, levando-o impresso
na alma para o tumulo.
Ilusoria irrisão. Tudo isto não existe, ou só
existe como agitação e desespero frenetico. Tudo
isto desaba há milhares d'annos n'uma queda infinita,
n'um grito que nunca cessa nem echôa.
Que desapareças amanhã e as mesmas estrellas
indiferentes luzirão no céo, o mesmo impeto de
vida galopará no espaço. Só os teus olhos não
procurarão os meus cheios de sofreguidão e espanto...
[164]
Arredo a tua figura, a figura palida
que teima em me acompanhar sem palavra, a
figura transida e palida de que desvio o olhar.
Encontrei-te n'outra luz, n'outra vida, n'outro mundo
talvez, e os teus olhos tristes enchem-me de
inquietação e terrôr. Tu não existes! tu não existes!
Escusas de soluçar. Não te tolero. Não sei
quem és e conheço-te. Tens vivido na minha companhia,
e és uma fórma transitoria e mais nada,
um sorriso de ternura e mais nada.
Espera... Quantas vezes me tens confessado,
sufocada de lagrimas, que te vem, não sabes d'onde,
uma vontade do fugir pelo mundo fóra para
onde ninguem te conheça, deixando tudo, e abandonando
tudo—fugindo a ti propria?... Para isso
bastou aquella folha doirada, que o primeiro arripio
de vento léva sem destino. É essa mesma sensação
que todos experimentamos a certas horas
em que o universo se nos afigura monstruoso e
inutil, com uma unica certeza—a de caminharmos
todos, atravez da incoherencia, para a morte.
Felizmente essa impressão dura um segundo. Num
segundo todos ouvimos os passos da morte.
20 de março
Agora não contenho a multidão que constitue
a minha alma. Nunca estou só e ouço-os que clamam
cada vêz mais alto. Sinto phantasmas até á
raiz da vida. Minha alma é um tablado onde todos
os mortos se degladiam. Ouço-os! ouço-os!
são impulsos, são sêres que actuam e falam como
se eu não existisse. N'esses momentos sou apenas
[165]
um espectador que os vejo a caminho sem me
poder defender. Ouço-os! ouço-os!
Se Deus não existe e a outra vida não existe—se
disponho só d'esta vida, os deveres que tenho
a cumprir são apenas os do instincto. Só tenho
deveres emquanto não me pezam. Não te
deixes iludir.
Era sempre com secreta irritação que eu
fazia
o bem. O bem contraria. Fugi sempre a este problema...
Era sempre n'um impulso de paixão—e
com todo o meu sêr, que eu fazia o mal... O sacrificio,
a piedade, a bondade só teem logar no
mundo como culturas artificiaes.
Repete isto: a bondade é um sentimento falso
e o mais artificial de todos os sentimentos.
Ah, a ironia... Há de te servir agora de
muito a ironia!
O dever acabou, o estupido dever, o dever
que me dominava, a vida com um pezo de chumbo,
o dever de fazer todos os dias as mesmas coisas
inuteis. Respiro.
Sim, a amizade... Falemos aqui baixinho um
com o outro. Essa amizade era o meu interesse
ou o teu interesse. Dominavas-me ou dominava-te.
Passei annos sob esse jugo, e agora descubro com
alegria que te detesto. Detestei-te sempre.
Odeio-te porque vales mais do que eu; odeio-te
porque podes mais do que eu.
Assistir á ruina dos nossos amigos é talvez
[166]
melhor do que assistir á ruina dos nossos inimigos.
Eu sou a unica consciencia n'esta barafunda
cega e sofrega.
Temos de fabricar novas leis. Façamos leis
para as classes superiores, e leis para as classes
inferiores—leis para os pobres e leis para os
ricos. As leis modificam-se com as consciencias,
e as consciencias modificaram-se.
Formemos classes—as de cima e as de baixo.
O problema da educação é um problema capital.
O amor é um unico minuto. Um minuto esplendido.
O resto é habito, palavras, hesitações,
trampolinice, livros de capa amarella...
E o peor é que isto não são phrases, o peor é
que isto existiu sempre e impôz-se-me sempre.
O peor é que quando eu te falava e sorria, e tu me
sorrias extenuada e palida, o meu pensamento
era sempre o mesmo, e só a custo continha o
tumulto dos mortos. O peor é que eu sei que desde
que este phantasma se pôz a caminho, não o
posso deter. O peor é que eu li hoje nos teus
olhos ternura e espanto. O peor é o que os teus
olhos exprimem—e eu não o posso deter...
5 de abril
Segunda noite de luar, segunda noite de espanto.
As arvores são phantasmas—os homens
são phantasmas. Á noite a velha cerejeira é uma
aparição. A mesma febre devora no quintal friorento
as macieiras anãs. O respeitavel Elias de
Mello recusa reconhecer-se: assiste com uivos ao
desmoronar da propria respeitabilidade. Chegou a
primavéra. Deita flôr a D. Leocadia, a D. Herminia
e a D. Penaricia. Todas as arvores do monte
se consomem de sonho.
Primavéra entontecida de gritos e rancôres,
É a villa feita sonho; são aspirações ridiculas,
restos trôpegos que procuram adaptar-se. Para resistir
forjaram a mentira, forjaram a mania, forjaram
a abjecção, e essas pequenas coisas sem
existencia chegaram a ter um logar mais importante
que muitas outras a que chamamos reaes.
Phisionomias de dôr, phisionomias concentradas,
phisionomias de desespero e paixão, vão aparecendo
sob cada phisionomia, e todos deparam
com sentimentos e palavras que nunca tinham
encontrado.—Dez annos, vinte annos de galeras,
deixa-me, vae-te, some-te!—O homem roe dentro
[168]
do homem: criam-se olhos que veem na obscuridade.
Começam a distinguir na massa confusa,
no cahos, nas duvidas, e descem a profundidades
que não lhe estavam destinadas. Não é só o homem
d'um momento, é uma série de figuras ainda
por crear: é o homem do futuro.
Mais braços na monstruosa arvore de sonho,
mais braços que atingem o céo, mais tinta forjada
de desespero. A propria noite escorre pus
doirado...
Na pequena villa já havia, como em todas as
almas, um Robespierre, um cadafalso, um Shylock
interior, odios, ganancia e uma serigaita a cantar.
O quinhão é igual para todos—o que pode é estar
sepultado. A questão era de proporções: os valores
já não estão na mesma escala. Desapareceu o
ridiculo. Pensem n'isto: desapareceu o ridiculo.
Num minuto acordou toda a peste, sobresaltou-se
toda a peste, todo o ferro velho, toda a mania
resignada á força, comprimida á força, levada á
força para a velhice e para a morte. Todas as velhas
se ergueram, impelidas pela mesma mola. Todo
o scenario era scenario, toda a regra regra, todas
as cerimonias que nos ensinam, se conservavam
ainda de pé, quando o mesmo furacão revolveu,
arrastou tudo e levou tudo adiante de si. Tudo se
varreu no mesmo instante, todos largamos a scena
no mesmo instante. Todos, com velha baba a
escorrer, com velhos tumores abertos, com velhas
dentaduras postiças, o mistiforio e a obscuridade,
o pó inutil que largaste pelo caminho até
chegar á velhice, a vida consciente e a velha Eulalia,
cuja existencia é um subterraneo e que mal
sabe falar, todos ficámos estonteados...
[169]
A villa entrou em plena primavéra. Eis a
D. Procopia, eis a mulher da esfrega. Aqui estão
alimentadas a mentira, tendo passado a vida no
testamento, na cortezia e na colica; aqui está o
topete, a filha para casar e as faltas de dinheiro—aqui
estão todas enrodilhadas de pavor, mas
cheias de decisão deante do céo e do inferno.
Já abrem aquellas ventas. Aquillo cheira-lhes a
coisas prohibidas, que passaram a vida a desejar
e a temer. Aquillo cheira-lhe ao suspeito e ao
reles. Aquillo cheira-lhes bem. De pupilas dilatadas
embebem-se no sonho. Até as pennas velhas
se encrespam, até nos restos de chales sem
pello, o pello se põe de pé.
Todos nós somos arvores. Há que tempos que
deitamos flôr pelo lado de dentro. Fomos sempre
construcções vivas, arvores estranhas que bracejavam
para o interior do tronco, ramos e tinta,
mais ramos desmedidos e tinta, revestidos de casca
pelo lado de fóra. Foi por dentro que crescemos,
e só por dentro nos era licito crescer, cada vêz
mais alto até a morte intervir.
Até as arvores estranhas, até as arvores só
tronco, que metiam os ramos e a tinta para o interior,
bracejam á custa de gritos ramos e tinta,
ramos desmedidos e tinta para o lado de fóra.
Este é nosso sonho, esta é nossa vida oculta,
nossa vida de desespero, nosso sonho desgrenhado
e immenso, doirado e immenso, amargo e immenso.
Bem sei que isto doe. Bem sei que isto me custa
a encontrar e a reconhecer n'esta noite de luar
e espanto. Bem sei que isto de sêr homem é
d'uma grande responsabilidade. Tem prós e contras
[170]
terriveis. Tambem sei que o que nos separa
dos bichos não é a inteligencia: a inteligencia
é o menos. O que nos separa dos bichos é o esforço
dos vivos e dos mortos, o compromisso de aceitarmos
a mentira como se fôsse verdade. O que
nos mantem n'este inferno é a architectura artificial,
é o facto de não nos vermos tal qual somos,
baseados n'uma convenção que julgamos indestructivel.
De não nos vermos a nós e de não
os vermos a elles. Porque o homem por dentro é
desconforme. É elle e todos os mortos. É uma
sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do
universo. Agora somos phantasmas, somos afinal
só phantasmas, e o que construimos não cabe
entre as quatro paredes de materia.
Ouvel-os? ouvel-os? Passaram seculos e seculos
no fundo da terra. Levaram seculos a comprehender
que foram iludidos. Redobraram seculos
de desespero no interior das cóvas, até se compenetrarem
de que todo o sacrificio foi inutil,
de que toda a dôr foi inutil. Ouvel-os com dôr e
desespero?...
Queira ou não queira tenho de dar o passo,
tenho de me desentranhar em amargura e sonho.
Bem vês, a insignificancia vae durar mil
annos, a vulgaridade e a ternura teem seculos
deante de si, de forma que tanto me peza uma
como a outra. Abafo. Tenho de durar mil annos,
tenho de durar dois mil annos, com estas coisas
deante de mim, hoje, amanhã, sempre. É escusado
luctar. Emquanto era a razão que me guiava,
andava ás apalpadelas: agora é o inconsciente e
cessaram
de todo
as duvidas. Tudo se ilumina
a outra claridade. Tudo me é permitido. Respiro
[171]
d'outra maneira, olho d'outra maneira o que me
atravanca o caminho. Toda a pergunta obtem logo
resposta imediata. Todos os sonhos estão de pé
para mil annos e um dia.—Ouvel-os? ouves o
grito dos mortos?...—A outra coisa não nos dá
treguas. Vira-nos e revira-nos. Mete-se como piolho
em costura. Põe-nos a contas com a questão
das questões, com a questão insoluvel. Tudo que
estava n'um plano secundario passou para um
plano principal. O meu interesse, o teu interesse,
ó D. Penaricia, é matal-a sem que se venha a
saber. Escusas de arreganhar os dentes descarnados
pela gengivite expulsiva, esse passo tens
de o dar contra o que se chama a tua consciencia.
Ergue a cabeça D. Lambisgoia e recorda-te
que já foste féra. Podêmos suprimil-a sem remorsos.
Matar é uma palavra e mais nada. Por
causa d'uma palavra nos arriscamos, é certo, a
ir para a cóva inuteis e grotescos, com sonhos
remoidos durante noites e noites gelatinosas como
velhas mestras de piano que tocam sempre as
mesmas escalas. Mas hoje tudo se reduz a metêl-a
n'um jazigo selado e chumbado, com a chave
entregue ao juiz de direito. Põe em mim teus
olhos turvos, ó D. Desideria e reconhece-te e
reconhece-me. O que estava por baixo está agora
por cima. Á roda da meza do jogo nunca pensamos
senão em anulal-a. O remorso não existe, o
crime não existe, a formula não existe. O passo
nem tu o deste nem eu o dei presos a algumas
palavras convencionaes. Agora estamos fartos.
Sim, sim, podes matal-a á tua vontade. És um
producto fetido do acaso. Não duvides. Se Elle
existe, nem suspeita sequer que existimos. Com
que direito a esta luz que nos ilumina de chapa,
queres que eu me subordine e submeta? Ou não
[172]
existindo ainda exiges que proceda como se existisses?...
Não duvides. Nada. Só algumas palavras
formaram a tua consciencia. Duas palavras
e o habito, duas palavras e a regra. Posso tudo
o que quero. Pezo tudo, calculo tudo sobre esta
base: o que me convem e o que não me convem.
Eu sou eu. O egoismo é a suprema lei da vida.
A honra não é essencial. Ao contrario o meu interesse
é mentir, o meu interesse é trahir-te.
É indiscutivel que tenho devêres para comigo,
mas não é indiscutivel que tenha devêres para
comtigo. Primeiro eu, depois eu. Todos os crimes
me são permitidos com tanto que se não venham
a saber. Serves-me ou não me serves? És meu
escravo ou meu senhor? Serás tu meu inimigo?...
Que riso que nunca vi (é a cóva que se ri)!
que bocca que nunca vi e que me cheira a defunto!
Um passo ainda, outro passo, velhas lambisgoias,
D. Insolencia e D. Ninharia. Chegou a primavéra.
Vamos entrar n'outra vida sem Deus e sem regras,
n'outro mistiforio que o instincto nos impõe,
ó D. Telles das Reles de Meireles, e talvez seja
essa a tranquibernia suprema porque suspiramos
sempre. Vamos vêr que proporções atinge
a langonha e a D. Herminia, o fél e a D. Penaricia.
Acabaram os escrupulos e a lucta constante
que nos deixava esfarrapados. Tenho-vos aqui na
minha frente com as boccas murchas de mentir,
a suar grotesco e a gritar de desespero; tenho-vos
aqui só bichos em frente da necessidade fatal, da
verdade iniludivel, nus uns ao lado dos outros, nus
e reles, com o esplendor cada vez maior, cada vez
mais sôfrego deante de nós. Estamos promptos.
Estamos fartos. O que resta é o sonho de pé,
[173]
só sonho e doirado, fétido e doirado, cahotico e
doirado. Está rôto o contracto.
A primavéra atingiu o auge nos vivos e nos
mortos. Tinta sobre tinta, dôr sobre dôr. Resuscitam
todas as primavéras, as primavéras successivas,
as primeiras primavéras em que a ternura se
confunde com a fealdade e a fealdade é já ternura,
outras primavéras, e outras oiro e verde, em
que a tinta escorre do negrume. O que custou á
arvore a transformar-se em sonho, á arvore dorida
com a flôr recalcada, até se desentranhar
em emoção!... Mais outras primavéras phreneticas,
mais outras timidas e delicadas, mais outras
que não chegaram a abrir cobrem os vivos
e os mortos...
Mais braços na monstruosa arvore do sonho,
mais braços que atingem o céo. E ahi estão todas
as flôres e todos os gritos, a tentativa ridicula
da flôr e a flôr esbraseada das noites sobre
noites de concentração.
Todos anciamos por este dia. Nós e os outros
do fundo da sepultura contamos sempre com a
primavéra eterna—nós e a cohorte muda cujo
esforço senti sempre, muda e desesperada, cega
e desesperada. Gritos que vem de longe, expressões
mutiladas que tentam impor-se. Este sonho
não era só meu. Arredei-o e pegou-me fuligem.
Trouxe-o n'um cantinho do meu sêr como
uma coisa prohibida. Nunca me atrevi a olhal-o
frente a frente, até que surgiu das profundas, cahotico
e doirado, de dôr e de restos, coçado e
doirado. Pertence-me e pertence-te. Vem do céo
[174]
e do inferno. É nosso e dos mortos. É o patrimonio
da vida, e do tumulo.
E os mortos estão arrependidos! os mortos
estão arrependidos!
20 de abril
As velhas encarniçadas são outras, são velhas
em sonho vivo.—Mata! mata! mata!—Aqui
de rastros, anno atraz d'anno, para ser comida!—Aqui
a levar pontapés n'este sitio, aqui a crear
rugas e fél!—Pois eu não fui eu, e agora estou
deante d'isto, d'este assombro e d'este desespero!—Gritam
porque se não podem vêr. Gritam porque
a realidade e o sonho tomaram proporções
que lhes não cabem nas almas. Gritam porque
não lhe entrevêem o fundo. A D. Penaricia tirou
a cuia postiça, e atirou com a cuia ao chão. Depois
fitou os olhos na cuia enrodilhada, e absorveu-se
na cuia de retroz, como se tivesse alli em frente
o symbolo do universo:—Não posso desfazer-me
d'isto! não posso desfazer-me d'isto! Toma! Eu
não sou isto, e hei-de estar aqui sufocada a aturar-te
para não morrer á fome. Hei-de ver-me
e ver-te e hei-de dizer:—Jógo!—Hei-de fazer-te
as vontades e ver-me tal qual sou, tal qual era
e tal qual hei-de ser?—Á espera de quê, se
nem da morte podemos esperar?—Então este esforço
para ter uma alma não se conta? Este
esforço para não andar de rastros como a cobra?
Para viver com isto e com isto? Com esta amargura,
o fél, o que é mesquinho e com Deus?
Eu não posso com o que não comprehendo, com
[175]
o que está por traz de mim, com o que está a
meu lado e com o que tenho de fazer todos os
dias...—Falo!—Falo eu agora!—A tragedia é
que eu iludia-me, mentia a mim mesmo e agora
não posso mentir. Não há gritos que te valham
e a ninharia desapareceu do universo. A insignificancia
acabou.—O peor drama—exclama outra—é
que eu vejo o que fiz de mim propria.
—A inveja que eu te tenho! a inveja que
eu te tive sempre! E tenho que sorrir para ti,
de dizer a tudo que sim!
—Jogue!
—Então eu passei a minha vida a ter paciencia,
á espera, passei-a a mentir e obedecer,
e tu a mandares, e agora hei-de continuar a
ser abjecta quinhentos annos, seiscentos annos?
—E eu! o pão que me deste amarguei-o sempre.
Cada dia que passava mais me sabia a zinavre.
Não te matei porque não pude!
—Corte!
—Tu não és mais do que eu!
—Ai! Tambem eu, tambem eu tenho a dizer
uma coisa. É que eu sabia bem tudo isto, há
que tempos que o sabia!... Mas não sei que era
que me obrigava a fingir. Corto!
Avante! avante! Um cordão de velhas, como
um cordão de sentinelas, não desampara o quarto
onde a magestosa Theodora agonisa. Chove. Entre
estas paredes forradas de
papel doirado
já
não
se moem as palavras de uso. Alumia-as o candieiro
a escorrer petroleo, e a luz fixa as arestas
das figuras de cerimonia, todas vestidas de preto,
a calva d'um homem gordo, a quem só se veem
as mãos esponjosas, os bicos das velhas retesas,
[176]
cujas boccas remoem no escuro, a Adelia mais
safada e mais sofrega, e o padre no meio da
sala dominando-os a todos. Onde vae o ridiculo
da D. Penaricia, as mesuras da D. Andreza, o
riso idiota da D. Idalina, a langonha da D. Herminia?
Parecem forjadas de novo. Até as prégas
dos vestidos cahem como prégas de estatuas. Cada
velha resolve que a colica da Theodora seja a
sua ultima colica; em cada velha cresce, augmenta,
trasborda, n'um tumulto, o inferno. Ao
saque! ao saque!—É para mim. Eu é que sou a
prima mais chegada.—Eu é que lhe tenho aturado
tudo, é a mim que ella deixa os trezentos
contos, os quatrocentos contos, ninguem sabe o
que ella tem.—Nenhuma admite que a magestosa
Theodora escape. Veem de muito longe estas
figuras—veem das profundas... Nos olhos da D.
Penaricia há claridades do inferno. Ganharam todas
em fixidez e audacia. O sarcasmo não me
chega á bocca, passou-me a vontade de rir.
Desapareceram seculos de paciencia e astucia,
surgiram figuras novas. Para as comprehender
pergunto a mim mesmo o que é isto embrulhado
n'um chale, e não me atrevo a contemplal-o. Ridiculo
e ferocidade? Uma coisa sem nome, producto
do acaso, ou uma coisa abjecta? Uma alma
ou um resultado de formulas? Está aqui a D.
Penaricia e a D. Eulalia ou Deus e o Diabo?
Um mundo novo e um mundo atroz? Estão aqui
perguntas vivas e respostas vivas:—Abra lá essa
porta para traz!—Essa porta deita para a parte
prohibida da vida. O mal, suspeitam-no, talvez
seja a melhor parte da vida.—Abram lá essa
porta para traz!—Não lhes parece que esperam
há annos, parece-lhes que esperam há seculos,
e tem alli deante de si estateladas, as cortezias
[177]
que fizeram á velha,—o pois sim que disseram
á velha—os sorrisos com que sorriram á velha—as
vontades que fizeram á velha. São tragedias.
Veem de muito longe, d'uma vida sem limites.
Em cada uma se representa um drama atroz,
o drama do interesse e do calculo, o drama da
vida. Nuas, as velhas que estão na minha frente,
são infinitas de grotesco e dôr. Duram há seculos.
Há seculos que teem paciencia para viver e para
sofrer. A D. Penaricia mente desde os confins
do mundo: representa gritos, mais gritos represados.
É um poço donde só saem ais e mais ais. O
dificil é a gente habituar-se a viver esta vida e a
outra vida: carregar com este pezo desde o infinito
e lidar e falar e viver.—Oh morte que tão
bem cheiras!...—Bem sei, os seculos imprimiram-lhes
dedadas, os seculos deformaram-nas...
Mas agora estão aqui desesperos em frente de
desesperos, e desatam a berrar umas ás outras:
—Tem paciencia, tem sempre paciencia. Doe-te?
tem paciencia; amargas? tem paciencia...
—Todos os dias da vida, todos os dias da
minha vida á espera da morte. Estou farta! estou
farta de despejar bacios, de dizer que sim, de
dizer a tudo que sim, de ser a sombra de mim
mesma. Agora está aqui a vida. Esta vida e
todas as vidas. É preciso que ella morra, e se
não morre é preciso matal-a. Ouve senhor padre
Ananias, senhor padre unguento, senhor padre e
as suas
comidelas
, senhor padre e o seu inferno?...
Mentira! mentira! Eu propria era uma
mentira. E só me aterra a ideia de acordar tarde,
de acordar na morte, com a certeza de que era
tudo mentira e só mentira...
Abrem as boccas desmedidas, fecham logo as
boccas desmedidas.
[178]
—Bem vê que não posso mais. Eu que mentia
não posso mais mentir. Como hei-de viver?
—Tem paciencia, tem mais paciencia, tem paciencia
por todos os seculos a vir...
Estão alli dispostas a morrer e a matar. Está
alli um cordão de velhas como um cordão de
sentinelas á porta do quarto da magestosa Theodora.
Duas, ambas de quico, ambas de mitenes,
ambas impenetraveis, trazem na algibeira o lenço
com que hão-de amarrar-lhe os queixos. Todas
esperam que ella se decida a
expedir
. Nenhuma
abre o bico, mas apalpam os vestidos como se
trouxessem um punhal escondido. D'um lado as
gulas exasperadas, a hora extrema—chamem o
tabelião! chamem o tabelião!—o testamento, a
sorte grande—emfim! emfim!—os chapeus de
plumas, o oiro mexido e remexido, as gavetas
arrombadas, as salas do tapete, o vicio e o goso—do
outro a vida nova, o todas as abjecções inutilizadas.
Ó morte que tão bem cheiras, aqui me tens
para te servir. Como esta casa cheira bem! como
cheira bem aqui dentro!—Ó morte que tão bem
cheiras, tu dilues o travor de fél e acalmas a acidez
da inveja. Resolves tudo, realisas tudo, os
mais ignobeis pensamentos, as mais secretas aspirações,
que nem a Deus se confiam, ó morte
que tão bem cheiras!—E calcando a alma que
se atreve, dizem compungidas, por habito secular:—Coitadinha
já tem panella!...
Agora aguenta-te, magestosa Theodora! N'alguns
minutos esse craneo obtuso com uma cuia
em cima, tem de luctar com o crêr ou não crêr,
com a vida antiga e a vida que antevê; tem de
desfazer a unhadas um edificio mais vasto que o
Colyseu e de deitar abaixo pedra a pedra todas
[179]
as pedras que cimentou durante a existencia; tem
de se entregar ao sonho sem capacidade para o
sonho; e tem, ainda por cima, de esquecer as
inscripções e as decimas. Para escapar com vida,
arrosta com a vida passada e com a vida futura.
Tudo n'ella era imperativo. Decidia por uma
vez: um passo, e é o inferno pela eternidade, o
inferno com o sitio imovel, com o tormento da
vista, com o tormento dos ouvidos. Escapar á
morte é fugir á lei de Deus.—E d'um
dado puxa
por ella a vida, do outro puxa por ella o inferno—e
as velhas lá fóra esperam e desesperam. Sente
as labaredas do sitio imovel por a eternidade das
eternidades; envolve-a, toca-a, engrandece-a tambem
o sonho, e o inferno não cessa de reclamal-a,
o inferno que foi o unico deus que temeu n'este
valle de lagrimas. E esse debate esplendido n'uma
alma estupida, deixa vestigios profundos: aquellas
raizes não se arrancam sem produzirem buracos.
E as velhas lá fóra esperam, emquanto a magestosa
Theodora desata aos gritos, balouçada—e
com a cuia a desfazer-se-lhe—entre a realidade
e o sonho, entre o inferno e a vida nova que
começa. Mas como a estupida vida de caldo e
pão que levou antes de enriquecer, lhe deu fibra
e caracter e não sei que de solido e amargo, a velha
póde salvar-se, com um resto de chale e a
cuia amolgada. A velha resiste, e ao abrir a porta
exclama para o cordão das outras estupefactas:
—Atravessei viva o inferno. Agora nem do
diabo tenho medo!
25 de abril
E o doirado não cessa. Doira o luar e a inepcia,
doira a tragedia e o ridiculo... Teçamos,
[180]
teçamos todos a nossa teia... A minha prendo-a ás
arvores, ao céo e ás coisas eternas. Todos os
sonhos se põem a caminho. É uma coisa equivoca.
É uma coisa desgrenhada e fétida. É o
sonho lastimoso das velhas, o sonho que não chega
a ser sonho, onde boiam mortos informes, com
laivos verdes, com tentaculos esbranquiçados que
se prolongam no escuro. Toda a gente fala só.
E o luar intoleravel, o luar indiferente, derrete-se
sobre as ameias, sobre a cathedral, sobre
os santos imoveis nos seus nichos. Dão horas,
mas as horas acabaram. Coisa singular: esta gente
só fala comsigo mesma, em monologos roucos,
desesperados, infindaveis. Os olhos da D. Fufia
ganham em fixidez e concentração; a D. Herminia
começa uma tragedia, que dura uma noite
inteira com a mesma palavra obscena.
A alma sordida, o fluido que envolvia a villa,
a atmosphera parda, feita de pequenos odios,
de pequenos interesses e d'habitos concentrados,
encrespa-se e cresce em vagalhões magneticos. Modifica
todos os sêres e abala as paredes mestras.
Embebe-se no salitre e roe os santos nos seus nichos:
até na imobilidade entranha desespero. Quedam-se
estonteados e
transidos
, como se a vida fosse
uma mera creação do luar e da loucura... A alma
da villa é sacudida por uma
tempestade
de
espanto.
A botica está deserta, com o bocal, o passaro
empalhado, as moscas mortas.
Um momento angustioso não se ouve rumor,
depois um tumulto, um clamor, um ah! A villa
toda grita:—Eil-o! aqui está o meu sonho, aqui
está como o trouxe toda a vida, escondido, dorido,
fruste, immenso ou humilde; aqui está a
minha verdadeira figura—a figura do Melias e
a figura do Melambes; a velha n'um debate perpetuo,
[181]
a velha e as suas manias, o desespero
e a Ursula, o grotesco e o pó doirado que não
sei d'onde se me pegou; aquillo de que te rias
e eu me ria, e que todos nós escondiamos, cada
vez mais oculto, cada vez mais para dentro, como
somiticos... Lá vae a Adelia, com o chapeu ás
tres pancadas, lá vae um logista que parece Napoleão
Bonaparte, e as Souzas armadas de ponto
em branco—lá vae o inferno de luxuria e de
egoismo. O muro não existe—derrubaram o
muro.
Nesse momento pezado de angustia todas as
mãos se agitam no ar diante da outra coisa que
no silencio e na noite estende os farrapos das
azas cada vez mais disformes. Está sofrega. Cresce,
grita, avança direita para nós. O que se pôz
em marcha não vem de fóra, mas de dentro de
ti mesmo, da mais cerrada das noites. Há muitas
camadas de mortos. Há-as a legoas de profundidade
e até de lá sobem os gritos. O homem é o
mais profundo, o mais vasto de todos os sepulchros.
Põe este homem vestido em frente d'este homem
nu, a fama o credito, a praça, ao pé desta
coisa desordenada que se encarniça e não nos
larga, ó Elias, ó Melias, ó Melambes! A consideração
não existe! a praça não existe! aqui
estamos todos bichos em frente de bichos, os que
pagam as lettras e os que teem as lettras protestadas,
nós e nós, nós e os ladrões das estradas,
nós vestidos e grotescos, nós nus e tragicos—nós
e o universo monstruoso! Nós correctos
e nós disformes, nós e o céo profundo na sua temerosa
realidade. Salta laré, perirone, perirote!
[182]
Mas salta com desespero, salta com as tuas eternas
explicações, o subterfugio e o grotesco. Agora
não nos servem de nada os relatorios, nem
as razões dispostas como formulas algebricas—agora
estamos aqui nós e o problema desalinhado
e feroz, que nos impõe uma solução imediata.
Salta laré, perirone, perirote! Se ella vive mais
quinhentos annos lá se vae o dinheiro por agua
abaixo. Peor: se ella remoça lá se vae o nosso
credito na praça. Mas—pergunto—posso porventura
deixal-a morrer quando está nas minhas
mãos salval-a? Não sou eu por acaso um homem
de bem? Tu és um homem de bem, eu sou um homem
de bem,
nós somos
todos homens de bem—depende
das circunstancias. Os paes são paes,
mas deixam de ser paes se nos dão cabo de
tudo—e da firma. Por outro lado há a contar com
o credito. Pensem n'isto, no credito. O credito
pode perder-se de um dia para o outro, e sem
credito um homem não vale nada na praça. Meditem
e atendam. Acima de tudo está o credito.
Está talvez acima de Deus, ainda que a minha
consciencia seja religiosa. Sem Deus ainda posso
viver, sem credito não dou um passo na vida.
—Além da firma que nos resta na vida? Fóra
da praça não existimos. Pense que logo, amanhã,
hoje mesmo, a nossa mãe remoçada deixa de sêr
a nossa mãe. Que quer o mano fazer? que pode
o mano fazer? Destruir por suas proprias mãos
o nosso credito na praça?
Um defronte do outro abanam as respeitaveis
cabeças, com calva e risca, com risca e calva,
aquella distinção de porte e de vinco, aquella
ponderação de estilo, aquella correcção de maneiras,
aquella seriedade das seriedades, que a
praça honra, que as firmas honram, que a Egreja
[183]
honra, e de que até o proprio Deus do céo já
está á espera com o palio meio aberto. A firma
Elias & Melias tão correcta, com livros, ripolin
nos caixilhos e nas almas, vê-se descascada até á
medula e treme nos seus fundamentos. Está encalacrada.
E o peor é que não são só elles que
estão encalacrados, estamos todos encalacrados. Na
verdade o que importa não é o que tu me dizes:
é o que eu digo a mim mesmo... Ó Rinhe
como tu rinhes com dôr, com desespero, n'uma
forma pastosa, a que se misturam já palavras
vivas, em logar das phrases dos relatorios e dos
bancos! Decerto te sentes bem no pegajoso, mas
por traz não te dá tregoas o impulso. Neste
conflicto delicado só tu vinhas a tempo, ó morte
que tão bem cheiras, e, cumpridas as formalidades
do estilo, entregavas-me, com o testamento,
a chave do cofre. Agora esta coisa encarniçada e
feroz, sofrega e imunda, leva-nos a mim e a
ti, com desespero e gritos, com as formulas e o
vinco, com a praça e o credito!...
Agora não, D. Bibliotheca das Bibliothecas,
já preparada com todos os requesitos e unguentos
para o horror do nada! Agora não! Já tentaram
desligar-te da vida com as palavras unctuosas
do ritho e promessas de outra vida melhor.
Que te resta? A vida eterna. Pôço p'ra a vida
eterna! O que tu queres é esta vida, esta insignificancia
e estes restos—e está aqui a morte inexhoravel.
Tanta saudade! tanto apêgo! Tudo te doe
e do fundo d'essa miseria e d'essa pelle engelhada
vem um gemido baixinho diante da figura
tremenda que não sae de ao pé de ti... Ó carne
putrefacta, como tu te apegas a um resquicio
d'esperança, a um só que seja! O que te custa
a largar o brazão na fralda da camisa, o postiço de
[184]
toda a tua existencia inutil, o alto da lista de
subscriptores—tres tostões, seis tostões, um quartinho!
ó carne fedorenta, ó carne já preparada
para o mausoléo, com a gaveta aberta, latim e
agua benta, dois involucros, um de mogno, outro
de chumbo, e o picheleiro á espera!
E ahi os tens sem piedade, inexhoraveis como
o destino. Agora não Elias & Melias, agora não
D. Bibliotheca das Bibliothecas, estaes frente a
frente com a realidade e a morte. Salta laré,
perirone, perirote!
—Não quero morrer! não me deixem morrer!
Chamem os meus filhos, chamem toda a
gente. Não me deixem morrer!
Todos os apetites, todas as sensações que pareciam
extinctas, assobiam como viboras. Horas
antes de morrer ainda essa mulher está tão intacta
por dentro como aos vinte annos. Ninguem a
pode conter. Quer saltar pela cama fóra.
—Chamem os meus filhos! chamem os meus
filhos!
—Chamem o procurador!
Mas o que ella exprime por palavras, pelo
olhar, pelos gestos, é a ancia de viver.
— Não, não. Tirem-me para lá esse homem.
O que eu quero é viver.
Vê no ultimo desespero a face estupida do procurador
dizer-lhe coisas grotescas:
—Ó minha senhora cheguemo-nos á razão.
Seja razoavel.
—Quero viver.
—Temos em primeiro logar a Egreja. Apelo
para os seus sentimentos religiosos, que os teve
sempre, e deante dos quaes me curvo respeitosamente.
Apelo...
—Dêm-me o remedio! Quero viver!
[185]
—Segundo lembro a V. Ex. que tem sido
até agora mãe extremosa dos seus filhos. Se
volta aos vinte annos, pergunto respeitosamente
a V. Ex.
a
, Ex.
ma
senhora, que é que V. Ex.
a
é
aos seus filhos?
—Quero viver!
—Perdão minha senhora! Esta fortuna tão bem
administrada pelo casal de que tenho sido bastante
procurador a que mãos irá emfim parar?
Peço-lhe que reflicta. Peço-lhe que se submeta.
Lembro-lhe que estão alli fóra seus respeitaveis
filhos subjugados pela dôr, lembro-lhe a sociedade,
e atrevo-me a lembrar-lhe que não tarda
ahi o D. Prior.
Um fio, falta só um fio, e ainda aquella figura
grotesca se debruça para lhe dezer:—V. Ex.
a
...
—Fechem as portas! fechem as janelas! fechem
tudo!—exclama o honrado Elias de Mello,
com a calva arripiada.
—Não quero morrer!
Tem forças para saltar da cama, para se arrastar
até á porta, e toda a noite no casarão echoam
gritos.
Não quero morrer! Um minuto e mais nada.
Um minuto e, contido n'esse minuto, o universo
desabalado, a morte, o desespero e o procurador
com o sêlo da lei e a saliva da lei. Tu d'um
lado decrepita—e do outro a sofreguidão cahotica
para mastigares com o unico dente que te
resta na bocca. Um minuto e contido n'esse minuto
os vivos e os mortos, o teu phantasma e
todos os phantasmas, a realidade e o sonho,—tu
ungida e tingida, nós e nós—nós correctos
e grotescos—nós Melias e doirado, nós Melambes
e phrenetico!
[186]
30 de abril
Donde emerge esta figura encharcada de lama,
menos a sombrinha, que, apezar da dôr, conseguiu
atravessar incolume todos os solavancos?
A que se atreve depois de ver o filho? Cheguei
a ter a visão nitida da montanha de pó acumulada
sobre ella, e do desespero immenso para a
romper.
Sabe tudo, vae dizer tudo. Tem alli as cautellas
do prego e a malinha de mão onde levava
escondidos, a enterrar, os fetos da D. Engracia;
só ella pode desvendar os vicios occultos e o
sitio onde a D. Bibliotheca tinha a sua fistula.
Conhece as miserias e os segredos das familias
correctas. Vae emfim dizer tudo, quando lhe surge
o filho que não via há annos. Eil-o creado de
orgulho e de codeas. Submete-se logo, mais coçada
e mais gasta, diante d'aquella obra prima real e
tangivel.—Pois sim, pois sim...—Ahi tens tu o
teu sonho alimentado de codeas e transformado
em realidade. Ahi está patente o sonho que sonhaste
com inveja, o sonho que sonhaste com fél,
aos ais, com a bocca tapada, o sonho feito de farrapos,
que ocultaste de toda a gente para poder
viver. Ahi está patente, á luz do sol, como os
sonhos dos outros, de ambição e de imperio, o
sonho que ninguem viu sonhar, e que sustentaste
á custa da tua propria alma—ó Restituta
da Piedade Sardinha!
...—Sejamos logicos mãe—diz elle—na vida
é preciso ser logico. A mãe creou-me escondido,
eu, por meu lado, disse sempre que não tinha
mãe. Não hei-de agora que vou casar apresental-a:—«Aqui
[187]
está a minha mãe que me creou de esmolas,
que me creou escondido».
—Tens razão, filho.
—O que é preciso é que a mãe desapareça.
O que é preciso é que a mãe, que tem sido logica
deixando-me fazer carreira, não estrague agora
tudo. Quem soube sacrificar-se para me engrandecer,
deve continuar a sacrificar-se. Não lhe
peço mais nada: desapareça.
—Desapareço.
Ella propria tem por aquella obra monumental
de egoismo, o respeito que teve sempre por
as pessoas consideraveis. Está alli na sua frente
de chapeu lustroso e luvas esticadas. Acrescentem
a isto amor. Levou annos a creal-o escondido, e
revê-se embevecida nos cartões em que elle assigna
Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). De
resto não lhe custa nada desaparecer. Não lhe
custa mesmo nada. É mais uma ordem a cumprir.
Obedece. Obedece, como obedeceu sempre a
D. Hermengarda, á D. Theodora, á D. Herminia,
como obedeceu a todas as pessoas ricas e de consideração,
como obedeceu á vida que fez d'ella
um trapo. Apenas um minuto e esse minuto
chega. Um minuto e mais nada. Nesse minuto a
figura contrahida reconhece a figura de trapos e
de restos. Nesse unico minuto de duvida a D.
Restituta vive mil annos e um dia e concentra-se
em horror e desespero. É o minuto supremo em
que a velha Pois Sim se sente arrastada ao céo
e ao inferno, ouve vozes que falam ao mesmo
tempo, e ella mesmo pronuncia palavras que
nunca ousou pronunciar, nem no recanto mais
obscuro da sua alma.—Vi-o! vi-o! vi-o! Que é
isto? que é isto que se me péga e se me entranhou
na obediencia e na mentira? O que é isto que
[188]
não comprehendo e que me doe? Desespero e
pois sim, sofreguidão e pois sim, doirado e pois
sim! Eu não posso com isto amargo e doirado!
Eu só posso mentir, só posso obedecer, só posso
com restos, com os restos dos restos. Tenho vivido
desde o principio do mundo a escorrer fél e pois
sim. Tenho sido sempre Pois Sim, só Pois Sim,
e agora sou Pois Sim e desespero!
Desespero, e n'este desespero uma primavéra
de restos, uma primavéra abortada, que só chega
a deitar uma flôr miudinha como a flôr do escalheiro.—Mente!
mente! mentir não custa nada!—Mas
a D. Restituta já não pode mentir ainda
que queira. Quer dizer que não, e com ella todos os
mortos, todos os mortos que não se atreveram
a sonhar, que não abranjeram o sonho, dizem á
uma que sim, dizem com desespero que sim. Sonho
e pois sim não cabem no mesmo sacco.
Não cabem no mesmo sacco primavéra e pois
sim. A sofreguidão atingiu o auge e tu viste-o!
viste-o!...
Salta laré, perirone perirote!... A sacudidela
de revolta extingue-se, sae da lucta exhausta,
com todo o pezo da montanha em cima, diminuida,
reduzida outra vez a pois sim... Esses
minutos que passou só e contemplando a ruina
de toda a sua vida foram amargos como fél.—Mete
o diabo no sacco!—Tão cansada e tão gasta
que nem as feições lhe reconheço; tão amarga
e tão ridicula, tão pois sim, que da D. Restituta
só resta uma expressão de dôr, de dôr mutilada
a dizer que sim, sempre que sim—a dizer
a tudo que sim.
—Mete tudo no sacco, mete-o com lagrimas
requentadas e o fél da submissão. Mete a tua
alma e a minha alma, gastas de
dizerem
a tudo
[189]
que sim. Mete o diabo no sacco! mete tudo p'ra
o sacco, desespero e doirado, sofreguidão e pois
sim!
Balouça ao vento, a uma restea de luar, pendurado
n'uma corda, o cadaver da D. Restituta,
que parece dizer pela ultima vez que sim—para
que o filho possa casar com a filha do conselheiro
Barata. Balouça ao vento n'um sexto andar—esquerdo.
Morre ignorada e desconhecida quem
toda a vida viveu de codeas, para lhe assegurar
o futuro e a assignatura com brazão e elmo,
Monfalcão dos Monfalcões (Sardinha). Da mão
crispada ninguem lhe arranca a photographia de
quando elle era pequeno, com o fardamento da
Escola Academica
, como um guarda-portão em
miniatura.
A sombrinha lá está aberta ao lado da
cama, por causa da humidade, e pela janela, aberta
sobre o luar, veem-se os montes onde o Santo
colerico não cessa de latir injurias sobre a villa
agachada de terror.
6 de maio
Chegou. Abriu a mais bella, a mais fecunda,
a mais doirada de todas as primavéras—a primavéra
eterna. Revolveu a terra e cobriu os sêres
e as coisas de flôres, por camadas ininterruptas
e successivas, com todas as côres e todos os entontecimentos,
todas as infamias e todas as tintas—com
todos os desesperos. Está aqui tambem
presente a floresta apodrecida... As arvores
não se veem, mas estão tambem aqui... Está
aqui a floresta apodrecida, e com ella as fórmas
de sonho e as fórmas de dôr mutilada que vagueiam
[190]
na profundidade das profundidades, os contactos
viscosos, as mãos geladas ainda em esboço,
os sêres cegos e com gritos, porque não sabem
ainda viver, as fórmas hesitantes do pezadelo...
É aqui que corre e escorre o verde, o roxo e
o lilaz—os tons violentos e os tons apagados.
Até as arvores são sonhos. Atravessaram o inverno
com sonho contido, com o sonho humilde
com que carregam há seculos. E até esses sonhos
se transformaram em realidade. Realisou-se emfim
o milagre: as arvores chegam ao céo.
10 de maio
O que eu sinto é o desespero de não haver
dôr eterna. A dôr pela eternidade das eternidades
era ainda viver. Sofrêr sempre, com a consciencia
do sofrimento, é viver sempre. Antes o
inferno! antes o inferno! o inferno em logar do
nada.
O inferno era ainda o céo.
Alguma coisa nos conduz e nos leva até á
morte. Rodeia-nos. Impele-nos. Não a vêmos e
está ao nosso lado. Só ella existe no mundo. Estou
nas suas mãos com desespero. Extasia-nos.
Aturde-nos. Escarnece-nos.
Tu não existes! tu não existes! E não há
mãos mais crueis que as tuas. És abjecta. És
cega e phrenetica. Levas-nos enrodilhados e envolvidos.
E queira ou não queira estou nas tuas
mãos. Só tu existes no mundo.
Nem a vida nem a morte, nem o tempo nem
Deus. A unica realidade és tu—fétida e immensa,
sofrega e horrivel. Gritas? hás-de gritar pela
eternidade das eternidades. Fazes parte para todo
[192]
o sempre d'esta força que vem do principio da
vida e se projecta nos confins da vida, com bocca
ou sem bocca, capaz de todo o sonho e de toda
a belleza—para nada! para nada!... Na minha
alma reflecte-se o dialogo do universo como a
claridade na agua para me entontecer.
Cheguei ao ponto em que tenho medo. Fecho
as janellas, fecho tudo. Outra vêz a primavéra!
outra vêz o escarneo! O que tu queres é iludir-me.
A um dia de nevoa sucede um dia doirado. E
extasias-me. Se abro a porta, a noite está cheia
de estrellas e de vozes. No fim da tarde, quando
a agua tem um som mais lindo, a neblina dá encanto
á minha vida e aos grandes montes compactos.
Alheias-me, fazes-me sonhar, levas-me escarnecido
até á morte. Atraz de ti só há dôr
e o desconhecido. Mascaras-te para me iludires.
Mais uma vez tentas inebriar-me com o teu arôma;
mais uma vez os pinheiros sacodem no ar o
seu polen sulfuroso... Não quero vêr! não posso
vêr! Não te posso vêr! A vida é amarga, a
primavéra é secca e inutil. Fecho tudo para não
te vêr. Fecho tudo para não vêr a primavéra e
sinto-a atravez dos muros.
Oh o grande oceano, a torrente impetuosa—sempre!
sempre—o mar de mãos fluidas que me
envolvem—o mar do silencio, o grande mar
inexgotavel que deslisa no silencio—como tudo
isto me mete medo!
Reconheço-te força, mas não me importas nada.
Este deus faz o que elle quer e não o que eu
quero. Este deus desordenado e imenso, não é
feito á minha imagem e semilhança. Não me
ouve nem me atende. Não o posso desviar da
[193]
sua marcha á custa de suplicas e de gritos. Não
se apieda. Não sei se tem o sentimento da justiça.
Talvez tenha outro sentimento de justiça—outro
maior—outro que não abranjo. Este deus não
me é nada. Para elle é vão tudo o que se grita
no mundo, tudo o que se sofre no mundo é vão.
Todos os santos são grotescos. Todos, os que te
chamaram e suplicaram, todos os que te ofereceram
a renuncia e a dôr, o fizeram no vacuo.
Pai, tu não existias! E não existindo impeles-me,
entonteces-me e esmagas-me. Estou nas tuas mãos
e não as vejo. Crias-me e não existes.
Eu sei, eu sinto que estás ahi desconforme,
vivo, e obstinado—mas não és o meu deus. Tanto
faz esfacelar-me contra este muro compacto, como
conservar-me quieto, indiferente e calado. Tu estás
ahi patente, vivo como a vida, mas não me
conheces nem eu te conheço a ti. Não nos chegamos
a entender. Não tens nome. E estou nas
tuas mãos.
Estou nas tuas mãos e não me interessas.
O que me interessava eras tu. Tu, que não existes,
entranhaste-te-me na carne e no osso, de
tal forma que não me livro de ti. Não existes e
dominas-me. Não existes e torturas-me. Não existes
e só tu és a razão da minha vida, dos meus
actos, e do meu sêr. Não existes e só tu existes.
Tenho mil annos e um dia para prégar deante
do vacuo que não existes. Para te chamar
sabendo que não ouves. Disponho de mil annos
e um dia de desespero, de mil annos e um dia deante
da mudez, a clamar, a prégar, a mentir.
O resto são phrases e mais nada. Só a vida
futura, só a vida presente sob o teu olhar tinha
[194]
finalidade e razão de sêr. O resto são phrases
com que me procuras iludir e com que te procuro
iludir. Porque se um dia, sós a sós
com a tua alma, te detiveste deante d'estas palavras—a
vida eterna e a morte eterna, não
como palavras mas como realidades, nunca mais
podeste desviar o olhar.
O que me interessava eras tu porque para,
que tu existas é preciso que eu exista tambem.
Eu não posso passar sem ti, mas tu não podes
passar sem mim.
Se tu não existes, estou nas mãos da força
obstinada e cega. O que me interessava era o espectaculo
da minha propria alma, o dialogo dos
dias e das noites entre mim e ti, a immensidade
temerosa mas viva, de que eu fazia parte.
E agora, reconheço-o, toda a dôr resulta de
eu criar um universo que não existe. De tu me
creares a mim e de eu te crear a ti. O resto do
universo ignora a vida e a morte. Toda a dôr
resulta d'este esforço para a mentira. De eu não
não me submeter á força desabalada e cega. De
eu têr inventado um Mundo maior que o teu e
diferente do teu, para o sobrepor ao mundo cahotico,
ao mundo atroz. De mentirmos com obstinação
até á cova, ao céo e ás estrellas. D'estas
duas creações antagonicas resulta a maior dôr
humana. Se eu não tivesse criado outra vida imaginaria,
tu passavas e calcavas-me, tu passavas e
esmagavas-me, mas não me cabia em lote a morte
e a consciencia da morte, a vida e a consciencia
da vida. Mas creando a mentira tragica sou maior
do que tu.
[195]
Resta-me o bem. Mas fazer o bem para quê
se tudo acaba alli, se não ha outra vida consciente,
se não tenho de responder perante ti pelos
meus actos? E mesmo diante do escantilhão
sofrego, o que é o bem e o mal? A que eu tenho
de obedecer é ao instincto e mais nada. Se não
estás ahi para me julgar e para me ouvir, que
importa fazer isto ou fazer exactamente o contrario?
Só uma coisa resta: iludir os desgraçados,
leval-os para uma mentira cada vez maior, para
que possam suportar a vida. Não se trata do bem
ou do mal, do justo ou do injusto—trata-se de
mentir, de mentir sempre—de mentir cada vez
mais.
Estou nas tuas mãos... Esta noite limpida
como um diamante polido não existe. O que existe
é atroz... Nem a primavéra existe, e tudo se
entreabre em entontecimento azul. Nem esta harmonia
dos mundos, que eu criei, existe. O que
existe é atroz. Nem este sonho em que ando envolvido
e iludido. Só tu existes no mundo e me
trazes estonteado no mundo. Fecho-me para te
não vêr e estou nas tuas mãos. Se eu pudesse
ouvir-te, ouvia todos os gritos que se soltaram
no mundo, se eu pudesse encarar-te em toda a
tua plenitude—via o negrume monstruoso e cahotico
avançando para mim, o repelão doirado
levando tudo diante de si, no desespero, na vida
e na morte, esmagando sempre e renovando sempre,
para crear mais dôr. Não te fartas. Isto é
desconhecido, é absurdo, é eterno—mas a belleza
tragica da vida ephemera consiste em te resistir,
todo o nosso afan em crear uma mentira para
opor a tua verdade—de que resulte dôr. Tu podes
tudo como verdade. Estou nas tuas mãos. Eu
[196]
posso tudo como mentira, e só assim saio das
tuas mãos. A verdade é a dissolução e a morte,
és tu; a mentira é a vida. Resisto-te para poder
viver; para poder viver crio a mentira tragica.
Se cedo ao teu impulso, se escuto as tuas vozes,
levas-me para uma vida inferior; se te oponho a
mentira, caminho por uma via dolorosa: engrandeço-me.
Estou nas tuas mãos—e nego-te. E o
homem é tanto maior quanto mais alto afirma
que existes. Crispa-se-lhe a bocca, dilacera-se até
ás ultimas fibras, lucta, grita e sae em farrapos
das tuas mãos.
Todos os heróes são martyres, todos os santos
foram iludidos até á morte.
20 de maio
Toda a villa, a villa toda, a que a luz artificial
dava relevo, desata a gritar como se lhe arrancassem
a pelle. Gritam as velhas, grita o Santo
em frente da sombra que se lhe introduziu na vida.
Grita a paciencia e a mentira, grita a hipocrisia.
Desapareceram as figuras e só ficam gritos na
noite. Outro passo—outro grito. É a custo que me
separo d'este sêr com quem cohabitei sempre. O
escarneo está aqui; está aqui o escarneo e o rancor.
Gritam no mundo subvertido. Mais gritos.
Que dever? O dever de te matar? O dever de te
cuspir? Matal-a, mas matal-a é até um caso de
consciencia, para que a minha vida seja a minha
vida.—E os gritos augmentam—gritos de dôr,
gritos d'espanto, gritos sufocados de colera, mais
gritos de sêres que se não querem separar da
antiga carcassa.
Tudo isto caminhava para um fim, tudo foi
desviado ao mesmo tempo d'esse fim; tudo isto
se alimentava de certas regras, tudo avança desesperado,
aos gritos, ancioso e doloroso:—Pois
és tu! és tu! E o interesse és tu! e o amor
és tu!—O desespero augmenta, os gritos redobram.
As creaturas com que deparo são temerosas.
[198]
Uns desatam a rir com rancor e sarcasmos
sobre sarcasmos. Há-os que se reduzem a baba e
a pó.—O quê, tudo isto era tão pequeno! Pois
passei metade da existencia, annos atraz do annos,
ao lado d'esta coisa feroz e esplendida, absorto
em ninharia! E nunca dei pelo assombro, pela
vertigem! Atrevo-me a matar, atrevo-me a odiar,
atrevo-me a escarnecer-te...—Mas então—pergunto—eu
fui o homem escrupuloso, eu fui o homem
honesto que luctei toda a vida com os maus
instinctos, n'um combate perpetuo—para isto?
Pergunto—para isto? Alli aquella desata aos berros
e sêres caminham transfigurados; sêres que
nunca sonharam, materia impenetravel, deparam
pela primeira vez com o sonho, o que os deixa
atonitos. Ninguem pode encarar-se até ao fundo.
A tua meticulosidade é de ferro, está de tal maneira
entranhada no teu sêr que sem ella não existes.
Pois até a tua meticulosidade se há-de dissolver.
E tu sem o habito não existes, nem tu sem o dever,
nem tu sem a consciencia. A D. Ursula que passou
a vida a esfregar, a polir, a limpar os moveis
reluzentes, deita-os todos a esmo do terceiro andar
á rua.—Adoro-a mas não posso separar o
interesse do amôr—não posso separal-os. Está
dito e redito. No fundo do meu pensamento, bem
no fundo de meu horrivel pensamento, uma outra
ideia lucta, avança e não a posso arredar. Estraga-me
a vida toda.—O mundo moral está com escriptos
e reduz-se a uma loja escura, com teias
de aranha no tecto.
Vemo-nos! vemo-nos que é o peor! Porque
na verdade eu nunca me tinha visto n'esta horrivel
nudez sem arrepanhar á pressa os vestidos.
Eu metia-me medo. E agora vemo-nos! vemo-nos!
[199]
Todos os sêres são temerosos. Mesmo grotescos
são tragicos. Há n'este trapo que creaste, n'esta
corôa de lata que foi a tua vida, não sei o quê
que sua espanto. E dôr! e dôr na tua duvida ridicula,
no vislumbre, no minuto de sonho que entrevi
nos teus olhos. Este momento tragico, esta
pausa, este horror em que cada um se vê na sua
essencia, em que cada sêr se encontra sós a sós
com a sua propria alma, reduzido sem artificios
á sua propria alma, só tem outro a que se compare,
aquelle em que cada um vê a alma dos outros.
Porque, por melhor ou peor que tenhamos
julgado os outros, vimol-os sempre atravez de nós
mesmos.
O que ahi está é temeroso, sêres estranhos;
sêres que, se dão mais um passo, nem eu nem
tu podemos encarar com elles. Andam aqui interesses—e
outra coisa. Com mil palavras diversas
e ignobeis, mil boccas que te empurram para
a infamia—outra coisa. Tens de confessal-o. Não
é a consciencia—não é o remorso—não é o medo.
É uma coisa inexplicavel e immensa, profunda e
immensa, que assiste a este espectaculo sem dizer
palavra—e espera... És immundo, és a vida.
Não te sei definir, não te comprehendo. Se te levo
até ao ultimo extremo perco o pé... Não sei
até onde vae o meu horrivel pensamento. Até
aqui tinha limites, agora nem o meu pensamento
nem o teu encontram limites. Matar ou deixar
de matar é tudo a mesma coisa. É tudo inutil.
Agora não! agora não me quero ver nem te quero
ver! Estamos no céo; e no inferno, D. Idalina e a
langonha. Estamos no céo e no inferno, Anacleto,
e tu ainda te enroscas na tua inalteravel correcção.
Não te desmanches! Estamos emfim todos no céo
[200]
e no inferno, e todos á uma percebemos que a
vida foi inutil. É com gritos que a D. Leocadia
reconhece que o escrupulo não existe; é com espanto
que ella percebe que o bem que fez foi inutil;
é com horror que a D. Leocadia comprehende
que só lhe resta o vacuo. A inteiriça D. Leocadia
berra no infinito, depois de se desfazer de todos
os sentimentos falsos:—Mas eu cumpri sempre
o meu dever!—Há-de-te servir de muito!—E
aqui te encontras diante desta coisa que não foi
feita para ti, aqui estás tu atirada de repente para
uma acção sem limites, com os cabelos em pé,—tu
D. Leocadia e o infinito; tu D. Leocadia que
moravas entre quatro paredes a rever salitre, e
agora tens de morar no céo e no inferno. O drama
é tu, D. Leocadia, não te poderes desfazer da
outra D. Leocadia; o drama supremo é tu seres ao
mesmo tempo, D. Leocadia 29-3.º-D e D. Leocadia
Infinito.—Reduzi-me a isto e reduzi-a a isto!
Cheguei ao ponto! cheguei ao ponto! Cheguei ao
ponto em que te vejo cara a cara e percebo que
tudo é absurdo e inutil! Talvez o meu dever fosse
fazer o mal. Atraz de mim, atraz de ti, andavam
duas figuras, que, por mais esforços que fizessem,
nunca se chegaram a entender!—A tua vida,
a minha vida, foi um perpetuo inferno. Tiveste
um filho e apegaste-te mais ao teu dever que ao
teu filho. Dedicaste-lhe as tuas economias. Por o
dever esqueceste interesses e paixões, e na tua
alma solitaria só coube o exaspero e o dever.
Mais nada. E á medida que a vida te inutilisou
as ambições e te gastou os sonhos, mais te apegaste
a essa palavra, que foi a unica razão da
tua existencia. Tambem eu! tambem eu! Fechaste-te
com ella no silencio gelido da villa, onde,
nas noites sem fim, se chegava a ouvir o contacto
[201]
das aranhas devorando-se com volupia no
fundo dos saguões. Todos os dias pezaste o pão
que lhe déste, mas déste-lho. E, tendo perdido
tudo, só o dever te restou no mundo—e a orfã,
a quem já não consegues reconhecer as feições.
A mesma coisa nos dilacerou a ambos, a mesma
coisa dolorosa nos encheu de colera, á medida que
caminhavamos para a velhice e para a morte.
E aqui chegaste, aqui cheguei, ambos ridiculos
e amargos, sahindo d'uma lucta desesperada com
outra coisa que nunca quizemos vêr. Ambos grotescos
e de pé, tu e eu, eu e tu, com o teu
broche, onde o mesmo sujeito de suissas—lembrança
do primeiro matrimonio!—não tira de
mim os olhos aguados de peixe. Ambos tendo
atravessado n'uma taboa o mais tragico de todos
os mares, e no fundo a mesma dôr, no fundo o
mesmo fél, no fundo o mesmo esforço para sustentarmos
sobre a cabeça esta abobada que não
existe. O que não queriamos vêr era a noite...—Vontade
tinha eu de fazer o mal, o que me
não atrevia era a fazel-o.—Oh D. Leocadia dá
um passo, outro passo ainda e mergulhas na beatitude
como quem cumpre um destino.—Cessou
o debate.—Não fales mais, D. Leocadia. Está
tudo dito...
A figura que ahi vem mastiga em secco,
com uma camada de verde e outra camada de
sonho. A figura que ahi vem, d'um egoismo concentrado,
e a que adherem ainda os mil e um nadas
da sua existencia
anterior
de molusco, avança
hirta para mim, inteiriça como uma barra de
ferro. Ainda cheira a môfo, mas os olhos entranham-se-lhe
n'um vasto panorama inexplorado.
Vê para dentro, cada vez mais sofrega e o seu
sonho não tem limites. O mal não tem limites.
[202]
Tem diante de si mil annos e um dia para essa
absorpção dolorosa e tragica. Abarca o mundo.
Ó D. Leocadia agora é que tu chegaste ao amago!
É um conflicto entre ti e os outros mortos,
uma lucta num tablado que abrange o universo.
D'ahi o seu prestigio—d'ahi o immenso scenario
que se desdobra deante da D. Leocadia absorta
n'esse panorama sem limites...
Só há no céo e no inferno outro espectro peor.
É este sêr sem nome, pedra e desespero, noite e
desespero, que se imobilisa na inutilidade de todos
os esforços.
Todos gritam de desespero no céo e no inferno.
Confundem-se mil boccas, as coisas mais
altas e as coisas mais reles. Aqui está a villa
toda, virada do avesso, os ridiculos sem vergonha
do ridiculo e os infames lambendo a infamia.
Aqui está a ilusão—e aqui está em pello
a D. Possidonia, que ainda conserva na cabeça
o chapeu de plumas. Aqui está a ordem e aqui
está a desordem, as palavras inuteis e a inutil
burandanga, toda a formula, todo o calvario da
vida para subir até a morte—e aqui nos vemos
uns aos outros tal qual somos, admiraveis, obscenos,
reles, todos da mesma lama e com as mesmas
chagas.—Eras tu força estupida e cega que me
enchias de ilusão para poder suportar a vida?
Eras tu o interesse, eras tu o amôr?... Aqui estão
d'uma banda as formulas (e só agora comprehendo
a sua necessidade) aqui está do outro lado a vida;
aqui está o que se chamava a honra, e o que
se chamava o dever. Ó amigos eis aqui todo
o nosso grotesco, todas as nossas ambições, todas
as nossas vaidades—e com ellas o absurdo e a
[203]
logica. E eis aqui o meu drama e o teu drama.
Os grandes desmoronamentos, a colera duns e
o terror dos outros. Eis aqui o céo e o inferno,
o maximo de ilusões e a ausencia completa de ilusões.
Aqui as vaias, o sarcasmo, os apupos, os grandes
insultos e a suprema mixordia. Desmoronou-se
tudo, todas as fachadas e todos os artificios.
Gritos, mais gritos, mais sarcasmos e insultos.—Como
eu te reconheço! e a ti! e a ti!—E a
ti que és a figura silenciosa que há tanto tempo
me persegues, calada e triste, o que eras a peor.
Tu que curvas a cabeça, sem nunca te pronunciares,
tu que sofres quando eu sofro, que te envolves
em silencio quando persisto n'este caminho doloroso—como
te reconheço!—Dá gritos! podes gritar
á tua vontade!
Agora estou nu e toda a mentira me é impossivel;
agora estou nu e todas as palavras são inuteis;
agora estou nu deante da immensidade e não
posso ao mesmo tempo com o céo e o inferno.
Agora é peor, agora tanto faz resistir um dia
como um seculo. Agora é peor: não nos podemos
ver. Como dois amigos que se encontram passados
muitos annos, perdemos todos os pontos de
contacto. Estamos aqui a representar: a verdade
é que não nos podemos ver. Eis-nos bichos em
frente de bichos.
25 de maio
Eis emfim a villa sonho, a villa phantasma.
Reparem nas pedras e no que ellas exprimem,
na alvenaria e castanho assentes com outro destino...
Ruas lageadas, recantos onde nunca entrou
[204]
o sol. Paredes mestras. Silencio e humidade até
á medula, gestos lentos, habitos regrados. Uma
rua desce até á egreja de cantaria lavrada. Um
predio enorme avança sobre a ruella onde os passos
echoam. Cresce aqui uma vegetação especial de sepulchro,
e a sombra absorvida pelas muralhas da Sé
exhala-se em bafo passado um seculo. Os alicerces
são temerosos, as traves d'uma casa davam para
a construcção d'um bairro. E tudo isto se entranhou
de salitre, de interesse e de odio. Em tudo
isto há uma mescla de inutilidade, de fé e de sonho.
Tudo isto está cimentado para seculos. Cada
barrote foi pregado com um destino, cada bloco
metido na terra para se lhe erguer em cima não
uma parede, mas uma ideia, uma vida, uma alma—tudo
isto tem uma camada de bolor e se impregnou
de desespero. Até os sepulchros foram
construidos para a eternidade. A pedra depois de
talhada, é uma expressão. Entro na cathedral. Silencio
e um cheirinho a floresta apodrecida. As
lages estão gastas d'um lado pelos passos dos vivos,
do outro pelo contacto dos mortos. Tudo
aqui gira em torno da mesma ideia... A pedra
esboroa-se, mas eu contemplo-a viva, com um
povo de estatuas em cima, com um povo de mortos
em baixo. Nos alicerces uma geração, outra
geração, todos apodrecendo juntos na mesma terra
misturada e revolvida. A parte exterior é maravilhosa,
a parte subterranea é mais maravilhosa
ainda. É a unica raiz que se conserva intacta.
Aqui não andam só os vivos—andam tambem
os mortos. A villa é povoada pelos que se agitam
n'uma existencia transitoria e baça, e pelos
outros que se impõem como se estivessem vivos.
Tudo está ligado e confundido. Sobre as casas há
outra edificação, e uma trave ideal que o caruncho
[205]
roe une todas as construcções vulgares. Sob
um grito outro grito, sob uma pedra outra pedra.
Debalde todos os dias repelimos os mortos—todos
os dias os mortos se misturam á nossa vida.
E não nos largam.
Eis a villa abjecta, a villa banal onde se praticam
todos os dias as mesmas acções e se repetem
todos os dias os mesmos gestos... Aqui só
há um pensamento fundamental: fugir á morte,
protestar contra a morte, que é a mais viva de
de todas as realidades, que é talvez a unica realidade.
Protestar, contra as forças desabaladas,
pelo sonho, em espirito ou em pedra, que se erga
deante do Destino e desafie o Destino. Atravez da
paciencia e da mentira, todo o esforço do homem
tende para outro homem, para o homem ideal,
para a figura de sonho, que há-de sêr um dia a
creação dos vivos e dos mortos—o sonho realisado—o
universo realisado. A vida ideal, a vida artificial,
como a do granito, representa a mesma
tentativa da mentira contra a verdade e a obstinação
sobrehumana dos mortos para suprimirem a
morte.
A vida em si é o mais profundo de todos os
horrores, é o esforço inconsciente da larva repetindo
as mesmas acções instinctivas, que o destino
nos impõe. Tudo que nos rodeia é monstruoso;
o que nos rodeia de negrume vae desabar sobre
nós, reclamando dôr, reclamando gritos e sustentando-se
de gritos. Separa-nos um fio. Só com a
condição de não vermos a realidade é que podemos
viver. Para a esconder erguemos a cathedral immensa,
reconstruimos o universo todos os dias
pelo esforço dos vivos e das gerações passadas.
E toda esta mentira tragica a levantamos até ao
[206]
céo a poder de palavras e com a força magnetica
das palavras.
Não só os sentimentos criam palavras, tambem
as palavras criam sentimentos. As palavras formam
uma architectura de ferro. São a vida e quasi
toda a nossa vida—a razão e a essencia d'esta barafunda.
É com palavras que construimos o mundo.
É com palavras que os mortos se nos impõem.
É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos
na vida. Mas agora que os valores mudaram,
de que nos servem estas palavras? É preciso
crear outras, empregar outras, obscuras, terriveis,
em carne viva, que traduzam a colera, o instincto
e o espanto.
Mas se tudo são palavras e de palavras nos
sustentamos, o que nos resta afinal? Gritos em
frente de gritos, instinctos em frente de instinctos.
Fica a morte á solta e o instincto á solta.
Ficam os mortos de pé—a cohorte que não queriamos
vêr, erguida, como o vento ergue a poeira,
até aos confins da vida.
A D. Adelia não existe, o que aqui está vem de
muito longe. Está aqui a paciencia com um chale,
a mentira com uma cuia de retroz—estão
aqui espectros. O que aqui está, com o infinito
em cima e o
infinito
em baixo, são phantasmas.
Todos praticam as mesmas acções banaes entre a
vida e a morte, mas eu vejo o riso sem boca e
ouço o grito de dôr, emquanto as mascaras se
transformam e a materia se decompõe. Eu vejo
o que ha dentro deste sêr, que não tem limites, o
que ha dentro deste sêr de real e verdadeiro. Cada
um assume proporções temerosas. Cahem lá dentro
palavras, sentimentos, sonho—é um poço sem fundo,
[207]
que vae até á raiz da vida. Á superficie todos
nós nos conhecemos. Depois ha outra camada,
outra depois. Depois um bafo. Ninguem sabe do
que é capaz, ninguem se conhece a si proprio, quanto
mais aos outros, e só á superficie ou lá para
muito fundo, é que nos tocamos todos, como as arvores
duma floresta—no céo e no interior da
terra. Do mais baixo ainda veem terrores, ancias,
desespero...
Agora o homem existe em toda a sua plenitude.
Anda hoje no universo como andou sempre
no universo. Para elle não há passado nem futuro
porque elle é o passado e o futuro. A villa tomou
outras proporções e sente-se n'outras mãos.
Quem lhe dera ser insignificante e grotesca! quem
lhe dera não vêr! Para não te aturar vida sôfrega
e doirada, tive de me revestir de casca como as arvores,
porque no principio todos fomos phantasmas.
E agora não sou eu quem falo—são elles
que falam! O que as figuras representam vem do
fundo dos fundos—o que ellas teem de transitorio
e o que ellas teem de temeroso, desde o homem
que não bole junto das fazendas petrificadas, até á
impenetravel D. Ursula, que remoe entre dentes
o pavôr. O que me parecia gelatinoso é uma fôrça
immensa, este habito ridiculo um principio de sonho.
A paciencia e a mentira são aspectos da dôr,
e a bisca joga-se entre o pelago e o pelago. Os
penantes usados, as ceremonias grotescas, passam-se
entre phantasmas e phantasmas, n'um ciclone
de desespero e gritos. Cada boca fala por outras
bocas, e a D. Penaricia, columna de Israel do fel
e vinagre, é uma figura tremenda. Todos os dramas
teem a mesma assignatura—Shakespeare. As acções
veem dos confins dos seculos e o proprio mal
[208]
não é um acto individual. O crime é sempre a acção
impulsiva ou premeditada dos mortos. Para praticar
um crime é preciso revolver camadas de
phantasmas. Desperta echos adormecidos até não
sei que profundidades. Põe em debate este mundo
e o outro mundo, e d'ahi a fascinação que exerce
em todas as almas. A vasa não na jogam só figuras
somiticas: de cada sêr paciente e sordido arranca-se
outro sêr ilimitado. Vejo no escuro as outras
figuras atentas sobre o jogo... Estão aqui as velhas
amarradas por quinhentos annos á mesma
mesa da bisca. Está a inveja, e a inveja esverdeada
torce-se sob o olhar da magestosa Theodora.
Está a paciencia, e a paciencia sorri deante da
magestosa Theodora. Está aqui a mesa de jogo
projectada no infinito, com sêres que se não podem
vêr, e que hão-de cohabitar acorrentados por quinhentos
annos. Ha ocasiões em que vomitam as
peores injurias; ás vezes torcem-se e soltam ais
sobre ais represos.—Jogo!—E a bisca segue pela
eternidade fora.—Corto!—Tambem eu atravessei
o inferno e tenho saudades do inferno!—E a
magestosa Theodora parece calcinada pelo fogo do
inferno. É o momento decisivo, quando, de pé, em
roda da mesa, onde fôram insignificantes, se vêem
umas ás outras. Peor momento é quando a si proprias
se vêem, quando se chocam como ferros,
e seus olhos adquirem tal percepção que não são
só ellas que olham, quando ao espanto se junta espanto
e não são só ellas que falam, mas muitas
outras vozes, e não só as suas figuras gesticulam
mas muitas outras figuras. Um momento, um seculo,
e eil-as até aos confins. Todas as bôccas
prégam de cada vez mais fundo...
Cada bocca se abre no escuro como se fosse
o abismo; as boccas falam por muitas boccas que
[209]
não tem nada de humanas e que moem e remoem
com escarneo e baba; por boccas franzidas só
pelle e espuma; por boccas sem dentes; por boccas
ascorosas que tentam ser boccas e que escorrem
veneno; por boccas que se desesperam de
ser boccas, para se fazerem ouvir.
E o candieiro escorre o mesmo petroleo sobre
ellas e sobre as figuras invisiveis que arfam de
desespero
até á raiz da vida...
N'esse instante vêmos todos os sêres extraordinarios
que não tinham entrada no mundo;
n'esse instante toda a villa está de pé, a villa
tragica, com os vivos e os mortos e o drama
profundo das almas que toca no céo e no inferno.
Eis a villa como não torna a aparecer outra na terra,
e que dura um minuto e um seculo. Cada figura
escorre dôr, não só a dôr propria, mas a do
tumulo, cada figura é um sêr d'espanto. Até tu,
no relampago antes de te curvares sobre a meia
que já tem vinte metros de comprido, ó prima
Angelica, ó figura tremenda de inepcia, que
tambem achaste sabôr á vida e logo te fechaste
com elle na escuridão cerrada da idiotia—até
tu, pela maneira como apertaste a mandibula,
pelo olhar que se fitou no meu olhar e veio da
espessura dos seculos, descobriste não sei que mar
nunca d'antes navegado, não sei que dôr transida
e doirada, não sei que mysterio que não fala, que
não pode falar, mas que está, real e patente,
aqui ao lado e na nossa companhia...
Há—sentimol-o! vêmol-o!—forças que tacteiam
para lá e augmentam o nosso desespero.
É talvez Deus que nos quer falar e que não
pode, ou que fala e não o entendemos.
[210]
Não são só os grandes fluidos que se entrechocam
sobre a villa, há outra coisa que a todos
os momentos nos reclama... E é um milagre
que toda esta architectura—que não
existe! que não existe!—se sustente de pé e
no vacuo, baseada em palavras e sons, e que
joguemos a bisca de tres na encrusilhada da vida
e da morte. Mais: é um milagre muito maior ainda
que consigamos cerrar os ouvidos á força que
bate estonteada á nossa volta e que faz esforços
desesperados para communicar comnosco. Não tem
bocca para falar, mas tenta, n'uma dôr muda,
fazer-nos comprehender algumas noções que transformariam
o universo. Ás vezes estamos por um
fio...—perdemo-nos logo n'uma escuridão que
tem leguas de distancia. Bom é cerrarmos os
ouvidos. Se chegassemos a entendel-a tudo isto
desaparecia no ar...
Chegamos ao ponto! chegamos ao ponto em
que não nos distinguimos na floresta apodrecida!
A vila é immensa, as figuras são immensas, só
dôr e sonho—jacto que vae de polo a polo e
onde não existe nem vida nem morte. Na floresta
putrefacta o tempo e o espaço desapareceram:
só existem sêres estranhos e arvores estranhas.
O que nós viamos eram sombras projectadas
n'um muro. Mais um passo e todos sahimos
doirados d'este mergulho no sonho—outro
passo ainda e só existe uma fôrça frenetica e
immensa, desesperada e immensa...
Agora é que ella anda á solta! agora é que
ella anda á solta!
15 de setembro
Preciso aqui duma arvore... Uma arvore que
dê sombra e ternura—uma velha arvore carcomida.
Nunca pude passar sem essa sombra inocente.
Meio morto de cansaço e de mentira deito-me
ao pé d'ella e renasço. Todos a aproveitam—para
o lume—para traves—para o caixão.
É filha de cavadores e neta de pedreiros:
obstina-se e por fim afaz-se.
A dôr afeiçoa-a. Aceita tudo: a vida e a
morte com a mesma resignação. E depois desta
vida acceita ainda outra com o purgatorio e o
inferno.
Pouco e pouco a ternura torna á supuração.
A filha desapareceu. Sabe que a D. Hermengarda,
pobre e cachetica, pára n'um hospicio, e vae lá
buscal-a. Caso extraordinario: vê mais naturalmente
a desgraça da filha do que a pobreza da
D. Hermengarda. É a sua senhora. Limpa-lhe a
baba e cata-lhe o piolho; bezunta-a de pomada,
e nos seus olhos de cão há uma inexprimivel serenidade.
A D. Hermengarda ainda tem exigencias.
[212]
Manda e a Joanna obedece. Melhor: trabalha
para lhe dar de comer. Está afeita. Faz
mais: a Joanna agora rouba. Ella, que sacrificou a
filha, rouba seis vintens, doze vintens... De dia
carrega bahus, á noite o quadro é este: a veneravel
D. Hermengarda n'uma cadeira de rodas,
com um resto de quico na cabeça, e a Joanna
extactica a satisfazer-lhe as impertinencias.
Não ouve, creio mesmo que não pensa. Os
seus gestos são conduzidos por outras mãos, atraz
d'ella há outras figuras até á raiz da vida, que
embalaram berços, choraram sobre a desgraça e
tomaram para si o quinhão mais pesado. Até já
nem é Joanna que fala, mesmo para contar a
sua historia. Ou só, ou quando encontra alguem,
a Joanna divaga:
—E vae eu disse-lhe... Fui ter com a filha
e vae eu disse-lhe:—Deita-me ahi pão quente
n'uma malga com meio quartilho de vinho.—E
vae ella disse-me:—Tenho ahi pão velho, não
enxerto o outro.—E vae eu disse-lhe:—As bagadas
que tenho chorado caiam sobre ti.
Não sabe mais que dizer. Aquella fastidiosa
perlenga ouviu-a a outras velhas e vem do
principio do mundo: aplica-a para exprimir a
sua dôr. Se lhe falam dos ladrões finge que
não entende. Se insistem, a Joanna responde com
olhos de pasmo:
—Os ladrões davam-me uma tigela de caldo.
Não soube nada na vida, não foi nada na
vida, não percebeu nada da vida. Oh vida denegrida,
monotona e sem sabor, de louça para lavar,
de carretos para fazer, afundaste-a, esfarrapaste-a,
amarfanhaste-a, engrandeceste-a!...
Deante do universo é menos que um caco, é
[213]
um pobre coração usado pela dôr. O ultimo gesto
que a Joanna faz, é o seu primeiro gesto, mas
esboçado apenas, como quem segue um fio já
muito tenue de sonho que não tem força para
levar até ao fim, o de aconchegar uma creança ao
peito—gesto que vem de seculos em seculos, desde
o inicio do mundo, repetido pelas successivas
imagens de mulheres já desfeitas em pó, repetido
no futuro por milhares de sêres incriados.
O trabalho da vida é persistente e occulto.
Gasta, desgasta, como uma pedra sobre outra pedra
Não é só por fóra que creamos rugas: por
dentro a usura é immensa. Só a Joanna conserva
a ternura intacta. O que havia a dizer era como
se formou esta alma e eu não sei dizel-o. Por fóra
farrapos, por dentro vida. O tojo mais bravio
deita mais flôr. Um fio d'agua que reluz prende-me
horas e transforma as pedras. A ternura da
Joanna modifica-lhe a fealdade, pega-se-lhe ás
mãos e aos trapos que a vestem. O que eu não
dou é a expressão, o que eu não dou é a luz.
Afundo-a, amolgo-a. E no entanto a figura impõe-se-me
pela expressão maxima da dôr. A Joanna
debruça-se sobre uma grandeza com que não posso
arcar. Resiste, lucta e atreve-se. Augmenta. E
tambem só ella no mundo não se importa de
morrer.
Talvez a morte seja para ella a vida.
Esta luzinha viaja há muitos milhares d'annos.
É como a faúlha d'uma estrella, perdida na
immensidão, que lhe custa a chegar á terra. E
caminha sempre, humilde e obstinada, atravez do
infinito—sempre. Por isso ella teimava:—O menino
está vivo!...—Por vezes parece que se
[214]
apaga. Reaparece atravez da obscuridade espessa
acumulada há seculos. Talvez toda a grandeza
d'esta mulher esteja n'isto: é que ella é conduzida
por uma mão enorme. A sua ternura é instinctiva,
a sua humildade é instinctiva... Pare.
Pare a desgraça. Cria. É a velha que tira a
codea á bocca para a dar aos netos. É a velha
que encontraste há bocado no caminho, do olhos
aguados. Cada vez maior; traz este carreto á
cabeça desde o principio do mundo, e ainda o não
poude pousar. Embala os berços. Pega nas creanças
ao collo. Desde o principio do mundo que
estas mãos asperas amparam. Não é uma figura—é
uma serie de figuras...
16 de setembro
O desabar da chuva lá fóra dil-o-hieis não
exterior, mas ligado ao teu proprio sêr: são lagrimas
que tenho ainda para chorar. Da escuridão
opaca resurgem e rodeiam-me os mortos:
o montante que rachou a alvenaria, e os cavadores
que lavraram a mesma terra e curtiram a mesma
dôr. Este cheiro a pobre, estes traços corroídos
pelas lagrimas, estes typos amolgados pela desgraça,
povoam-me a noite toda e dizem bem com
o desabar ininterrupto de lagrimas lá fóra. Outra
coisa exprimem as figuras denegridas que vão
aparecendo por traz da figura da Joanna...
Some-se a mulher da esfrega, e primeiro vem
um velho que móe e remóe obstinado uma codea
de pão. O pae de Joanna tinha oitenta annos quando
morreu. Deram com elle cahido sobre o lar,
levaram-n'o em braços para a enxerga. Quatro paredes,
duas caixas de castanho, e junto ao catre,
[215]
junto ao peito, a pedra secca, o granito. Uma
mulher desata aos gritos debruçada sobre o catre:
—Vocemecê conhece-me? vocemecê conhece-me?
Os olhos não se lhe despegam da arca. Ao
fim da vida tem de seu o alvião, a enxada e a
manta no fio. A cabeça branca mirrou, a pelle é
como a crosta que calcamos. Tem não sei quê
de raiz, tem não sei quê de tronco, afóra os
cabellos brancos que o tornam humano. O tempo
revestiu-o da mesma côr dos montes. Deshabituou-se
de falar, e pela grandeza e pelo silencio
só o comparo á pedra. Tudo isto foi pedra. Elle
e os seus, a poder d'annos, moeram-n'a. Sua vida
está ligada á vida da terra. Creou-a. Á terra só
falta comel-o.
Terra, terra negra e ingrata, terra de detrictos
de rocha e mortos, poeira d'arvores, suor de pobres,
terra que tudo gastas e consomes, há muito
que o fizeste teu egual. Nem sei distinguir-vos,
mãos como pedras, pelle como a tua pelle.
A terra come e desgasta. A terra apega-se e
encarde. Deforma-o. De revolver a terra criou
cascão e um olhar profundo. Só o comparo a
Christo, a um Christo que tivesse vindo até á velhice,
de desilusão em desilusão e de desamparo
em desamparo.
Na noite negra desfilam outras figuras. Um
chega e diz:—O corpo pede-me terra:—A pobre,
com um sacco de estopa ás costas, espera a esmola
e reza. Agora este... Este resequiu como os
morros de pedra, como a lage compacta. A pedra
[216]
pega pedra. As mãos tem terra nas rugas
desde que lidaram com terra. Curtiu annos de
fome e de terra entranhada na pelle, entranhada
na alma.
O casebre é de pedra, é de pedra o lar, e arrima-se
d'um lado ao coração do monte. Por tecto
uma trave e colmo, por chão terra batida. A casa
tambem entra aqui. Pedras, ternura, aflição, tudo
no mundo deita as mesmas raizes. Uma casa não é
só alvenaria: é dôr e vida e morte. A arvore tambem
aqui entra: a arvore é uma construcção viva.
A mãe ficou prenhe. Eram tão pobres que,
para o que havia de nascer, só amanharam um
panninho, duas camisas e um lenço. Vieram as
dôres e nasceram dois gemeos. Repartiu as camisas,
rasgou o lenço e o panno ao meio, e, no
casebre perdido, entre a natureza bruta, a mulher
poz-se a chorar dando um seio a cada um.
Mais outras figuras se destacam ainda da
noite. São de terra e pedra, são figuras deshumanas.
Remóem o pão devagar, e o fumo sobe pela
parede e enegrece-a, camada atraz de camada.
Aquecem-se ao lar. A pedra é um calháo arrumado
á parede, uma lasca negra e resequida. E
agora, noite funda, todos os mortos estão alli presentes
e atendem... A pedra tosca do lar, a pedra
salitrosa á volta da qual se juntam, é muito mais
que um calháo. A pedra é sagrada.
Está alli o montante que acometeu a pedra do
monte dura como aço, e dias após dias curvou-se
sobre a fraga e meteu-lhe o ferro até á raiz.
Um delles cavou e escavou o sobrado e dorme
com a cabeça encostada ao granito. A terra desgasta-o,
a terra imprime-lhe relevo e caracter.
[217]
Cerra-se-lhe a bocca, greta-se-lhe a pelle. Elle e
o monte suportam a mesma dôr, que não sabem
exprimir.
A côr é a côr da fome, o frio o da pobreza.
Gasta-o e desgasta-o o uso da vida e a terra entranhada.
É o cavador... Tudo que era exterior puiu-o
no cavador a terra, na mulher as lagrimas.
Ficou só a expressão descarnada, como nos montes,
como na propria casa onde as coisas são
simples e eternas. Pariu-lhe alli a mulher, entrou-lhe
lá dentro a morte. E as palavras reduziram-se
tambem a esqueleto e teem o mesmo
emprego sobrio: nem o cavador nem a femea teem
que dizer um ao outro. Só o môrro consegue deitar
um fio d'agua, que lima alguns palmos d'herva.
Concentrou-se em muda aflição para produzir
essas gotas geladas e um lameiro verde.
O escuro gera uma serie infinita de mulheres...
Há em todas um momento de ternura
antes da terra se lhes entranhar. Aos trinta annos
a femea encardida está velha. Está velha
de fome. Está velha de trabalho. Ella carrega.
Ella levanta-se de noite para coser a fornada
ou para ir á villa. Ella quando tem um dia
de folga vae ganhar seis vintens de jornal. Ella
pesa o pão e reparte-o, ficando com o quinhão mais
pequeno. Com isto gasta-se. Nasceu com a pobreza,
dormiu com a desgraça, e com os annos
uma figura se foi sobrepondo a outra figura.
Apagam-se linhas, salientam-se traços, e a mesma
côr humilde reveste a mulher e a alvenaria. Ella
e a pobreza, ella e o dia d'hoje, o dia d'hontem
e o dia d'amanhã; ella e os filhos para crear,
[218]
os carretos para fazer; ella e a vida, todos os
dias se vão amalgamando, luctando, empurrando
com desespero, até se crear esta figura e se apagar
a outra, gasta pelo uso da dôr e pelo uso
das lagrimas.
Sósinhas luctam, sorriem, amparam. Velhas e
exhaustas espalham ainda ternura. Curvam-se
sobre os berços, vão pedir pelos homens. E sobre
isto ignoram-se.
—Mãe—pergunta a filha mais moça—mãe
que coisa é casar?
E ella responde como sua mãe lhe respondera:
—Filha, é fiar, parir e chorar.
A vida é uma coisa seria e por isso emudecem.
Guardam para si o bocado mais amargo, a tarefa
peor de fazer. Se choram, choram baixinho para
que as não ouçam chorar, alli nas quatro paredes
de alvenaria, alli onde as trouxeram pela mão,
entre as coisas familiares, o fôrno, o lar, os potes,
a enxerga... Na enxerga onde morreu a mãe,
nasceram tambem os filhos.
Há seculos que a mesma serie de figuras repete
os mesmos gestos. Há seculos que a mesma
mulher esfarrapada pare e o mesmo cavador revolve
a terra. Há seculos que comem o mesmo
pão e a mesma usura os leva até á cova. Há
seculos que choram as mesmas lagrimas e o
monte deita a mesma agua. As mulheres trazem
os pequenos ao collo e falam-lhes como lhes falaram
a ellas. O que se gasta, o que a dôr e a
vida consomem, é a parte externa: as lagrimas
renovam-se sempre. As leiras dão sempre o mesmo
pão escasso, no monte não se estanca o fio
d'agua, que, como o fio de ternura reproduz a
[219]
vida e remoça sempre quatro palmos d'herva. A
mulher, esta ou outra, chora, debruçada sobre a
maceira, pare com dôr no mesmo catre, morre
com dôr na mesma enxerga.
E no fim de todas, apagada e sumida, surge
outra, a serva. Do escuro saem gemidos. A casa
desapareceu: só correm lagrimas. Sinto uma mão
que procura a minha mão, e uma voz que me
diz ao ouvido:
—Escuita! escuita!
É a creada que serve o cavador desde pequena,
a pobre que só tem de seu a saia que traz
vestida, que mistura lagrimas ás minhas lagrimas.
—Escuita! escuita!
E aquece-me as mãos com bafo.
E se remexo o brazeiro—vejo outras figuras,
outras ainda, até ao inicio da vida. Estão alli
o avô, os avós, os jornaleiros. A um, tão entranhado
de terra, mal o descortino. E atraz
d'estes, ainda outros, mudos e disformes—outros
como terra—outros como arvores decepadas—outros
como fome e que mal sabem exprimir-se—outros
a quem só se vêem as mãos nodosas—e
a serie sumida de mulheres, bronco e dôr, que
a vida consumiu, e que procuram debruçar-se
para ouvir... Tão longe! tão longe!... Mal descortino
já a luz tão pequenina e humilde, mal
distingo a vida na treva condensada—uma luzinha
de candeia, que há seculos vem de mão de
mulher em mão de mulher... Tudo volta á cinza.
Diante de mim está sosinha a Joanna, que me
[220]
mostra as mãos roídas, as mãos enormes, as
mãos só dôr...
O mundo é feito de dôr—a vida é feita de
ternura.
20 de novembro
Chove um dia, outro dia, sempre... Amanhece
um dia nublado, outro dia alvoroce negro e aspero.
O vento abala a pedra sobre que é construido
o casebre. O inverno tem a sua voz propria,
a sua côr, o seu vestido em farrapos com
que agasalha os montes deixando-lhe os ossos de
fóra. Mas o inverno é sonho. Só agora o comprehendo.
É sonho concentrado: sob esta casca resequida
está uma primavéra intacta. Esta voz clamorosa
é a voz dos mortos. Uma pausa, a prostração
da tempestade, e depois redobra o clamor...
Andam aqui as suas lagrimas... Na sufocação
reconheço esta voz que me chama. E depois a
tempestade, novos gritos, a escuridão profunda...
Lá andaremos todos não tarda! lá andaremos
todos não tarda!
E ouço sempre a mesma voz:
«Que frio o outro mundo! Que impassibilidade
a do outro mundo!
Saudade, saudade de tudo, até do fél, saudade
de te não sentir ao pé de mim. Tenho saudade
[222]
da vida. Só poder aquecer-me ao lume, só sentir
o lume n'este inverno sem limites, n'este frio de
morte—sem outra primavéra! O que a vulgaridade
sabe bem! o que a materia sabe bem!
Não vejo. Ceguei.
Disperso-me, e por mais esforços que faça,
sinto-me desagregar: perco pouco e pouco a consciencia
de mim mesma. Sou ainda ternura e
pouco mais. Já não tenho lagrimas.
Quem me dera a desgraça!
E uma pena da vida! uma saudade da vida!
uma tristeza de não poder misturar-me á vida!
A vida—e um cantinho do lume, a vida banal,
a vida comesinha... Tenho saudades do muro a
que costumava queixar-me.
Vive devagarinho. Aquece-te á restea do sol
como quem nunca mais tornará a aquecer-se;
perde todas as horas a trespassar-te da vida.
Deixa que sobre ti caia o pó d'oiro. Vive-a.
Tu és a nuvem, tu és a arvore. Enche a
consciencia
de todas estas coisas, porque não tardarás
a perdel-a.
Vive—não tornas a viver. Põe d'acordo a tua
alma com a pedra, extrahe encanto do céo e
da miseria. Pudesse eu gritar! pudesse eu ter
fome!
Só agora dou pelo sabor das lagrimas.
Sorri, esquece, dorme, sonha...»
[223]
21 de novembro
Não me comprehendo nem comprehendo os
outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo
me parece inutil, e agarro-me com desespero a
um fio de vida, como um naufrago a um pedaço
de taboa.
Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao
espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dôr;
chamo vida e morte a este cataclismo. É a immensidade
e um nada que me absorve; é uma
queda immensa e infinita, onde disponho d'um
unico momento.
Talvez o mundo não exista, talvez tudo no
mundo sejam expressões da minha propria alma.
Faço parte duma coisa dolorosa, que totalmente
desconheço, e que tem nervos ligados aos meus
nervos, dôr ligada á minha dôr, consciencia ligada
a minha consciencia.
Estou até convencido que nenhum d'estes sêres
existe. Este fél é o meu fél, este sonho
grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo
isto são apenas expressões de dôr—e mais nada.
Nós não vemos a vida—vemos um instante
da vida. Atraz de nós a vida é infinita, adiante
de nós a vida é infinita. A primavéra está aqui,
mas atraz d'este ramo em flôr houve camadas
de primavéras d'oiro, immensas primavéras extasiadas,
e flôres desmedidas por traz d'esta flôr
minuscula. O tempo não existe. O que eu chamo
a vida é um elo, e o que ahi vem um tropel,
um sonho desmedido que ha-de realizar-se. E
[224]
nenhum grito é inutil, para que o sonho vivo
ande pelo seu pé. A alma que vae desesperada
á procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada
e dorida, a cada grito se aproxima de
Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os
mortos.
O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia
e a calma n'este turbilhão infinito e perpetuo,
n'este movimento atroz? O mundo é um
sonho sem um segundo de paz. A dôr gera dôr
n'um desespero sem limites.
Eu não sou nada. Sou um minuto e a eternidade.
Sou os mortos. Não me desligo disto—nem
do crime, nem da pedra, nem da voragem. Sou o
espanto aos gritos.
Cada vez fujo mais de olhar para dentro de
mim mesmo. Sinto-me nas mãos d'uma coisa desconforme.
Sinto-me nas mãos d'uma coisa embravecida
pela eternidade das eternidades. Sinto-me
nas mãos d'uma coisa immensa e cega—d'uma
tempestade viva.
Toda a vida está por esplorar: só conhecemos
da vida uma pequena parte—a mais insignificante.
E o erro provem de que reduzimos
a vida espiritual ao minimo, e a vida material
ao maximo. O homem é um S. F. ligado a todo
o universo.
Deus é eterno com a mascara sempre renovada.
A alma há-de acabar por se exprimir,
Deus, que olha pelos nossos olhos e fala pela
nossa bocca, há-de acabar por falar claro.
[225]
Está tudo errado. Só há um momento em
que o comprehendemos. Mas n'esse momento já
não podemos voltar para traz. É quando, fazendo
ainda parte dos vivos, fazemos já parte
dos mortos.
Não só a sensibilidade é universal—a inteligencia
é exterior e universal.
O universo é uma vibração. A vida é uma
vibração na vibração.
A materia tambem existe em estado de nublosa—isto
é um estado de dôr.
Toda a theoria mechanica do universo é
absurda. D'ahi a alguns annos todos os systemas
serão ridiculos—até o systema planetario.
O sonho completo é o universo realizado.
23 de novembro
Há dias em que me sinto envolvido pela
morte e nas mãos da morte. Há dias em que não
distingo a vida da morte, e agarro-me como um
naufrago a este sonho...
...Cheguei ao ponto, Morte. Cheguei onde
queria. Tu és o meu sonho phrenetico. Não há
outro maior. Cheguei ao ponto em que te não
distingo da vida. Tu és a vida maior. Por vezes
vejo o grande mar, onde a lua deixa o seu rasto,
caminhar direito a mim. Vagueia a floresta adormecida
e avança desenraizada para mim... Cheguei
ao ponto, Morte, em que não me metes
[226]
medo. Acceito-te. De ti me vem a vida. Absorve-me.
Só tu agora me prendes os olhos e de ti
não posso arrancal-os. És o unico misterio que
me interessa. Confio em ti. Cheguei ao ponto,
Morte, eu que só de ti espero. Só tu resolves e
explicas. Só tu acalmas. Acceito-te mas intimo-te.
Toma a forma que quizeres, mais negra,
mais tragica, mais torpe—bem funda é a noite e
está cheia de luzeiros:—recebo-te, mas como um
passo a mais para outra iniciação, para outro
assombro, e até para outra dôr se quizeres, porque
da dôr extraio mais belleza, mais vida e
mais sonho.
...E contudo esta resignação é ficticia... Não,
nunca acordei sem espanto nem me deitei sem
terror. Ainda bem que o digo!
Siga a vida seu curso esplendido. Sabe a sonho
e a ferro. É ternura, desgraça o desespero.
Leva-nos, arrasta-nos, impele-nos, enche-nos de
ilusão, dispersa-nos pelos quatro cantos do globo.
Amolga-nos. Levanta-nos. Aturde-nos. Ampara-nos.
Encharca-nos no mesmo turbilhão do lodo.
Mata-nos. Mas, um momento só que seja, obriga-nos
a olhar para o alto, e até ao fim ficamos
com os olhos estonteados. Eu creio em Deus.
25 de novembro
Ha no mundo uma falha. Os poentes são labaredas
rôxas com resquicios de escarlate e dois,
tres grandes jactos violetas que se estendem pelo
céo—uma maravilha chimerica. A outra primavéra
prolonga-se: superabundancia de flôres nas
arvores, espiritualidade na materia, como se as
arvores antes de morrer se exgotassem em sonho.
Mais flôres, mais poentes onde o oiro e o
rôxo predominam, mais gritos no mundo, mais
vulcões de côres, que presagiam catastrophes, e
um ruido apagado, esquisito, insuportavel dentro
de nós proprios, que comparo ao som d'uma borboleta
esvoaçando contra as paredes d'um vaso.
É a morte que faz falta á vida.
Paira sobre o mundo uma alma monstruosa,
um fluido magnetico, onde se misturam todas as
coleras, todos os interesses e todas as paixões, e
essa alma envolve, penetra e reclama dôr. Formam-se
tempestades e terrores electricos. Anda
ávida, desencadeia catastrophes, desaba desgrenhada,
com uivos nocturnos de desespero. Cala-se—é
peor: ninguem lhe suporta o peso. Produz
[228]
jactos d'oiro, auroras boreaes, grandes incendios
no céo, como se o globo ardesse. Despenha-se em
montanhas de côr, em abismos rôxos, paira em
campos ethereos de uma serenidade elysea. São
talvez os mortos que reclamam mortos. É talvez
a vida universal perturbada. São outras gerações
esquecidas, camadas informes de que ninguem
suspeita o nome, legiões sobro legiões incognitas—é
a vida embrionaria que reclama a sua entrada
na vida.
E, no fundo, sob este subterraneo, ha outro
subterraneo: ouço passos e vozes de mais outros
ainda que sobem para a superficie. Todos os
mortos se misturam aos vivos. Arrombaram de
vez os sepulchros. Tu que não viveste queres
agora por força viver; tu que não mataste queres
agora por força matar. Mais mortos desde o inicio—maior
mixordia. Todo o esforço era para
virem á supuração. Atraz d'uma camada havia
outra camada. Ha seculos que carregamos nas
tampas dos sepulchros para os não deixarmos sahir.
Na realidade nunca se jogou o gamão, nem se
disseram palavras vulgares. Atraz d'essa aparencia
estava intacta uma coisa desconforme, e ás
vezes por uma fresta irrompia a claridade do inferno...
Agora a terra desfaz-se em mortos,
como uma acha se desfaz em fumo.
O que era vida irreal, é agora realidade, o que
era vergonha, ninharia e ridiculo, com mancha
em cima] é a vida agora.
O que toma pé são os sonhos, o que se agita são
as paixões desregradas. Não ha limites nem peias.
Vêem-nos como eu te vejo a ti. Tenho deante de
mim este espectaculo, como se fosse possivel aos
homens desdobrarem-se, e tomarem corpo ideias
[229]
e paixões. Elles são aquillo que ocultamente desejavam
ser, são o que não se atreviam a ser.
Sob um mundo de verdade ha outro mundo de
verdade. É esse mundo invisivel e profundo que
passa a ser o mundo visivel. É esse. Todo o
homem é uma serie de phantasmas e passa a vida
a arredal-os. Chegou a vez dos phantasmas. As
nossas ideias e paixões é que formam as figuras
que actuam na vida.
Terceira noite de luar. O perfume estonteia.
Terceira noite de luar branco, indiferente, coalhado,
terceira noite de espanto. Redemoinhos
de figuras e d'acção até aos confins dos seculos.
Outr'ora, n'uma vida monotona e incerta, só se
realisavam duas ou tres horas de exaltação. A
vida agora é uma exaltação perpetua.
Tudo mudou: a arvore não existe como a pedra
não existe. O unico mundo real é o mundo
irreal. Todos nós andamos a crear um mundo
que é o unico verdadeiro—os vivos e os mortos.
Todos trabalhamos com o mesmo afan para o
mesmo fim. Já a materia se adelgaçava... O
mundo ideal é o mundo da dôr, do sonho, e o
universo reconstruido, é o maior dos dramas—com
a vida oculta ao lado—e cada dia tem o peso
d'um seculo.
As creanças e os passaros emudeceram, o que
produz na terra um silencio atroz. Os olhos encheram-se-lhes
d'uma tristeza irreflectida, inocencia
e extracto de vida, sentimentos que se não coadunam.
Tenho vontade de fugir para onde não ouça
o silencio... Avança direita a mim a floresta apodrecida.
Mais perto! mais perto!
Ri-te agora se podes da D. Leocadia, que rumina
[230]
como lady Machebeth as peores ruinas.
Esta vida é feita de todos os nossos esforços e
dos esforços do fundo. Somos apenas um reflexo
dos mortos, e agora que tu queres falar com
a tua voz, é que as ordens são mais cathegoricas
e o conflicto monstruoso. Terceira noite de luar,
branco, estranho, inefavel. Toda a noite o rouxinol
cantou. Duas, tres horas, e canta ainda apaixonado
e phrenetico... Debalde quero libertar-me
dos phantasmas, debalde quero viver da minha
propria vida!...
É que a vida não és tu nem eu, a vida é
uma massa confusa e heterogenea, um pesadelo,
uma nuvem negra ou uma nuvem d'oiro, uma
tempestade electrica, com boccas abertas para risos
e boccas abertas para gritos. Não é um detalhe—é
um panorama. É um immenso farrapo
dorido. Anda aqui a alma de Joanna e a seccura
das velhas mesquinhas. É tão necessaria a este
fluido a dôr muda do cavador como o sonho desconexo
do Gabiru. Anda aqui a primavéra, as
lagrimas que tenho chorado e as que tenho ainda
para chorar. Anda aqui a tragedia, a pedra, a
arvore, a tua inocencia e a minha desventura.
Tudo isto se congrega, e esta alma não vive
sem a tua alma, este grotesco sem o teu genio,
esta vida sem a tua morte. Andam aqui os mortos
e os vivos, a arvore que há-de ser arvore
e o tronco que se desfez em luz. É um sêr immenso
a que não vejo senão partes. Anda aqui
a luz e a sombra, e a luz não se distingue da
sombra nem a vida da morte. A vida está tão
feita adeante de nós como atraz de nós. Está
tão feita no passado como no futuro. Se o futuro
ainda não existe, o passado já não existe.
[231]
E tudo isto se congrega. A vida absorve-me e
ponho-a em acção. Impregna-me e faço-a caminhar.
Pertence-me e pertenço-lhe. É o passado
e o futuro—Jesus Christo vivo, Jesus Christo
morto, e Jesus Christo resuscitado.
26 de novembro
Estamos á superficie d'esse oceano embravecido,
e o impulso vem das camadas mais profundas,
das camadas informes. São todos. São
até os que nunca tiveram olhos para vêr, os
sêres esboçados, com mãos rudimentares, aparencias
d'arvores e de figuras mutiladas. É a terra
viva.
É só sonho, é sonho estreme e dôr estreme.
Cada um assiste á projecção da sua propria figura monstruosa
no passado e no futuro, cada
figura tem emfim as dimensões de dôr, que as
palavras, as regras e os habitos lhe não deixavam
ter. Cada alma é desmedida e tragica e vem
desde os confins da vida até ao infinito da vida.
Cada um na floresta entontecida representa o
maximo de sonho e o maximo de ternura. Cada
sêr é emfim um sêr completo e doirado, atinge
a belleza e Deus.
As florestas já mortas, a luz das estrellas
desaparecidas no cahos—tudo aqui está presente.
O esforço dos mortos, o sonho dos mortos, o desespero
dos mortos sobre mortos, o reflexo de
ternura, a mão que amparou, a bocca que sorriu,
levadas pelo vento que soprou há dez mil annos,
aqui estão vivos. Aqui está vivo o sonho que
sonhamos todos, o primitivo sonho humilde e o
sonho repercutido de seculo em seculo, assim
[232]
como a tua voz compadecida. O sonho sepultado
nas profundidades da terra, o primeiro resquicido,
o nada e o sonho phrenetico, tudo aqui está
na floresta embravecida. E, com ou sem bocca,
com ou sem consciencia, nunca mais deixarei de
andar n'isto, disperso, amalgamado, confundido,
de fazer parte d'este drama, queira ou não queira,
proteste ou não proteste. Tudo é inutil, todo
o esforço inutil, todas as palavras inuteis. Reconheço-o.
Mas não me canso de prégar, não posso
deixar de prégar, até cahir vencido e exhausto
dominado e deslumbrado. Na floresta embravecida,
em que todos participam do mesmo sêr,
até a mulher da esfrega encontra emfim Jesus:
—Será vocemecê o José do Telhado que o
tira aos pobres para o dar aos ricos?
—Sou um pobre de pedir.
—Será vocemecê Nosso Senhor Jesus Christo
que veio ao mundo para nos salvar?
30 de novembro
Chega o momento em que me perco, em que
tenho medo de mim mesmo, em que me atemorisa
o som da minha propria voz. Quem sou eu?
Os outros? Sou os outros? São elles que falam,
que ordenam, que me impelem? Eu sou os mortos!
eu sou os mortos! Eu sou uma serie de
phantasmas, que se açulam entre mim e mim.
Reconheço-os. O gesto esboçado há milhares d'annos,
e perdido, consumido, consegue hoje realisar-se,
o grito que a morte calou n'uma bocca
ignorada, faz écho no mundo. Todos os sonhos
são realidades, os mais altos, os mais humildes,
os mais bellos e os mais grotescos. Só os sonhos
[233]
são realidade n'esta noite quieta e caiada, com
uma mancha vermelha de polo a polo.
Aqui está agora isto a que se chama noite
de luar, branca, inerte, passiva, com a lua espargindo
luz sobre o doirado. Aqui está a arvore, e
era a isto que se chamava a arvore! Aqui está
a pedra e era a isto que se chamava a pedra!
Aqui está o céo e era a isto que se chamava
o céo! Reconheço-vos.
A morte encontra-se só—cortaram a arvore
pelo meio. Anda pelo céo como um cometa que
desatasse aos tombos e aos gritos—de desvario
em desvario. A cada grito empallidece, esbrazeia,
muda de côr, abre a cauda de oiro, de trambulhão
em trambulhão...
A morte faz estremecer o mundo até á raiz.
A morte já não tem a mesma significação. A
morte é agora inutil e anda á solta no infinito,
desgrenhada, dorida e doirada. Desespera-se. Tenho
medo de lhe tocar. O drama que se passa
em cima é maior que o que se passa em baixo.
É peor este tumulto de inferno, este clamor de
que me não chegam as vozes, esta força incoherente
de pé—todas as forças de pé—posta a
caminho para o desconhecido. É peor. E a cada
grito em baixo corresponde um grito em cima.
Reconheço o grito que sae da noite. São os
vivos e os mortos... Mas então que significação
tem isto no universo, a dizer palavras inuteis no
meio d'esta balburdia, d'esta escuridão cerrada,
d'este doirado feroz, d'este redemoinho sem nome?
Para que é que eu existo e tu existes? Para
[234]
que é que eu grito e tu gritas? Isto não és
tu! isto não sou eu! Isto é a vida temerosa, de
que não representas senão uma insignificante
particula. Tu não és nada, a vida é tudo. O combate
é incessante entre os vivos e os mortos,
entre os mortos e os vivos. Todos gritam ao
mesmo tempo, todos caminham ao mesmo tempo
para o mesmo fim esplendido.—Oh eu quero
crêr!—Porque é que gritas?—Fecha os olhos!
fecha os olhos!—Agora sou eu quem falo! Agora
são elles que falam!...
Oh minha alma pois eras tu! Agora te reconheço!
Capaz de tudo, capaz de baixezas e capaz
de sacrificios. Tão pequena! tão tranzida! Não
vales nada e pudeste tanto! Oh minha alma, pois
eras tu, eras tu! Pudeste arcar com o universo,
olhar Deus, construir Deus. Devo-te tudo: a ilusão,
a tinta do céo, o sonho erratico das vastas
florestas. Eras tu! eras tu!... Tem-me custado a
dar comtigo, tão mesquinha e capaz de
povoares
o céo
de estrellas e o mundo de sonho.
Atreveste-te
a tudo. Afirmaste. Negaste. Eras tu, sempre
dorida, sempre anciosa, nunca satisfeita, e
coubeste dentro de quatro paredes. Tornaste-me
a vida amarga. Encheste-me de ridiculo. Atiraste-me
aos encontrões contra a massa cega e compacta,
levaste-me como restos de folhas n'esta
procella de sonho. Fôste a melhor e a peor parte
do meu sêr.
Eras tu! E pude com esta enxurrada de côres,
de tintas, de impulsos, a instigar-me e a
deslumbrar-me! E pude ao mesmo tempo com a
dôr! Fiz parte da dôr. A desgraça viveu comigo
e o sonho viveu comigo. E pude com a vida!
Atravessei este mar monstruoso, servindo-me de
[235]
meia duzia de palavras. Que importa ser ridiculo?
Que importa ser a D. Idalina ou a D. Ingracia?
Suportei a vida—suportei tudo. Que importa
a tua mentira, se atravessaste a labareda
e ainda conservas o chale tisnado?
Para onde vamos aos gritos? para onde vamos
aos gritos?
E cada grito em baixo corresponde um grito
em cima, a cada grito um estremeção no mundo,
que se repercute de universo em universo. Um
grito que acorda mais sonho e gera novo desespero.
Outro grito, outro mundo doirado, outra forma
dorida que se deita a caminho.
O pezo da vida e o pezo dos mortos sente-se
cada vez mais. Todos clamam ao mesmo tempo
de pé para essa coisa immensa e doirada, n'um
deslumbramento. Os mortos que nos pareciam
mortos, camada sobre camada, estão aqui de pé
ao nosso lado.
E o pezo é cada vez maior. Até agora viviamos
com elles, respiravamos com elles, mas não
sentiamos o pezo d'essa poeira viva que é a sombra
e a luz. Agora não podemos com elles...
E o lamento, o uivo sobe cada vez mais alto.
Debalde tapamos os ouvidos: o uivo penetra nas
almas. E a um grito em baixo corresponde logo
um grito em cima.
E as mulheres das viellas põem-se a chorar,
os ladrões das estradas desatam a chorar...
[236]
O uivo não cessa. Irrita. Enche o mundo todo.
Quem grita? Nós proprios? O homem que range
por não poder suportar a vida? O grito domina
tudo, trespassa o globo e echôa no mundo.
E outra coisa monstruosa tomou o lugar da
morte, outra sombra se entranhou de salto na
vida, outro turbilhão arrasta os homens. Modificaram-se
as estrellas com os sentimentos. A outra
coisa no infinito reflecte-se na vida dos astros
que mudam de côr, na dôr que tomba desgrenhada
de quéda em quéda. Todo o mundo se
transforma a nossos olhos. Cada sêr augmenta
como se encerrasse em si a vida até aos confins
dos seculos. O passado não existe, o futuro redobra
de proporções. Perdeu-se a noção da desgraça
e a noção do tempo, e a nodoa de sangue
da Via-Lactea, onde se concentra toda a sensibilidade
do mundo, alastra entre os astros, de lez
a lez, na profundidade do céo.
Ouves o grito? ouvel-o mais alto, sempre
mais alto e cada vez mais fundo?...—É preciso
matar segunda vez os mortos.
INDICE
|
Pags.
|
|
|
|
|
A villa
|
9
|
|
O sonho
|
25
|
|
A villa e o sonho
|
43
|
|
Papeis do Gabiru
|
63
|
|
Atraz do muro
|
67
|
|
O sonho em marcha
|
77
|
|
Fevereiro
|
95
|
|
A mulher da esfrega
|
101
|
|
Papeis do Gabiru
|
117
|
|
Outra villa
|
123
|
|
Deus
|
133
|
|
O dever
|
141
|
|
A velha e os ladrões
|
149
|
|
Dialogo dos mortos
|
159
|
|
Primavera eterna
|
167
|
|
Deus
|
191
|
|
Céo e Inferno
|
197
|
|
A arvore
|
211
|
|
Papeis do Gabiru
|
221
|
|
Terceira noite de luar
|
227
|
|
ACABOU DE SE IMPRIMIR
ESTA 2.ª EDIÇÃO
NA TYPOGRAPHIA DO ANNUARIO DO BRASIL,
(ALMANAK LAEMMERT)
R. D. MANOEL, 62—RIO DE JANEIRO
AOS 5 DE JANEIRO DE 1921
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Nesta obra surgem variações de palavras, como por exemplo,
"sobterraneo" e "subterraneo".
Mantivemos as variações como as encontrámos no original.
Na
página 38
encontramos linhas repetidas.
No original lia-se "(...) a meu lado.
É a essa
ninharia que é a vida
que deito as mãos com sem a sombra da morte a meu lado.
É a essa(...)".
Após verificação de diversas versões, removemos a frase a negrito,
por considerarmos que se tratou de um erro na impressão.
Na
página 149
encontramos linhas repetidas.
No original lia-se "(...) enrodilhadas.
Duas, tres horas da madrugada talvez,
dilhadas.
Duas, tres horas da madrugada talvez... (...)".
Após verificação de diversas versões, removemos a frase a negrito,
por considerarmos que se tratou de um erro na impressão.
Em situações pontuais substituímos vírgulas por pontos
e vice-versa, para respeitar a capitalização presente no original.
Adicionámos o capítulo
«Atraz do muro»
uma vez que este não figurava no índice.