The Project Gutenberg eBook of A Reforma This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A Reforma Author: Thomas M. Lindsay Translator: J. S. Canuto Release date: June 23, 2020 [eBook #62461] Language: Portuguese Credits: Produced by Júlio Reis, Leonor Silva and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A REFORMA *** Produced by Júlio Reis, Leonor Silva and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net A REFORMA A REFORMA POR T. M. LINDSAY DOUTOR EM THEOLOGIA E PROFESSOR DE HISTORIA ECLESIASTICA TRADUCÇÃO DE J. S. CANUTO (AUCTORISADA) [Illustration] LIVRARIA EVANGELICA RUA DAS JANELLAS VERDES, 32 LISBOA LISBOA TYP. ROSA, LIMITADA 29, Rua da Magdalena, 31 PREFACIO As primeiras tres partes d’este livrinho são simplesmente uma compilação das melhores e mais accessiveis historias da Reforma, e de modo algum são apresentadas como uma dissertação original sobre o vasto e complicado movimento religioso que descrevem. Sou da opinião do dr. Merle d’Aubigné: a Reforma foi uma revivificação da religião, e não pode ser descripta com bom exito se não tivermos sempre deante de nós, e bem distinctamente, este seu caracter essencial. Os reformadores foram homens que, sob o impulso de um grande movimento religioso que se levantou n’uma occasião em que eram bem particulares as circumstancias intellectuaes, sociaes e politicas, se sentiram animados pelo desejo de que lhes fosse permittido dar culto a Deus segundo as direcções da Escriptura e os dictames da razão e da consciencia. Mas este desejo, apparentemente simples, envolvia uma tal mudança nas condições sociaes e politicas, não sómente em cada provincia e em cada nação, mas em toda a Europa, tomada no seu conjuncto, que não se pode escrever a historia da revivificação religiosa sem apresentar uma grande parte da historia politica e social de aquella epoca. O dr. Leopoldo von Ranke tratou com tanta proficiencia da historia politica do periodo em questão, que o auctor até do mais humilde dos manuaes deve collocar-se quasi exclusivamente debaixo da sua direcção. Foi o que eu fiz, e em quasi todas as paginas me aproveito, com reconhecimento, das suas magistraes descripções do movimento politico e social. Escusado seria mencionar toda a longa lista de auctores consultados na preparação d’este pequeno livrinho; como, porém, não se faz referencia alguma ás auctoridades citadas, cumpre-me dizer que, além de d’Aubigné e de Ranke, as pessoas que teem conhecimento do assumpto hão de notar um continuo uso das _Historias da Egreja_ de Hagenbach e Henke, do _Periodo da Reforma_ de Haüsser, dos _Huguenotes_ de Baird, de dois volumes das _Epocas da Historia Moderna_ de Longman, da _Era da Revolução Protestante_ de Seebohm, e do _Seculo de Isabel_ de Creighton. Refiro-me frequentemente á _Historia dos Credos do Christianismo_ ao tratar das Confissões, e á inapreciavel collecção de _Livros de Disciplina_, de Richter, ao tratar da organização ecclesiastica das varias egrejas reformadas. A quarta parte, que se occupa summariamente dos principios fundamentaes do movimento da Reforma, deveria talvez ter ido em primeiro logar, servindo de introducção, mas preferi collocal-a no fim; em parte, porque similhante introducção poderia assustar os leitores jovens, e em parte porque os principios do movimento podem ser mais bem apreciados depois do leitor ter algum conhecimento da sua historia. A quarta parte é a unica porção d’este pequeno manual que se pode dizer com verdade que pertence exclusivamente ao auctor, e que apresenta opiniões sobre o assumpto de que só elle é responsavel. O summario chronologico foi extraido quasi inteiramente das admiraveis tabellas de Weingarten. T. M. LINDSAY. INDICE PARTE I A REFORMA ALLEMÃ, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS LUTHERANAS PAG. 1-53 CAPITULO I A REFORMA NA ALLEMANHA PAG. 1-48 O principio da Reforma, pag. 3.—As indulgencias, e as theses que Luthero escreveu contra as mesmas, pag. 5.—As theses de Luthero não atacavam sómente as indulgencias, pag. 6.—A historia de Luthero, desde o principio, pag. 7.—Partidarios e adversarios de Luthero, pag. 9.—A disputa de Leipzig, pag. 10.—A bulla do papa, e a queima da mesma, pag. 12.—O Imperador e a Reforma, pag. 14.—O estado politico da Allemanha, pag. 15.—Luthero e a dieta de Worms, pag. 16.—Luthero em Wartburgo, pag. 18.—Regresso de Luthero a Wittenberg, pag. 19.—A dieta de Nürnberg, pag. 20.—A revolta dos nobres, pag. 21.—A revolta dos camponezes, pag. 23.—As Dietas de Spira, em 1526 e 1529, pag. 28.—O imperador pretende subjugar a Reforma, pag. 32.—A Conferencia de Marburgo, pag. 33.—Divergencia entre Luthero e os suissos, pag. 33.—A Dieta de Augsburgo, pag. 36.—_A Confissão de Augsburgo_, pag. 38.—A Liga Protestante de Schmalkald, pag. 39.—A morte de Luthero, e a guerra de Schmalkald, pag. 42.—O imperador e o Concilio Geral, pag. 43.—Loyola e os jesuitas, pag. 45.—A paz religiosa de Augsburgo, pag. 47. CAPITULO II A REFORMA LUTHERANA FÓRA DA ALLEMANHA PAG. 49-53 O lutheranismo fóra da Allemanha, pag. 49.—Na Dinamarca, pag. 50.—Na Suecia, pag. 51. PARTE II A REFORMA SUISSA, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS REFORMADAS PAG. 55-154 CAPITULO I A REFORMA SUISSA SOB ZWINGLIO PAG. 57-66 As reformas suissa e allemã, pag. 57.—A situação politica da Suissa, pag. 58.—Ulrico Zwinglio, pag. 60.—As theses de Zwinglio, pag. 62.—A Reforma em Zurich, pag. 63.—Basiléa, pag. 64.—Berne, pag. 64.—Os cantões florestaes, pag. 64.—Caracteristicos da Reforma de Zwinglio, pag. 65. CAPITULO II A REFORMA EM GENEBRA SOB CALVINO PAG. 67-85 Genebra antes da Reforma, pag. 67.—Farel em Genebra, pag. 68.—A mocidade de Calvino, pag. 69.—_Institutos da Religião Christã_, pag. 71.—Calvino em Genebra, pag. 73.—A sua expulsão, pag. 75.—Genebra não pode passar sem elle, pag. 76.—_As Ordenanças Eclesiasticas_, pag. 77.—Como differem dos _Institutos_, pag. 79.—O seu effeito sobre uma reforma de costumes, pag. 81.—A morte de Calvino, pag. 82.—Succede-lhe Beza, pag. 83.—A influencia de Calvino sobre a theologia da Reforma, pag. 83.—_A Confissão de Zurich_, pag. 84. CAPITULO III A REFORMA EM FRANÇA PAG. 87-111 Os principios da Reforma em França, pag. 87.—Francisco I, pag. 89.—A _Concordata_ de 1516, e a feição que ella deu á Reforma, pag. 89.—«Uma egreja debaixo da cruz», pag. 90.—O anno dos placards, pag. 92.—O Vaudois de Durance, pag. 92.—Henrique II e os Guises, pag. 93.—Organização da egreja reformada, pag. 95.—Os huguenotes: Coligny e os irmãos Bourbon, pag. 96.—O primeiro _Synodo Nacional_, pag. 97.—Anne de Bourg, pag. 98.—A carnificina de Amboise, pag. 99.—Coligny na Assembléa dos Notaveis, pag. 100.—Catharina de Medicis, pag. 100.—A Conferencia de Poissy, pag. 102.—O massacre de Vassy, e outros, pag. 103.—A guerra civil, os iconoclastas, pag. 103.—Coligny e Carlos IX, pag. 106.—O massacre de S. Bartholomeu, pag. 107.—A Santa Liga, pag. 109.—Henrique de Navarra, pag. 110.—O edicto de Nantes, pag. 110. CAPITULO IV A REFORMA NOS PAIZES BAIXOS PAG. 113-116 Os Paizes Baixos, pag. 113.—A politica de Carlos V, pag. 114.—Os principios da Reforma, pag. 115.—Filippe II e os Paizes Baixos, pag. 115.—A inquisição, pag. 117.—Os novos bispados, pag. 118.—Tornar-se-ha hespanhol o paiz? pag. 119.—Os _mendicantes_, pag. 120.—Prégações ruraes, pag. 120.—O duque de Alba nos Paizes Baixos, pag. 121.—A prisão do conde Egmont e do conde Horn, pag. 122.—A guerra civil. O principe de Orange, pag. 124.—Os mendigos do mar, pag. 124.—A tomada de Brill, pag. 126.—Requescens y Zuniga, pag. 128.—O cerco de Leyden, pag. 129. Negociações entre as provincias do sul e as do norte, pag. 130.—D. João de Austria, pag. 131.—Alexandre de Parma, pag. 132.—O tratado de Utrecht, pag. 132.—A Egreja hollandeza, sua organização e confissão, pag. 133.—O _Confessio Belgica_, pag. 134.—A constituição da Egreja hollandeza, pag. 134.—A força da Egreja na Hollanda, pag. 136. CAPITULO V A REFORMA NA ESCOCIA PAG. 137-154 Preparação para a Reforma, pag. 137.—A antiga Egreja celtica e a Educação, pag. 137.—A Escocia e o lollardismo, pag. 138.—A Escocia e Huss, pag. 138.—A Egreja romana na Escocia e a situação politica, pag. 139.—João Knox, pag. 141.—A Congregação e a Primeira Convenção, pag. 142.—A _Confissão escoceza_, pag. 144.—A rainha Maria e a Reforma, pag. 145.— O _Livro de Disciplina e a Primeira Assembléa Geral_, pag. 147.—A educação, pag. 148.—A morte de Knox, pag. 149.—Os bispos tulchanos, pag. 150.—André Melville, pag. 152.—O Segundo Livro de Disciplina, pag. 152. PARTE III A REFORMA ANGLICANA PAG. 155-201 CAPITULO I A EGREJA DE INGLATERRA DURANTE O REINADO DE HENRIQUE VIII PAG. 137-174 O caracter excepcional do principio da Reforma ingleza, pag. 157.—Antecipações da Reforma em Inglaterra, pag. 158.—O estado ecclesiastico de Inglaterra no principio da Reforma, pag. 159.—As relações de Inglaterra com o pontificado, pag. 160.—As antigas relações de Henrique VIII com o pontificado, pag. 161.—Henrique muda de opinião, pag. 163.—Henrique VIII, Francisco I, Carlos V, e a rivalidade que havia entre elles, pag. 164.—A submissão do clero, pag. 165.—O progresso da separação de Roma, pag. 166.—Separação de Roma e Reforma: duas coisas differentes, pag. 168.—Execução de sir Thomas More, pag. 169.—Suppressão dos conventos e confiscação das propriedades da Egreja, pag. 170.—_Os dez Artigos_, pag. 171.—_O Estatuto Sanguinario_, pag. 173.—A Egreja de Inglaterra em 1547, pag. 173. CAPITULO II A REFORMA NO TEMPO DE EDUARDO VI, E A REACÇÃO NO TEMPO DE MARIA PAG. 175-188 Será adoptada a Reforma? pag. 175.—A visita real, o _Livro de Homilias_ e o _Livro de Oração Commum_, pag. 176.—A alliança com o protestantismo continental, pag. 178.—Os _Quarenta e Dois Artigos_, pag. 178.—Os principios do puritanismo, pag. 179.—A morte de Eduardo VI, pag. 181.—O estado da Inglaterra por occasião da acclamação de Maria, pag. 182.—A Hespanha necessitava do auxilio da Inglaterra, pag. 183.—Como Maria se firmou no throno, pag. 183.—A alliança hespanhola, pag. 184.—A reconciliação com Roma, pag. 184.—Porque não foi bem succedida a reacção papal? pag. 185.—As perseguições durante o reinado de Maria, pag. 186.—A questão dos bens de raiz da Egreja, pag. 186.—Os fructos do ensino no reinado de Eduardo, pag. 187.—A morte de Maria, pag. 187. CAPITULO III A REFORMA NO TEMPO DE ISABEL PAG. 189-201 A successão de Isabel, pag. 189.—Como se liquidou a questão religiosa, pag. 190.—_Os trinta e nove artigos_, pag. 192.—O puritanismo e as vestimentas ministeriaes, pag. 192.—A Inglaterra e o protestantismo de fóra do reino, pag. 194.—A lucta interna com o catholicismo romano, pag. 195.—A Armada hespanhola, pag. 196.—As prophecias, pag. 197.—_Os conventiculos_, pag. 198.—_Os pamphletos anti-prelaticios_, pag. 198.—A Reforma ingleza, pag. 198. PARTE IV OS PRINCIPIOS DA REFORMA PAG. 203-236 CAPITULO I A REFORMA FOI UMA REVIVIFICAÇÃO RELIGIOSA PAG. 205-214 A Reforma foi uma revivificação da religião no meio de particulares condições sociaes, pag. 205.—Uma revivificação da religião e uma approximação de Deus, pag. 206.—Como a Egreja medieval chegara a impedir o caminho para Deus, pag. 208.—Revoltas medievaes em favor de uma religião espiritual, pag. 209.—A imitação de Christo, pag. 209.—Francisco de Assis, pag. 210.—Os mysticos da Edade Media, pag. 211.—A significação do perdão, segundo a Reforma, pag. 212.—Previsões de uma revivificação religiosa operada pela Reforma, pag. 213. CAPITULO II COMO A REFORMA SE POZ EM CONTACTO COM A POLITICA PAG. 215-219 O velho systema ecclesiastico estava profundamente arraigado na vida social da epoca, pag. 215.—A Reforma desfez a noção medieval de uma sociedade politica, pag. 216.—Revolta contra o mediavelismo, anteriormente á Reforma, pag. 217.—O _De Monarchia de Dante_ e o _Defensor Pacis_ de Marcello de Padua, pag. 218. CAPITULO III A CATHOLICIDADE DOS REFORMADORES PAG. 221-224 Os Reformadores não tinham em mente crear uma nova Egreja, pag. 221.—Reivindicaram a sua posição por meio de um apello á Constituição do Imperio medieval, pag. 221.—A catholicidade da Reforma, segundo Luthero e Calvino, pag. 222.—A sua posição reivindicada pelo Credo dos Apostolos, pag. 223. CAPITULO IV OS PRINCIPIOS DOUTRINARIOS DA REFORMA PAG. 225-236 Os principios _formaes e materiaes_ da Reforma, pag. 225.—O sacerdocio de todos os crentes: o grande principio da Reforma, pag. 226.—Explica a _Doutrina da Escriptura_, pag. 227, e da _Justificação pela Fé_, pag. 228.—A _Doutrina da Escriptura_ da Reforma em contraste com a medieval, pag. 228.—A Doutrina medieval da Escriptura, pag. 229.—O quadruplo sentido da Escriptura, pag. 229.—A definição medieval de _fé salvadora_. Interpretação infallivel, pag. 230.—Os reformadores e a Biblia, pag. 231.—A doutrina da _justificação pela fé_ da Reforma em contraste com a medieval, pag. 232.—A absolvição clerical e justificação pela fé, pag. 233.—Justificação pela fé e justificação pelas obras, pag. 234.—Conclusão, pag. 235. SUMMARIO CHRONOLOGICO PAG. 237-255 INDICE DE PERSONAGENS, LOCALIDADES, ETC PAG. 257-261 I PARTE A REFORMA NA ALLEMANHA, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS LUTHERANAS CAPITULOS: I—A REFORMA NA ALLEMANHA. II—A REFORMA LUTHERANA FÓRA DA ALLEMANHA. CAPITULO I A REFORMA NA ALLEMANHA O principio da Reforma, pag. 3.—As Indulgencias, e as Theses que Luthero escreveu contra as mesmas, pag. 5.—As Theses de Luthero não atacavam sómente as Indulgencias, pag. 6.—A historia de Luthero, desde o principio, pag. 7.—Partidarios e adversarios de Luthero, pag. 9.—A disputa de Leipzig, pag. 10.—A bulla do papa, e a queima da mesma, pag. 12.—O imperador e a Reforma, pag. 14.—O estado politico da Allemanha, pag. 15.—Luthero e a dieta de Worms, pag. 16.—Luthero em Wartburgo, pag. 18.—Regresso de Luthero a Wittenberg, pag. 19.—A dieta de Nürnberg, pag. 20.—A revolta dos nobres, pag. 21.—A revolta dos camponezes, pag. 23.—As Dietas de Spira, em 1526 e 1529, pag. 28.—O imperador pretende subjugar a Reforma, pag. 32.—A Conferencia de Marburgo, pag. 33.—Divergencia entre Luthero e os suissos, pag. 33.—A Dieta de Augsburgo, pag. 36.—_A Confissão de Augsburgo_, pag. 38.—A Liga Protestante de Schmalkald, pag. 39.—A morte de Luthero, e a guerra de Schmalkald, pag. 42.—O imperador e o Concilio Geral, pag. 43.—Loyola e os jesuitas, pag. 45.—A paz religiosa de Augsburgo, pag. 47. =O principio da Reforma.=—A reforma principiou, se é que similhante movimento, cujos estimulos vieram de uma epoca remotissima, teve realmente um principio, quando Martinho Luthero pregou as noventa e nove theses contra as indulgencias na porta da egreja da pequena cidade de Wittenberg, na Saxonia. João Tetzel, frade dominicano, havia sido enviado á Allemanha pelo papa Leão X com o fim de colher dinheiro para o serviço da egreja; para ajudar a pagar as despezas da guerra com os turcos, dizia-se, mas o verdadeiro intuito era angariar fundos para serem dispendidos pelo papa em quadros e outras obras de arte para a sumptuosa egreja de S. Pedro, em Roma. O dinheiro obtinha-se em troca de uma especie de recibos, em que se declarava que o comprador havia recebido perdão da perpetração dos peccados que mencionara e pago a respectiva importancia. O vendedor de indulgencias viajava sob a protecção do arcebispo de Mayença, um dos sete eleitores da Allemanha. Atravessou durante o outomno de 1517 o centro da Allemanha, e chegou em outubro a Leipzig, na Saxonia. A sua presença não tinha sido bem acolhida, nem pelos principes, nem pelos clerigos mais zelosos dos seus deveres, nem pelas pessoas do povo mais bem intencionadas. Os principes não gostavam d’elle pelo facto de extrair do povo tanta somma de dinheiro e mandal-o todo para o papa; estava empobrecendo o paiz; e alguns d’elles não lhe deram licença para entrar nos seus territorios senão depois d’elle prometter que lhes dava uma parte do que adquirisse. A classe mais escolhida do clero paroquial não gostava d’elle pelo facto de, por onde quer que elle passasse, o povo se tornar peior; vendia por sete ducados o direito de assassinar um inimigo; aquelles que desejavam roubar uma egreja eram perdoados se pagassem nove ducados; e o assassinio de pae, mãe, irmão ou irmã custava apenas quatro ducados. Os homens e mulheres que compravam estas indulgencias queriam, como é natural, tirar algum lucro de aquillo que lhes custara o seu dinheiro, e por isso o crime abundava onde quer que o vendedor do perdão apparecesse. As pessoas amigas do socego tambem lhe eram adversas, pelo facto do tumulto e dos escandalos a que a sua presença dava origem. Enviava adeante de si homens extravagantemente vestidos, que fixavam annuncios pelas paredes, e que apregoavam pelas ruas e pelas estradas a sua proxima chegada, encarecendo a excellencia das cedulas de perdão que elle trazia á venda. Eis algumas d’estas proclamações: «O perdão torna aquelles que o comprarem mais limpos do que o baptismo, mais puros do que Adão no seu estado de innocencia no paraiso»; «Assim que o dinheiro tilintar no fundo do cofre, o comprador fica perdoado, e livre de todos os peccados». Em seguida a estes charlatães, apparecia o vendedor do perdão e o seu ajudante, n’uma pesada carroça, que era conduzida para o meio da praça do mercado. Tetzel, tendo de um lado uma gaiola de ferro de cujas grades pendiam os celebres papelinhos, e do outro um cofre em que o dinheiro era lançado, offerecia ao publico a sua mercadoria, á maneira dos vendedores de elixires que costumam apparecer pelas feiras. Luthero não o perdia de vista desde havia muito tempo, e a sua alma justa sentia-se indignada com o facto dos bispos, apezar de todas as suas cartas e protestos, permittirem que elle andasse de diocese em diocese. Não obstante haver prégado contra Tetzel e contra as indulgencias, o traficante do perdão ia-se approximando. Tetzel chegou, por fim, a Jüterbogk, perto de Wittenberg, e Luthero, que já se havia tornado famoso como prégador e como professor da universidade, não poude conter-se por mais tempo. Escreveu noventa e nove theses contra as indulgencias, e pregou-as na porta da egreja: declarava elle, n’essas suas proposições, que, se havia na Egreja logar para Tetzel e para os seus bilhetes de perdão, não o haveria para elle, Luthero, nem para as idéas que elle tinha relativamente ao peccado e ao modo como Deus concede o perdão. Roma e as indulgencias estavam produzindo uma forte indignação em toda a Allemanha. Bastaria uma faulha para ateiar o incendio; foram as theses que o ateiaram, dando principio á Reforma. =As indulgencias, e as theses que Luthero escreveu contra ellas.=—As indulgencias que Luthero denunciou não constituiam uma coisa nova na Egreja, e, posto que Luthero não o imaginasse, formavam um elemento tão preponderante da vida exterior da Egreja n’aquella epoca que seria dificil censural-as sem ir de encontro a muitas outras coisas. A Egreja da Edade Media preoccupava-se muito com a representação visivel dos factos e forças espirituaes, e tornou-se um caso vulgarissimo dar tanta importancia a essa manifestação externa que se chegava a perder de vista o verdadeiro sentido espiritual, e d’esta fórma muitas e excellentes verdades evangelicas se acharam envolvidas por uma espessa camada de formulas estereis que não permittiam que se desenvolvesse a vida espiritual. É uma verdade evangelica que quando um homem se sente triste por causa dos seus peccados ha de mostrar a sua tristeza d’este ou d’aquelle modo; o verdadeiro arrependimento torna-se sempre manifesto. A Egreja da Edade Media pegou n’este axioma e incrustou-lhe a idéa de que o arrependimento deve manifestar-se sempre em certos e determinados modos prescriptos pela Egreja; e esses meios exteriores de mostrar arrependimento, taes como, o dizer um grande numero de rezas, o jejuar em certos dias, ou o praticar outras penitencias mais ou menos dolorosas, vieram a ser consideradas como o verdadeiro arrependimento e a serem chamados por esse nome. No decurso do tempo, quando a Egreja se tornou mais corrupta, ficou estabelecido que o pagamento de umas determinadas sommas de dinheiro dispensasse os signaes exteriores do arrependimento, comtanto que o peccador penitente se sentisse compungido no seu coração por haver peccado. Quando a Egreja attingiu um estado ainda peior, decidiu-se, como coisa assente, que o desembolso do dinheiro alcançaria o perdão—o perdão de Deus—tanto dos peccados commettidos, como de aquelles que se commettessem depois. Foi de ahi que proveiu o indigno trafico das indulgencias. Os papas e os seus dependentes acharam esta doutrina muito lucrativa, e, como foi abertamente proclamado, diligenciaram extrair todo o dinheiro que lhes fosse possivel «dos peccados dos allemães». A indulgencia contra a qual Luthero protestou era a quinta das que nos ultimos dezesete annos tinham sido publicadas. As noventa e nove theses de Luthero constituem um discurso encadeado contra a doutrina e pratica das indulgencias. E torna evidentes estas tres coisas: (1) É, de algum modo, digna de approvação a indulgencia quando significa simplesmente um dos muitos meios de proclamar o perdão do peccado, _concedido por Deus_; mas uma tal proclamação deve ser sempre gratuita. (2) Os signaes exteriores do arrependimento não equivalem á dôr intima que se sente por haver peccado, isto é, ao verdadeiro arrependimento, e a auctorisação para deixar de os pôr em pratica não pode, de maneira alguma, garantir que Deus tenha realmente perdoado. (3) Qualquer cristão que se sinta verdadeiramente arrependido recebe um pleno perdão, e é participante de todas as riquezas de Christo, por um dom directo de Deus, sem ser necessaria uma carta de indulgencia ou outra intervenção humana. E, n’um sermão que publicou para explicar melhor as suas theses, declara que o arrependimento consiste na contricção, na confissão e na absolvição, e que a mais importante das tres coisas é a contricção. Se a dôr, ou contricção, fôr verdadeira, sincera, seguir-se-lhe-hão naturalmente a confissão e a absolvição. Assim, para Luthero, a coisa essencial é o facto intimo, espiritual, da dôr produzida pelo sentimento do peccado; a manifestação do pezar é uma coisa boa, mas para o que Deus olha é para o estado espiritual, e não para a exteriorisação d’esse estado. =As theses de Luthero não atacavam sómente as indulgencias.=—Luthero, nas suas theses e no seu sermão, declarou que os factos intimos, espirituaes, experimentados pelo homem, eram de um infinito valor, comparados com a expressão d’esses factos mediante formulas esteriotypadas que a Egreja reconhecia; e tornou, outrosim, bem claro que no tocante a um tão solemne assumpto como é o perdão dos peccados o homem podia ir ter directamente com Deus, sem qualquer mediação humana. Dizendo isto, fez muito mais do que atacar as indulgencias; protestou contra as mais enraizadas noções da Egreja medieval. A sua opinião tem sido partilhada por muitos christãos desde o dia de Pentecoste, e atravez de todas as epocas de superstição homens e mulheres, cheios de confiança em Christo, se teem dirigido humildemente a Deus, rogando-lhe o perdão. Foi-lhes concedido esse perdão que solicitavam, e a sua simples experiencia christã foi cantada nos grandiosos e velhos hymnos da egreja medieval; encontrou expressão nas orações da Egreja; constituiu a alma da prégação evangelica da Egreja, e agitou as multidões nos muitos despertamentos da Edade Media. Como quer que fosse, porém, esses piedosos prégadores e auctores de hymnos não viram quão inteiramente essa sua preciosa experiencia era opposta ao maquinismo ecclesiastico do seu tempo. A Egreja accumulava de tal fórma as coisas exteriores, que a vida espiritual ficou sepultada debaixo d’ellas, e na linguagem corrente da epoca havia-se mudado a verdadeira significação dos termos «espiritual» e «santo». Dizia-se que um homem era «espiritual» quando havia sido ordenado para officiar na egreja; o dinheiro tornava-se «espiritual» quando era dado á egreja; a um dominio, com as suas estradas, bosques e campos, chamava-se «espiritual», ou «santo» se pertencia a um bispo ou a um abbade. E depois a egreja, que, com as suas idéas, com os seus actos, com a sua linguagem, tanto tinha aviltado as coisas espirituaes, e tão cega tinha sido para ellas, interpozera-se entre Deus e o homem, proclamando que ninguem se podia chegar a Deus senão por meio d’ella, e que Deus não poderia jámais fallar ao coração do homem senão egualmente por seu intermedio. A confissão dos peccados tinha de ser feita ao padre, e o perdão era concedido mediante a absolvição. Luthero havia fallado contra tudo isto n’aquellas suas theses, mas elle proprio quasi que o não sabia. A sua devota natureza havia-se revoltado perante a profanidade de se suppôr e se dizer que se podia obter de Deus o perdão dos peccados comprando um papel, e que o peccado e a ira de Deus eram coisas que desappareciam mediante o desembolso de uma certa quantia. Ao dar saida á sua indignação, referia-se apenas ao sacrilegio que via deante de si; e, comtudo, atacou, não simplesmente a peior parte de um systema mau, mas o systema todo. A Reforma tinha começado. =A historia de Luthero, desde o principio.=—O homem que se oppoz a Tetzel tinha, apoz um longo e encarniçado combate, chegado ao conhecimento do que o perdão dos peccados significa realmente. Recorrera a todos os meios que a Egreja poz ao dispôr dos espiritos attribulados, mas nenhum d’elles lhe proporcionara conforto: por fim, dirigiu-se elle proprio a Deus, e achou a paz que procurava. Sabia por experiencia propria que o perdão de Deus não se alcança mediante a compra de um bilhete estampado com as armas pontificias, e lavrou o seu protesto em nome de todos aquelles que, em todos os seculos da egreja, sentindo-se vergados ao peso do peccado, tinham encontrado em Deus a paz e o perdão. A historia espiritual d’elle torna isto bem evidente, como vamos ver. Luthero nasceu em Eisleben, em 10 de Novembro de 1483. «Sou camponez, e filho de camponez», costumava elle dizer. O pae era mineiro, e a mãe uma camponeza com fama de muita austeridade. Teve uma infancia muito pouco risonha, e, apezar do modo prazenteiro que constituia um dos seus caracteristicos, notava-se-lhe de quando em quando um certo ar triste que elle proprio attribuia ao que tinha soffrido nos primeiros annos da sua vida. O pae tinha resolvido fazer d’elle um homem. Como todos os homens de trabalho, tinha em desprezo os indolentes frades, e toda a sua idéa era que o filho fosse advogado; queria que elle se formasse em direito, conhecesse todas as engrenagens da lei, d’esse terrivel tyranno do camponez allemão, que o tratava como a um servo, quasi como a um proscripto. Luthero frequentou, pois, as escolas de Mansfeld, de Magdeburgo, de Eisenach. A vida do estudante pobre era, n’aquelle tempo, bem custosa. Passou fome, levou pancadas, não houve mal que não experimentasse. Para ter um bocado de pão era-lhe, muitas vezes, forçoso cantar pelas ruas. Foi em Eisenach que o attingiu o primeiro lampejo da caridade humana, quando Frau Cotta, attraida pela triste solidão em que elle vivia e pela sua melodiosa voz, o introduziu em sua casa e lhe fez todo o bem que poude. De Eisenach foi para Erfurt, para a Universidade, onde não tardou a fazer rapidos progressos. Aprendeu muita coisa, além da jurisprudencia. Leu Cicero, Platão, Terencio e Tito Livio. Leu as grandes obras theologicas da egreja medieval; e, acima de tudo, leu e tornou a ler, até os saber de cór, os escriptos do bravo franciscano inglez Guilherme de Occam, que resistiu denodadamente aos papas no seculo quatorze, e que ensinou Wycliffe e Huss a fazerem o mesmo. Luthero chamava-lhe com todo o carinho: «Occam, o meu querido mestre». Em 1503 recebeu o grau de bacharel, e em 1505 o de doutor. Tornou-se notado pela sua viva intelligencia e pela sua pasmosa eloquencia. Estava, pois, no caminho da posição em que o pae desejava vêl-o: a de um grande jurisconsulto. Durante todo esse tempo, comtudo, a sua consciencia não tinha estado ociosa; os seus peccados atormentavam-n’o; a ira de Deus tinha caido pesadamente sobre elle. O amor de Deus era uma coisa que para elle não existia. O pae terrestre tinha-o tratado sempre com severidade, com dureza, e no Pae celestial via apenas um senhor que exigia d’elle esta e aquella coisa. No dia 17 de Julho de 1505, tendo elle 21 annos, os seus sentimentos religiosos poderam mais do que elle; entrou para o convento dos agostinhos de Erfurt, fugindo á sociedade de parentes e amigos, e desprezando todas as honrarias humanas. O seu Platão e o seu Virgilio, de que se fez acompanhar, ficaram sendo as unicas recordações da sua vida passada. No convento poz-se a trabalhar para achar o caminho da salvação. Leu obras theologicas, jejuou, orou, submetteu-se a toda a sorte de privações, mas nunca logrou encontrar a paz. Não tardou em adquirir uma Biblia _completa_, coisa para elle inteiramente nova, e poz-se a estudal-a com todo o afan; o terror do peccado estava, porém, sobre elle, e não lhe deixava ver o Evangelho. Foi ter com o vigario geral da ordem, Staupitz, que era um homem muito fervoroso, e este encaminhou-o para Agostinho e para os mysticos allemães, em que encontrou um grande auxilio. Aquelle mostrou-lhe o que era o peccado, e o que era a graça soberana; e estes convenceram-n’o de que a verdadeira religião era a religião do coração. No emtanto continuava a faltar-lhe a paz. No meio d’este conflicto, foi-lhe confiado um encargo especial. Frederico o magnanimo, eleitor da Saxonia, e o mais eminente dos principes allemães, fundou uma nova universidade em Wittenberg, e pediu a Staupitz que indicasse os respectivos lentes. Luthero foi então nomeado professor de philosophia, e começou logo a fazer prelecções. Em 1512 doutorou-se em theologia biblica, versando as suas conferencias sobre os Psalmos e as Epistolas de S. Paulo aos Romanos e aos Galatas. Como estudo, leu os Mysticos, os _Sermões_ de Teulez, e aquelle pequeno mas importante livro, _A Theologia Allemã_. Chegou, porém, a crise da sua vida. Em 1511 foi enviado a Roma para tratar de negocios. Á ida era um theologo medieval; á volta era um protestante; á ida cria na justificação pelas obras, á volta cria na justificação pela fé. Roma era, havia muitos seculos, um amontoado de corrupção moral, e Luthero descobriu isso immediatamente. Entrou n’aquella cidade como um judeu entraria em Jerusalem. Elle proprio nos conta que ao avistal-a caiu de joelhos e exclamou: «Eu te saudo, cidade santa, tres vezes santificada pelo sangue dos martyres que se tem derramado em ti». Viu que os monges e padres eram homens maus, que faziam zombaria dos serviços religiosos em que tomavam parte. Viu que havia no povo muita deslealdade e cubiça, e que até o papa pouco melhor era do que um pagão. Luthero havia-se dirigido a Roma com a idéa de achar na cidade santa, como elle lhe chamava lá na Allemanha, algum meio seguro de promover a sua salvação, e, caso estranho, foi o proprio Christo que elle achou. Foi em Roma, no meio da corrupção e da blasphemia, que de subito se compenetrou de que não havia outro meio de salvação senão procurar Christo e entregar tudo ao cuidado d’Elle; de que o perdão é gratuitamente concedido por Deus e dá principio á vida christã, em vez de ser penosamente ganho no fim della. Ao regressar a Wittenberg, era outro homem. Era já afamado como prégador; mas depois da sua visita a Roma prégava como nenhum outro poderia prégar. Tornou-se a primeira figura da universidade, e tinha como amigos Staupitz, o seu geral, e Frederico, o seu principe. Foi então que appareceram as famosas indulgencias. =Partidarios e adversarios de Luthero.=—Ao principio parecia que toda a Allemanha estava ao lado de Luthero. O trafico das indulgencias tinha sido tão escandaloso que as pessoas de bons sentimentos e todos os patriotas allemães se sentiam indignados. O golpe, porém, que Luthero vibrara ás indulgencias havia attingido outros pontos, e não tardaram a levantar-se antagonistas. Conrado Wimpina em Frankfort, Hogstraten em Colonia, Silvestre Prierias em Roma, e, acima de todos, João Eck, um seu antigo condiscipulo, em Ingolstadt, todos elles atacaram as theses, e descobriram heresias nas mesmas. Resultou de ahi que Luthero foi citado a comparecer, em Roma, na presença do papa; mas o eleitor da Saxonia conseguiu uma modificação, recebendo, por fim, Luthero ordem para partir para Augsburgo, a fim de ser interrogado pelo cardeal Caetano, legado do papa na dieta allemã. O papa queria evitar uma desintelligencia com o eleitor da Saxonia, e recommendou a Caetano que se mostrasse conciliativo. Luthero foi, mas a entrevista não teve bom exito. O cardeal começou por reprehender Luthero, mas acabou por se sentir dominado por um certo mêdo d’elle. «Não posso discutir mais com este animal», disse elle; «tem um olhar maligno, e povoam-lhe o cerebro uns pensamentos estupendos». Luthero, por seu lado, dizia abertamente que o legado era tão competente para julgar de assumptos espirituaes como um burro para tocar harpa. Ao deixar Augsburgo, levava sobre si a condemnação, mas havia appellado para o proprio papa, rogando-lhe que se informasse melhor do seu caso. O papa não queria indispôr-se com a Allemanha, porque a parte mais importante da nação parecia estar a favor de Luthero, e enviou o cardeal Miltitz a promover a paz. Este não chamou o moço frade á sua presença, mas teve com elle uma conversação amigavel em casa de Spalatin, o capellão do eleitor. Antes d’esta entrevista Luthero havia appellado para um concilio geral. O cardeal Miltitz declarou estar em desaccordo com Tetzel, reprovou as indulgencias, e concordou com muitas das asserções de Luthero; mas lembrou-lhe que não tinha sido bastante respeitoso para com o papa, e que estava enfraquecendo o poder e a auctoridade da egreja. O seu argumento era, em summa, o seguinte: «O senhor pode ter razão; mas para que ha de ser rude? Escreva ao papa, e peça-lhe desculpa». Luthero prometteu fazel-o, e entre elle e Miltitz ficou estabelecido um convenio, que, como elle depois referiu ao eleitor, continha duas clausulas: 1. Ambas as partes cessariam de prégar ou escrever sobre as materias em controversia. 2. Miltitz informaria o papa do exacto estado dos negocios, e o papa nomearia para as necessarias investigações uma commissão de theologos illustrados. No entretanto, Luthero escreveu ao papa, confessando espontaneamente que a auctoridade da egreja era superior a tudo, e que a coisa alguma, quer na terra quer no céu, se devia dar a prioridade, com excepção de Jesus Christo, que tudo governa. Isto foi em Março de 1519. =A disputa de Leipzig.=—Luthero tinha promettido conservar-se quieto se os seus adversarios se conservassem quietos—era este o seu ajuste com o cardeal Miltitz; os seus inimigos, porém, não se conservaram quietos, e Luthero considerou-se livre para os atacar. O indiscreto amigo da egreja era João Eck. Desafiou Carlstadt, amigo de Luthero, para uma discussão publica, e no entretanto publicou treze theses que atacavam as noventa e cinco de Luthero. Luthero replicou promptamente, e a polemica publica entre Carlstadt e Eck foi seguida de uma outra entre Eck e Luthero. N’esta disputa de Leipzig a controversia attingiu um grau mais elevado. Não foi já uma discussão theologica, mas, sim, a opposição de duas series de principios em conflicto, affectando todo o circulo da vida ecclesiastica. Aqui, pela primeira vez, a christandade allemã desprendeu-se da christandade romana, insistindo no sacerdocio de todos os crentes e no direito de cada christão julgar em todas as coisas segundo a sua consciencia, esclarecido pela palavra de Deus e pelo Seu Santo Espirito. Luthero e Eck começaram com as indulgencias e com as penitencias, mas o debate em breve mudou para a auctoridade da Egreja romana e do papa. Eck mantinha a suprema auctoridade do bispo de Roma, como successor de S. Pedro e Vigario geral de Christo. Luthero negou a superioridade da egreja romana sobre as outras egrejas, e baseou a sua negativa no testemunho da historia de onze seculos, no dos decretos de Nicéa, no dos mais santos concilios, e no da Escriptura Sagrada. Isto originou uma grande contestação. «Sem papa não ha egreja», exclamou Eck. «A egreja grega tem existido sem papa, e vós sois o primeiro a negar-lhe o nome de Egreja» respondeu Luthero. «Athanasio, Basilio e os dois Gregorios estavam fóra da egreja? O papa tem mais necessidade da egreja do que a egreja do papa». «Sois tão mau como Wycliffe e Huss», disse Eck, «e elles foram condemnados em Constança». «Nem todas as opiniões de Huss eram erroneas» disse Luthero. «Se recusaes apoiar as decisões dos concilios, eu recuso discutir comvosco», disse Eck, e por aqui se ficou. Immediatamente depois, porém, Luthero completou e publicou a sua argumentação. Declara, pela primeira vez, o que pensa da egreja. Não nega a primazia do papa, mas o que não admitte é que o papa volte as costas á egreja. Se o papa se mantiver no seu logar de servo da egreja, de «servo dos servos de Deus», elle, Luthero, dar-lhe-ha toda a honra. Mas a egreja é a communhão dos fieis—é constituida pelos verdadeiros crentes, pelos eleitos. Á egreja nunca falta o Espirito Santo, e aos papas e concilios falta muitas vezes. Esta egreja, que tem sempre o Espirito Santo, é invisivel; e, portanto, um leigo que possua as Escripturas e se guie por ellas é mais digno de credito do que um papa ou um concilio que o não faça. Esta disputa de Leipzig produziu importantissimos resultados. De um lado, Eck e os demais adversarios eram de opinião que Luthero devia ser violentamente posto fóra de combate, e insistiram n’uma bulla papal que o condemnasse; e do outro, Luthero viu, pela primeira vez, até onde tinha chegado com a sua opposição ás indulgencias. Viu que a sua theologia agostiniana, com o conhecimento que ella proporcionava da odiosidade moral do peccado, e da necessidade da soberana graça de Deus, feria, em todas as suas peripecias, a vida ceremonial da edade media: mostrava que era impossivel a qualquer homem o ter uma vida perfeitamente pura e santa, e, por consequencia, não podia haver santos, e o culto dado aos santos era um absurdo; tornava inuteis as reliquias e as peregrinações, assim como a vida monastica, com as suas vigilias, jejuns e flagellações. Todas estas coisas eram, em vez de auxilios, obstaculos á verdadeira vida religiosa. Seguia-se tambem que, não podendo haver mediador entre Deus e os homens, com excepção de Jesus Christo, a mediação do papa para nada servia. A disputa de Leipzig convenceu Luthero de que se havia separado de Roma, e a Allemanha convenceu-se tambem d’isso, chegando o seu enthusiasmo a um ponto extremo. O povo das cidades manifestou a sua sympathia pelo arrojado frade. Ulrico von Hutten e os outros homens de letras viram n’elle, desde então, o seu guia. Francisco von Sickingen e os outros cavalleiros livres viram n’elle, desde então, um poderoso alliado. Os pobres e sobrecarregados camponezes alimentavam a esperança de que elle os libertasse das miserrimas circumstancias em que se encontravam. Luthero tornou-se, por assim dizer, o chefe do povo allemão. Isto teve logar em 1519. =A bulla do papa e a queima da mesma.=—Eck e os demais adversarios de Luthero reconheciam que alguma coisa se devia pôr em pratica para reduzir ao silencio o audacioso monge, e instaram com o papa para que publicasse uma bulla condemnando as suas opiniões. Luthero, por seu lado, não estava ocioso. Sabia que se tinha desligado de Roma, e, com a sua habitual actividade e coragem, tornou esse facto conhecido, e pediu ao povo allemão que o ajudasse. A Allemanha era um paiz pobre, e, comtudo, mandava todos os annos uma consideravel quantia de dinheiro para Roma. N’aquelles dias a egreja era um grande imperio ecclesiastico, tendo Roma como capital. Toda a Europa estava dividida em bispados, e o clero era muito rico. Possuia extensos dominios, que arrendava; tinha tambem direito aos dizimos (a decima parte) de todas as outras propriedades; além d’isso, fazia dinheiro com os baptismos, com os casamentos, com as absolvições, com a assistencia espiritual aos enfermos, com os enterros, e com as missas. As varias ordens de frades tinham-se tambem tornado muito opulentas, sendo a sua maior riqueza constituida por terras que lhes haviam sido doadas ou legadas em testamento por pessoas devotas. Em quasi todos os paizes da Europa se haviam promulgado leis com o fim de impedir ou limitar estas doações, mas essas leis tinham sido tão inefficazes que ao tempo da Reforma as ordens religiosas eram senhoras de quasi um terço do territorio europeu. E, apezar de ricas, andavam continuamente esmolando. Parte dos seus bens ia todos os annos para Roma. Quando um bispado vagava, as receitas eram recolhidas pelo papa, que demorava sempre a nomeação de outro bispo. O papa diligenciava frequentemente que os bispos ou abbades fossem italianos, pois que estes ficavam residindo em Roma, e o dinheiro era-lhes remettido para lá. Quando um novo bispo era nomeado, tinha de mandar ao papa o rendimento do primeiro anno (_os annatas_). Todo este dinheiro que era exportado para Roma fazia falta nos paizes de onde sahia; e no tempo de Luthero ainda estava extorquindo mais, por meio das indulgencias. Luthero, no seu opusculo _Á nobreza da nação allemã_ tornava tudo isto saliente, e perguntava por quanto tempo se estaria disposto a tolerar similhante coisa. Referia aos nobres que a doutrina romanista dos dois estados distinctos, um espiritual, incluindo o papa, os bispos, os padres, os frades e as freiras, e o outro temporal, constituido por todas as outras individualidades, era um muro levantado pelos romanistas para defenderem as oppressões da egreja. Dizia-lhes, outrosim, que _todos_ os christãos são espirituaes, e que todos deviam ser obedientes ao poder secular. E perguntava, finalmente, como é que os allemães consentiam que do seu depauperado paiz fossem enviados annualmente para Roma 300.000 florins. Escreveu tambem outro tratado, _O captiveiro babylonico da egreja de Christo_, para mostrar que elle não desejava destruir mas purificar a verdadeira egreja de Christo. O titulo é bem explicito. Luthero opinava que o papa e os romanistas tinham conduzido a egreja a um captiveiro, muito comparavel ao dos judeus em Babylonia. E dá exemplos d’isso. O Senhor disse por occasião da ultima ceia, quando deu o calix aos Seus discipulos, «Bebei d’elle todos», mas os romanistas dizem «Não bebaes d’elle se não fordes padres». E parecia-lhe que todos os verdadeiros christãos tinham o dever de libertar a egreja da sua escravidão. E concluia de um modo caracteristico. «Consta-me que estão sendo preparadas bullas e outras coisas papistas, em que me é exigida uma retractação, sob pena de ser proclamado hereje. Se é verdade, desejo que este livrinho fique constituindo uma parte da minha futura retractação». Foram enviados milhares d’estes livros para todos os pontos da Allemanha, e o povo ficou á espera da bulla. Esta veiu, por fim, em 15 de Julho de 1520. Accusava Luthero de sustentar as opiniões de Huss, e condemnava-o. Eck levou-a para Leipzig em Outubro. Foi affixada em varias cidades allemãs, e em geral os cidadãos e os estudantes arrancavam-n’a. Chegou, por fim, ás mãos de Luthero. Respondeu ás suas accusações n’um pamphleto, em que lhe chamava a execravel bulla do anti-christo, e por fim annunciou em Wittenberg que ia queimal-a. No dia 10 de Dezembro, á frente de um cortejo de professores e estudantes, Luthero saiu da universidade e dirigiu-se para o mercado. Um dos lentes accendeu a fogueira, e Luthero lançou a bulla ás chammas. Estava consummada a affronta. Foi tambem queimado um exemplar da lei canonica, pois que a Allemanha ia de ali em deante ser governada pelas leis do paiz, e não pelas leis de Roma. A noticia espalhou-se por toda a Allemanha, dando logar a um enorme regozijo. Roma tinha arremessado o seu ultimo dardo; só o imperador é que tinha poder agora para reprimir Luthero. =O imperador e a Reforma.=—O imperador era, por esse tempo, Carlos V. Havia sido eleito em 1519, e ainda não tinha estado na Allemanha, nem era tão poderoso como o seu titulo indicava. N’aquelles dias ainda predominavam as idéas medievaes de governo, e Carlos V tinha resolvido restabelecer o velho poder imperial com todos os seus attributos. No principio da edade media os homens colhiam as suas idéas de governo do velho imperio romano—não do imperio pagão de Augusto Cesar e dos seus successores, mas do imperio christão de Constantino e de aquelles que vieram apoz elle. Posto que aquelle velho imperio tivesse sido destruido pelas invasões das selvaticas tribus teutonicas, depois da epoca das conquistas ter passado os novos povos que habitavam a Europa adoptaram o governo e as leis da nação que haviam derrubado. Segundo os pensadores medievaes, o governo civil e a ordem social eram coisas impossiveis quando todo o poder não estivesse concentrado n’um foco e identificado n’uma só pessoa—o monarca universal; e quando todo o governo ecclesiastico e communhão religiosa não obedecessem, da mesma fórma, ao arbitrio de uma unica pessoa—o sacerdote universal. O monarca universal era o imperador, que dominava _circa civilia_ como vigario, ou representante, de Deus; e o sacerdote universal era o papa, que dominava _circa sacra_, como vigario, ou representante, de Deus. Um dominava nos corpos, o outro dominava nas almas, dos homens; e o dominio de ambos era universal. Um tinha o poderio da espada, e o outro tinha o poderio das chaves. Este sonho medieval ainda não se havia tornado em realidade, até então; mas o sonho continuava, e a Europa, no alvorecer da Reforma, estava sob o olhar cubiçoso de duas entidades: o imperador e o papa. No fim do seculo quinze, Fernando, o Prudente, rei de Aragão, concebeu o plano de, mediante um elaborado systema de enlaces matrimoniaes, restituir ao imperio a sua primitiva grandeza. Tinha tres filhas. A mais velha casou com o rei de Portugal, o que daria logar a que este paiz e Hespanha ficassem constituindo um só reino. A segunda casou com Filippe de Austria, chefe da casa de Hapsburgo, e por direito materno senhor da Borgonha e dos Paizes Baixos. A terceira desposou Henrique VIII de Inglaterra. Do primeiro d’estes consorcios nasceu Isabel, herdeira do throno de Hespanha. Do segundo Carlos de Austria e de Borgonha. Do terceiro Maria, rainha de Inglaterra. Carlos casou com sua prima Isabel, e ficou, portanto, reinando em Hespanha, Austria, Borgonha e Paizes Baixos. E mais tarde foi tambem imperador e rei de Italia. Carlos V foi, pois, um imperador poderosissimo, como não tinha havido outro durante muitos seculos; e a sua ambição era ver-se investido da mesma auctoridade que tinham tido Carlos Magno e Otto I. Tinha os olhos constantemente fitos no passado; e lá no seu intimo arquitectava a maneira de restabelecer na Europa aquella unidade politica que desapparecera quando começaram a organizar-se as nações modernas. Esta velha unidade, porém, exigia, não sómente um imperio unido, como tambem uma egreja intacta, e esse sonho de Carlos tornava-o intolerante para com qualquer perturbador da paz da egreja, como Luthero era por elle considerado. Posto que tivesse sido acclamado imperador, o seu imperio não estava muito firme. Era poderoso, não por ser imperador, mas por ter sob o seu dominio a Hespanha, a Borgonha, e a Austria; as luctas intestinas de que a Allemanha era theatro, e as muitas questões que surgiam, a que era necessario dar uma prompta solução, enfraqueciam-lhe algum tanto o poder. =O estado politico da Allemanha.=—A Allemanha, no tempo da Reforma, não tinha uma unidade politica. Estava nominalmente unida sob o imperio, e era governada pela Dieta; mas o poder, tanto do imperador como da Dieta, era, praticamente, fraquissimo. O imperio era electivo, e desde o anno de 1356 a eleição havia estado nas mãos de sete principes-eleitores, tres na região do Elba, e quatro na do Rheno. Na região do Elba eram o rei da Bohemia, o Eleitor da Saxonia e o Eleitor de Brandenburgo; na do Rheno eram o Conde Palatino do Rheno, e os arcebispos de Mayença, Trier e Köln. As successivas concessões que os principes obtinham á custa das eleições iam diminuindo o poder imperial. Entre o imperador e o povo estava a Dieta, que era o grande conselho do imperio, e se compunha de tres camaras, ou collegios: I Seis principes eleitoraes, tres dos quaes leigos, e tres clerigos (não entrava o rei da Bohemia); II Os principes, ou gran-barões, seculares e ecclesiasticos; III Os representantes das cidades livres, que eram as que gozavam de privilegios concedidos directamente pelo imperador. Como havia quasi tantos principes clericaes como seculares, o poder que a egreja tinha na Dieta era muito forte, e facilmente poderia ser empregado como instrumento para abafar qualquer reforma religiosa. A Dieta, comtudo, tinha pouca força no paiz. A Allemanha estava tão dividida que cada um dos principes independentes podia fazer o que muito bem quizesse. As cidades, formando ligas entre si, podiam offerecer uma certa resistencia á tyrannia dos principes; mas os aldeãos, incapazes de similhante combinação, eram acossados de todos os lados pela egreja, pelos principes e pelos barões. A situação dos camponezes allemães era, na verdade, pouco de invejar. Houve tempo em que viveram desafogadamente, cultivando as suas terras, mas os senhores feudaes foram, pouco a pouco, cerceando-lhes direitos, chegando ao ponto de lhes prohibirem a entrada nos baldios, de não lhes permitir que se abastecessem de lenha, que pescassem nos rios, etc. Não tinham a quem pedir protecção, e não podiam contar com as leis. A sua unica esperança estava na revolução, e sentiam um desejo ardente de imitar os suissos, isto é, de se libertarem, de acabarem com o feudalismo, de se tornarem proprietarios. O joven imperador, quando pela primeira vez foi á Allemanha, deparou com muitas questões graves que estavam á espera de solução; o povo estava ancioso por um governo central, as cidades queriam que se pozesse termo ás constantes contendas que havia entre os barões, os poderes, civil e ecclesiastico, accusavam-se mutuamente, e, por ultimo, a questão de Luthero continuava agitando os espiritos. =Luthero e a dieta de Worms.=—A Dieta foi aberta por Carlos V em Janeiro de 1521, e o nuncio do papa tratou logo de instar com os principes reunidos em assembléa para que pozessem termo ás heresias de Luthero, não sendo, na sua opinião, necessario que este fosse ouvido. Os principes, porém, que tambem tinham as suas razões de queixa de Roma, declararam que era uma injustiça, um acto indigno, condemnar um homem sem o ouvir e sem elle estar presente. Por fim o imperador intimou Luthero a apresentar-se, e forneceu-lhe um salvo-conducto. Um arauto foi, pois, procural-o da parte do seu imperial amo, e em abril Luthero partiu para Worms. Ia resolvido a não se retractar, posto que o animasse a convicção de não voltar com vida. A Spalatin escreveu elle o seguinte: «Não tenho intenção de fugir, nem de crear embaraços á Palavra; emquanto a graça de Christo me sustiver, hei de confessar a verdade, não recuando mesmo deante da morte». E a Melanchthon: «Se eu não voltar, se os meus inimigos me assassinarem, continúa tu, de todo o coração te imploro, a ensinar e a dar testemunho da verdade». Antes de deixar Wittenberg, havia preparado, de collaboração com Lucas Cranach, «um bom livro para o povo», e que se compunha de uma serie de gravuras em madeira representando contrastes entre Christo e o papa, e tendo debaixo de cada uma a respectiva explicação, n’um grande vigor de linguagem; n’uma pagina apparecia Christo lavando os pés aos discipulos, n’outra o papa estendendo o pé para que lh’o beijassem; a Christo levando a cruz contrapunha-se o papa levado em procissão pelas ruas de Roma, aos hombros dos homens; a Christo expulsando os vendilhões do templo, o papa vendendo indulgencias, e tendo junto de si um monte de dinheiro. Os amigos de Luthero consideravam-n’o perdido. Quando lhe chegou aos ouvidos o boato de que o duque Jorge da Saxonia lhe preparava uma emboscada, a resposta que deu foi: «Não deixaria de me pôr a caminho, ainda mesmo que houvesse uma chuva de duques da Saxonia». E quando lhe disseram que o diabo se havia de apoderar d’elle por qualquer fórma, replicou: «Não deixaria de comparecer em Worms, ainda mesmo que lá houvesse tantos demonios como telhas nos telhados». A sua jornada teve o aspecto de uma marcha triumphal; o povo vinha, em grandes multidões, ao seu encontro, soltando enthusiasticos vivas. Chegou, por fim a Worms, e logo no dia immediato foi apresentado á Dieta. O imperador tinha a seu lado o arquiduque de Austria, seu irmão, e a assembléa compunha-se de seis eleitores, vinte e oito duques, trinta prelados, e um grande numero de outras personagens de menor cathegoria, ao todo uns duzentos principes. Era deante de toda aquella gente que Luthero tinha de confessar a sua fé em Christo. Pouco depois d’elle entrar, foi collocada na sua frente uma grande rima de livros, e perguntaram-lhe se os havia escripto, e se estava disposto a retractar-se. Pediu algum tempo para reflectir, e, sendo-lhe concedido o prazo de vinte e quatro horas, foi reconduzido á casa onde se hospedára. Quando, no dia seguinte, se dirigiu de novo á Dieta, teve de abrir caminho atravez de uma grande multidão de gente, que o animava e lhe recommendava firmeza; e, ao entrar na sala, o velho general Frunsberg bateu-lhe no hombro e disse-lhe: «Nada receies, fradinho!» Na vespera havia-se mostrado um tanto confuso, havia denotado uma certa timidez, mas n’aquelle segundo dia estava de posse da sua coragem habitual. O chanceller do arcebispo de Trier começou a interrogal-o em nome do imperador. «Reconheceis estes livros como vossos, e estaes disposto a retirar o que escrevestes?» Luthero respondeu que n’alguns dos seus livros se encontravam coisas que haviam merecido a approvação até dos proprios adversarios, e que não se podia esperar d’elle uma retractação no tocante a essas coisas; havia tambem protestado contra manifestos abusos, e seria, decerto, um hypocrita e um cobarde se n’aquella occasião affirmasse ser falso o que elle e todos os homens de bem sabiam que era verdadeiro; n’uma parte, finalmente, do que havia escripto, alvejava os seus antagonistas, e, como o fizera um pouco precipitadamente, era possivel que n’alguns pontos não tivesse razão, estando, portanto, prompto a desdizer qualquer asseveração cuja injustiça lhe fosse provada. «Esse vosso arrazoado é inopportuno», replicou Eck; «o que o imperador quer é uma resposta definitiva. Estaes prompto a retirar o que dissestes contra a Egreja, e especialmente o que disseste contra o concilio de Constança?» «Quereis uma resposta definitiva?» disse Luthero. «Vou dar-vol-a, pois. (_Vou dar uma resposta sem pontas nem dentes, diz o original_). Não me retracto de coisa alguma, a não ser que me convençam pela Escriptura ou por meio de argumentos irrefutaveis. É claro como a luz do dia que tanto papas como concilios teem algumas vezes errado. A minha consciencia tem de submetter-se á Palavra de Deus; proceder contra a consciencia é impio e perigoso; e, portanto, não posso nem quero retractar-me. Assim Deus me ajude. Amen.» O representante da lei chegou a crer que os seus ouvidos o tivessem enganado. «Affirmaes, realmente, que um concilio é susceptivel de errar?», perguntou elle, por fim. «Affirmo», retorquiu Luthero, «e affirmal-o-hei sempre. Assim Deus me ajude. Amen». Aquella sua firmeza tornou furiosos os hespanhoes e os italianos; queriam que o imperador lhe cassasse o salvo-conducto e o condemnasse á morte, sem mais preambulos. Os allemães, reconhecendo que elle, ao mesmo tempo que combatia pela consciencia, combatia tambem pela Allemanha, pozeram-se do seu lado. Conseguiram que o imperador addiasse a sentença, e instaram depois com Luthero para que se retractasse, sendo, porém, baldados todos os seus esforços. Por fim o imperador tomou uma resolução. Não querendo tomar o partido de Luthero e da Allemanha, para não quebrar relações com o papa, não desejava, comtudo, annullar o salvo-conducto, faltando assim á sua palavra. Ordenou, pois, a Luthero que se retirasse, mas fez publicar um edicto, condemnando os livros do Reformador e collocando-o a elle proprio sob o anathema do imperio. Ora, ser collocado sob o anathema do imperio era ser collocado n’uma gravissima situação. De ali em deante ninguem podia dar de comer ou de beber a Luthero, nem recebel-o em sua casa: quem quer que o encontrasse era obrigado a deitar-lhe a mão e entregal-o aos guardas do imperador, que ficavam com plenos poderes para o matarem. Tudo isto, porém, só podia ter logar depois de expirado o prazo que o salvo-conducto mencionava. =Luthero em Wartburgo.=—Os amigos de Luthero foram de parecer que, depois do edicto de Worms, a vida d’elle corria perigo, até mesmo em Wittenberg; e o eleitor da Saxonia encarregou uns tantos soldados de o irem esperar ao caminho, apoderarem-se d’elle, e levarem-n’o para o castello de Wartburgo, que ficava perto de Eisenach, e onde elle poderia esconder-se, sem lhe succeder mal algum. Nenhum dos seus amigos sabia, ao principio, onde elle se encontrava. Emquanto esteve em Wartburgo, submetteu-se a uma vida de isolamento, e para maior precaução deixou crescer a barba, vestiu-se de cavalleiro, e adoptou o nome de Junker Jorge. Permaneceu dez mezes n’aquelle seu esconderijo. Foi lá que começou a mais importante das suas obras, a traducção da Biblia, dos textos originaes grego e hebraico. Conseguiu tornar conhecido dos amigos o seu paradeiro, e Melanchthon mandava-lhe de Wittenberg todos os livros de que elle necessitava. Começou com o Novo Testamento, e traduziu-o quasi todo sem auxilio alheio. A ajudal-o no Velho Testamento teve o que um dos seus biographos chama «um synhedrio privado, composto de homens eruditos». Estes homens reuniam-se uma vez por semana em casa de Luthero, para confronto de notas e mutuo auxilio nas passagens difficeis. Luthero estava empenhado em fazer da sua traducção da Biblia um livro para o povo allemão. Não quiz introduzir n’ella phrases finas, phrases palacianas; desejava tornal-a um livro que fosse comprehendido por todos, homens, mulheres e creanças, e dedicou a esse trabalho todo o seu talento e actividade. Ainda se conservam alguns dos seus manuscriptos, em que se vê o grande numero de emendas por que muitas das orações passaram, chegando algumas a serem emendadas quinze vezes. «Estamos trabalhando com todas as nossas forças», escreveu elle em certa occasião, «para que os prophetas fallem na nossa lingua. Que grande e difficil tarefa é esta, de fazer com que os escriptores hebreus se exprimam em allemão! Elles offerecem uma enorme resistencia. Não querem trocar o seu hebreu por uma lingua barbara». A tarefa tornava-se ainda mais difficultosa pela razão de quasi se poder dizer que não existia a lingua allemã. O allemão antes do tempo de Luthero, assim como o inglez antes do tempo de Chaucer, era um aggregado de dialectos; e, de facto, a Biblia de Luthero é que fez a lingua allemã, pois que tem servido desde então como que de modelo, e o seu estylo tem sido imitado por todos os auctores allemães; a prosa foi, portanto, tornando-se gradualmente uniforme, os dialectos foram ficando para traz, e a linguagem adquiriu uma unidade que resistiu áquella onda de separação que passou depois por toda a Allemanha. =Regresso de Luthero a Wittenberg.=—Emquanto Luthero esteve em Wartburgo, andaram os seus amigos prégando o Evangelho por toda a Allemanha, sem soffrerem o minimo incommodo, e os seus livros eram lidos por toda a parte. Dir-se-hia que toda a Allemanha se tornava protestante, a despeito do edicto do imperador. Havia de todos os lados um grande movimento a favor das doutrinas evangelicas, e contra a superstição e a idolatria. Acontece muitas vezes, em epocas como aquella, de despertamento religioso, que algumas pessoas perdem, por assim dizer, a cabeça e querem que as coisas caminhem muitissimo depressa ou vão até demasiadamente longe; foi o que succedeu na Allemanha. Ha na fronteira bohemio-saxonia, no meio da cordilheira de Erzgebirge, ou Montanhas de Ferro, uma pequena cidade chamada Zwickau. Os habitantes d’essa cidade acceitaram a Reforma. Entre elles havia um tecelão, Claus Storch, homem excitavel, que a abraçou com mais zelo do que sensatez, e que reuniu em volta de si um certo numero de partidarios, creaturas de muito pouco juizo tambem. Na sua opinião, não lhes eram precisos padres nem ministros evangelicos, pois que Deus os instruia directamente; a Biblia era inutil, pois que todos elles eram inspirados. Metteram-se a limpar a sua terra de todos os indicios da antiga religião—as ornamentações das egrejas, os altares, as cruzes, o clero, etc.—e deram logar a alguns tumultos, levantando-se, por fim, contra elles os seus conterraneos, que os pozeram fóra. Expulsos de Zwickau, foram para Wittenberg, e expozeram as suas idéas ao impetuoso Carlstadt e ao condescendente Melanchthon, que eram ali os dirigentes espirituaes na ausencia de Luthero. Carlstadt adoptou por completo o seu modo de pensar, Melanchthon deixou-se persuadir até a um certo ponto, e a agitação começou a lavrar entre as massas populares. As imagens foram derrubadas dos logares que occupavam nas egrejas; Carlstadt prégou contra a instrucção, contra o estudo, contra as universidades; a Reforma correu o perigo de uma rapida destruição. Luthero teve conhecimento do que se passava na sua solidão de Wartburgo, e resolveu sair de aquella especie de sequestração em que se encontrava. Correu a Wittenberg, e o povo tornou a ouvir a sua voz, com que tanto se familiarisara, trovejando do pulpito contra a violencia, o fanatismo e a falta de caridade. Luctou contra os fanaticos durante oito dias, e por fim triumphou. A auctoridade da Escriptura ficou de novo estabelecida, e o movimento lutherano mostrou que nada tinha de commum com os excessos de Storch, e do seu companheiro Münzer. Do curto reinado dos fanaticos em Wittenberg resultou uma coisa boa. Produziu uma reforma de culto. Desappareceram as ceremonias do catholicismo romano, que foram substituidas por um serviço religioso mais em conformidade com as Escripturas. =A Dieta de Nürnberg.=—O anathema do imperio ainda estava sobre Luthero, pois que não havia sido revogado; mas ninguem pensava em o pôr em execução. Luthero prégava, escrevia, e editava os seus trabalhos, sem que pessoa alguma na Allemanha o tivesse na conta de um proscripto. Ainda mais, alguns dos principes allemães eram de parecer que o edicto de Worms devia ser annullado. O imperador tinha-se retirado para Hespanha, deixando em seu logar um Conselho Regente, cujos membros conheciam bem o estado da Allemanha e os sentimentos do povo, e não se sentiam inclinados a desposar a causa do papa. Foi assim que, quando a Dieta se reuniu em Nürnberg, em 1522 e 1524, o nuncio do papa viu que os principes allemães não eram de modo algum favoraveis á sua proposta para que Luthero soffresse a pena de morte. Em vez de discutirem esse ponto, apresentaram differentes reclamações, insistindo muito com o nuncio para que chamasse para ellas a attenção do papa; e muitas d’essas reclamações eram relativas a assumptos sobre os quaes se baseou a condemnação de Luthero. Por fim, depois de uma prolongada controversia entre os principes allemães e o nuncio do papa, a Dieta declarou que era necessario nomear uma Junta Geral da Egreja, afim de que certos abusos fossem abolidos e se esclarecessem certos pontos duvidosos de doutrina que tinham surgido, annunciando, ao mesmo tempo, que toda essa questão de differenças religiosas havia de ser liquidada n’um outro concilio que ia reunir-se em Spira. Toda a Allemanha, em summa, parecia estar do lado de Luthero; e alguns estados—como, por exemplo, o de Brandenburgo—, proclamavam abertamente quaes as reformas por que a religião devia passar. Pediam a abolição dos cinco falsos sacramentos, da missa, do culto dos santos e da supremacia pontificia. A Reforma havia-se espalhado tambem para além da Allemanha, e já em 1524 havia discipulos de Luthero em França, na Dinamarca e nos Paizes Baixos. =A revolta dos nobres= foi o primeiro dos grandes revezes que o movimento da Reforma soffreu. Até 1524, as doutrinas de Luthero tinham-se espalhado sem obstaculo de maior pela Allemanha e pelo estrangeiro. De toda a parte se protestava contra os cinco pretensos sacramentos, as indulgencias, a confissão auricular, o culto dos santos e das reliquias, o celibato do clero, a negação do calix aos leigos, o sacrificio da missa, a usurpação episcopal e a supremacia do papa. O que todos ambicionavam era uma fórma de culto mais simples e mais concorde com as Escripturas, e uma fórma de governo que tornasse manifesto o sacerdocio espiritual de todos os crentes. A Dieta tinha repetidamente, na sua lista de aggravos, chamado a attenção do papa para os abusos que se observavam na egreja, e propoz, por fim, que se convocasse um concilio geral para tratar das necessarias reformas. Mas não era só ecclesiasticamente que a Allemanha precisava de ser reorganizada. A posição dos cavalleiros imperiaes era cada vez mais insustentavel; os principes, mais poderosos do que elles, supplantavam-n’os e opprimiam-n’os. Os camponezes viviam, pela maior parte, cruelmente escravisados, e preparavam-se em segredo para uma revolução. Tanto de um lado como do outro contava-se com a Reforma como com um poderoso auxiliar. Os tempos corriam mal; tinha-se visto a inutilidade dos velhos systemas, e todos proclamavam abertamente a necessidade de uma mudança radical; não deveriam aproveitar-se d’este estado geral de descontentamento? As duas classes desgostosas assim o entenderam, e, porque assim o entendessem, entraram no caminho da revolta. A revolta dos nobres foi logo reprimida; nunca teve, mesmo, probabilidades de bom exito. Os homens que se envolveram n’ella estavam, realmente, luctando contra a orientação da epoca e contra a corrente da historia. Viam todo o territorio allemão caindo nas mãos de meia duzia de familias principescas, e todo o povo das cidades enriquecendo por meio do commercio e pondo-se ao abrigo de qualquer ataque. Previam que a Allemanha não tardaria a estar dividida pelos principes, a quem elles odiavam, e pelos cidadãos, a quem desprezavam, e queriam voltar aos velhos tempos, em que os nobres germanicos não reconheciam outra auctoridade que não fosse a do imperador. Tinham por cabecilha Francisco von Sickingen, homem muito notavel, de grande valor militar, e a quem se não podia negar um certo patriotismo. A revolta mallogrou-se, e os principes aproveitaram a opportunidade para reduzirem ainda mais o poder dos nobres e compellirem-n’os a reconhecer a sua auctoridade. O movimento revolucionario não tinha ligação alguma com a Reforma, mas muita gente julgava que sim, e começou a antipathizar com a Reforma por causa do seu odio aos nobres revoltados. Sickingen tinha de muitos modos tentado fazer com que parecesse que a causa que defendia era a causa da liberdade religiosa. Quando a vida de Luthero corria perigo em Worms, Sickingen reuniu algumas tropas e ameaçou atacar a cidade e a dieta. Quando alguns dos secretarios de Luthero foram ameaçados de perseguição depois da dieta de Worms, Sickingen prometteu proteger todos aquelles que se acolhessem a elle; e, ao levantar o estandarte da revolta contra os principes, declarou que o seu fim era combater pela Reforma e estabelecer as novas doutrinas. E assim, quando elle ficou vencido, alguns dos principes apressaram-se em accusar Luthero e os prégadores de terem ajudado e instigado esta guerra civil. De todos estes acontecimentos proveiu a chamada Convenção de Ratisbonna, ou Regensburgo, que era uma confederação, ou liga, dos principes catholicos romanos contra a Reforma; e assim a Allemanha, que até ali se tinha mantido n’uma união propicia ás reformas, dividiu-se em duas partes, o que tornou o trabalho muito mais difficil. Os confederados de Regensburgo diligenciaram chegar a accordo com o partido papista de Roma. O papa prometteu que não tornaria a haver indulgencias, que cessaria aquella grande drenagem de dinheiro da Allemanha para Roma, e que seriam escolhidos homens melhores para bispos e abbades; e os confederados comprometteram-se a contrariar todas as tentativas de reforma, oppondo-se tenazmente a qualquer modificação de culto ou de doutrina. A Baviera, a Austria e as grandes provincias ecclesiasticas do sul da Allemanha iam pôr-se ao lado de Roma na lucta que estava imminente. A Convenção de Regensburgo veiu, pois, dividir a Allemanha, e fez prever os episodios horrorosos da Guerra dos Trinta Annos. =A revolta dos camponezes= teve consequencias mais serias. Não fez sómente tremer os principes com a idéa de uma proxima reformação; deu motivo a que Luthero hesitasse, e mudasse, por fim, de opinião a muitos respeitos. O movimento rural não tinha por objecto a Reforma; a sua origem foi a miseria profunda em que a gente do campo vivia. O soffrimento d’essa gente não podia ser maior, e havia chegado a tal ponto que a morte não lhes mettia medo algum. Desde o meiado do seculo quinze que de quando em quando se levantava uma sedição de camponezes n’um ou n’outro ponto da Europa, e todas essas revoltas haviam sido suffocadas, sem que fossem concedidas as almejadas reformas, de modo que as causas da rebellião continuavam ainda inalteraveis. Os camponezes viviam do que as terras que traziam arrendadas produziam, e as rendas que pagavam eram as mais das vezes exhorbitantes, isto é, não estavam em harmonia com o valor do terreno. Além das rendas, eram tambem obrigados a prestar aos proprietarios certos serviços de que não recebiam remuneração alguma; esses serviços variavam segundo as localidades, mas em todas ellas o senhorio tinha garantido o arroteamento dos seus campos sem lhe ser preciso metter a mão á bolsa. A tornar-lhes ainda mais duras as condições da vida, era-lhes prohibido, sob pena de um severo castigo, o entregarem-se ao exercicio da caça ou da pesca. Não podiam cortar lenha nos bosques, era-lhes vedada uma grande parte dos baldios, e de todos os modos se viam embaraçados no seu trabalho e na sua actividade. Quando um rendeiro fallecia, o dono da propriedade tinha o direito de arrebatar do poder da viuva e dos orphãos qualquer coisa que lhe agradasse, como por exemplo, uma vacca, uma ovelha, ou até a propria cama. A egreja tambem tinha as suas imposições. Reivindicava os dizimos: uma decima parte da colheita, que era chamada o grande dizimo; e uma decima parte do producto dos animaes, que era chamada o pequeno dizimo. Tinham de ser pagos depois de se haver satisfeito ao senhorio; e depois de se ter pago a renda e o salario dos serviçaes, e de se ter dado á egreja a decima parte do trigo, das ovelhas, dos porcos e dos ovos, pouco ficava para o pobre camponez e sua familia. Mas ainda havia mais. Pode-se viver nas peiores circumstancias, pode-se supportar as maiores agruras da vida, quando ha a certeza de que se não corre o risco de peiorar, e de que justiça será feita quando aquelles que occupam posições superiores quizerem tirar partido da pobreza e fraqueza dos seus similhantes. O camponez allemão, porém, não tinha essa certeza. O velho codigo romano havia substituido gradualmente a legislação allemã, e nós sabemos que no imperio de Roma os camponezes não eram homens livres. Os proprietarios tinham escravos, ou servos, para amanhar as suas terras, para trabalhar nos seus dominios, e quando as leis romanas começaram a ser applicadas na Allemanha viu-se logo que o camponez ficava, pouco mais ou menos, na condição de escravo. Os pobres, compenetrados de que a lei lhes era adversa, não ousavam recorrer aos tribunaes. Eram castigados quando o seu amo entendia que deviam sêl-o. A lei não lhes conferia direito algum; o proprietario podia tornar-lhes mais pesados os trabalhos, augmentar-lhes a renda, podia, em summa, exigir d’elles o que quizesse. N’uma epoca pouco anterior á da Reforma tinham sido transportadas para a Europa enormes riquezas. A America, a terra da prata e do oiro, tinha sido descoberta, e o commercio augmentara consideravelmente. Estas riquezas tinham sido ganhas por mercadores e negociantes aventureiros, e a classe commercial havia começado, por esse motivo, a viver desafogada e luxuosamente. Ora os possuidores de terras não queriam fazer má figura ao pé dos negociantes, mas faltava-lhes dinheiro para sustentarem o mesmo fausto, e só poderiam conseguil-o á custa dos pobres camponezes, cujo viver era cada vez mais miseravel, ao passo que a gente das cidades se rodeiava de commodidades que n’outro tempo desconhecia. O resultado foi serem augmentados os trabalhos, augmentadas as rendas, aggravados todos os impostos. Estas oppresões deram logar a bastantes tumultos muito antes do tempo de Luthero. Nos Paizes Baixos, na Franconia, no Main e no Rheno os camponezes levantaram-se contra os seus tyrannos, e as associações secretas organizadas durante essas insurreições continuaram permanecendo até muito depois d’ellas haverem sido reprimidas. A mais poderosa d’essas associações era a de Bundschuh, isto é, a _do sapato atado_. A liga de Bundschuh havia-se formado em 1423, e nunca fôra possivel extinguil-a de todo; e durante a agitação produzida pela estada de Luthero em Worms, quando todos os allemães receiavam pela vida do seu reformador, a sinistra palavra Bundschuh appareceu escripta a giz pelas paredes. A revolta dos camponezes em 1524 foi uma legitima successora das anteriores, foi mais um fructo das sociedades secretas, e podemos affirmar que os seus promotores contavam com que o Evangelho prégado por Luthero lhes proporcionasse um bom exito. Thomaz Münzer, o discipulo de Claus Storch, que havia sido expulso tanto de Wittenberg como de Zwickau, mettera-se a prégar aos aldeãos da Thuringia e da Saxonia, e a sua inflammada eloquencia havia-os animado para uma nova lucta. A Bundschuh reapparecera em Würtemberg, devido á cruel oppressão do duque Ulrico. Em 1524 os camponios do Rheno ergueram o estandarte da revolta, e a chamma propagou-se em todas as direcções. Estas insurreições não foram, ao principio, effectuadas por meio das armas. Se os camponezes tivessem começado por uma acção violenta, teriam, talvez, sido mais bem succedidos. A sua idéa era convocar grandes comicios onde fossem expostas as suas reclamações, pois julgavam que por esse meio viriam a conseguir tudo. Teem-se conservado até hoje algumas das listas de reformas que elles reputavam indispensaveis. A mais importante é a dos Doze Artigos. Os camponezes começaram por dizer que só pediam aquillo que os principios do Evangelho os auctorizavam a pedir, e que não desejavam entrar em lucta, porque o Evangelho os mandava viver em paz e amor. Pediam a todos os christãos que lessem os seguintes artigos, e vissem se havia n’elles alguma coisa que estivesse em desaccordo com o ensino da Palavra de Deus: 1. A congregação deve ter poder para eleger o seu ministro, e para o demittir no caso do seu procedimento ser censuravel; e o ministro deve prégar o Evangelho puro, sem lhe accrescentar mais nada. 2. Promettem pagar o dizimo do trigo para a sustentação dos ministros, comtanto que o que ficar, depois de pagos os respectivos estipendios, seja applicado no soccorro dos pobres; mas recusam pagar o pequeno dizimo, isto é, o dos porcos, dos ovos, etc., porque, dizem elles, Deus creou os animaes para uso do homem. 3. A servidão deve ser abolida. A Escriptura declara que os homens são livres. 4 Deve haver inteira liberdade para caçar e para pescar, pois que Deus creou as aves e os peixes para uso de todos. 5. As florestas que não pertençam a alguem por direito de compra devem ser restituidas á communa, ou municipio; e todos os habitantes devem ter liberdade para cortar madeira de que necessitarem para combustivel ou para trabalhos de carpinteria, devendo haver guardas, pagos pela communa, que impeçam qualquer acto de vandalismo. 6. Os serviços obrigatorios devem ficar restrictos ao que era permittido pelos antigos costumes. 7. Tudo o mais que se fizer deve ser condignamente pago. 8. As rendas estão muito elevadas; as terras devem ser avaliadas de novo, e pagar-se pelo seu aluguer uma quantia razoavel. 9. A lei deve determinar as penas que correspondem aos diversos crimes, ficando defezo a quem quer que seja a applicação de um castigo arbitrario. 10. Os campos de pastagem e outros baldios de que os proprietarios se teem apoderado devem ser restituidos ao logradouro publico. 11. Deve ser abolido o direito de morte (A faculdade que tem o senhorio de levar qualquer objecto da casa do rendeiro fallecido). 12. Todas estas proposições devem passar pelo cadinho da Escriptura, e serão retiradas as que fôrem susceptiveis de refutação. Estes artigos eram, quasi todos elles, assaz equitativos, e estão agora incluidos na legislação allemã. Se as reivindicações dos camponezes fossem recebidas como elles esperavam, e como tinham direito a esperar, ter-se-hia chegado a um accordo. Os seus adversarios fingiram que se interessavam por ellas, para ganharem tempo; e os camponezes, por fim, vendo-se atraiçoados, pegaram em armas. Recorreram a Luthero. Elle era filho de camponez; tinha conhecido a necessidade. E Luthero, respondendo ao appello que lhe fizeram, intercedeu por elles, dirigindo-se d’este modo aos proprietarios: «Posso agora fazer causa commum com os camponezes, porque vós attribuis esta insurreição ao Evangelho e ao meu ensino, quando a verdade é que nunca cessei de intimar obediencia á auctoridade, mesmo quando ella seja tão tyrannica e tão intoleravel como a vossa. Não quero, porém, envenenar a ferida; e, portanto, meus senhores, quer me sejaes benevolos quer me sejaes hostis, não desprezeis os conselhos de um pobre homem como eu, e não tenhaes em pouca conta esta sedição; não quero dizer com isto que temaes os insurgentes, mas que temaes a Deus, que está irritado contra vós. Elle póde punir-vos, e converter todas as pedras em camponezas, sem que nem as vossas couraças nem todo o poder de que dispondes vos possam livrar. Ponde, pois, limites ás vossas exacções, deixae de exercer uma deshumana tyrannia, e passae a tratar essa gente com bondade, para que Deus não incendeie toda a Allemanha com um fogo que ninguem será capaz de extinguir. O que n’esta occasião, porventura, perderdes, ser-vos-ha centuplicado mediante a paz futura. «Ha tanta equidade n’alguns dos doze artigos dos camponezes, que constituem uma deshonra para vós deante de Deus e do mundo; cobrem os principes de vergonha, como diz o Psalmo 108. Tinha outras coisas ainda mais graves a dizer-vos, com respeito ao governo da Allemanha, e já me referi a vós no meu livro dedicado á nobreza allemã. Não vos importastes, porém, com as minhas palavras, e agora chovem sobre vós todas estas reclamações. Não deveis desattender o seu pedido de auctorização para escolherem pastores que lhes preguem o Evangelho; compete sómente ao governo o obstar a que sejam prégadas a insurreição e a rebellião; mas deve haver perfeita liberdade para prégar tanto o verdadeiro como o falso Evangelho. Os restantes artigos, que tratam do estado social do camponez, são egualmente justos. Os governos não se estabelecem para seu proprio interesse, nem para tornarem o povo subserviente aos caprichos e ás más paixões, mas para zelarem o interesse do povo. As vossas exacções são intoleraveis; arrancaes ao camponez o fructo do seu trabalho para poderdes sustentar o vosso luxo e os vossos prazeres. E é tudo quanto vos tinha a dizer. «Agora, com respeito a vós, meus queridos amigos camponezes. Quereis que vos seja garantida a livre prégação do Evangelho. Deus ha de defender a vossa causa, se procederdes sempre com justiça e rectidão. Se o fizerdes, haveis de triumphar por fim. Aquelles de entre vós que succumbirem na lucta serão salvos. Se, porém, o vosso modo de proceder fôr outro, não podereis salvar nem a alma nem o corpo, ainda mesmo que sejaes bem succedidos e derroteis os principes e os senhores. Não acrediteis nos falsos prophetas que se teem introduzido no meio de vós, ainda mesmo que elles invoquem o santo nome do Evangelho. Pode ser que elles me chamem hypocrita, mas isso pouco se me dá. O que eu quero é salvar os que entre vós fôrem fieis e honrados. Temo a Deus e a ninguem mais. Temei-o vós tambem, e não useis o Seu nome em vão, para que Elle vos não castigue. Não diz a Palavra de Deus: «Aquelle que lançar mão da espada á espada morrerá,» e «Todos se submettam aos poderes superiores?» Não deveis fazer justiça por vossas proprias mãos; seria isso obedecer a um outro dictame da lei natural. Não vêdes que vos fica mal a rebellião? O governo tira-vos parte do que vos pertence, mas destruindo os principios estabelecidos tiraes aos outros tudo o que lhes pertence. Christo, no Gethsemane, reprehendeu S. Pedro por se ter servido da espada, ainda que em defeza do seu Mestre; e quando já estava pregado na cruz orou pelos Seus perseguidores. E o Seu reino não tem triumphado? Porque é que o Papa e o imperador me não teem feito calar? Porque é que o Evangelho progride á proporção que elles se esforçam para lhe pôrem obstaculos e para o destruir? Porque eu nunca recorri á fôrça, prégando, antes, a obediencia, até mesmo áquelles que me perseguem, fazendo depender exclusivamente de Deus a minha defeza. Façaes o que fizerdes, nunca tenteis cobrir a vossa empreza com o manto do Evangelho e o nome de Christo. Será uma guerra de pagãos, a que, porventura, vier a ter logar, porque os christãos fazem uso de outras armas: o seu General soffreu a cruz, e o triumpho d’elles é a humildade. Supplico-vos, queridos amigos, que vos detenhaes, e que considereis antes de dardes outro passo. O que citastes da Biblia não é applicavel ao vosso caso». E conclue assim: «Como vêdes, estaes procedendo mal, tanto de um lado como do outro, e estaes attrahindo o castigo divino sobre vós e sobre a Allemanha, vossa patria commum. O meu conselho é que se escolham arbitros, sendo alguns nomeados pela nobreza e outros pelas cidades. É preciso que ambos os adversarios transijam n’alguma coisa: o negocio tem de ser equitativamente liquidado por um tribunal.» O seu alvitre não foi acatado. Os camponezes romperam hostilidades, tornando impossivel qualquer mediação. O proprio Luthero, logo que as coisas tomaram este caminho, deixou de se interessar pelos revoltosos. Os principes ligaram-se entre si, e fizeram sobre os camponezes uma verdadeira chacina. Calcula-se que chegasse a cincoenta mil o numero dos massacrados. Esta espantosa catastrophe prejudicou immenso a Reforma. Alguns dos nobres attribuiram a Luthero tudo quanto tinha acontecido, e moveram-lhe uma feroz opposição. A Reforma perdeu a influencia que tinha sobre as classes pobres, que se deixaram dominar pela idéa de que Luthero as havia abandonado; e entregaram-se com facilidade aos excessos anabaptistas, que tanto damno causaram á religião n’aquelles tempos. O proprio Luthero perdeu algum tanto da sua firmeza e da sua coragem, e repudiou algumas das suas antigas opiniões. Todas estas coisas foram um atrazo para a Reforma. Ha quem tenha, mesmo, pensado que a revolta dos camponezes e a falta de coragem que Luthero mostrou n’essa occasião e depois d’ella tiveram por effeito o ser a obra evangelica tirada das mãos de Luthero e da Allemanha e confiada ás de Zwinglio e da Suissa. Luthero perdeu, durante a revolução, o seu protector e a Allemanha o maior dos seus principes. Frederico o magnanimo, eleitor da Saxonia, havia morrido. Havia pedido ao irmão, que era o seu successor, e que havia partido para a guerra, que usasse de benevolencia com os camponezes; e os seus ultimos pensamentos foram para os maltratados servos. «Nós, os principes, fazemos muitas coisas aos pobres que não deviamos fazer.» exclamou elle, e pouco depois, tendo sido sacramentado, falleceu. =As Dietas de Spira, em 1526 e 1529.=—O imperador ainda não havia voltado á Allemanha desde que se ausentara d’ella depois da Dieta de Worms. Estava em Hespanha, constantemente occupado com a sua idéa de abater o poder da França. Em 1525 esteve quasi a ver os seus planos coroados de bom exito. Deu-se a batalha de Pavia, e Francisco I de França, desbaratado o seu exercito, caiu prisioneiro nas mãos do imperador seu rival. A Confederação de Madrid, que se seguiu a isto, punha Francisco na obrigação de auxiliar Carlos a reprimir a revolta que contra a Egreja se havia excitado na Allemanha; e os termos em que essa obrigação estava formulada mostravam o quão attentamente havia observado os progressos da Reforma e o quão empenhado estava em subjugal-a. Deu ordem para que fossem postas em pratica as disposições da Dieta de Worms, dando assim claramente a entender que não consentia que dentro do imperio se propagassem as doutrinas de Luthero, e para reforçar essa sua intimativa propoz que ella fosse perfilhada por uma Dieta que se reuniria em Spira. As intrigas politicas mais uma vez o impediram de voltar á Allemanha. O papa que dominava em Roma era Clemente VII, da familia dos Medicis, e em toda esta questão zelou mais os interesses do seu principado italiano do que os da egreja de que era chefe. O papa não queria que Francisco e Carlos se reconciliassem. Receiava que os pequenos estados italianos ficassem prejudicados com a approximação dos dois grandes monarcas, e por esse motivo acariciava o plano de uma outra guerra europea. O imperador ainda não tinha conseguido o descanço de que necessitava para poder ir em seguida liquidar pessoalmente os negocios da Allemanha. E assim o proprio papa estava n’aquella occasião favorecendo a Reforma. Quando os principes allemães se reuniram em Spira, tornou-se logo bem manifesto que um grande numero d’elles não desejava que Luthero e as suas doutrinas fossem banidos da Allemanha; e a Dieta, de que se esperava a aniquilação da Reforma, promulgou um decreto tolerando-a. Este famoso edicto, que foi n’aquelle tempo considerado como uma garantia de tolerancia quanto á religião evangelica, declarava que em materia de religião todos os estados se deviam comportar por tal fórma que estivessem promptos a responder por si deante de Deus e de sua Magestade Imperial. Assim ficou cada um dos estados auctorizado a declarar que religião se professaria dentro dos seus limites, e aquelle edicto foi como que uma predicção da paz de Augsburgo, que determinou praticamente a religião official da Allemanha, essa religião que ella ainda hoje mantem. Os estados que abraçaram as doutrinas evangelicas ficaram, segundo a lei imperial allemã, com a liberdade de reorganizar a egreja dentro dos seus dominios, e levar a effeito as necessarias reformas. O edicto auctorizava cada um dos estados a tomar as decisões que entendesse, e d’esse modo tornou-se impossivel qualquer tentativa de introduzir nas provincias evangelicas um systema uniforme de governo da egreja e do culto; cada uma d’ellas estabeleceu os seus regulamentos. O primeiro a estabelecel-os, em conformidade com os verdadeiros principios da Reforma, foi Filippe, Landgrave de Hesse. Pediu a Martinho Lambert que lhe redigisse os artigos de uma constituição ecclesiastica para uso nos seus dominios. E estes artigos são interessantes, porque reconhecem, até certo ponto, a auctoridade do povo christão dentro da egreja; e confiam tambem a disciplina das congregações a homens de seriedade, cujos deveres são parecidos com os dos anciãos presbyteriannos. Luthero, n’outro tempo, teria recebido com enthusiasmo todas estas indicações do reconhecimento dos direitos do povo christão, e do sacerdocio espiritual de todos os crentes, mas a Guerra dos Camponezes tinha-o predisposto contra a auctoridade do povo. Era de opinião que o povo não tinha competencia para governar a egreja, e escreveu a Filippe, mostrando-lhe os inconvenientes de similhante plano de organização ecclesiastica. Luthero preferia entregar o governo da egreja nas mãos do poder secular—dos principes quando se tratasse de principados, e das camaras municipaes nas cidades livres. Esta sua idéa deu logar ao que se chama o systema _Consistorial_ do governo da Egreja—systema peculiar da Egreja Lutherana, e de que, não obstante só mais tarde ter sido posto em pratica, cabe fazer aqui uma descripção resumida. Em todas as egrejas christãs tem sido considerado da mais alta importancia o guardar-se a chamada _disciplina_ da egreja. Deus quer que todos os seus filhos tenham uma vida honesta, uma vida decente, e é do dever da Egreja cuidar que todos os seus membros procedam de uma maneira condigna com a sua profissão de fé. Quando qualquer membro sae do bom caminho deve ser reprehendido, e, se persiste no mal, deve soffrer os castigos que a egreja tem decretado, consistindo um d’elles em ser excluido da communhão dos irmãos. Na Allemanha eram, na edade media, os bispos responsaveis pela conducta dos membros das egrejas que constituiam as suas respectivas dioceses; e, como estas dioceses eram geralmente grandes, e os bispos não podiam estar ao facto de tudo quanto acontecia, encarregavam d’isso umas especies de comités, compostos de clerigos e jurisconsultos. Estas commissões de vigilancia chamavam-se consistorios, e, além de zelarem a disciplina das dioceses, eram tambem encarregadas da execução de testamentos e doações, e julgavam certos casos de calumnia e de maledicencia que os tribunaes ordinarios lhes enviavam. Quando os bispos, nos estados evangelicos, foram expulsos, esses consistorios continuaram gerindo os negocios da Egreja. Luthero, que só alterava o que era indispensavel alterar, propoz ao eleitor da Saxonia a conservação dos comités episcopaes, e essa sua proposta foi acceite. Passaram a chamar-se consistorios lutheranos, e a sua nomeação ficou dependendo da suprema auctoridade civil, em cujo nome governavam. Com o tempo foram introduzidas algumas mudanças, cuja necessidade se reconheceu; mas ainda assim pode-se dizer que o governo da egreja lutherana actual em nada differe do da egreja allemã medieval, a não ser que a auctoridade civil substituiu os bispos. Estas mudanças tiveram logar em toda a Allemanha depois da Dieta de 1526, nos estados que abraçaram a Reforma. Luthero escreveu alguns hymnos, e publicou uma serie d’elles para serem cantados nas egrejas; escreveu um catecismo para uso da infancia; e assim em toda a Allemanha, onde quer que as doutrinas evangelicas prevalecessem, eram organizadas egrejas, onde se rendia a Deus um culto simples mas sincero, e tratava-se de instruir e catequizar a juventude. Ainda não havia uma confissão de fé, ou credo commum, mas o povo sabia perfeitamente no que devia crer, devido aos opusculos de Luthero, Melanchthon e outros, opusculos estes que andavam de mão em mão. Emquanto estas coisas se passavam na Allemanha, tinha logar uma coisa que bastante contrariou o imperador: uma alliança entre a França e os Estados Pontificios. Não esperava que o papa o abandonasse, e menos esperava ainda que elle o abandonasse na propria occasião em que elle se preparava para submetter a Allemanha ao seu dominio (do papa), e resolveu punil-o d’essa traição. Formou-se um numeroso exercito, reforçado por um grande numero de soldados allemães lutheranos, sob o commando de aquelle general Frundsberg que em Worms animou Luthero, e, levando á frente o condestavel de Bourbon, esse exercito penetrou na Italia, devastando tudo por onde quer que passasse. Em 6 de maio de 1527 o general conduziu as suas tropas até junto da cidade de Roma. Esta foi tomada de assalto. O papa e os cardeaes fugiram para a fortaleza de St.º Angelo, e a cidade foi horrivelmente posta a saque. Os habitantes foram maltratados e mortos, as egrejas foram despojadas das suas riquezas, e os rudes e mofadores allemães proclamaram papa a Luthero. Os francezes não poderam prestar grande auxilio aos seus alliados, e em 1529 fez-se a paz entre o imperador e o papa, ficando Carlos novamente livre, segundo elle pensava, para esmagar a heresia na Allemanha. Na Allemanha parecia que as coisas iam caminhando mal para a Reforma. O edicto de Spira havia concedido tolerancia aos lutheranos, mas tambem tornou evidente, de uma maneira até então desconhecida, a separação entre os dois partidos. Isto viu-se bem quando a Dieta se reuniu de novo em Spira em 1529. O imperador não estava presente, mas o seu commissario disse aos principes que o amo se recusava a reconhecer o decreto de 1526, e que sustentava que o decreto de Worms estava ainda em vigor e se lhe devia dar força. Pela primeira vez pareceu que a maioria da Dieta estava disposta a obedecer á ordem do imperador e a dar força ao edicto contra Luthero. O decreto final intimava quem quer que tivesse posto o edicto em execução a continuar a fazel-o, e que nos districtos onde não se tivesse executado não se fizessem ulteriores innovações e ninguem fosse impedido de celebrar missa. Por mais brando que isto parecesse, significava que o edicto de Spira estava posto de parte, e a minoria evangelica resolveu protestar contra a decisão. Fizeram-n’o sobre o fundamento de que as questões religiosas só podiam ser decididas pela consciencia, e que não deviam ser submettidas á Dieta para ficarem sob a decisão de uma maioria. «Em questões que dizem respeito á gloria de Deus e á salvação da alma de cada um de nós, é nosso imperioso dever, segundo o preceito divino, e por causa das nossas proprias consciencias, respeitar, antes de tudo, ao Senhor nosso Deus.» «Em questões que se relacionam com a gloria de Deus e com a salvação das nossas almas, devemos pôr-nos deante de Deus e dar-lhe contas de nós mesmos». O protesto, em que se punha como coisa inadiavel a liberdade de consciencia, era assignado por João da Saxonia, Jorge de Brandenburgo, Ernesto de Lüneburgo, Filippe de Hesse, Wolfgang de Anhalt, e pelos representantes das cidades imperiaes de Nürnberg, Ulm, Constancia, Lindau, Memmingen, Kempten, Nordlingen, Heilbronn, Reutlingen, Isny, St. Gall, Weissenburgo e Windsheim. Foi d’este protesto que se originou o termo _protestantes_. =O imperador pretende subjugar a Reforma.=—Este protesto tornou ainda mais saliente, mais definida, a linha de separação entre os principes reformados e os seus visinhos. Ficavam como que marcados por ella aquelles a quem o imperador, para restabelecer o imperio medieval, tinha de subjugar; e parecia agora ter chegado uma occasião propicia para elle o fazer. Na verdade, entre elle e a realização dos seus planos só existia aquelle punhado de principes. Tinha humilhado por completo a França, obrigára o papa a submetter-se-lhe, e os turcos haviam sido derrotados; unicamente a Reforma se oppunha ao restabelecimento de um imperio medieval. Os principes protestantes reconheceram a gravidade da sua situação. Deveriam resistir ao imperador, e, no caso affirmativo, conservar-se-hiam firmemente unidos? Luthero, que tinha até então dirigido o movimento, servia agora de obstaculo a uma acção collectiva. Elle, ao principio, era contrario a toda e qualquer resistencia. Reprovava, mesmo, a alliança dos principes. Chegou a dissuadir o eleitor da Saxonia de mandar delegados á assembléa de Schmalkald, e, quando esses delegados voltaram e deram noticia de que não se tinha chegado a decidir coisa alguma, mostrou-se excessivamente satisfeito. Se Filippe de Hesse não tivesse trabalhado incessantemente para uma união e para um esforço collectivo, a Reforma teria soffrido muito. A que se deve attribuir este procedimento de Luthero? Repugnava-lhe a rebellião, fosse qual fosse a natureza d’esta, e não acreditava que as batalhas do reino dos céus se podessem vencer com as armas carnaes. Depois, tambem, havia n’elle uma grande somma de quietismo, ou, por outra, de fatalismo, em parte hereditario, e em parte devido á sua adhesão ás idéas de Tauler e ás dos mysticos allemães. Filippe de Hesse tinha, porém, sem duvida razão ao attribuir uma grande parte d’esta obstinação de Luthero a uma polemica theologica. Tinha sido proposto reunir todos os protestantes n’uma liga offensiva e defensiva, e havia protestantes que não reconheciam em Luthero o seu chefe religioso. Assim como havia uma reforma allemã, havia tambem uma reforma suissa, com o seu particular typo de doutrina—typo de que Luthero não gostava, e que, com immenso desagrado da sua parte, se estava propagando pelo sul da Allemanha. Filippe notou esse facto, e, com aquella decisão que o caracterizava, tentou extrair a difficuldade pela raiz. Propoz uma conferencia. Tinha a convicção de que, se pozesse na presença uns dos outros aquelles cujas idéas divergiam, elles haviam de comprehender-se melhor, e acabariam, por consequencia, todas as differenças. Com esse intuito, pois, promoveu em Marburgo, em 1529, uma conferencia entre os primeiros theologos da Allemanha e da Suissa. =A Conferencia de Marburgo.=—Pode-se imaginar o que seria aquella reunião, em que ia tratar-se de um assumpto tão palpitante. Zwinglio e Œcolampadius tinham vindo, com risco das suas vidas, da Suissa; Bucer tinha vindo de Strasburgo; e Luthero e Melanchthon tinham vindo de Wittenberg. Consultaram-se sobre os grandes artigos da fé christã, e os allemães ficaram convencidos de que os suissos tinham idéas perfeitamente evangelicas. Foram redigidos quatorze artigos em que se encerravam todos os principaes pontos da verdade evangelica, sem que alguem discordasse d’elles, e em seguida os theologos passaram a tratar do quinquagessimo e ultimo, que se occupava da doutrina da Ceia do Senhor. Era esse o artigo ácerca do qual os que desejavam uma união de todos os protestantes se mostravam mais inquietos. Anteriormente, antes da revolta dos camponezes o ter inclinado a evitar mudanças, é muito possivel que Luthero apresentasse qualquer asserção sobre pontos de doutrina que fosse acceite pelos suissos; e muitos teem supposto, com bom fundamento, que, se Calvino estivesse presente, e tivesse fallado antes de Luthero, poder-se-hia ter chegado a uma união. Luthero, porém, não tinha confiança nos suissos; tinha-os na conta de irreflectidos e irreverentes theologos, e, a despeito das anciedades dos principes allemães, tinha ido á conferencia resolvido a não ceder em coisa alguma. =A controversia entre Luthero e os suissos.=—O thema do debate era este. Todos os reformadores, tanto allemães como suissos, haviam rejeitado a doutrina catholica romana do sacramento da Ceia do Senhor. Os theologos catholicos romanos dividem este sacramento em duas partes distinctas: a Eucaristia e a missa. A missa é mais um sacrificio do que um sacramento. É a prolongação, atravez do tempo, do sacrificio de Christo na cruz; o pão e o vinho são, diz-se, os verdadeiros corpo e sangue de Christo, e quando estes são saboreados pelo padre, no acto de comer e beber, Christo soffre com esse acto aquillo que soffreu na cruz. D’esta maneira os catholicos romanos ensinam que os christãos vêem Christo realmente no seu meio—vêem-n’o supportando os tormentos por sua causa, na sua propria presença. Assim, segundo esta theoria, não ha a distancia de longos seculos entre o crente e os soffrimentos de Christo por sua causa. Christo soffrendo e o crente prestando culto estão em face um do outro durante um momento, mediante a missa. Os protestantes de todas as denominações rejeitaram a doutrina da missa por a considerarem idolatra e supersticiosa, e ensinaram os christãos a retrocederem, pela fé, até ao verdadeiro sacrificio de Christo na cruz do Calvario por sua causa e para resgate dos seus peccados. O debate entre os protestantes é exclusivamente sobre aquillo a que os catholicos romanos chamam a Eucaristia, ou sacramento do altar. A doutrina catholica romana da missa e a sua doutrina da Eucaristia teem um ponto em commum; ambas affirmam que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Christo estão presentes no pão e no vinho, de modo que estes elementos já não são o que parecem ser, mas sim o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Christo. Ensinam que o padre, porque é padre, e porque foi ordenado por um bispo, pode, mediante a oração e a ceremonia, operar o milagre de transformar o pão e o vinho no verdadeiro corpo e sangue de Christo, com a Sua alma racional e a Sua natureza divina; e que pode, outrosim, operar o milagre de O trazer do céu e de O mostrar ao povo, a fim de ser adorado e partilhado por todos. Ensinam, ainda, posto que esta parte do seu ensino não seja sempre muito clara, que os beneficios de Christo são communicados ao Seu povo quando este come o pão, que já não é pão, mas Christo. A graça, dizem elles, é concedida a todos aquelles que participam, quer tenham quer não tenham fé. Todos os protestantes, tanto suissos como lutheranos, recusaram acceitar pelo menos dois, e os dois principaes, pontos d’esta doutrina catholica romana. Não quizeram crer que um padre podesse operar o milagre que os catholicos romanos asseveram que é operado; e foram tambem todos de opinião de que é necessaria mais alguma coisa do que a participação para que o sacramento tenha efficacia. Ao descreverem a connexão entre o sacramento e o que o administra, negaram que tenha logar a operação de um milagre; e, ao descreverem o effeito nos participantes, asseveraram que a fé era indispensavel. Tiraram o milagre d’uma parte da descripção do sacramento e do seu effeito e inseriram a fé na outra. N’isto todos elles concordaram. Todos elles sustentaram que, ainda que Christo esteja presente no sacramento, não foi trazido para ali mediante um milagre operado por um padre, e que, ainda que Christo soccorresse o Seu povo, o fazia n’um sentido espiritual, mediante a fé, e não pela simples participação do sacramento. Posto, porém que Zwinglio e Luthero abundassem nas mesmas idéas com respeito a estes dois importantes pontos, e assim podessem escrever a primeira parte do artigo quinze de tal maneira que podessem ambos acceitar cabalmente a asserção, differiam no modo em que descreviam a entrada de Christo no sacramento, e a maneira em que o crente sentia a Sua presença e tirava o beneficio inherente. Zwinglio dizia que Christo não estava realmente no sacramento sob uma fórma corporea. O pão e o vinho, affirmava elle, eram apenas signaes da Sua presença, quasi da mesma maneira como uma carta é o signal da pessoa ausente que a escreveu, e, quando os christãos participam do sacramento, colhem um beneficio, porque os signaes, pão e vinho, lhes reavivam a memoria e os fazem pensar em Christo e em tudo quanto Elle fez e soffreu sobre a cruz. Luthero entendia que no sacramento havia mais alguma coisa. Elle tinha, anteriormente, ensinado que o pão e o vinho eram promessas, ou sellos, assim como signaes, e essa idéa podia têl-o levado, como mais tarde aconteceu a Calvino, a encarar a questão com maior clareza e simplicidade. No seu modo de vêr, o pão e o vinho eram, de uma maneira real, o genuino corpo e sangue de Christo, e isto porque o Senhor disse ácerca do pão «Isto é o meu corpo», e ácerca do vinho «Isto é o meu sangue». E, como não gostava de fazer alterações em pontos doutrinaes, fez reviver uma velha theoria sustentada na Edade Media. Os philosophos medievaes, que eram muito amigos de fazer distincções muito delicadas e muito subtis entre os sentidos de umas e outras palavras, ensinaram que a palavra _presença_ significava duas coisas differentes; um corpo estava presente n’uma certa porção de espaço quando occupava essa porção de espaço de tal fórma que nenhum outro corpo podesse estar lá ao mesmo tempo, e um corpo podia tambem estar presente quando occupasse o mesmo espaço juntamente com outra qualquer coisa. A alma do homem estava, diziam elles, no mesmo espaço em que o corpo estava, e ao mesmo tempo. Um d’estes escolasticos, como eram chamados, empregava esta segunda especie de presença para descrever a presença do corpo de Christo nos elementos. Estava presente no mesmo logar e ao mesmo tempo. O pão não era transformado no corpo de Christo; as duas coisas, o pão e o corpo de Christo, podiam estar, e estavam, ao mesmo tempo no mesmo espaço, ou, para usar a phrase corrente, o corpo de Christo estava, na Ceia do Senhor, no pão, com o pão e sob a fórma de pão. Isto, porém, não explicava a presença do corpo de Christo, nem como elle era transportado da dextra de Deus para os elementos. Para o explicar, Luthero serviu-se de uma outra idéa dos theologos medievaes. Diziam elles que pelo facto de Christo ser Deus e homem, duas naturezas n’uma pessoa, todos os attributos da natureza divina de Christo se tornavam tambem propriedades da Sua natureza humana. Um dos attributos de Deus é a omnipresença. A natureza humana de Christo adquiriu da natureza divina este attributo, e pode estar tambem em toda a parte. Se o corpo de Christo está em toda a parte, deve estar nos elementos, sobre a mesa do Senhor, sem que ocorra milagre algum. Luthero serviu-se d’esta ubiquidade do corpo de Christo para explicar como, sem a intervenção do milagre, elle podia estar em, com e sob os elementos do pão e do vinho. Quando lhe perguntaram porque é que havia uma virtude especial n’este caso da presença de Christo—a Sua presença no Sacramento—estando Elle, segundo a sua theoria, presente em toda a parte, replicou que Deus tinha promettido, na Biblia, abençoar o Seu povo mediante a presença do corpo e sangue de Christo nos elementos do sacramento. E assim Luthero tecia uma complicadissima doutrina da presença de Christo no pão e no vinho; desembaraçava-se, certamente, da transubstanciação e do milagre sacerdotal, mas introduzia, em seu logar, inverosimeis idéas escolasticas. Podia, comtudo, d’esta fórma, dizer que o corpo de Christo estava realmente presente, em figura corporea, no pão e no vinho, e isso dava-lhe grande satisfação. Quando, pois, se encontrou com Zwinglio para discutirem a doutrina da Ceia do Senhor, diz-se que pegou n’um pedaço de giz e escreveu em cima da mesa que estava no meio da sala as palavras HOC EST CORPUS MEUM (Isto é o meu corpo). Não acceitava explicação alguma d’estas palavras que affirmasse que o corpo e o sangue de nosso Senhor não estavam corporalmente presentes nos elementos, e accusava os seus antagonistas de interpretarem mal a Escriptura quando se referiam a metaphoras e a symbolos. Foi debalde que Zwinglio contestou que a palavra «é» nem sempre significa identidade de substancia; que quando nosso Senhor disse «Eu sou a videira verdadeira», «Eu sou a porta», não queria dizer que fosse uma vinha ou uma porta no sentido litteral da palavra. Luthero não se demoveu, e a conferencia terminou sem aquella unidade de coração e de proposito que o pio e affectuoso Landgrave esperava que resultasse d’ella. =A Dieta de Augsburgo.=—O imperador tinha sido victorioso em toda a parte fóra da Allemanha, e estava prestes a vir subjugar a Reforma, isto emquanto os protestantes, devido á obstinação de Luthero, se encontravam divididos e desalentados. O Landgrave Filippe fez tudo quanto estava ao seu alcance para conservar unido o partido evangelico, e alguma coisa conseguiu n’esse sentido. O imperador entrou em Augsburgo com grande apparato, e ao principio recebeu muito cordealmente os principes protestantes. Luthero achava-se ausente da cidade. Considerou-se que a sua presença daria logar a uma desnecessaria irritação, e permaneceu, portanto, em Coburgo, onde facilmente poderia ser consultado. Melanchthon ficou a substituil-o como conselheiro theologico. Os chefes dos protestantes eram—João, eleitor da Saxonia, denominado João o constante, em razão da sua fidelidade aos principios evangelicos; Filippe o magnanimo, Landgrave de Hesse; e o edoso Margrave de Brandenburgo, antepassado do ultimo imperador da Allemanha. Estes principes foram recebidos pelo imperador com muita affabilidade. Deprehender-se-hia de tudo isto que se tinha iniciado na Allemanha uma era de paz e concordia. Por detraz dos bastidores, porém, estava Fernando da Austria, irmão do imperador, e cabeça do fanatico partido romanista, com os seus conselheiros theologicos, protestando contra o incitamento á herezia. Afim de o socegar, o imperador escreveu-lhe o seguinte: «Entrarei em negocios, sem chegar a qualquer conclusão: mas, ainda que isso aconteça, não ha motivo para receios da tua parte: nunca te faltarão pretextos para castigar os rebeldes, e has de sempre deparar com quem, com muito gosto, se preste a servir de instrumento á tua vingança.» As suas verdadeiras intenções depressa se tornaram manifestas. Os capellães dos principes protestantes celebravam o culto publico segundo o rito evangelico: e o imperador deu ordem para que tal se não continuasse a fazer. O Eleitor declarou: «Assim que tiver a certeza de que o imperador tenciona suspender a prégação do Evangelho, retiro-me para minha casa.» Quando Carlos, n’uma conferencia particular, pediu aos principes que impozessem silencio aos seus capellães, o velho Margrave de Brandenburgo avançou alguns passos, levou as mãos ao pescoço, e, inclinando-se, disse: «Era mais facil a minha cabeça rolar aos pés de Vossa Magestade do que eu privar-me da Palavra de Deus e negar o meu Senhor». Carlos mostrou-se surprehendido. «Ninguem pensa em cortar cabeças, meu caro Margrave», replicou elle. Comprehendia tão mal os seus subditos protestantes que se encheu de ira quando elles recusaram incorporar-se na procissão que teve logar por occasião da festa de _Corpus Christi_. Seria condescender com a idolatria, seria prestar adoração a uma particula de massa que a Egreja de Roma dizia ter-se transformado na Divindade mediante um milagre operado por um padre, e isso não podiam elles fazer. «Porque não hão de agradar ao imperador? Porque não hão de mostrar respeito ao cardeal?» exclamou Fernando. «Não podemos nem queremos adorar senão a Deus» declararam elles. E assim foram passando os dias. Entretanto os prégadores protestantes dirigiam todos os dias a palavra a grandes concursos de gente na egreja dos franciscanos, e expunham eloquentemente as doutrinas do Evangelho. Carlos resolveu pôr um termo a este estado de coisas, e fêl-o por meio de um accordo cujas vantagens ficaram todas do lado dos catholicos romanos. Melanchthon, sempre timido e amigo da paz, insistiu para que se fizessem algumas concessões. Os prégadores protestantes sairam angustiados da cidade, e Luthero, que observava de longe os acontecimentos, convenceu-se de que Melanchthon, apezar das suas boas intenções, estava traindo a causa. Quando se abriu a Dieta, o imperador quiz que os protestantes expozessem as suas opiniões. Essa exigencia era esperada, e assim Melanchthon tinha, com a collaboração de Luthero, redigido uma Confissão de Fé, em que estavam mencionados, com grande clareza de linguagem, os principaes artigos da sua fé. Era esta a famosa _Confissão de Augsburgo_ (_Confessio Augustana_), o credo que tem sido acceite por todos os lutheranos, embora entre elles tenha havido divergencias n’outros pontos. Carlos queria que elle fosse lido em latim. «Não», respondeu a isto João o Constante, «nós somos allemães, e estamos em territorio allemão. Espero que vossa magestade nos permittirá que fallemos na nossa lingua». E a Confissão foi lida em allemão, não por um theologo, mas por uma outra pessoa que recebeu dos principes esse encargo. =A Confissão de Augsburgo.=—A primeira parte d’esta nobre confissão expõe, um por um, todos os principios evangelicos da Reforma, e em particular os grandes principios da justificação pela fé. Diz-se que, quando o chanceller do Eleitor, Christiano Beyer, leu estas palavras «a fé, que não é o mero conhecimento de um facto historico, mas aquillo que crê, não sómente na historia, mas no effeito que essa historia produz sobre o espirito», toda a assembléa se mostrou commovida. «Christo» disse Justo Jonas, «está aqui na Dieta, e não Se conserva silencioso: a Palavra de Deus não está presa». Passou-se depois á segunda parte da Confissão, que denunciava os abusos da Egreja de Roma. Começava assim: «Visto as egrejas que ha entre nós não discordarem em artigo algum de fé das Sagradas Escripturas ou da Egreja Catholica, e omittirem apenas uns certos abusos, umas certas innovações, que em parte se teem insinuado, e em parte teem sido violentamente introduzidas, sendo todas ellas contrarias ao sentido dos canones, rogamos a Vossa Magestade Imperial se digne prestar ouvidos clementes ás razões que o povo apresenta para que não deva ser forçado, contra as suas consciencias, a observar estes abusos». Declara em seguida que o negar o calix aos leigos é uma pratica que se oppõe, não só á Escriptura como aos antigos canones e ao exemplo da Egreja: que o celibato dos clerigos é uma transgressão do mandamento de Deus: que a missa é «uma profanação do sacramento da Ceia do Senhor»: que a distincção das comidas e as tradições «obscurecem as doutrinas da graça, e induzem o povo a crêr que o christianismo é tão sómente uma observancia de determinadas festas, ritos, jejuns e vestuarios»: que a vida e votos monasticos são altamente perniciosos, e servem para desencaminhar homens e mulheres, pois que «se deve servir a Deus segundo os preceitos que Elle promulgou, e não segundo os que os homens inventam»: que o poder ecclesiastico não é senhoril, mas ministerial. A confissão continha tambem um pequeno artigo em que vinha exposta a opinião lutherana ácerca da doutrina da Ceia do Senhor, e isso compelliu os theologos suissos e os do sul da Allemanha a apresentarem confissões separadas: mas a leitura da confissão de Augsburgo, pelos principes, na Dieta produziu um maravilhoso effeito em toda a Allemanha, e os protestantes adquiriram a animadora convicção de que estavam todos unidos. O imperador viu que só por meio de uma guerra poderia destruir a Reforma, e não se achava preparado para esse recurso. Lembrou-se então de promover umas conferencias que fossem criando uma certa confusão entre os protestantes. Era bem conhecido o caracter submisso de Melanchthon, que n’essas conferencias propunha que, a bem da paz, se fosse cedendo em todos os pontos. Luthero ficou indignadissimo quando, em Coburgo, soube do caso. E escreveu: «A mestre Filippe Kleinmuth (Coração pequeno): Segundo me parece, estaes fazendo uma obra prodigiosa, qual a de reconciliar Luthero com o papa.... Advirto-vos, porém, de que, se é vossa intenção metter n’um sacco essa aguia gloriosa que se chama o Evangelho, Luthero, tão certo como Christo viver, ha-de, fazendo appello a todas as suas forças, ir libertal-o.» Os principes e o povo ficaram tambem pessimamente impressionados com a conducta de Melanchthon. «Antes morrer com Jesus Christo», exclamavam, «do que alcançar, sem Elle, as boas graças do mundo inteiro». Os catholicos romanos pediam, por fim, mais do que Melanchthon podia conceder, e, com grande regozijo dos protestantes, as conferencias cessaram. =A liga protestante de Schmalkald.=—Os principes sabiam que o imperador queria esmagal-os. Elle tornou o papa sciente da sua resolução, e pediu-lhe que excitasse todos os principes catholicos a coadjuvarem-n’o n’aquella obra. Formou-se uma liga catholica. A resposta dos protestantes foi recusarem todos os subsidios emquanto os negocios da Allemanha permanecessem por liquidar. Os principes reuniram-se em Schmalkald, e formaram uma liga protestante, de que Filippe de Hesse foi o membro mais activo. Os estados catholicos romanos não desejavam entrar n’uma guerra civil com os seus visinhos protestantes, e o imperador, atacado pelos francezes e pelos turcos, viu-se na impossibilidade de suffocar a revolta. O ultimo decreto da Dieta havia estabelecido um prazo, que se estendia até á proxima primavera, durante o qual os protestantes podiam fazer a sua submissão voluntaria, e accrescentava que aquelles que não se submetessem durante esse prazo seriam exterminados. Ao chegar, porém, a primavera, reconheceu-se impotente para exterminar os protestantes. A Liga de Schmalkald havia-se tornado a mais poderosa aggremiação da Allemanha. Assim, em 1532, apoz prolongadas negociações, firmou-se um tratado de paz entre Carlos e os principes protestantes. A Paz de Nürnberg, como ficou sendo chamada, permittia aos adherentes á Confissão de Augsburgo o persistirem nas suas doutrinas, e concedia-lhes outros privilegios. Em troca, os principes protestantes, e entre elles Filippe de Hesse, offereceram-se, muito cordialmente, para auxiliar o imperador nas suas campanhas contra os francezes, os turcos e os piratas da Barbaria. A Liga de Schmalkald continuou de pé, e outros estados, taes como o de Würtemberg, deram-lhe a sua adhesão. O imperador não podia dissolvel-a, e, comtudo, ardia em desejos de restabelecer na Allemanha a uniformidade religiosa. O exame da sua correspondencia particular revelou a perplexidade em que elle se encontrava. Tinha umas vezes a idéa da exterminação, e outras a da conciliação. Um dos seus planos consistia em promover na Allemanha um Concilio Geral da Egreja, sem consultar nem o papa nem o rei de França. Em 1538, Held, o seu vice-chanceller, formou em Nürnberg uma Liga Catholica, com o expresso designio de acabar com o protestantismo pela força das armas. Em 1540-41, o imperador diligenciou, por meio de conferencias que se realisaram em Hagenau Worms, e Regensburgo, chegar a um certo entendimento com os protestantes em materia de religião, e chegou a ser proposta em Roma a reforma da Egreja. Foi, finalmente, publicado, em 1541, um decreto da Dieta, estabelecendo que não se podia prohibir, a quem quer que fosse, o adoptar a religião protestante. D’estas victorias da Liga de Schmalkald resultou uma rapida propagação do protestantismo. O Würtemberg, a Pomerania, o Anhalt, o Mecklemburgo, e muitissimas cidades, tornaram-se protestantes; os bispados de Magdeburgo, Halberstadt e Naumberg deixaram de reconhecer a supremacia de Roma; e duas provincias eleitoraes, o Brandenburgo e a Saxonia Albertina, uniram-se á Liga. Os unicos estados que se conservaram na opposição foram a Austria, a Baviera, o Palatinado e as provincias ecclesiasticas do Rheno. Mas mesmo estas regiões começavam a ser influenciadas. Na Austria a religião evangelica ia ganhando terreno entre os proprietarios, os camponezes e os habitantes das cidades. Os bavaros iam-se deixando invadir rapidamente pelas novas idéas. Quanto ao Palatinado, a sua aggregação á Liga de Schmalkald parecia ser apenas uma questão de tempo. O imperador não podia ver com indifferença este rapido progresso do protestantismo; contrariava-o immenso que os seus dominios nos Paizes Baixos ficassem separados d’elle por uma faixa de paizes protestantes; não queria ouvir fallar na possibilidade de uma maioria protestante no Collegio Eleitoral, e de um sucessor do imperio protestante. O procedimento do arcebispo-eleitor de Colonia mostrou-lhe que não havia tempo a perder. Hermann von Wied estava havia muito convencido da necessidade de reformas na Egreja, e depois da paz de Nürnberg, incitado por um grande numero de clerigos, e correspondendo ao evidente desejo de muitas outras pessoas, animou o ensino protestante na sua vasta diocese, e mostrou-se disposto a converter aquella provincia arqui-episcopal n’um estado secular protestante. A posição dos arcebispos e bispos da Allemanha era, nos dias da Reforma, um tanto singular. Não eram simplesmente bispos, mas tambem barões, e, como todos os outros grandes barões sujeitos ao imperador na Allemanha, eram principes soberanos. Os arcebispos de Kõln, Trier e Metz tinham sobre alguns territorios um governo egual ao que João, o Constante, tinha sobre a Saxonia eleitoral, e Filippe, o Magnanimo, sobre Hesse. Eram as supremas auctoridades civicas, com os seus tribunaes, os seus exercitos, os seus cobradores de impostos. O decreto de 1526 era-lhes tão applicavel como aos principes seculares. Podiam fazer-se protestantes, dominar nos seus territorios, como principes seculares, e declarar «que tomavam ante Deus e sua magestade imperial a responsabilidade do seu modo de viver, do seu systema de governo e das suas crenças». Alguns bispos do norte da Allemanha tinham-n’o feito já: a opportunidade era de tentar: podiam, aproveitando-se d’este decreto, libertar-se da obediencia a Roma, casar, e legar a seus filhos o que possuiam. Carlos viu tambem o alcance de aquella opportunidade, mas durante muito tempo foi-lhe impossivel intervir. Todas as vezes que tentou pôr em pratica os seus planos via-se contrariado, ou pelo papa, ou pelo rei de França, ou pelos turcos. Quando lhe constou que parecia estar proxima a conversão de Hermann von Wied, reconheceu-se impotente para luctar com a Liga de Schmalkald. Por fim, em 1544, conseguiu derrotar os francezes, com os quaes tratou, depois, da paz em condições vantajosas para elles, impondo-lhes, porém, a clausula de uma união dos dois exercitos para combater os protestantes. Na Dieta de Spira, que se reuniu no mesmo anno, mostrou-se contemporizador, propondo que se suspendessem hostilidades até á convocação do Concilio Geral; isto ao passo que por outro lado trabalhava para desviar da liga protestante o maior numero de principes que lhe fosse possivel. =A morte de Luthero, e a guerra de Schmalkald.=—No entretanto Luthero, que soffria havia bastante tempo de uma doença do coração, morria em Eisleben, em 18 de fevereiro de 1546, perecendo com elle aquella forte reluctancia dos protestantes em tentarem a sorte das armas. Não estavam, porém, tão bem preparados para a guerra como n’outro tempo. O bom exito que a liga tivera ao principio fez com que elles confiassem demasiadamente n’ella; além d’isso, surgiram rivalidades entre os estados e as cidades, e entre os principes. Filippe de Hesse era o unico chefe competente, mas tinha o defeito de ser um principe de pouco elevada estirpe. Tinham ficado tambem muito prejudicados com o facto de Mauricio ter succedido ao duque Jorge da Saxonia, o grande inimigo de Luthero e da Reforma. Mauricio era sobrinho do duque Jorge, havia sido educado no lutheranismo, e desposou a primeira filha de Filippe de Hesse. Por occasião de elle assumir a chefia, a Saxonia Albertina, como era chamada, confirmou o seu lutheranismo, que durante a vida do duque Jorge se havia propagado clandestinamente, e que se havia tornado a religião reconhecida do paiz quando o duque Henrique, pae de Mauricio, succedeu a seu irmão. Todas estas coisas faziam com que os principes protestantes não podessem prescindir do concurso de Mauricio, apezar do joven não lhes inspirar muita confiança. De facto, Mauricio foi o primeiro de aquelles principes allemães protestantes para quem a Reforma era simplesmente uma arma politica de que lançassem mão quando lhes fosse vantajosa. Mais tarde, durante a guerra dos Trinta Annos, o seu numero augmentou consideravelmente, graças ás interminaveis disputas dos theologos, que, interessados apenas em que as suas insignificantes doutrinas ácerca da _ubiquidade_ e da _presença real_ fossem correctamente definidas, se mostravam quasi indifferentes perante a grande quantidade de sangue derramado e o grande numero de lares desgraçados. Nos primeiros tempos da Reforma, porém, os principes protestantes eram homens sinceramente christãos e que não obedeciam a fins interesseiros, não obstante a sua forçada camaradagem com Mauricio. O imperador quiz aproveitar a opportunidade, e com esse intuito fez algumas propostas a Mauricio. Este começou por abandonar a liga. Era um bom protestante, disse elle, e estava prompto a defender a religião, mas não queria ajuntar-se com aquelles que se oppunham ao seu soberano. O imperador, cobrando animo com esta declaração, deu os ultimos toques aos seus preparativos. Antes, porém, de entrar em acção, proclamou que a sua idéa não era combater a religião, mas, sim, castigar aquelles que conspiravam contra a integridade do imperio. Não vamos agora narrar pormenorisadamente o que teve logar em seguida. Devido á traição de Mauricio, á hesitação dos outros, e á falta de mutua confiança entre os caudilhos da liga, o imperador alcançou uma facil e, apparentemente, decisiva victoria. A batalha de Mühlberg teve logar a 24 de abril de 1547, e João Frederico, eleitor da Saxonia, ficou ferido e foi feito prisioneiro, não tardando que Filippe de Hesse caisse egualmente em poder dos inimigos. Toda a Allemanha se prostrou deante do imperador, que declarou logo a sua intenção de restabelecer a unidade religiosa. Ia redigir um documento denominado o _Interim de Augsburgo_, especie de confissão de fé que os allemães seriam obrigados a acceitar. Eram por meio d’elle reintegrados a hierarquia e o culto catholicos romanos, com todas as suas festividades, jejuns e ceremonias, sendo apenas tolerado o casamento dos clerigos e a faculdade do povo commungar nas duas especies. O Interim era, por assim dizer, um plano de reformação, e estava n’elle incluido, segundo a opinião de Carlos, tudo quanto se devia conceder aos protestantes. Em parte alguma o acceitaram de boa vontade. O imperador não o remetteu aos districtos catholicos romanos, e em todos os protestantes encontrou uma resistencia passiva. O proprio Mauricio hesitou em o proclamar na Saxonia, publicando, em logar d’elle, o _Interim de Leipzig_, que tendia a uma conciliação das ceremonias papistas com as doutrinas protestantes. Em breve se tornou evidente que o codigo religioso do imperador só encontrava submissão da parte do povo nos pontos onde a presença das tropas hespanholas obrigava a essa submissão. O imperador havia triumphado, o seu exercito saira victorioso, parecia ter adquirido um dominio na Allemanha como não succedera a nenhum outro soberano durante muitos seculos, e, comtudo, lá no seu intimo, sentia-se derrotado, pois não conseguira o fim principal que tinha em vista. A invisivel força da consciencia, esse adversario com que elle não contara, estava erguida contra elle, e havia de, por fim, inutilisar todos os seus bem elaborados planos politicos. =O imperador e o Concilio Geral.=—Emquanto o imperador estivera formando e pondo em pratica os seus projectos para a conquista da Allemanha protestante, a côrte pontificia vira-se forçada a convocar um Concilio Geral. Este concilio reuniu-se em Trent, no Tyrol, e, emquanto o imperador andou mettido na tarefa de subjugar os protestantes, esteve tomando deliberações relativas á Egreja. Nos primeiros periodos da controversia a que a Reforma deu origem, os reformadores appellavam constantemente para um concilio livre, e os concilios foram sempre os instrumentos favoritos do imperador para a liquidação das contendas. Os papas, porém, procuravam, antes, evital-os. No seculo quinze, os concilios geraes de Basiléa, Pisa e Constancia foram os meios de que os ecclesiasticos e principes se serviram para investir contra o poder da côrte de Roma. Um concilio geral era um ponto de reunião para todos aquelles que eram adversos ao christianismo papal; e a um politico como Carlos V affigurava-se ser um excellente meio de engrandecer o imperador e humilhar o papa. Anteriormente á Reforma, os concilios geraes eram olhados com muito respeito. Cria-se que o Espirito Santo fallava mediante esses concilios, e muitos theologos medievaes, que negavam a infallibilidade do papa, sustentavam que um concilio não era susceptivel de errar. Nos primeiros seculos da Egreja christã, um concilio geral, ou ecumenico, significava simplesmente uma assembléa que se podia com justiça dizer que representava a Egreja no seu conjuncto, de modo que as suas decisões podiam ser chamadas as opiniões de todos os christãos. N’esses remotos tempos os bispos eram eleitos pelo clero e pelo povo, e eram, portanto, representantes das regiões de onde tinham vindo, e assim um concilio em que todos os bispos christãos estivessem presentes achava-se realmente no caso de fallar em nome de todo o povo christão. Mesmo nas epocas mais puras da egreja primitiva, concilio algum se realisou a que concorressem todos os bispos, e que fosse, por conseguinte, realmente ecumenico e representativo de todos os christãos. No decurso da Edade Media a Egreja perdeu inteiramente o seu antigo caracter popular, ou democratico, e os bispos não podiam ser chamados, n’um sentido rigoroso, os representantes do povo; eram, muitas vezes, apenas os delegados do papa, e iam aos concilios para votar o que elle houvesse dictado. Estas e outras considerações tinham feito com que os protestantes respeitassem menos os concilios, e mostraram ao imperador que um concilio, para ser util, devia estar quanto possivel fóra da influencia do papa. Os allemães tinham pedido que se convocasse um concilio livre na Allemanha, e o imperador tinha tambem ultimamente pedido o mesmo; o papa, por outro lado, queria que o concilio se realisasse em Italia, onde elle poderia mais facilmente ter mão nas suas deliberações e decisões. Depois de muitas negociações entre o papa e o imperador, resolveu-se afinal que o concilio se reunisse, não em Italia, onde o papa poderia ter demasiado poder sobre elle, nem na Allemanha, onde o imperador e os principes poderiam impôr a sua auctoridade, mas em Trent, no Tyrol, n’um ponto equidistante da Allemanha e da Italia. O imperador esperava grandes coisas d’este concilio. Sabia que havia na egreja romana muitos homens competentes que se tinham preparado para grandes reformas, que ao proprio papa, Paulo III, não eram indifferentes; não tinha, porém, contado com a influencia de uma nova e poderosa organisação que estava destinada a alcançar a sua primeira e grande victoria n’esse mesmo concilio para cuja convocação elle havia trabalhado. =Loyola e os jesuitas.=—Ignacio Loyola, joven fidalgo hespanhol, educado no meio da cavallaria de Hespanha, onde as prolongadas guerras com os moiros tinham tornado a dedicação ao papado um grande elemento de patriotismo, ficou com uma perna esmigalhada no cerco de Pamplona. Duas dolorosas operações tinham-n’o convencido, por fim, de que a sua carreira militar tinha findado, e os seus pensamentos voltaram-se na direcção de um novo mister. Votou que havia de ser um soldado da Egreja. Nos accessos da febre produzidos pelo ferimento, tinha phantasticas visões da Virgem; e, ao restabelecer-se, dedicou a sua vida, com todo o ceremonial da cavallaria da Edade Media, a Deus, á Virgem e á Egreja. Elle vivia alheiado da moderna erudição. Não sabia nada de theologia. A sua religião era medieval, e o seu sonho era ser, no seculo dezeseis, um novo Francisco de Assis. É singular que este enthusiastico fidalgo hespanhol fosse excitado pela mesma idéa que ditou a fria politica de Carlos V. Ambos queriam renovar seculos que tinham desapparecido para sempre; e, emquanto um estava planeando a restauração do Imperio do primeiro periodo da Edade Media, o outro estava regalando a mente com uma nova ordem de frades, cujos feitos missionarios haviam de rivalisar com os dos antigos franciscanos. O imperador foi mal recebido; o solitario fidalgo teve um exito que excedeu quasi os seus sonhos. Apoz alguns annos de estudo, de decepções, de demoras, obteve permissão do papa para fundar a Companhia de Jesus. A nova ordem tinha apenas cinco annos de existencia quando teve logar, em 1545, o concilio de Trento, mas já se havia tornado famosa. Os seus sucessos como sociedade missionaria, a sua devoção por Francisco Xavier, e o enthusiasmo de seus membros, tudo contribuiu para a tornar formidavel. Lainez, um dos primeiros discipulos de Loyola, e seu successor como cabeça da companhia, cujo criterio deu á ordem o caracter que lhe estava destinado, representou os seus companheiros no concilio de Trento. A maxima da Sociedade era uma inexoravel suppressão da heresia, e o seu unico principio era a obediencia á Ordem e ao papa; e, n’essa conformidade, Lainez tratou activamente de evitar que o concilio fizesse quaesquer concessões aos protestantes. O seu modo de discursar, a sua subtileza e a sua tenacidade deram-lhe grande influencia. Poude logo ao principio levar de vencida os cardeaes Contarini e Pole, esses grandes catholicos romanos liberaes, e conseguir que o concilio não auctorizasse reformas doutrinaes. As victorias de Carlos na Allemanha ajudaram os jesuitas. O papa não podia jámais pensar ou obrar simplesmente como chefe da Egreja. Elle era uma potencia politica, e as razões de estado influiram nas suas acções. N’esta conjunctura, os interesses do principe italiano oppunham-se á existencia de uma christandade una. O rei de França, Henrique II, chamou a attenção para o facto de Carlos se tornar poderoso em demasia e de ser provavel que assim continuasse se as concessões religiosas estabelecessem a união na Allemanha. Quando Carlos venceu a Liga protestante, e procurou obter de Roma concessões que satisfizessem os subditos que havia submettido ao seu dominio, o papa recusou auxilial-o, afastou de Trento o concilio, e installou-o em Bolonha, na Italia, de modo que os planos do imperador foram novamente contrariados pelo cabeça da egreja que elle se empenhava por conservar catholica. Na sua ira, virou-se para o papa e compelliu-o a dissolver o concilio. Este dispersou para só se tornar a reunir quando toda e qualquer esperança de reconciliar os protestantes tinha desapparecido, e d’esta vez poude, sem a peia do protestantismo, consolidar a organização externa de um dominio exclusivamente papal. O imperador não foi mais bem succedido na Allemanha. As crueldades de que os principes que tinha feito prisioneiros foram victimas, a infidelidade de que deu prova na perseguição dos protestantes, a despeito de tudo quanto tinha feito proclamar, e as extorsões commettidas pelas tropas hespanholas—tudo isto contribuiu para tornar a Allemanha hostil, e não faltavam indicios de que o paiz não supportaria por muito tempo a tyrannia de Carlos. E a revolta teria rebentado mais cedo, se Mauricio, o traidor, não fosse tão odiado, ou se tivessem confiança n’elle. O imperador parecia não ter olhos para ver o que se estava passando. Estava convencido de que Mauricio, a quem havia nomeado eleitor, estava nas suas mãos, e de que sem elle, Mauricio, a Allemanha não podia fazer coisa alguma. Entretanto, os principes procuravam reunir-se de novo. Offereceram á França uma parte do territorio allemão em troca do seu auxilio, e por fim organisou-se uma confederação, em que entrava Mauricio, e os principes trataram de guarnecer as fronteiras do Tyrol, para que estas não fossem transpostas pelas tropas imperiaes. Mauricio avançou impetuosamente e tomou de assalto a fortaleza de Ehrenherg, que era a chave do Tyrol; e o imperador para escapar teve de recorrer a uma fuga subita, e achou-se em Steiermark, sem exercito, e expulso da Allemanha. Foi a um tumulto que se levantou entre as tropas confederadas que elle deveu não ser apanhado, pois que Mauricio fez todo o possivel por agarrar «a velha raposa no covil», segundo a phrase d’elle. =A paz religiosa de Augsburgo.=—Carlos V nunca se resarciu d’este desastre. A Reforma tinha-o, por fim, vencido, e elle reconhecia esse facto, sem, comtudo, o comprehender. Elle não quiz entrar directamente em negociações com os principes victoriosos, encarregando d’isso o seu irmão Fernando. Filippe de Hesse e João Frederico da Saxonia foram postos em liberdade. Filippe reentrou na posse dos seus dominios; a João foram tambem restituidas algumas das suas propriedades, mas Mauricio continuou no logar de eleitor. Os preliminares de uma paz permanente foram vasados nos velhos moldes de Nürnberg, pelo tratado de Passau, em 1552. Por fim, apoz longas negociações, saiu da Dieta de Augsburgo, em 1555, uma paz religiosa, «a qual» dizia o decreto, «tem de ser permanente, absoluta, e incondicional, e tem de durar para sempre». Foi reconhecido aquelle principio que se estabeleceu em 1526, isto é, que a suprema auctoridade civil de cada estado tinha liberdade para escolher o respectivo credo, lutherano ou catholico romano. Esta paz, por conseguinte, reconhecia o direito das egrejas com separadas crenças existirem ao lado umas das outras na Allemanha, tornando assim legal a existencia da Reforma. O principio a que obedecia este regulamento, _cujus regio ejus religio_, acarretava difficuldades que não podem ser aqui descriptas, e foi, na verdade, uma das causas da guerra dos Trinta Annos, que tão calamitosa foi para a Allemanha. Não concedia liberdade de consciencia; não fazia provisão para qualquer outra fórma de protestantismo além da lutherana; e todos aquelles que não tinham adherido á confissão de Augsburgo estavam ainda fóra da lei, juridicamente fallando. Aquelles que fizeram uso d’ella na Dieta tinham de modifical-a de um ou de outro modo. Os protestantes viram que ella auctorizava os principes catholicos romanos a perseguirem os subditos que o não fossem; e os catholicos viram que ella permittia aos principes ecclesiasticos secularizarem os seus estados. Assim os protestantes obtiveram a inserção de uma clausula que declarava que os subditos protestantes de principes ecclesiasticos, que de ha muito tivessem adoptado a confissão de Augsburgo, não seriam obrigados a abandonar as suas idéas religiosas; e os catholicos obtiveram a inserção do que se ficou chamando «a reserva ecclesiastica», que preceituava que, se algum estado catholico romano se separasse de Roma, fosse destituido de todas as prerogativas que as suas dioceses disfructavam. Com a paz de Augsburgo terminaram as luctas para o reconhecimento da Reforma lutherana. A egreja protestante da Allemanha, que adheriu á confissão de Augsburgo, tinha ainda que sustentar um grande combate para se defender da contrareforma catholica romana, das intrigas jesuiticas, e da força das armas durante a guerra dos Trinta Annos. Conservou a sua integridade, mas foi só o que fez. A paz de Augsburgo foi a maré cheia da egreja lutherana. Na lucta que teve logar depois, foi a mais moderna e mais perseverante fórma do protestantismo que arrostou com os impetos do ataque, e que se tornou digna de receber os despojos da conquista. O lutheranismo reteve a sua integridade, consolidou as suas organizações ecclesiasticas, e aperfeiçoou a sua theologia; mas, como vigoroso movimento reformador, a sua historia terminou com a paz de Augsburgo. CAPITULO II A REFORMA LUTHERANA FÓRA DA ALLEMANHA O lutheranismo fóra da Allemanha, pag. 49.—Na Dinamarca, pag. 50.—Na Suecia, pag. 51. =O lutheranismo fóra da Allemanha.=—Durante os primeiros annos da Reforma, a influencia de Luthero transpoz os limites da Allemanha. A Universidade de Wittenberg attrahiu muitos estudantes estrangeiros, os quaes, voltando para as suas terras, propagaram, clandestina ou abertamente, as novas doutrinas. Aconteceu d’esse modo que os preliminares da Reforma n’esses paizes, que depois se separaram de Roma e formaram egrejas protestantes nacionaes, foram quasi inteiramente lutheranos. Os primeiros reformadores e martyres dos Paizes Baixos eram lutheranos, e os dogmas doutrinaes e ecclesiasticos de Luthero foram durante muito tempo acatados na Hollanda. Os movimentos reformadores na Hungria, na Polonia, na Bohemia e na Escocia foram iniciados por homens que se apresentavam como discipulos de Luthero, e mesmo na Inglaterra os principios lutheranos progrediram algum tanto. Em todos esses paizes, porém, foi ganhando, por fim, terreno um outro typo de doutrina protestante, o Calvinismo, e a Reforma lutherana eclipsou-se. Unicamente dois paizes, a Dinamarca e a Suecia, com as suas dependencias, adoptaram de um modo permanente a confissão de Augsburgo e os principios lutheranos do governo da egreja. A Reforma estava n’estes paizes, mais do que em qualquer outra parte, identificada com a revolução politica, e foi executada por governantes que se haviam compenetrado de que não era possivel melhorar o estado das coisas emquanto não fosse abatido o poder de que o clero romano dispunha. A historia da Reforma n’esses paizes é a historia de uma revolução, e a moderna vida politica da Dinamarca e da Suecia principia com a reforma das suas egrejas. No principio do seculo dezeseis, a Dinamarca, a Suecia e a Noruega estavam sob a soberania de um rei que tinha a sua residencia no primeiro d’estes paizes, e que tinha sobre os outros dois um poder apenas nominal. Estes paizes estavam quasi n’um estado de anarquia. Duas grandes aristocracias, a da nobreza e a da egreja, dividiam entre si a riqueza e o poderio, sendo cada um dos barões e cada um dos bispos um verdadeiro despota para com aquelles que estavam debaixo da sua auctoridade. A união das tres nações, effectuada no fim do seculo quatorze, era puramente dynastica, e vista com muito maus olhos pelo povo. Em 1513 subiu ao throno Christiano II, cruel, voluvel e nescio monarca, que grangeara em ambos os paizes a antipathia de todas as classes. Um massacre de fidalgos suecos, que teve logar em Stockolmo, em circumstancias as mais revoltantes, exgotou a paciencia do povo, e a Dinamarca e a Suecia levantaram-se contra o tyranno. A revolução foi bem succedida; Christianno II foi derrubado do throno, e as duas nações ficaram de ahi em deante independentes uma da outra. =Na Dinamarca.=—Os dinamarquezes offereceram a corôa a Frederico I, duque de Schleswig-Holstein, que era um ardente lutherano, e chefe d’um estado que já tinha acceite a Reforma. Acceitou-a, e por occasião da sua coroação o clero obrigou-o a declarar por escripto que não introduziria á força a religião reformada, nem atacaria a egreja de Roma, nos seus novos dominios. Frederico cumpriu essa obrigação segundo a letra, mas não segundo o espirito, da mesma. Favoreceu e protegeu prégadores e evangelistas lutheranos, e em particular a João Jansen, frade dinamarquez, que tinha estado em Wittenberg; e a nova fé fez taes progressos que dentro em pouco quasi todos os nobres da Jütlandia a tinham abraçado, e nas ilhas o numero de adeptos era consideravel. Em fins de 1527 reuniu-se em Odensee uma Dieta, expressamente para ser tratada a questão religiosa, e ficou assente a tolerancia do lutheranismo. Durante os annos que immediatamente se seguiram, as novas doutrinas espalharam-se com rapidez por entre o povo. Os catholicos romanos intentaram readquirir o seu poder por occasião do fallecimento de Frederico, em 1533, mas não o conseguiram, e a auctoridade dos bispos foi desapparecendo a pouco e pouco, até se extinguir de todo. Os nobres haviam cooperado com o rei na sua obra de demolir a aristocracia ecclesiastica, e as terras que eram da egreja ficaram, na sua maioria, pertencendo ao rei. A Dinamarca ficou sendo, desde então, um paiz protestante. O seu credo é a confissão de Augsburgo, porque os lutheranos nunca adoptaram, na Dinamarca, a formula da concordata; o seu catecismo é o de Luthero; e sua fórma de governo de egreja, posto que admitta um episcopado, é consistorial. A constituição vem exposta no _Ordinatio ecclesiastica regnorum Danicæ et Norwegeæ_, de Bugenhagen. O rei possuia o _jus episcopale_, e era a suprema dignidade ecclesiastica; os nobres eram os patronos; e a Egreja era governada por sete superintendentes com o titulo de bispos. Na grande lucta entre o protestantismo e o catholicismo romano no seculo dezessete, a chamada guerra dos Trinta Annos, a Dinamarca enviou aos protestantes da Allemanha todo o auxilio de que o paiz podia dispôr. =Na Suecia.=—Depois do massacre de Stockholmo, Gustavo Vasa, joven fidalgo sueco, que havia perdido quasi todos os parentes n’aquella carnificina, organisou a rebellião contra Christianno II, e trabalhou muito para que ella tivesse bom exito. Em 1521 foi declarado regente do reino, e em 1523 foi, pela voz do povo, chamado ao throno. Achou-se em presença de difficuldades quasi invenciveis. Não tinha havido, praticamente, um governo estabelecido na Suecia durante mais de um seculo, e cada dono de terras era quasi um soberano independente. Dois terços das terras pertenciam á Egreja: e o terço restante pertencia quasi inteiramente á nobreza; os camponezes eram em toda a parte opprimidos; o commercio estava nas mãos da Dinamarca ou da Liga Hanseatica; e não havia classe media. Os nobres e os ecclesiasticos exigiam isenção de contribuições, e os camponezes não podiam supportar novos encargos. N’estas circumstancias Gustavo Vasa voltou os olhos para as terras da egreja, e planeou a demolição da aristocracia ecclesiastica com o auxilio da Reforma lutherana. Parece não haver razão para crer que o rei não fosse um homem religioso, perfeitamente compenetrado da verdade e do poder das doutrinas evangelicas; mas o seu zelo pela Reforma obedecia tambem a outros motivos. Precisava de dinheiro para as despezas publicas, queria proporcionar aos camponezes uma situação mais desafogada, e ambicionava, acima de tudo, demolir a poderosa aristocracia ecclesiastica, que se arrogava direitos que só a elle pertenciam como rei. Teve de proceder cautelosamente. A gente do campo não conhecia as doutrinas lutheranas, nem queria mudar de religião; os nobres opinavam que o rei estava atacando os direitos da propriedade, e que lhes chegaria a vez a elles, se consentissem que os bens da egreja fossem arrebatados; e, quanto á aristocracia ecclesiastica, essa dispunha de muita força. É necessario tambem lembrar que, quando Gustavo se poz á frente do movimento que tinha por fim derrubar a tyrannia da Dinamarca, essa tyrannia foi abençoada pelo papa e recebeu o apoio dos bispos suecos. Elle era um homem excommungado, um homem a quem a egreja havia proscripto. Essa circumstancia pôl-o em contacto com os prégadores lutheranos, que já andavam pela Suecia. Dois irmãos, Olaf e Lourenço Petersen, que tinham estudado em Wittenberg, e que no seu regresso á Suecia tinham prégado contra um certo vendilhão de indulgencias que havia penetrado no seu paiz, foram perseguidos pelos bispos e fugiram para Lubeck, onde Gustavo travou conhecimento com elles. Elles e um outro lutherano sueco, Lourenço Andersen, arcediago de Strengnäs, eram abertamente protegidos pelo rei, e começaram a prégar contra o culto dos santos, contra as peregrinações, contra a vida monastica e contra a confissão auricular. Olaf Petersen, sobretudo, andava por uma parte e por outra prégando o Evangelho puro, «que Ansgar, o apostolo do norte, annunciara na Suecia setecentos annos antes.». Os bispos protestaram contra as suas predicas, e em resposta o reformador desafiou-os para uma polemica, que elles não acceitaram. O resultado d’isso foi uma rapida propagação das doutrinas evangelicas. Gustavo poz Olaf Petersen como prégador em Stockholmo, Lourenço Petersen foi leccionar para Upsala, e Lourenço Andersen foi nomeado chanceller do reino. Promoveram-se polemicas publicas, segundo o costume allemão, em diversos pontos do reino; e por fim, em 1524, Olaf Petersen e o dr. Galle de Upsala discutiram publicamente as doutrinas da justificação pela fé, das indulgencias, da missa, do Purgatorio, do celibato e do poder temporal do papa, o que foi assaz vantajoso para a causa da Reforma. Em 1526 Andersen concluiu a traducção do Novo Testamento em sueco, e o povo, em cujas mãos o livro foi entregue, poude então comparar o ensino dos prégadores e dos bispos com o da palavra de Deus. A falta de dinheiro para occorrer ás despezas publicas fazia-se sentir de uma fórma assustadora, e em 1526 foram impostas, por duas Dietas, pesadas contribuições sobre as propriedades da Egreja. O partido ecclesiastico, com os bispos á frente, promoveu uma revolta, que foi suffocada, e Gustavo conheceu que havia chegado a occasião de pôr em pratica os seus planos. Na Dieta de Westeräs expoz a situação financeira do reino, e propoz que uma parte da enorme riqueza da Egreja fosse applicada ao pagamento da divida nacional, revertendo de ahi em deante as receitas em favor do cofre da nação. Os nobres rejeitaram este alvitre; os clerigos declararam que só á força cederiam. Vendo isto, Gustavo, apoz um eloquente discurso, abdicou. Os diversos estados pozeram-se então em contenda uns com os outros, e, depois de uma anarquia de alguns dias, assentiu-se na proposta de Gustavo, a qual foi convertida em lei e publicada n’um decreto da Dieta, que marca realmente o inicio da historia moderna da Suecia. Ficou estabelecido, entre outras coisas, que o rei tinha o direito de se apoderar dos castellos e cidadellas dos bispos, e tomar posse de todos os bens ecclesiasticos; e ficou egualmente reconhecida a existencia legal da egreja lutherana. D’essa epoca em deante a obra da reformação progrediu rapidamente, e dentro em pouco o lutheranismo tornou-se a religião official do paiz. Os bens da Egreja foram confiscados para o Estado, deixando-se, porém, ficar o sufficiente para a sustentação do culto. Conservou-se a fórma de governo episcopal, mas ficou rigorosamente estabelecida a supremacia do rei, como na egreja lutherana. Retiveram-se muitas ceremonias e costumes papistas, taes como o uso da agua benta, dos retabulos e das velas, mas tudo protestantemente interpretado. Lourenço Petersen foi o primeiro arcebispo protestante de Upsala, cargo que começou a exercer em 1531. Dez annos depois, isto é, em 1541, ficou completa uma nova traducção da Biblia, feita pelos irmãos Petersen. Quando Gustavo morreu, todo o paiz estava inteiramente consorciado com a egreja lutherana, e a sua affeição ao severo lutheranismo demonstrou-a elle adoptando, em 1664, a Formula da Concordata. II PARTE A REFORMA SUISSA, QUE DEU ORIGEM ÁS EGREJAS REFORMADAS CAPITULOS: I—A REFORMA SUISSA SOB ZWINGLIO. II—A REFORMA EM GENEBRA, SOB CALVINO. III—A REFORMA EM FRANÇA. IV—A REFORMA NOS PAIZES BAIXOS. V—A REFORMA NA ESCOCIA. CAPITULO I A REFORMA SUISSA SOB ZWINGLIO As reformas suissa e allemã, pag. 57.—A situação politica da Suissa, pag. 58.—Ulrico Zwinglio, pag. 60.—As theses de Zwinglio, pag. 62.—A Reforma em Zurich, pag. 63.—Basiléa, pag. 64.—Berne, pag. 64.—Os Cantões Florestaes, pag. 64.—Caracteristicos da Reforma de Zwinglio, pag. 65. =As reformas suissa e allemã.=—A Reforma na Allemanha tem geralmente chamado mais a attenção do que a revolta contra Roma na Suissa. O conflicto com o imperador, que ella provocou, o seu rapido alastramento, o numero de estados e reinos que adheriram a ella, a parte que as universidades, onde estavam matriculados muitos estudantes estrangeiros, tomaram no movimento, tudo isso contribuiu para que Luthero e a Allemanha adquirissem mais conspicuidade do que Zwinglio e a Suissa; mas, se devemos julgar uma Reforma mais pelas suas consequencias do que pelos seus principios, o movimento começado na Suissa foi ainda mais importante do que o que teve Wittenberg por centro. Com o decorrer do tempo, foi-se reconhecendo que as idéas dos reformadores suissos, tanto pelo que lhes dizia respeito como pelo que dizia respeito á organização da egreja, podiam ser facilmente transplantadas para outros paizes, e de ahi veiu que as egrejas de França, da Escocia, da Hungria e uma grande parte das da Allemanha receberam melhor as tradições de Zwinglio e de Calvino do que as de Luthero e de Melanchthon. Isto é talvez devido ao facto de que os grandes theologos da Reforma no sul da Europa eram menos inclinados a submetter-se ás tradições, tanto doutrinaes como de qualquer outro genero, da egreja medieval, mesmo em assumptos que para algumas pessoas pareciam ser de pouca importancia, sob o ponto de vista da fé, e insistiram logo desde o principio em que se devia seguir as claras instrucções da Escriptura, tanto as que se referem aos pequenos casos como aos de muita importancia. Nem Zwinglio nem Calvino queriam adoptar a doutrina da _presença real_ pela razão de a egreja medieval a ter adoptado, e não experimentaram aquella dificuldade que Luthero teve sempre em fazer uma coisa de um modo differente de aquella em que os seus antepassados a faziam. É provavel, comtudo, que houvesse uma outra razão que tivesse a mesma força, e que essa razão se deva procurar nas idéas politicas e na educação do povo suisso. Na egreja medieval os direitos dos christãos tinham desaparecido inteiramente. Quando alguem fallava em egreja, referia-se ao papa, aos bispos, aos abbades, aos frades, ás freiras e aos padres; não se referia á grande corporação dos christãos piedosos, que constituiam, realmente, a egreja de Deus. Na Reforma de Luthero, posto que elle e os outros reformadores soubessem perfeitamente que a verdadeira egreja visivel era constituida pelo povo piedoso que professava a fé em Jesus Christo, não tinham podido dar uma expressão pratica a esse sentimento, e o systema consistorial dos lutheranos collocava os principes e as outras auctoridades civis no logar que os bispos e as suas côrtes tinham occupado. Poderiam dizer que o povo christão era a egreja; mas nunca diligenciaram dar a essa egreja uma fórma tal que ella podesse pensar e agir por si propria, como os christãos dos tempos apostolicos e postapostolicos tinham feito. Pode-se quasi dizer que não trataram de incutir na vida da egreja reformada as maximas de auto-governo que inspiraram a communidade christã do Novo Testamento. Tinham a noção medieval de que a egreja tinha de ser dirigida de fóra, que não podia dirigir-se a si mesma. Na Suissa, logo desde o principio se tornou bem evidente que a egreja e o povo christão eram uma e a mesma coisa, e os projectos de auto-governo, que, se não foram sempre bem succedidos, eram, pelo menos, feitos com boa intenção, faziam parte da Reforma proposta. Isto proveiu, indubitavelmente, de um cuidadoso estudo do Novo Testamento; mas a vida popular dos suissos, uma vida livre, ajudava-os a comprehender o sentido do Novo Testamento, e assim poderam, logo de começo, enveredar pelo bom caminho. Uma Reforma iniciada no amago da livre e democratica vida suissa estava mais no caso de comprehender a democracia espiritual do christianismo do Novo Testamento do que aquella que principiou nas universidades e nas côrtes dos principes allemães. =A situação politica da Suissa.=—A Suissa era, n’aquelle tempo, um paiz como não havia outro na Europa. Estava tão dividido como a Italia ou a Allemanha, e, comtudo, apresentava uma união que ellas não apresentavam. Era uma confederação de estados, ou cantões, cada um dos quaes era independente de aquelles com que confinava, mantendo, porém, com elles uma perfeita alliança. Era uma confederação de republicas independentes, ou, antes, «uma pequena republica de communas e cidades do primitivo typo teutonico, em que o poder civil era exercido pela communidade», cada uma d’ellas com um systema governativo differente. Os camponezes suissos tinham-se revoltado contra os proprietarios no principio do seculo quatorze; a batalha de Morgarten, onde 1.300 suissos derrotaram 10.000 austriacos, teve logar em 1315. Cerca de dois seculos mais tarde, os cantões florestaes formaram uma liga para defeza mutua, a que pouco depois se aggregaram outras pequenas communidades de cidadãos livres. A sua bandeira era vermelha com uma cruz branca ao centro, e tinha a seguinte inscripção: «Um por todos, e todos por um.» Os cantões florestaes eram communas independentes, e os seus habitantes, todos elles proprietarios rusticos, residiam em valles quasi inaccessiveis. Zurich pertencia a uma cidade que se havia formado em redor de uma colonia ecclesiastica; Berne a um antigo logarejo que se aninhava junto á base de um castello senhorial; e assim por deante. Os cantões florestaes tinham um governo simples, patriarcal; em Zurich os nobres tinham a mesma consideração que os commerciantes e artistas, e a constituição era perfeitamente democratica; Berne era uma republica aristocratica; e assim successivamente; mas em todas ellas o governo estava nas mãos do povo, e todos os homens eram livres. Uma outra coisa digna de nota é que na Suissa não houve, durante umas poucas de gerações, nada que se parecesse com uma administração episcopal. As suas communicações com o pontificado eram effectuadas por meio de delegados, ou emissarios, e obedeciam apenas a motivos politicos. O territorio estava sob a jurisdicção dos arcebispos de Mayença e de Besançon; mas nem elles nem os prelados visinhos tinham em tempo algum exercido qualquer pressão sobre o clero paroquial dos cantões suissos, e d’este modo não havia tanta difficuldade em introduzir reformas na egreja. No principio do seculo dezeseis a civilisação estrangeira e a convivencia com os paizes adjacentes foram mudando os velhos e simples costumes do povo suisso. Na Edade Media era crença geral que a força principal de um exercito estava na sua cavallaria; mas as victorias que os suissos alcançaram sobre as tropas austriacas e borgonhezas mostraram a superioridade de uma boa infanteria, convenientemente adestrada. As tropas suissas tinham fama de serem as melhores do mundo, sendo muitas vezes solicitado o seu auxilio pelos estados visinhos quando tinham de entrar em campanha, e entre os suissos havia-se desenvolvido gradualmente o mau habito de alugar os seus soldados a quem maior somma de dinheiro offerecesse. Era costume, quando um regimento suisso partia para a guerra por conta de qualquer nação estrangeira, levar comsigo, na qualidade de capellão, o paroco da localidade a que o dito regimento pertencia; e alguns d’esses capellães, verificando que este serviço mercenario tendia a desmoralizar o exercito, faziam todo o possivel, no seu regresso á patria, para que esta perniciosa pratica fosse abolida. =Ulrico Zwinglio.=—Um dos mais famosos d’estes patriotas foi Ulrico Zwinglio, paroco de Glarus, e que mais tarde veiu a ser o Reformador da Suissa. Zwinglio nasceu em 1 de Janeiro de 1484, em Wildhaus, no Toggenburgo, pequena região montanhosa, cuja altitude era tal que não produzia arvores de fructo, sendo tambem impossivel cortal-a de estradas. O pae d’elle era o chefe, ou magistrado, da communa, e um dos seus tios era o deão de Wesen. O pae resolvera destinal-o á carreira ecclesiastica, e como, em vista da sua desafogada situação, estava no caso de proporcionar ao filho uma boa educação, mandou-o estudar em Basiléa e em Berne, de onde passou para a grande universidade de Vienna. Ahi seguiu elle com grande brilho os estudos classicos, enchendo-se de enthusiasmo pela nova instrucção que a Italia estava ministrando á Allemanha e á França, e sentindo orgulho em pertencer á classe dos humanistas. De Vienna voltou para Basiléa, e estudou theologia com Thomaz Wyttenbach, um de aquelles theologos liberaes que reprovavam abertamente as indulgencias, sobre o fundamento de que Christo resgatou, com a Sua morte, os peccados de todos os homens. Foi pensando no seu velho professor que Zwinglio disse, muitos annos depois: «Devemos ter consideração por Martinho Luthero; mas o que é certo é que aquillo que temos em commum com elle já o conheciamos muito antes de ouvir fallar no seu nome». Recebeu o seu grau de Mestre de Artes em 1506, e em seguida foi nomeado cura da pequena paroquia de Glarus. Viveu ahi dez annos, lendo e estudando os auctores classicos latinos, e em especial Cicero, Seneca e Horacio; começou tambem a aprender grego com muito afan, e a esse respeito escreveu a um dos seus amigos: «Só se assim fôr da vontade de Deus é que eu deixarei de me iniciar no grego; não o faço para adquirir fama, mas para ter mais profundo conhecimento das Escripturas Sagradas.» Os seus livros favoritos do Novo Testamento eram, diz-se, as Epistolas de S. Paulo. Copiou-as com as suas proprias mãos de mais de um manuscripto, e sabia-as, por fim, de cór. Os seus estudos biblicos impelliram-n’o a declarar que o unico meio de chegar ás verdadeiras doutrinas era prestar ouvidos á exposição que a Biblia fazia de si propria, e que o papado havia feito com que a egreja se corrompesse. Era este o seu modo de pensar em Glarus, quando Luthero era ainda um dedicado filho da egreja medieval, torturando-se com jejuns e flagellações. Em 1516 foi transferido para a paroquia de Einsiedeln, onde havia uma abbadia que era, e ainda é, o santuario de uma celebre imagem da Virgem, a que se attribuiam muitos milagres. As multidões vinham em peregrinação a esta localidade, e Zwinglio sentia crescer a sua indignação perante a idolatria e superstição de aquella gente, e perante o embuste e sacrilegio do abbade e dos padres que estavam sob as suas ordens. Começou a fazer prégações aos peregrinos, mostrando-lhes a loucura e o peccado de dar culto ás imagens e aos santos. N’um dos seus sermões proferiu o seguinte: «Na hora da vossa morte clamae só por Jesus Christo, que vos comprou com o Seu sangue, e que é o unico Mediador entre Deus e os homens.» Estas suas predicas produziram uma enorme excitação, e, tendo constado em Roma, foi dada ordem ao legado do papa para reduzir o prégador ao silencio, offerecendo-lhe uma promoção na egreja. Elle recusou todos os offerecimentos de melhoria de situação que o dito legado lhe fez, mas quando o conselho dos cidadãos de Zurich lhe pediu, em 1519, para ir para lá como pastor, acceitou muito gostosamente, e não tardou em ter uma grande influencia n’aquella importante cidade e capital de cantão. Pouco depois de elle se installar em Zurich, um vendedor ambulante de indulgencias, Bernardo Samson, appareceu a offerecer ao povo o artigo do seu commercio. Zwinglio protestou contra o seu procedimento, e conseguiu que as auctoridades o pozessem fóra. Começou tambem a fazer uma serie de conferencias sobre o Novo Testamento, em que expoz as doutrinas da graça e da justificação pela fé sómente. Estas conferencias eram feitas na presença de centenares de pessoas, que ouviam o Evangelho com agrado. A Suissa tinha, em virtude de antigos tratados, provido de infanteria o papa nas suas guerras com o imperador; a influencia de Zwinglio, porém, era tão grande que em 1521 o cantão de Zurich recusou alugar os seus soldados, como até ali tinha feito. Esta patriotica resistencia a um infame trafico de sangue levantou maior opposição do que todos os sermões prégados por Zwinglio, e os clerigos papistas do cantão, assim como os bispos das visinhas dioceses, empregaram todas as diligencias para que a sua voz deixasse de ser ouvida. No anno anterior o legado do papa tinha pedido á Dieta suissa que procurasse e destruisse todos os livros lutheranos que haviam penetrado no paiz, e a Dieta passou ordens n’esse sentido. A junta da cidade de Zurich, influenciada por Zwinglio, posto que obedecesse apparentemente á Dieta, intimou todos os curas, pastores e prégadores a «prégarem os Santos Evangelhos e as Epistolas em conformidade com o Espirito de Deus e com as Sagradas Escripturas do Antigo e Novo Testamento.» Esta intimação deu um impulso ao movimento evangelico, que já havia principiado. Zwinglio publicou o seu tratado sobre o jejum em 1522, e muitos habitantes de Zurich começaram logo, durante a quaresma, a fazer uso das comidas prohibidas pela egreja. Prégou contra o celibato clerical, e o povo applaudiu-o. O papa, Adriano II, queria a todo o transe evitar uma questão com os suissos, cujas tropas lhe eram tão uteis, e tentou dissuadir Zwinglio por boas maneiras, nada conseguindo, porém. Emquanto os legados percorriam leguas e leguas para lhe transmittirem os lisongeiros recados de que eram portadores, escrevia Zwinglio o seu _Apologeticus_, vigoroso ataque ás corrupções da egreja. O bispo de Constancia pediu aos habitantes de Zurich que impozessem silencio ao reformador; Zwinglio solicitou d’elles licença para uma discussão publica, e comprometteu-se a provar, na presença de todos, que as suas opiniões se fundamentavam na Biblia. A junta accedeu, e fixou, para essa discussão, o dia 23 de Janeiro de 1523. =As theses de Zwinglio.=—A fim de separar convenientemente os assumptos a discutir, Zwinglio compoz uma lista de sessenta theses, inscrevendo por sua ordem os pontos em que a sua doutrinação differia da dos seus accusadores, constituindo o conjuncto um bem elaborado resumo de theologia protestante. As theses affirmavam, em poucas palavras, o seguinte:—Jesus Christo, e só Elle, é o verdadeiro objecto do culto, e é só Elle a quem se deve glorificar; e a unica coisa necessaria é abraçal-O e abraçar o Seu Evangelho. Tudo quanto Roma apresenta para intervir entre Christo e o Seu povo, ou para accrescentar ou tirar alguma coisa do Evangelho, não passa, por consequencia, de meras pretensões, com que insulta a Jesus Christo, nosso unico Summo Sacerdote. Christo morreu na cruz, resgatando, de uma vez para sempre, os peccados do Seu povo, e portanto a missa, que se assevera continuar, ou repetir, esse sacrificio, constitue uma falsidade, e a eucaristia é apenas uma ceremonia commemorativa. Jesus Christo é o unico Mediador entre Deus e o homem, e, assim, o culto dos santos é uma idolatria. A Escriptura Sagrada não contém uma palavra ácerca do purgatorio, e é coisa que não existe. Nada desagrada mais a Deus do que a hypocrisia; segue-se, portanto, que tudo quanto assume santidade aos olhos dos homens é loucura; e isto é uma condemnação dos capuzes, dos symbolos, dos habitos e das tonsuras.—Por similhante fórma, Zwinglio condemnou a ordenação, a confissão auricular, a absolvição, o celibato clerical e todas as ordenanças exclusivamente ecclesiasticas. Ajuntou-se uma grande multidão de gente a ouvir a polemica, e, na opinião dos assistentes, Zwinglio derrotou facilmente os seus antagonistas. Esta polemica foi seguida por outra, em 1523, e por uma terceira, em 1524, e resultou das tres que o cantão de Zurich e os seus magistrados se pozeram inteiramente ao lado de Zwinglio. =A Reforma em Zurich.=—Ficou resolvida, em Zurich, uma reforma do culto e de todo o systema ecclesiastico. Declarou-se que a missa não era tal um sacrificio; que não se devia venerar as imagens; que a Ceia do Senhor era uma simples commemoração da morte de Christo; que se devia ministrar o calix aos seculares; e que todo o serviço religioso devia ser feito na lingua corrente do povo. A procissão de Corpus Christi foi abolida, e deixaram de ser pagas a extrema-uncção e a confissão. Em 1524, Leão Judæus, amigo de Zwinglio, começou a traduzir o Velho Testamento, e antes de decorridos dez annos tinha a Suissa cinco versões da Biblia. Em Zurich havia uma cathedral, com deão e capitulo, sendo todas as suas despezas custeadas com o rendimento de vastas propriedades. Os conegos, reunidos em capitulo, desistiram dos seus beneficios. Uma parte do dinheiro foi destinada ao sustento dos ministros da cidade, e o resto ficou constituindo um fundo de instrucção. Era com este fundo que a assembléa de Zurich, seguindo o conselho de Zwinglio, pagava ao professorado das escolas. Foi tambem resolvido que se solicitasse em todos os conventos, tanto de frades como de freiras, uma renuncia de bens em beneficio da instrucção, e em muitos d’esses estabelecimentos assim se fez, sob a condição de ficar garantida a sua subsistencia emquanto vivessem. A unica coisa que contrariou esta reformação foi a vinda, do norte da Allemanha, de uns certos fanaticos anabaptistas. Os discipulos de Thomaz Münzer não tardaram em causar perturbações. Conseguiram, com a sua prégação, agregar a si alguns adherentes de entre a população de Zurich. As suas doutrinas eram muito extravagantes. Diziam que todos os crentes, constituindo um sacerdocio espiritual, eram especialmente ensinados de Deus e não precisavam de leis que não fossem as que os seus corações e consciencias lhes dictassem. E, para se mostrarem coherentes, queimaram as suas Biblias em publico. Tinham idéas singularissimas. Como Christo tivesse dito que os Seus discipulos se deviam tornar como creancinhas, os enthusiastas anabaptistas, tomando esse preceito á letra, brincavam com bonecos nas ruas de Zurich, e faziam outras coisas egualmente absurdas. O enthusiasmo converteu-se por fim n’uma especie de loucura, de que resultou haver sangue derramado. O conselho tolerou durante bastante tempo as suas manias, mas viu-se por fim obrigado a mandal-os retirar, proseguindo depois a obra da reforma com a mesma tranquillidade como anteriormente. A Reforma estendeu-se aos cantões circumvisinhos, taes como Basiléa, Berne, Schaffhausen e Appenzell. =Basiléa= era a séde de uma famosa universidade, muito frequentada pelos sabios; Erasmo fazia d’ella o seu quartel general. Era tambem o centro da industria do papel, e a maquina de impressão de Froben deu-lhe uma grande celebridade. Era muito visitada pelos artistas, e n’ella habitou o grande Holbein durante o periodo tumultuoso da Reforma. Muitos dos lettrados que n’ella residiam estavam sob a influencia de Wyttenbach, professor de Zwinglio, e achavam-se predispostos para acolher benevolamente as novas doutrinas. Capito, o futuro reformador de Strasburgo, Polyhistor, o eminente hebraista e celebre physico, Œcolampadius, o sabio de Reuchlin e futuro companheiro de Zwinglio, e Farel, joven francez natural do Delphinado, que tanto insistiu mais tarde com Calvino para que não deixasse de ser o campeão da Reforma, eram, todos elles, habitantes de Basiléa. A polemica de Zurich estimulou alguns d’elles, e Œcolampadius e Farel começaram a prégar contra a superstição. =Berne=, a mais aristocratica das pequenas republicas suissas, fez-se tambem representar na polemica de Zurich, e dentro em pouco a Reforma começou a palpitar no meio dos cidadãos que a compunham. O conselho foi instigado a annunciar que na cidade só seria prégado o Evangelho puro, e tres prégadores, Kolb, Haller e Sebastião Meyer, aproveitaram a permissão para fallarem contra a missa e contra as ceremonias papistas. Uma lucta similhante teve logar em quasi todos os outros cantões, durante a qual a Reforma foi, ainda que lentamente, ganhando sempre terreno, e por fim a Suissa ficou dividida em duas partes pela questão religiosa. =Os cantões florestaes= foram os unicos que se conservaram aferrados ás suas antigas tradições, constituindo um centro de opposição a toda e qualquer mudança em materia de religião. Quando a Reforma começou a mostrar um indiscutivel progresso, não só em Zurich como nos outros cantões, e Berne e Basiléa a haviam adoptado por completo, produziu-se uma tal exacerbação entre os estados catholicos romanos e os estados protestantes que a guerra parecia inevitavel. Em 1529 estava, em ambos os lados, tudo preparado para a lucta, e Zwinglio alimentava a esperança de que tudo se liquidasse rapidamente e de uma maneira decisiva. Ao primeiro recontro, porém, não se poude dar o nome de batalha, e os cantões florestaes, sem terem combatido, assignaram o Tratado de Cappel em 1529, cuja clausula principal era esta: «Como a palavra de Deus e a fé não são coisas em que seja licito usar de compulsão, ambos os partidos ficam com a liberdade de observar o que entenderem ser justo, e tanto nas provincias communs como nos territorios independentes as congregações determinarão se a missa e outras usanças devem ser conservadas ou abolidas.» Este tratado não foi rigorosamente observado por nenhum dos partidos, e deu logar a novas contendas, que terminaram com a vinda subita dos Cantões Florestaes sobre Zurich, cujo exercito derrotaram, ficando Zwinglio morto. Esta victoria não deu um grande avanço á causa romanista. O segundo Tratado de Cappel contém quasi as mesmas disposições que o primeiro, e o resultado foi que, tanto na Suissa como na Allemanha, cada estado ficou com a liberdade de escolher a sua religião. =Caracteristicos da Reforma de Zwinglio.=—Com a morte de Zwinglio termina a primeira phase da Reforma suissa, e, antes de elle morrer, a conferencia de Marburgo, assim como a antipathia de Luthero por uma constituição popular na egreja, mostrou claramente que na Reforma tinha de haver dois movimentos distinctos, que jámais se poderia unificar. Esta falta de união foi causa de um grande prejuizo, e as culpas não devem ser atiradas para cima de Zwinglio, mas sim para cima de Luthero. Ambos tinham o mesmo fim em vista; ambos criam nos mesmos principios evangelicos; as suas divergencias eram insignificantes, em comparação de tudo aquillo em que concordavam. O feitio caracteristico da Reforma de Zwinglio, porém, torna-se muito mais manifesto na sua ultima fórma sob Calvino, e é referindo-nos a esse periodo que a vamos comparar com o movimento lutherano. Zwinglio e os que com elle cooperaram na obra da reforma fizeram muito pouco no sentido de resolver uma questão que em breve tomou na egreja reformada uma importancia capital: a maneira como a egreja tinha de ser governada. Para elle era um ponto indiscutivel a necessidade de ter sempre presente no espirito de todos que não havia ordem ou classe alguma de homens que podessem ser chamados _espirituaes_, simplesmente pelo facto de exercerem certas funcções. O que elle desejava era que todos se compenetrassem do sacerdocio espiritual de todos os crentes, ministros ou leigos. Mostrou tambem que era dever de todos os magistrados administrar em nome de Christo e obedecer ás Suas leis. D’estas inteiramente boas e verdadeiras idéas passou a perfilhar a opinião de que na egreja não devia haver um governo separado do que estivesse á testa dos negocios civis da republica. N’essa conformidade, todos os regulamentos respectivos ao culto publico, ás doutrinas e á disciplina da egreja foram feitos, no tempo de Zwinglio, pelo Conselho de Zurich, que era, n’aquelle estado, o supremo poder civil. Esta sua idéa, mesmo durante a vida d’elle, apresentou muitos inconvenientes, sendo um dos mais manifestos a ligação que se formou entre a Reforma protestante e certas emprezas puramente politicas. Zwinglio entendia que as nações modernas deviam ter, como o antigo reino de Israel, governos theocraticos. Se as idéas de Zwinglio tivessem continuado a prevalecer, não é provavel que a Reforma suissa tivesse exercido o poder que exerceu para além das fronteiras da republica; posto que, sob a influencia directa de Zwinglio, se adaptassem facilmente a um pequeno estado como o de Zurich, não se podiam ter applicado a outros maiores, e de maneira alguma convinham a uma pequena egreja protestante que tivesse de luctar pela sua existencia contra um governo secular que lhe fosse hostil. CAPITULO II A REFORMA EM GENEBRA SOB CALVINO Genebra perante a Reforma, pag. 67.—Farel em Genebra, pag. 68.—A mocidade de Calvino, pag. 69.—_Institutos da Religião Christã_, pag. 71.—Calvino em Genebra, pag. 73.—A sua expulsão, pag. 75.—Genebra não pode passar sem elle, pag. 76.—As _Ordenanças ecclesiasticas_, pag. 77.—Em que differem dos _Institutos_ pag. 79.—O seu effeito sobre uma reforma de costumes, pag. 81.—A morte de Calvino, pag. 82.—Succede-lhe Beza, pag. 83.—A influencia de Calvino sobre a theologia da Reforma, pag. 83.—A _Confissão de Zurich_, pag. 84. =Genebra perante a Reforma.=—Depois da morte de Zwinglio e da segunda Paz de Cappel, em 1531, os incidentes mais notaveis da Reforma suissa localisaram-se n’uma cidade que estava quasi desligada da confederação. Genebra era, desde o seculo doze, a séde de um bispado, e os seus bispos tinham, como muitos outros do Imperio Allemão, jurisdicção sobre os negocios civis. Os duques de Saboya reivindicavam tambem os seus direitos sobre a cidade, e os dois partidos, o do bispo e o do duque, andavam quasi constantemente em guerra. Durante o seculo quinze a população da cidade foi adquirindo gradualmente o direito de se governar a si propria, podendo, por fim, eleger um conselho constituido pelos seus concidadãos. Em 1513 o papa Leão X poz á testa da diocese um bispo que pertencia á casa de Saboya, e d’este modo os dois partidos oppostos fundiram-se n’um só. Temos, pois, que no principio da Reforma estavam em frente uma da outra, em Genebra, duas facções rivaes: a dos saboyannos e a dos habitantes da cidade. Um dos partidos trabalhava para que a cidade ficasse por completo sob o dominio da casa de Saboya; o outro pretendia tornal-a uma republica livre, como os cantões da Suissa, e para conseguirem o fim que tinham em vista contrairam uma alliança com Berne e com Freiburgo. Os saboyannos, que com os seus modos atrevidos e licenciosos se haviam tornado muito mal vistos pela pacifica população, eram conhecidos pelo nome de «mamelukos», ao passo que os do partido republicano eram cognominados «Eidgenossen», isto é, confederados. Este ultimo nome desperta algum interesse, por ser provavelmente d’elle que se originou o nome do grande partido protestante francez, os huguenotes. A erudição do periodo da Renascença havia penetrado na cidade, assim como a devassidão italiana. O partido aristocratico tinha-se tornado notorio pela sua má vida. O palacio do bispo e o castello do duque de Saboya eram theatro dos mais impudentes excessos, e estes maus exemplos tinham corrompido muito a gente da cidade. O clero seguia o exemplo do seu superior, e consta que havia apenas uma casa religiosa, o convento das freiras franciscanas, em que se observava uma certa pureza de vida. Os republicanos não eram isentos dos vicios que deshonravam os seus adversarios; o seu desejo de liberdade era muitas vezes um desejo de licença, e o seu enthusiasmo republicano tinha em muitos casos uma origem pagã. Eram filhos da Renascença, e possuiam todos os defeitos d’esse estranho movimento. A cidade estava cheia de scepticismo, licenciosidade e superstição. As indulgencias do papa tiveram sempre muito boa venda em Genebra. =Farel em Genebra.=—Estavam as coisas n’este pé quando, em 1532, veiu residir para Genebra, começando a prégar violentos e impetuosos sermões contra o «anti-christo romano» e a idolatria e superstições da egreja romanista, um joven francez, Guilherme Farel, que fôra um dos reformadores de Berne. As suas predicas produziram um grande alvoroço; os partidarios do bispo denunciaram-n’o, e os burguezes tinham a seu respeito opiniões desencontradas. Em 1525 os «eidgenossen» estavam definitivamente alliados a Berne e a Freiburgo. Berne era protestante, e havia enviado Farel a Genebra; Freiburgo era romanista, e havia encarregado algumas pessoas de instarem com os burguezes para que pozessem fóra da cidade o impetuoso orador. Elles pensaram muito no caso, e por fim pediram a Farel que se retirasse. Este assim fez. O conselho resolveu depois manter a alliança com Berne, que era o cantão mais forte, e dar uma das egrejas á gente de Berne, para celebrarem n’ella o culto protestante. Farel voltou para Genebra, e foi nomeado pastor d’essa egreja. O povo vinha em grandes multidões ouvil-o prégar, e a Reforma foi avançando. O duque de Saboya e o cantão de Freiburgo fizeram causa commum contra Genebra, atacaram-n’a, e foram repellidos. O Conselho declarou abolida a diocese, concedeu a Farel plena liberdade para prégar, e os seus sermões sobre liberdade civil e religiosa accenderam o enthusiasmo do povo. Em 1535 teve logar, por ordem do conselho, uma assembléa publica, em que Farel e tres companheiros seus desafiaram todos os presentes, como os cavalleiros faziam nos torneios, para discutirem com elles os pontos sobre theologia e moral que estavam em debate entre a egreja de Roma e os reformadores. O povo de Genebra, impetuoso e desordenado, que não sabia conter-se, nem comprehendia que as coisas tinham de ser feitas devagar e com a devida legalidade, precipitou-se, depois da polemica, para as egrejas, destruiu as reliquias, derrubou as imagens, rasgou os paramentos, e commetteu muitos outros actos de violencia. Em 27 de agosto o conselho declarou abolido o catholicismo romano, e ordenou a todos os cidadãos que adoptassem a religião reformada. A conversão forçada de uma cidade inteira, por mandado do conselho municipal, suprema auctoridade civil, não poderia, decerto, melhorar o caracter do povo. Havia, sem duvida, muita gente sobre quem a prégação de Farel produzira bom effeito, mas o Evangelho não pode conquistar os corações quando é imposto d’aquella fórma. O estado moral da cidade era tão mau como no tempo do bispo, e tudo indicava uma mudança para peior. Uns certos enthusiastas devassos começaram a apregoar doutrinas falsas e immoraes ácerca da natureza da liberdade christã. Parecia não haver meio de suster o povo. Farel tinha esgotado todos os recursos da sua intelligencia. Por fim teve mão n’um moço estudante francez que, quasi accidentalmente, se encontrava na cidade, e supplicou-lhe que se conservasse junto d’elle e o auxiliasse. Esse moço estudante era João Calvino, e aquella visita casual foi o inicio da obra de Calvino em Genebra, tão importante para todas as egrejas reformadas da Europa. =A mocidade de Calvino.=—João Calvino, ou Chauvin, nasceu em Noyon, na Picardia, em 10 de Julho de 1509. Era, portanto, uma creança quando Luthero e Zwinglio começaram a atacar a egreja romanista, e pode-se dizer que pertence á segunda geração da Reforma. O pae exercia um cargo publico em Noyon, e era, além d’isso, secretario do bispo; a mãe, uma senhora muito religiosa, chamava-se Joanna Le Franc de Cambrai. As relações que o pae mantinha com as familias nobres da região e com o bispo habilitaram-n’o a dar ao filho a melhor educação que n’aquelle tempo era possivel adquirir-se. O rapaz foi creado com os filhos da nobre familia de Mommor, e havia-lhe sido destinada, desde os primeiros annos, a carreira ecclesiastica. Quando o joven Calvino contava apenas treze annos, o pae obteve para elle a apresentação para um beneficio ecclesiastico, e mandou-o para a universidade de Paris. Foi primeiro para o Collegio de La Marche, onde teve por professor o celebre Mathurino Corderier,[1] e em seguida para o Collegio Montaigu, que mais tarde recebeu um outro alumno que egualmente se celebrizou, Ignacio de Loyola. Consta que o joven Calvino era pouco sociavel, e que os seus condiscipulos lhe pozeram a alcunha de «caso accusativo», pelo motivo de estar sempre a queixar-se d’este ou de aquelle. Quando elle tinha dezoito annos, o pae obteve-lhe outro beneficio, e, para receber o respectivo estipendio, teve de sujeitar-se á tonsura, sendo esta a unica coisa que elle teve em commum com os padres da egreja de Roma. Não chegou a ordenar-se, nem fez voto de celibato. Em 1528 o pae teve uma desintelligencia com o bispo, e resolveu que o filho, em vez de padre, fosse advogado, mandando-o, com esse intuito, estudar jurisprudencia em Orleans. O mancebo obedeceu; tornou-se um applicado estudante de direito, posto que similhantes estudos não fossem do seu gosto; e, trabalhando de dia e de noite, conseguiu cursar com egual exito tanto aquella faculdade como a de theologia. Alcançou fama de ser o estudante mais distincto do seu tempo, e era voz corrente que com as suas aptidões podia aspirar á mais elevada posição na carreira juridica. Com a morte do pae, em 1531, Calvino adquiriu a liberdade para seguir a vida que mais lhe agradasse. Abandonou os estudos de direito, voltou, em 1532, para Paris, e aggregou-se socegadamente á pequena communidade de protestantes que costumavam reunir-se n’essa cidade para lerem e estudarem as Escripturas, e para fazerem oração. Elle não nos diz porque deu esse passo. Fêl-o tão naturalmente que com certeza já havia muito que andava pensando no caso. Calvino fugia sempre de fallar no que se tinha passado com elle sob o ponto de vista religioso. Era, a este respeito, muito differente de Luthero. Este contava a sua historia com a maxima franqueza, a todos expunha as suas duvidas, os seus temores, a sua fé. Cada um tinha a sua natureza especial. Só uma vez é que Calvino tirou de cima de si o véu com que se cobria. No prefacio ao assombroso _Commentario ao Livro dos Psalmos_ diz-nos que Deus o attraiu a Si mediante uma «subita conversão». Devia ter acontecido isso quando Calvino estava em Orleans. Desde esse momento renunciou a uma brilhante carreira, não quiz acceitar mais os proventos ecclesiasticos, e ajuntou-se á pequena communidade evangelica de Paris, disposto a partilhar os perigos que ella corresse. Entregou-se a uma tranquilla vida litteraria, e já tinha começado a publicar algumas obras, quando teve de fugir de Paris a toda a pressa, para não ser preso por causa da sua religião. Foi para Strasburgo, onde travou conhecimento com o reformador Martinho Bucer, e de ahi para Basiléa e varios outros pontos, levando uma vida de estudante nomada. [1] Corderier, Corderius, ou Cordery era, ha cincoenta annos, um nome bem conhecido nas escolas paroquiaes da Escocia, onde se fazia uso dos seus exercicios em todas as aulas de latim. Converteu-se á fé reformada mediante o seu famoso discipulo, e fez tudo quanto estava ao seu alcance para espalhar as doutrinas evangelicas, utilisando para esse fim as phrases que nos seus exercicios deviam ser traduzidas em latim. Na edição que publicou pouco depois da sua conversão, as referidas phrases eram breves exposições das verdades evangelicas, ou energicos, ainda que laconicos, ataques ás superstições romanistas. Seguiu Calvino para Genebra, e falleceu ahi aos 88 annos. =Os Institutos da Religião Christã.=—Na primavera de 1536 publicou em Basiléa a primeira edição dos seus _Institutos da Religião Christã_. A obra estava escripta em latim, e foi depois traduzida em francez, para uso, como elle proprio disse, dos seus compatriotas. A primeira edição era mais pequena, e a todos os respeitos inferior, ás edições revistas de 1539 e 1559; mas como producção de um rapaz de vinte e seis annos, que era a edade que Calvino tinha quando a publicou, não tem talvez rival. Grangeou para o seu auctor o titulo de «Aristoteles da Reforma», e, mais do que qualquer outro trabalho theologico, influiu nas idéas e amoldou o caracter da Reforma Protestante. Calvino diz-nos, no seu prefacio, que escreveu este livro com um duplo fim. Quiz, com elle, «preparar os estudantes de theologia para a leitura da Palavra divina, fornecendo-lhes uma facil introducção, e habilitando-os a vencer todos os embaraços». Mas tinha tambem em vista justificar o ensino dos reformadores e desfazer as calumnias dos seus inimigos, que haviam instado com o rei de França para que os perseguisse, e os expulsasse de França. Tinha a seguinte dedicatoria: «_A Sua Christianissima Magestade, Francisco, rei de França, e seu soberano, João Calvino deseja paz e salvação em Christo_». E ajuntava: «Exponho-vos a minha confissão, para que conheçaes a natureza d’essa doutrina que tem provocado uma tão ilimitada raiva a esses desvairados que estão agora, por meio do fogo e da espada, pondo o vosso reino em desasocego. Pois não tenho receio algum de confessar que este tratado contém um summario d’essa mesma doutrina que, segundo os clamores d’elles, merece ser castigada com prisão, desterro, proscripção e fogueira, e exterminada da superficie da terra». Quiz, de um modo preciso, e com toda a brandura, mostrar o que os protestantes queriam, e fêl-o tão habilmente que incitou logo á comparação d’essas crenças com o ensino da egreja medieval. Luthero fez grande ostentação do Credo dos Apostolos, e nunca se cançava de dizer que elle e os seus correligionarios acceitavam aquella antiga e venerada summula da fé christã, e que, portanto, os protestantes pertenciam á Egreja Catholica de Christo. Calvino reivindicou o mesmo; mas não ficou por ahi: mostrou que aquella asserção era verdadeira, ainda mesmo quando se descesse aos mais pequenos detalhes, e que, postos á prova do Credo dos Apostolos, os protestantes eram catholicos mais genuinos do que os romanistas. Para ver claramente o que Calvino tinha na idéa com a publicação dos seus _Institutos_ é necessario lembrar o que era o Credo dos Apostolos. Nosso Senhor, antes da Sua ascensão, disse aos Seus discipulos que fossem a todas as nações, baptizando-as em nome do Pae, do Filho e do Espirito Santo; e assim os pastores christãos da era apostolica e post-apostolica, quando recebiam na Egreja as pessoas que se convertiam, exigiam d’ellas que fizessem a seguinte profissão de fé: «_Creio em Deus Pae, e em Seu Filho Jesus Christo, e no Espirito Santo_, sendo esta a mais antiga e mais simples formula do Credo. Depois accrescentou-se-lhe mais estas palavras: _e na Santa Egreja Catholica_. Estas quatro orações eram proferidas por todos os neophytos por occasião do baptismo. O Credo dos Apostolos e todos os outros credos primitivos são simplesmente desenvolvimentos d’essas quatro phrases; e os primeiros livros theologicos que explicavam todos os pontos referentes á doutrina christã eram exposições do Credo, assim como o Credo era, por seu turno, uma exposição da confissão baptismal. Isto mostra-nos, entre outras coisas, que a verdadeira theologia nasceu da simples expressão de uma confiança em Deus acompanhada de adoração. Os _Institutos_ de Calvino são, na realidade, uma exposição do Credo, e dividem-se em quatro partes, cada uma d’ellas explicando uma porção do Credo. A primeira parte falla de Deus o Creador, ou, como o Credo diz: «Deus, Pae Omnipotente, Creador do céu e da terra»; a segunda parte de Deus Filho, o Redemptor, e da Sua redempção; a terceira parte, de Deus Espirito Santo e dos Seus meios de graça; e a quarta, da Egreja Catholica, e da sua natureza e distinctivos. A disposição, pois, que elle deu á sua obra, seguindo passo a passo o Credo dos Apostolos, mostra que Calvino mantinha ácerca da Reforma aquella mesma opinião que Luthero diligenciou expôr nitidamente no seu tratado sobre o _Captiveiro Babylonico da Egreja de Deus_. Nunca lhe acudiu á mente que estivesse contribuindo para a fundação de uma nova egreja, ou que estivesse elaborando um novo credo, ou escrevendo uma nova theologia. Não cria que os protestantes fossem homens que mantivessem opiniões originaes, até então desconhecidas. A theologia da Reforma era a velha theologia da Egreja de Christo, e as opiniões dos protestantes eram convicções da verdade que se baseiavam na Palavra de Deus, e que, conforme constava da historia da Christandade, haviam sido partilhadas por todo o povo religioso. A theologia em que elle cria e que elle ensinava era a velha theologia dos primitivos credos, exposta com toda a clareza, e despojada das supersticiosas e falsas noções que pelos pensadores medievaes haviam sido copiadas dos ritos e philosophia do paganismo. A Reforma, dizia-se nos _Institutos_, não engendra opiniões novas, trata apenas de desmascarar as falsidades e apresentar, em toda a sua pureza, as verdades antigas. =Calvino em Genebra.=—A publicação dos _Institutos_ fez com que Calvino se tornasse bem conhecido dos primeiros vultos da Reforma; e quando, nas suas peregrinações, deu comsigo em Genebra, tencionando passar ali a noite e abalar em seguida, Farel pediu-lhe que ficasse ali com elle e o auxiliasse nas difficuldades em que se encontrava. Calvino não queria de fórma alguma abandonar aquella sua vida de estudante, mas ao mesmo tempo reconhecia que era um dever para elle deitar mãos ao trabalho que podia executar em Genebra, e por fim resolveu ficar na companhia de Farel. Diz elle no prefacio ao seu _Commentario sobre o Livro dos Psalmos_: «Como o caminho mais direito para Strasburgo, para onde tencionava retirar-me, estava impedido por causa da guerra, tinha resolvido passar rapidamente por Genebra, demorando-me na cidade uma noite apenas.... Sabedor d’isto, Farel, que trabalhava com extraordinario zelo para que o Evangelho progredisse, empregou logo os maiores esforços para me deter. E, depois de lhe ter dito que toda a minha ambição era poder entregar-me socegadamente aos meus estudos, não me encontrando, portanto, predisposto para qualquer outro encargo, elle, perdida a esperança de conseguir qualquer coisa por meio de rogos, começou com imprecações, invocando a maldição de Deus sobre os estudos que eu desejava fazer com toda a tranquilidade, se eu me retirasse, deixando de prestar o meu concurso n’uma occasião de aquellas em que era tão necessario. Ouvindo estas suas palavras, senti-me tão atterrorisado que desisti da viagem que projectava.» Calvino tinha vinte e sete annos e Farel quarenta e sete, quando começaram a trabalhar juntos em Genebra, e, não obstante a differença das edades, tornaram-se amicissimos um do outro. «Tinhamos um coração e uma alma», diz Calvino. Farel apresentou-o aos conselheiros da cidade. Principiou a sua obra fazendo conferencias na cathedral, e immediatamente se reconheceu que a sua palavra era attrahente e efficaz. A junta nomeou-o pastor, e, de collaboração com Farel, metteu hombros á grave tarefa de organizar a Reforma. Somos informados de que elle redigiu os artigos de fé e os regulamentos para o governo da Egreja, tendo antes d’isso, isto é, pouco depois da sua chegada a Genebra, escripto um catecismo para a infancia. A obra dos reformadores foi approvada pelo conselho da cidade, e esta, pelo que dizia respeito a todos os seus aspectos exteriores, adoptou por completo a religião reformada. Farel sabia, porém, havia muito, e Calvino em breve o reconheceu tambem, que o de que Genebra necessitava era uma reforma moral. A cidade era o mais que podia ser de dissoluta, e havia muito tempo que permanecia n’aquelle estado. Os que durante muitas gerações tinham estado á testa dos negocios publicos conheciam esse facto, e tinham promulgado leis contra o viver licencioso. Entre os arquivos de Genebra relativos ao principio do seculo dezeseis, e ainda entre alguns do seculo quinze, apparecem leis sumptuarias contra o jogo, a embriaguez, as mascaradas, as danças e o luxo no vestuario; e, examinando os documentos judiciaes, encontram-se referencias a condemnações por infracções d’essas leis, commettidas muito antes de Calvino ter fixado lá a sua residencia. Isto tem sido esquecido pelos historiadores quando accusam Calvino de ter tentado reformar o povo, mediante, como nós diriamos, leis votadas no parlamento. Calvino não fez essas leis, nem ha evidencia de elle as considerar muito importantes. Era, porém, de opinião, que sustentou sempre com toda a firmeza, de que ás pessoas que tinham uma vida immoral, cujas acções e linguagem não estavam em harmonia com a sua profissão christã, não se devia permittir que participassem da solemne instituição da Ceia do Senhor, e esse seu modo de vêr não tardou em indispôl-o com os habitantes de Genebra. Ao cabo de muitas admoestações, os reformadores resolveram, por fim, exercer a disciplina ecclesiastica, afastando solemnemente da Mesa do Senhor os commungantes indignos. Os magistrados, que estavam sempre promptos a promulgar leis restrictivas do vicio, e até mesmo do viver faustoso, não quizeram consentir em que se pozesse em execução esta ordem de quem tinha a superintendencia na Egreja, e, ainda mais, o pulpito ficou de ahi em deante vedado a Calvino e a Farel. Estes não se submetteram, e no domingo de Pascoa de 1538 prégaram a uma multidão excitada e armada, recusando administrar á congregação a Ceia do Senhor, para evitar que esta fosse profanada. No dia seguinte a junta da cidade reuniu-se para apreciar a conducta de Calvino e Farel. Os reformadores foram accusados de pretender usurpar o poder mediante os seus regulamentos ecclesiasticos, entre os quaes figuravam o da abolição de todos os dias santos, excepto o domingo, e o do desuso da pia baptismal e do pão asmo na Ceia do Senhor. Estas accusações eram, evidentemente, meros pretextos, pois que o proprio Calvino havia declarado que lhe era quasi indifferente que as coisas que atraz mencionamos fossem ou não postas em pratica. O que os realmente predispunha contra Calvino e Farel era a supposição em que estavam de que elles pretendiam estabelecer um novo papado; os magistrados desejavam conservar nas suas mãos, não só a administração civil como a disciplina da Egreja. O resultado de tudo isto foi Calvino e Farel serem expulsos da cidade, não pelos papistas, mas por aquelles que até ali tinham contribuido para o avanço da Reforma. O facto d’este conflicto entre os reformadores e os genebrenses ter ocorrido logo no principio da vida publica de Calvino revela uma grande differença entre os dois ramos da Reforma, o reformado, ou calvinista, e o lutherano. Calvino mostrou ter, desde o inicio da sua carreira, noções muito claras ácerca da disciplina da Egreja e do direito que a communidade christã tinha de se governar a si propria em assumptos espirituaes e do direito dos que estavam em auctoridade na Egreja tinham de excluir dos privilegios a todos aquelles que fossem indignos de participar d’elles. Luthero e Melanchthon tinham as mesmas idéas, mas não as pozeram em pratica. Luthero não modificou o modo como a superintendencia era exercida, limitando-se a transferil-a das mãos dos bispos para as das auctoridades civis; e o effeito pratico, posto que não premeditado, d’isto foi ficarem sendo os magistrados os que arbitravam se esta ou aquella pessoa devia ou não approximar-se da mesa do Senhor. Calvino, por outro lado, viu logo desde o principio que a Egreja, para ter uma existencia visivel, e conservar-se distincta do Estado, devia ter o direito de declarar quaes as pessoas que estavam no caso de ser admittidas como membros da Egreja e partilhar todos os privilegios da mesma, e ter a auctoridade para censurar os aggravos espirituaes e punil-os mediante a perda dos sacramentos. Não consta que Calvino pedisse em tempo algum outra coisa além de que a disciplina da Egreja fosse exercida pela propria Egreja, representada pelos seus officiaes. Calvino, logo no começo da sua carreira, proclamou a independencia da Egreja em assumptos espirituaes, taes como a admissão á mesa do Senhor e a exclusão d’ella. =Calvino é expulso de Genebra.=—Expulso de Genebra, Calvino foi para Basiléa, e d’ahi para Strasburgo, onde permaneceu tranquillamente tres annos, ministrando a uma numerosa congregação de refugiados francezes, e occupando-se com trabalhos litterarios. Strasburgo tinha sido um logar intermediario entre a Allemanha e a Suissa, e Calvino travou ahi conhecimento com muitos theologos allemães. Contraiu uma intima amizade com Melanchthon, e encontrou-se com elle e com outros reformadores allemães nas conferencias religiosas que se realizaram em Francfort, Worms e Regensburgo. Em Setembro de 1540 casou com Idelette de Bure, viuva de João Storder. Idelette era uma senhora muito temente a Deus e muito instruida, e teve, do seu casamento com Calvino, tres filhos, que morreram todos na infancia. Calvino não se refere muito, na sua correspondencia, á sua vida domestica, mas as cartas que escreveu a alguns amigos muito intimos ácerca do fallecimento da esposa e do fallecimento dos filhinhos demonstram que no peito do austero e ceremonioso francez batia um coração susceptivel de grandes affectos. =Genebra não pode passar sem Calvino.=—No entretanto, Genebra continuava agitada. Farel e Calvino haviam sido expulsos, e estavam longe da cidade, mas o povo sentia a necessidade da sua presença. Não havia agora ali uma influencia que a todos dominasse, e as coisas caminhavam de mal para peior. Calvino tinha dito que a infidelidade tinha por origem a depravação a que elle se oppozera, e os cidadãos mais esclarecidos começaram a ver o quanto de verdade havia n’esta observação. As desordens sociaes iam quasi conduzindo a desastres politicos. Os bernenses intentaram apoderar-se da cidade; os catholicos romanos, tendo á frente o cardeal Sadolet, trabalharam por submettel-a de novo ao papismo; os anabaptistas, inimigos de toda a organização ecclesiastica e social, os libertinos, os livres pensadores, todos luctaram por obter o predominio em Genebra, e por fim a população começou a sentir-se cançada de aquella tumultuosa situação e a anhelar pelo regresso dos seus desterrados ministros. A junta da cidade dirigiu-se a Calvino, pedindo-lhe que voltasse. Elle ao principio recusou. «Não ha localidade que me aterrorize tanto como Genebra», escreveu elle a um amigo. Continuaram, porém, a instar com elle para que voltasse; muitos dos amigos que elle tinha entre os reformadores francezes e allemães solicitaram-lhe que accedesse ao pedido dos genebrenses, e as cidades suissas de Berne, Zurich e Basiléa fizeram côro com elles. Condescendendo finalmente, regressou a Genebra. Os magistrados offereceram-lhe para moradia uma casa com jardim situada nas proximidades da sumptuosa egreja, nomearam-n’o ministro e professor de theologia, e fixaram-lhe um estipendio annual de quinhentos florins, doze medidas de trigo e duas cubas de vinho. Além d’isso, prometteram que na Egreja de Genebra seria posta em vigor a disciplina ecclesiastica, pois que Calvino havia insistido n’esse ponto. A convivencia que tivera com os lutheranos ainda o tornara mais cuidadoso em manter o direito que á Egreja assiste de velar pela sua pureza. Voltou triumphante a Genebra, e foi recebido com as mais extravagantes manifestações de regozijo. Foi mais uma vez desapontado no seu grande desejo de uma tranquilla vida litteraria, e durante o resto dos seus dias teve de dedicar-se inteiramente á causa publica. Depois d’isso nunca mais saiu de Genebra, de que foi, segundo dizem, durante vinte e quatro annos o senhor. Os historiadores teem-n’o comparado a individualidades de indole muitissimo differente. Segundo uns, foi o Lycurgo de Genebra; segundo outros, um dictador romano, ou um novo Hildebrando, ou um Califa musulmano. O que é certo é que fez uma grande obra, e passou a vida n’uma incessante actividade, apezar de estar quasi sempre doente, soffrendo muito de dôres de cabeça e de asthma. Prégava umas poucas de vezes por semana, e todos os dias dava aula. Escreveu commentarios a todos os livros da Biblia, compoz tratados theologicos, e tinha sempre que attender a uma immensa correspondencia. Era elle quem dirigia a Egreja reformada em toda a Europa, e, segundo a idéa de muitas pessoas, era, por assim dizer, omnipotente em Genebra, tendo sido attribuidos á sua influencia tanto os bons como os maus resultados da chamada theocracia genebrense. É inquestionavel que durante o seu governo em Genebra o caracter da cidade mudou inteiramente. Tendo sido a mais frivola e mais devassa de todas as cidades europeas, tornou-se o berço do puritanismo, tanto francez, como hollandez, como inglez, como escocez. As danças e mascaradas passaram a ser coisas desconhecidas; as tabernas e o theatro estavam sempre ás moscas, ao passo que as egrejas e os salões de conferencias se enchiam até á porta. =As ordenanças ecclesiasticas.=—O que effectuou tudo isto foram as famosas ordenanças ecclesiasticas da Egreja de Genebra, e o modo em que ellas foram applicadas pelos magistrados. Estas ordenanças eram, segundo as poucas palavras do preambulo, o «regimen espiritual, que Deus ordenou na Sua Egreja, e que, sob uma fórma propria, tinha de ser observado na cidade de Genebra», e teem sido adoptadas por todas as egrejas presbyteriannas. Em conformidade com estas ordenanças, ha quatro especies ou graus de officio na Egreja christã, estabelecidos por Deus para o governo da mesma, e os que os exercem são chamados pastores, professores, presbyteros e diaconos. Compete aos pastores, que teem tambem o nome de superintendentes e bispos, expôr a Palavra, administrar os sacramentos, e, conjunctamente com os presbyteros, exercer a disciplina; eram geralmente escolhidos pelos ministros em exercicio, e nomeados pelos magistrados, com o consentimento do povo; tinham de dar contas dos seus actos nas conferencias que para esse fim tinham logar trimestralmente na Egreja, e eram, outrosim, responsaveis perante o consistorio e a junta da cidade. Da classe dos professores faziam parte todos os lentes da universidade e os mestres das escolas. Os presbyteros tinham a seu cargo a disciplina. Não eram eleitos pela congregação, mas, sim, nomeados pela junta da cidade, com previa consulta dos pastores; e todos elles tinham de ser membros das juntas. Conjunctamente com os pastores, faziam uma visita annual a toda a area que lhes pertencia, e experimentavam, de um modo simples, a fé e o proceder de todos os membros da egreja. A assembléa de todos os presbyteros e de todos os pastores constituia o _Consistorio_, que era o conselho executivo e legislativo da Egreja. O Consistorio reunia-se todas as semanas, sob a presidencia de um dos quatro syndicos, ou primeiros magistrados, de Genebra, afim de receber e examinar todos os documentos relativos a irregularidades na vida e na conducta de quaesquer membros da Egreja, e deliberar ácerca da pena ecclesiastica a applicar a este ou áquelle caso, pena que podia ir até á exclusão da Mesa do Senhor. Não estavam auctorizados a infligir qualquer censura ou castigo que não fosse espiritual, mas tinham obrigação de participar todos os delictos á auctoridade civil, que era a unica que tinha o direito de punil-os. Todos os presbyteros eram escolhidos pela junta, e tinham de ser membros d’ella, resultando de ahi que os magistrados genebrenses que tomavam assento no consistorio na qualidade de presbyteros recolhiam as informações relativas a factos criminosos e transmittiam-n’as a si proprios quando tomavam assento na junta na qualidade de magistrados. Os diaconos cuidavam dos pobres e dos enfermos, e eram egualmente nomeados pela junta. O plano do governo da Egreja concorda, nas linhas geraes, com os principios que Calvino expoz nos seus _Institutos_, mas differe d’elles em tantos detalhes importantes que se torna impossivel acreditar que todo elle fosse obra do Reformador. Nos _Institutos_ expoz Calvino com a maxima clareza quaes são os verdadeiros principios do governo e disciplina ecclesiasticos. Prova que Deus educa e aperfeiçôa o Seu povo n’esta vida mediante a Sua Egreja, e que para a edificação da Egreja proveu uma variedade de dons, que não são concedidos indescriminadamente a todos os christãos, sendo limitado o numero d’estes que os teem recebido em maior escala. Estes dons podem ser classificados em tres categorias, instrucção, governo e caridade, ou, como os reformadores escocezes disseram, doutrina, disciplina e distribuição, e a Egreja pode verificar que alguns dos seus membros teem um talento especial para instruir, outros para dirigir, e outros para tomarem conta das collectas e da distribuição do dinheiro. Deus conferiu estes dons, e collocou na Egreja homens capazes de os exercerem, para edificação do Seu povo, e, por consequencia, as funcções que se desempenham na Egreja são de caracter ministerial e não tendem a exaltar pessoa alguma. Os officiaes são homens que melhores serviços podem prestar á communidade, e são, portanto, responsaveis perante esta e perante Deus pelo modo como os prestam. Calvino insistiu muito na verdadeira natureza e valor do presbytereado, que elle considerava a mais efficaz barreira contra a conquista de uma supremacia sobre a Egreja, como aquella que tinha sido uma das mais censuraveis usurpações da Egreja de Roma. Mediante este officio tem a Egreja aquelle governo methodico sem o qual nenhuma sociedade pode existir, e a communidade christã pode conservar-se livre da usurpação do poder e da tyrannia ecclesiastica por meio de um governo verdadeiramente representativo, isto é, livremente escolhido pelos membros da congregação. Calvino affirmou tambem, com muita insistencia, que este governo era espiritual, e que só lhe pertencia julgar as infracções espirituaes e infligir castigos espirituaes. O maior castigo espiritual era, segundo elle, a excommunhão. =As ordenanças ecclesiasticas differem, a muitos respeitos, dos principios expostos nos Institutos.=—Calvino combateu sempre energicamente qualquer confusão entre a jurisdicção civil e a jurisdicção ecclesiastica, declarando que as duas deviam estar completamente separadas uma da outra. Nas _Ordenanças_ não se mantem esta separação. A censura do consistorio era de continuo seguida, como veremos, de multa, de desterro, e, até, de morte; quando, segundo a theoria de Calvino, só castigos espirituaes se devem seguir a offensas espirituaes. Os anciãos que exerciam o governo ou a disciplina não eram escolhidos pela Egreja, nem eram realmente seus representantes. Eram designados pelos magistrados civis da cidade, e só eram elegiveis os que já fossem membros de uma organização politica. Os direitos da communidade christã eram praticamente desprezados, posto que Calvino houvesse declarado que o poder ecclesiastico pertencia realmente a toda a assembléa dos crentes. A junta escolhia os pastores, podendo a Egreja impôr o seu veto; escolhia d’entre si os presbyteros, e escolhia egualmente os diaconos. Esta notavel desharmonia com os principios de Calvino era devida aos magistrados de Genebra, que assim procediam em opposição aos desejos do Reformador. Sentia-se especialmente molestado com o modo como eram escolhidos os presbyteros, e declarou que não considerava as _Ordenanças_ um plano perfeito de governo ecclesiastico; pareceu-lhe evidentemente, porém, que era o melhor que n’aquella occasião se poderia obter, e acceitou-o, alimentando a esperança de que seria, mais tarde, modificado. Agradava-lhe tanto, apezar dos seus defeitos, que o considerava um modelo que podia ser copiado n’outros logares, e exprimiu a esperança de que Genebra, situada na fronteira da França, da Allemanha e da Italia, incitaria esses paizes a uma Reforma de caracter, perfeita e permanente. Não obstante, os pontos em que as _Ordenanças_ divergiam dos principios que Calvino expoz nos seus _Institutos_ deram occasião a esses caracteristicos do governo genebrense que mais teem sido reprovados pelos historiadores. É fóra de duvida que a corrupção moral que predominava em Genebra foi combatida por leis severissimas, que chegavam mesmo a ser crueis. A antiga legislação genebrense era, em muitos casos, bastante severa, e quando se tratava de delictos especiaes a sua severidade tornava-se extrema; mas depois de publicadas as _Ordenanças Ecclesiasticas_ as leis foram applicadas com um rigor anteriormente desconhecido. O consistorio reunia-se todas as semanas, ás quintas feiras, e eram-lhe fornecidas informações ácerca da maneira como o povo se comportava; e essas informações eram communicadas á junta, ou conselho, que era o mesmo Consistorio, mas revestido da auctoridade civil. Eram prohibidos os divertimentos ruidosos, os jogos de azar, as danças, as canções profanas, as pragas e as blasphemias. Todo o cidadão tinha de estar em casa ás nove horas, sob pena de uma pesada condemnação. O adulterio era punido com a morte. Uma creança que atirou com umas pedras á mãe foi publicamente açoitada, e depois suspensa do patibulo pelos braços. Foram abolidas todas as folganças que tinham logar por occasião dos casamentos; os cortejos deixaram de levar tambores ou instrumentos musicaes á frente, e não mais se dançou nas bodas. Os theatros só podiam levar á scena peças biblicas. Ficou inteiramente prohibida a leitura de romances, e o auctor de qualquer obra que desagradasse ao Consistorio era mettido na prisão. Era preciso o maximo cuidado com o que se dizia, chegando as coisas a tal ponto que os hoteleiros eram obrigados a referir as conversas que os seus hospedes tinham tido á mesa. Nas hospedarias era tambem prohibido fornecer comida ou bebida a quem não pedisse, antes de se servir, a benção de Deus. Não era permittido jejuar, e um certo individuo foi castigado por não comer carne á sexta-feira. É impossivel dizer que parte tomou Calvino n’estes regulamentos, de uma desnecessaria severidade. Muitos historiadores teem affirmado que elle dispunha de todo o poder em Genebra, e que poderia ter evitado muita coisa se quizesse. Elle era francez, e nenhuma nação tem como a França apresentado, em epocas de grande crise, tão duros legisladores. Calvino não tinha, por outro lado, abjurado a parte mais odiosa da theoria medieval quanto á disciplina da Egreja, isto é, a que auctorizava os tribunaes ecclesiasticos a recorrerem ao poder civil para que a certas offensas espirituaes fosse applicada multa, prisão ou execução capital, com o fundamento de que constituiam crimes contra a ordem e a paz da sociedade. Calvino acceitou esta doutrina; e o mesmo fez Beza, que chamava á liberdade de consciencia uma doutrina diabolica. Os theologos de Westminster admittiram egualmente a theoria medieval, e trabalharam para que ella fosse posta em pratica, em detrimento da reforma da egreja de Inglaterra. Não só Calvino como todos os principaes reformadores approvaram a morte de Servetus pelo motivo de haver negado a doutrina da Trindade e apresentado blasphemas asserções em defeza da sua opinião. Tudo isto tem de ser admittido. =As ordenanças ecclesiasticas e a reforma dos costumes.=—Devemos lembrar-nos, por outro lado, de que não podemos dizer o que seria preciso para obter uma reforma de costumes n’uma cidade tão immoral e tão turbulenta como Genebra. A Reforma, justamente porque era um protesto contra o então existente estado de coisas, teve de navegar contra a corrente do mal, que ella propria provocou. É-nos quasi tão impossivel comprehender o perigo dos excessos anabaptistas e outros como comprehender a corrupção moral da epoca em que o christianismo surgiu e se propagou. Professava-se o libertinismo pantheistico como se fosse um credo, e os documentos litterarios do periodo da Renascença revelam uma desaforada sensualidade que deve ser tomada em conta. O que Calvino viu deante de si em Genebra foi uma indulgencia para tudo quanto fosse immoral, indulgencia que a propria religião prescrevia, visto tratar-se de uma coisa natural. Era este o lado sombrio da Reforma, para o qual não era agradavel olhar, mas que existia, e que deve ser tomado em conta antes de se julgar o procedimento do conselho de Genebra ou o de Calvino. O governo de Calvino, se é que era d’elle, não causou a decima parte do soffrimento que, a instigação de Luthero, os principes da Allemanha infligiram aos camponezes revoltosos, e aos seus cabeças, os enthusiasmados prophetas; mas o soffrimento causado pela paixão cega, quer provenha do medo quer provenha do odio, tem, o que é coisa curiosa, sido sempre olhado com maior brandura do que o soffrimento que é infligido no proseguimento de um rigoroso proposito de reforma. Á parte de tudo isto, comtudo, não é improvavel que Calvino fosse menos omnipotente em Genebra do que se suppõe ter sido. A um francez, e de mais a mais logico como elle era, custa a attribuir as incoherencias que se notam entre os _Institutos_ e as _Ordenanças Ecclesiasticas_. É preciso não esquecer que o que tornou possiveis estes castigos que teem sido tão condemnados foram aquelles pontos das _Ordenanças_ que não eram da responsabilidade de Calvino, e contra os quaes escreveu. A verdadeira causa do mal era a relação que havia entre o consistorio e o governo civil da cidade. Supponhamos que uma das nossas camaras municipaes se constituia uma vez por semana em commissão zeladora da moralidade publica. Não se sentiriam escandalizados os vereadores se os casos que elles apresentassem á commissão, e que mereciam a reprovação d’ella, ficassem impunes? Não seriam tentados quando, no mesmo dia ou no dia seguinte, se encontrassem em plena sessão camararia, e revestidos de toda a sua auctoridade, a insistir na applicação do castigo? Não se deve attribuir a culpa de todos estes males a Calvino, ou mesmo ao conselho de Genebra. Surgiram naturalmente das tres vezes abominavel mistura da direcção dos negocios seculares com a direcção dos negocios espirituaes, que constitue habitual peccado contra o qual a Egreja e o Estado se devem precaver. =A morte de Calvino.=—Durante a residencia de Calvino em Genebra, foi esta adquirindo cada vez mais opulencia e preponderancia. Os magistrados fundaram uma universidade, cujo primeiro reitor foi Theodoro Beza, e as suas aulas foram, durante o primeiro anno, frequentadas por oitocentos estudantes. Procuraram refugio na cidade, onde receberam um excellente acolhimento, numerosissimos protestantes italianos, francezes e escocezes. «Calvino converteu Genebra n’uma outra Roma». Pelas suas cartas se vê o poder de que elle dispunha e a influencia que exercia. Pediam-lhe conselhos, que nunca eram negados, os huguenotes da França, os reformadores de Inglaterra, a congregação escoceza, e os dirigentes da Reforma na Allemanha. Morreu novo. O seu organismo, que nunca fôra robusto, resentiu-se do excessivo trabalho a que elle se entregava. Prégou o seu ultimo sermão no dia 6 de fevereiro de 1564, e falleceu a 27 de maio do mesmo anno, contando cincoenta e cinco annos incompletos. Conhecendo a approximação da morte, chamou para junto de si os syndicos, ou primeiros magistrados de Genebra, e em seguida todos os ministros. Prohibiu que sobre a sua sepultura se erigisse qualquer monumento, acontecendo, d’esse modo, que se desconhece o sitio onde foi enterrado. Era de pequena estatura, magro, de feições delicadas, nariz proeminente, testa elevada, e olhos que em dadas occasiões chammejavam. Trajava sempre com o mais escrupuloso esmero, e alimentava-se muito sobriamente. Contrastando com Luthero, era um aristocrata pela educação e pelo temperamento; grande observador de todas as regras da etiqueta, sentia-se muito mais á vontade no meio das pessoas de posição do que no meio do povo baixo. Tem-lhe alguem chamado frio e insensivel, mas o que é facto é que os seus amigos e contemporaneos se referem sempre a esse frio, timido, austero e polido francez em termos os mais affaveis e respeitosos; e os mancebos davam-se perfeitamente com elle. Muitos escriptores teem começado a estudar o caracter de Calvino com um certo sentimento de hostilidade, e, depois de o haverem estudado, descobrem que a sua antipathia se transformou em affectuosa admiração. Como será sufficiente um exemplo, vejamos o que Ernesto Renan diz d’elle: «Calvino era um de aquelles homens absolutos que parecem ter sido vasados de um só jacto n’um molde, e que se estudam por meio de um simples olhar; uma carta das que escrevam, um acto dos que pratiquem, é o bastante para se fazer um juizo d’elles.... Não se importava com riquezas, nem com titulos, nem com honras; indifferente ás pompas, modesto no viver, apparentemente humilde, tudo sacrificava ao desejo de tornar os outros eguaes a si. Exceptuando Ignacio de Loyola, não conheço outro homem que podesse rivalisar com elle n’estes raros predicados. É surprehendente como um homem cuja vida e cujos escriptos attrahem tão pouco as nossas sympathias, se tornasse o centro de um tão grande movimento, e que as suas palavras tão asperas, a sua elocução tão severa, podessem ter uma tão espantosa influencia sobre os espiritos dos seus contemporaneos. Como se pode explicar, por exemplo, que uma das mulheres mais distinctas do seu tempo, Renée de França, que no seu palacio de Ferrara se via cercada dos mais brilhantes talentos da Europa, se deixasse captivar por aquelle severo doutrinador, enveredando, por sua influencia, n’uma senda que tão espinhosa lhe deveria ter sido? Similhantes victorias só podem ser alcançadas por aquelles que trabalham com sincera convicção. Sem manifestar aquelle ardente desejo de promover o bem dos outros, que foi o que assegurou a Luthero o bom exito dos seus trabalhos, sem possuir o encanto, a perigosa, posto que languida, doçura de S. Francisco de Sales, Calvino saiu victorioso, n’uma epoca e n’um paiz em que tudo annunciava uma reacção contra o christianismo, e isso simplesmente por ser o maior christão do seu tempo». =Beza, o successor de Calvino.=—Theodoro Beza succedeu a Calvino em Genebra, e manteve a reputação que a Egreja tinha adquirido; e até ao meiado do seculo dezesete a voz de Genebra foi a que as numerosas egrejas protestantes escutaram com maior acatamento. =A influencia de Calvino sobre a theologia da Reforma.=—Sob a influencia de Calvino, desappareceram as differenças theologicas que havia na Suissa, e todas as egrejas que se chamavam reformadas adoptaram um typo de doutrina. Estas egrejas não tinham, como as lutheranas, um Catecismo e uma Confissão, mas, não obstante os varios credos, notava-se n’ellas uma perfeita unidade de pensamento e de sentimento. Calvino não escreveu Confissão alguma que viesse occupar o primeiro logar entre os credos das egrejas que se chamam do seu nome, mas a sua influencia em toda a parte se manifesta. Elle vive novamente, na obra dos seus discipulos. Os seus mais importantes trabalhos que teem relação com o assumpto de que nos estamos occupando são o Catecismo para a Infancia e a Confissão de Zurich. O Catecismo tinha por fim, disse elle, repôr no devido logar a instrucção religiosa das creanças, que tão lamentavelmente havia sido descurada pelos romanistas. Calvino, para a confecção do seu catecismo, serviu-se do Credo dos Apostolos, dos Dez Mandamentos e da Oração Dominical. Tiveram origem n’elle dois grandes Catecismos da Egreja Reformada: o de Heidelberg, que contém o Credo das Egrejas da Allemanha, e o Breve Catecismo da Assembléa de Westminster. =A Confissão de Zurich= foi muito proveitosa, porque uniu as Egrejas Reformadas quanto á doutrina dos sacramentos pelo facto de reconciliar n’uma mais profunda unidade as opiniões de Luthero e de Zwinglio. Poz de parte a metaphysica medieval com que Luthero havia sobrecarregado a sua theoria, e ao mesmo tempo repudiou as idéas mais superficiaes de Zwinglio e dos primeiros reformadores suissos, que ensinavam que os sacramentos eram apenas signaes, ou imagens, das bençãos espirituaes. Calvino fez um resumo da sua doutrina ao expôr esta Confissão: «Os sacramentos são auxiliares por meio dos quaes ou somos implantados no corpo de Christo, ou, no caso de já o estarmos, nos ligamos a Elle cada vez mais, até que seja perfeita a nossa união com Christo, na vida celestial». A influencia de Calvino e de Genebra é, porém, mais nitidamente visivel na geração de protestantes que ella educou e enviou a combater com o romanismo. «N’uma occasião em que a Europa», diz Haüsser, «não podia mostrar solidos resultados da reforma, este pequeno estado de Genebra erguia-se como uma grande potencia; anno após anno, enviava apostolos para todo o mundo, mediante os quaes eram apregoadas as suas doutrinas, e tornou-se o mais temido contrapeso de Roma.... Os missionarios provenientes d’este pequeno nucleo manifestavam o elevado e intrepido espirito que procede de uma estoica educação e adestramento; tinham o cunho da abnegação e do heroismo, que em toda a parte era absorvido pela estreiteza theologica. Constituiram uma raça para a qual coisa alguma era demasiadamente ousada, e que deu uma nova direcção ao protestantismo, separando-o da velha e tradicional auctoridade monarquica, e fazendo com que elle adoptasse o evangelho da democracia como parte do seu credo.... Genebra dictou um pequeno trecho da historia universal, trecho que constitue a parte de que os seculos dezeseis e dezesete mais se devem orgulhar. O seu Credo foi professado por muitos dos mais eminentes homens da França, dos Paizes Baixos e da Gran-Bretanha; estes homens possuiam almas fortes, caracteres de ferro vasados n’um molde em que havia uma mistura de elementos romanos, germanicos, medievaes e modernos; e as consequencias nacionaes e politicas da nova fé foram por elles defendidas com o maximo rigor e coherencia.» A Reforma lutherana fez poucos progressos fóra da Allemanha. A pequena republica de Genebra uniu primeiro a Reforma suissa, e em seguida deu os caracteristicos distinctivos aos movimentos reformadores da França, da Hollanda, da Escocia, da Bohemia, da Hungria, da Moravia e de uma grande parte da Allemanha. Luthero, o homem de festiva disposição de espirito, tão humano em todos os sentidos, foi, afinal de contas, o reformador de uma parte, apenas, da Allemanha; Calvino, tão insensivel, tão frio, tão ceremonioso, tão sarcastico, de uma logica tão desapiedada, foi o reformador de uma grande parte da christandade. A Reforma suissa passou muito para além da Republica Helvetica, e abrangeu as egrejas da França, da Hollanda e da Gran-Bretanha, com tudo o que d’ellas brotou. CAPITULO III A REFORMA EM FRANÇA Principios da Reforma em França, pag. 87.—Francisco I, pag. 89.—A _Concordata_ de 1516, e a feição que ella deu á Reforma, pag. 89.—«Uma egreja debaixo da cruz», pag. 90.—O anno dos placards, pag. 92.—O Vaudois da Durance, pag. 92.—Henrique II e os Guises, pag. 93.—Organisação da Egreja Reformada, pag. 95.—Os huguenotes: Coligny e os irmãos Bourbon, pag. 96.—O primeiro Synodo Nacional, pag. 97.—Anne de Bourg, pag. 98.—O massacre de Amboise, pag. 99.—Coligny na Assembléa dos Notaveis, pag. 100.—Catharina de Medicis, pag. 100.—A Conferencia de Poissy, pag. 102.—O massacre de Vassy, e outros, pag. 103.—A guerra civil, os iconoclastas, pag. 103.—Coligny e Carlos IX, pag. 106.—O massacre de S. Bartholomeu, pag. 107.—A Santa Liga, pag. 109.—Henrique de Navarra, pag. 110.—O edicto de Nantes, pag. 110. =Principios da Reforma em França.=—Antes da Reforma se ter tornado em França um grande e importante movimento, appareceram dois typos da cristandade reformada, sellados com as individualidades de dois homens: Luthero e Calvino, o Pedro e o Paulo da Reforma, Na renhida lucta que em seguida teve de ser sustentada com o romanismo, o movimento mais moderno foi o que adquiriu maior importancia; foi Genebra, deixando Wittenberg em segundo plano, que se mostrou em condições de se defrontar com Roma. A dupla corrente da Reforma partiu d’estes dois centros para toda a Europa, mas nos terriveis combates que se travaram a feroz democracia do Calvinismo poude desenvolver uma força que era o dobro da do claudicante conservantismo do movimento lutherano. A historia do progresso da Reforma fóra da Allemanha é quasi inteiramente a historia do calvinismo, e do triumpho das idéas calvinistas. Foi assim em França. Os principios da Reforma franceza ficam lá muito para traz, datam de uma epoca muito anterior á do nascimento de Calvino. Havia no sul e no sueste, no fim do seculo quinze e no principio do seculo dezesseis, uns taes ou quaes vestigios dos velhos albigenses; e os valdenses mantiveram-se, e foram protegidos, em virtude de antigos tratados, durante as perseguições dos huguenotes. A Egreja franceza havia-se distinguido sempre pela sua opposição ás reivindicações da côrte pontificia e do papa. Quando o papado, no seculo quinze, chegou a uma grande decadencia, e papas libertinos occuparam a sé de Roma, a Egreja franceza, tendo á frente os famosos chancelleres da universidade de Paris, João Gerson e Pedro d’Ailly, desempenhou a parte principal na convocação dos concilios reformadores de Pisa, Basiléa e Constancia, e no refreamento da curia romana. A Egreja franceza tinha-se sempre opposto energicamente ao ultramontanismo, e, protegida pela Sancção Pragmatica de Bourges, era talvez mais genuinamente nacional do que qualquer outro ramo da Egreja medieval. Muitas pessoas esperavam que a França, em vista da sua historia passada, tomasse a iniciativa de um movimento reformador. A Reforma, porém, que as summidades ecclesiasticas promoveram no seculo quinze não foi uma reforma de doutrina ou uma revivificação da religião espiritual. Os reformadores de Constancia queimaram João Huss. Além d’isso, havia na Egreja franceza, pouco antes da Reforma, a mesma immoralidade, a mesma incuria, a mesma ignorancia que desacreditou a Egreja medieval do seculo dezeseis na Allemanha e na Italia; o inicio da Reforma em França proveiu do despertamento das lettras e da leitura das Escripturas nas linguas originaes. Os primeiros sermões reformistas foram prégados em Meaux, onde o bispo, Guilherme Briçonnet, viu que havia urgente necessidade de reprehender a immoralidade monastica, e que o povo anhelava por um verdadeiro ensino religioso. Elle tinha ouvido fallar da erudição de Jayme Lefévre, de Etaples, e da perseguição que elle soffrera da parte dos doutores da Sorbonne por causa dos seus estudos biblicos; e convidou-o, a elle e ao seu ardente e joven discipulo, Guilherme Farel, o futuro amigo de Calvino, para irem para a sua diocese e estudarem, ensinarem e prégarem debaixo da sua protecção. Lefévre publicou, em 1523, uma traducção do Novo Testamento em francez, e o povo comprou o livro e leu-o com soffreguidão. Os franciscanos, anciosos por se vingarem do que Briçonnet n’outro tempo lhes havia feito, accusaram-n’o de heresia, e de favorecer herejes. No meio da tempestade que então se levantou, o bispo perdeu a coragem. Farel fugiu para Strasburgo, seguido pouco depois por Lefévre e Roussel, outro prégador, e a Reforma ficou, apparentemente, suffocada. O povo, porém, que possuia a Biblia, lia tratados de Luthero, e conservava na memoria os sermões de Farel e de Roussel persistiu na fé evangelica. Alguns crentes tiveram de soffrer o martyrio, mas o fermento espalhou-se, ainda que occultamente, por toda a França. =Francisco I.=—O rei de França, n’esses primeiros annos da Reforma, era Francisco I, a quem depois Calvino dedicou os seus _Institutos da Religião Christã_. Enthusiasta, e dotado de alguma intelligencia, havia saudado a revivificação das letras, protegeu Lefévre durante o tempo em que este sabio residiu em Paris, e orgulhava-se da correspondencia que mantinha com homens de grandes conhecimentos, taes como Erasmo e Budaeus. Suppunha-se um grande protector das letras, e toda a sua ambição era que o considerassem como tal; a universidade de Paris havia-lhe merecido uma especial attenção, e interessou-se tambem immenso na famosa maquina de impressão inventada por Henrique Estevão. Estabeleceu as cadeiras de Grego, Hebraico, e oratoria latina. Julgava-se poeta, e escreveu algumas poesias. A irmã, Margarida de Angouleme, mais tarde rainha de Navarra, foi uma das mais espirituosas conversadoras e uma das mais brilhantes escriptoras do seu tempo. Francisco não sympatizava nada com o desleixo e ignorancia de muitos dos clerigos de aquella epoca, e, particularmente, considerava o movimento da Reforma uma lucta da intelligencia com a estupidez. Protegeu os primeiros reformadores, chegando mesmo a auxilial-os. Francisco era um principe frivolo e egoista, que ambicionava brilhar como habil guerreiro, e cujo intento era estabelecer a absoluta supremacia do soberano. Não sympatizava com o caracter profundamente espiritual da Reforma, e as suas necessidades politicas não tardaram a prevalecer sobre o seu amor pela instrucção. =A Concordata de 1516, e a feição que ella deu á Reforma.=—A independencia da Egreja franceza e os direitos do reino de França em opposição ao papado haviam sido mantidos pela Sancção Pragmatica de Bourges, que definia as liberdades das egrejas nacionaes de uma maneira clara e energica. Declarou que o papa estava sujeito a um concilio ecumenico, e que este concilio se devia reunir de dez em dez annos. Declarou que todos os provimentos de elevados cargos ecclesiasticos, taes como os bispados e abbadias, deviam ser feitos por eleição, e não por designação do papa. Restringiu os dispendiosos e incommodos appellos a Roma, e sanccionou o principio de que nenhum interdicto pode abranger tanto os innocentes como os culpados. A Sancção Pragmatica tinha sido sempre cuidadosamente defendida pela Egreja franceza, e pela maioria dos soberanos de França. Era intensamente abominada pelos papas, e não podia ser olhada com muito amor por um rei que pretendia a absoluta supremacia do throno. Uma egreja independente deve zelar a independencia do povo. Francisco comprehendia que, se podesse collocar a Egreja debaixo do seu dominio, ser-lhe-hia mais facil chegar ao absolutismo. Entendeu-se, portanto, com o papa, e trocou a Sancção Pragmatica por uma Concordata, que foi, no futuro, uma grande desgraça para a França. Mediante esta Concordata o rei renunciou aos principios dos Concilios reformistas de Basiléa e de Constancia, e consentiu em que o papa ficasse com direito ao _Annates_, isto é, o vencimento relativo ao primeiro anno de todos os beneficios que eram providos, concedendo o papa, em troca, que a nomeação de todos os cargos ecclesiasticos ficasse dependente do rei. Por outras palavras, era reconhecida a posição dos papas como chefes supremos da Egreja, e dava-se-lhes annualmente uma consideravel somma de dinheiro; e o rei de França era praticamente, dentro do seu reino, o chefe da Egreja, podendo dispôr de todos os arcebispados, bispados, abbadias e priorados. Fez-se denuncia d’esse tratado, e de todos os modos se trabalhou para o annullar, mas conseguiu vencer todas as opposições, e permaneceu em vigor até á Revolução. A Concordata de 1516 é a chave da historia da Reforma franceza, e não é possivel exaggerar a importancia que ella tem para a historia ecclesiastica franceza desde o principio do seculo dezeseis. Por um lado, secularizou a Egreja franceza. Todos os officios ecclesiasticos de valor eram doados pelo rei, e tinham de ser disputados por cortezãos que só nas coisas do mundo pensavam. Por outro lado, tornou identicos os interesses da Egreja e os do throno. Opposição ao systema ecclesiastico da Egreja franceza era necessariamente opposição ao absolutismo do soberano. Esta Concordata deu uma indole particular á lucta que a Reforma produziu em França. Os reformadores não podiam deixar de ser tambem os adversarios do absolutismo; e o rei, para ter o paiz sujeito a si na sua qualidade de chefe da Egreja, via-se obrigado a sustentar o papa, que lhe concedera a supremacia. Aconteceu d’este modo que os protestantes tiveram em França um trabalho muito diverso do trabalho de Luthero na Allemanha, porque tinham de se oppôr não só á Egreja como ao Estado. Succedeu-lhes como aos reformadores escocezes e aos protestantes dos Paizes Baixos; na Escocia, porém, a Reforma poude, por fim, estabelecer uma monarquia limitada, e na Hollanda uma republica. Em França, por outro lado, o poder real foi augmentando lentamente; e, quando chegou a um ponto elevado, a um absolutismo como o de Luiz XIV, o soberano encontrou-se apto para exterminar a egreja protestante, por meio de uma sanguinolenta perseguição. =«A Egreja que estava debaixo da Cruz».=—Luthero tinha, na Allemanha, um principe do seu lado, e Calvino foi, em Genebra, auxiliado pela suprema auctoridade civil. Em França os reformadores tiveram de luctar não só contra o poder do rei como contra o poder da Egreja. A Egreja reformada, em França, não recebeu, portanto, auxilio algum do poder civil, e teve de sustentar um combate tão severo e tão rude como o que teve de sustentar a Egreja dos primeiros tres seculos. A Egreja antenicena tinha duas coisas contra si; a religião estabelecida, que era o paganismo, e o Estado, que era egualmente pagão. A Egreja reformada de França teve duas coisas contra si; foi perseguida pela egreja estabelecida no reino, que era a romana, e foi perseguida pelas auctoridades civis, pois que o poder do rei era, pela Concordata, em grande escala dependente do reconhecimento do pontifice. Foi creando lentamente forças, sob uma dupla perseguição, como a Egreja primitiva dos martyres e dos apologistas. Eram dois os emblemas que ella gravava nos seus livros e esculpia nos seus monumentos: a sarça que ardia sem se consumir, e a bigorna que levava martelladas e estava sempre inteira. O grande Beza disse um dia ao rei de Navarra: «Sire, a Egreja de Deus é uma bigorna que tem partido muitos martellos». Francisco, ao principio, não incommodou muito os protestantes que existiam nos seus dominios; mas a sua derrota em Pavia, em 1525, e a sua alliança com o papa, mostrou-lhe que era prudente, lá no seu modo de ver as coisas, mostrar alguma vontade de expurgar da heresia as terras de que era senhor, e deu licença para que se pozessem em pratica as perseguições que tão ardentemente lhe eram pedidas pela Sorbonna, pelo Parlamento de Paris, por muitos dos bispos, pela mãe, a rainha Luiza, e por Du Pratt, o chanceller do reino. Foi só, porém, depois de Francisco ser feito prisioneiro pela segunda vez, e n’uma occasião em que precisava de dinheiro para as suas guerras, dinheiro que já não era possivel obter por meio de impostos, que elle permittiu que a heresia fosse exterminada de vez. O clero pôz á sua disposição elevadas quantias, exigindo-lhe em troca que o coadjuvasse no aniquilamento dos herejes, e o rei viu-se fornecido dos recursos de que necessitava, á custa da tortura e da carnificina dos seus subditos protestantes. Isto foi em 1528. Severas medidas foram decretadas contra os protestantes. Era prohibida a leitura de obras protestantes; a ligação com pessoas suspeitas de heresia importava condemnação; e os herejes, onde quer que fossem descobertos, eram entregues ás auctoridades civis para serem castigados. Luiz de Berguin, homem erudito e de nobre estirpe, e n’outro tempo amigo do rei, e correspondente de Erasmo, foi a mais notavel victima d’estas disposições. A inconstancia da politica do rei veiu alterar o estado das coisas. Francisco I intentou fazer uma alliança com os principes protestantes allemães, e recusou, portanto, associar-se a um plano geral para a exterminação da heresia. =O anno dos placards.=—Em breve, porém, poz de parte este seu intento, e começaram novamente as perseguições. Os protestantes, por seu lado, mostraram uma grande somma de coragem. Imprimiram curtos folhetos em que se atacava a missa e outros ritos da Egreja Catholica Romana, e espalhavam-n’os pelas ruas e pelas escadas. O anno de 1535 foi chamado o anno dos placards. Um imprudente introduziu nos aposentos do rei um d’esses papeis em que a missa era apreciada com extrema dureza, e Francisco ficou indignadissimo. No primeiro impulso, prohibiu que se imprimisse fosse o que fosse, mas depois, revogando este decreto, entrou a serio no seu papel de perseguidor. Decretou que a heresia fosse punida com a morte; aquelle que denunciasse um hereje tinha direito á quarta parte dos bens que este possuisse, no caso de se provar a veracidade da accusação. Isto redobrou a perseguição, e em toda a França os protestantes eram accusados, condemnados, e punidos com prisão, perda de bens, e morte. Foi por este tempo que Calvino dedicou ao rei os seus _Institutos_. Os ultimos annos do reinado de Francisco I foram uns annos de terrivel effusão de sangue e oppressão; e, comtudo, os protestantes augmentaram em numero, e a repressão, posto que sanguinolenta, mostrava-se inefficaz. O sangue dos martyres era a semente da Egreja. Em 1540 o Edicto de Fontainebleau intimava os officiaes de justiça a processarem todos aquelles em que houvesse mancha de heresia; a essas pessoas era negado o direito de appellação; os juizes negligentes eram ameaçados com o desagrado do rei, e os ecclesiasticos tiveram ordem para mostrar maior zelo. «Todos os subditos leaes», dizia o edicto, «devem denunciar os herejes, e empregar todos os meios para os extirparem, do mesmo modo que são obrigados a contribuir para que se ponha termo a qualquer conflagração publica». Seguiram-se outros edictos ainda mais severos, mas a Reforma foi progredindo, e tanto homens como mulheres soffriam resignadamente, por amor de Christo, todas aquellas calamidades. =Os valdenses da Durance.=—A maior atrocidade commettida durante a perseguição foi o massacre dos valdenses da Durance. Uma parte da Provença que confina com a Durance chegara, dois seculos atraz, a estar quasi despovoada, e os proprietarios das terras dirigiram um convite aos camponezes dos Alpes para irem estabelecer-se nos seus territorios. Os novos colonisadores eram valdenses, e a sua industria e indole economica em breve encheram de ferteis herdades aquellas regiões desoladas. Garantiu-se-lhes que a sua religião seria protegida, pois que os seus senhorios, catholicos romanos, estavam satisfeitissimos com os serviços que elles prestavam. Quando na Allemanha e na Suissa começou a Reforma, estes aldeãos mandaram por alguns dos seus saudar os Reformadores, e em 1535 associaram-se por tal fórma ao movimento que forneceram o dinheiro necessario para publicar a traducção das Escripturas Sagradas em francez, feita por Roberto Olivetan, e corrigida por Calvino. Este procedimento despertou a hostilidade de alguns ecclesiasticos francezes. O bispo de Aix excitou o parlamento local; fizeram-se prisões, e alguns dos aldeãos foram submettidos á tortura e soffreram morte violenta. Em 1540 o parlamento intimou quinze aldeãos de Mérindol a comparecer perante elle como suspeitos de heresia. Os aldeãos, tendo sabido que a sua morte estava resolvida, não appareceram; pelo que o parlamento fez sair o infame _Arrêt de Mérindol_, que, em resumo, ordenava a destruição de toda a aldeia. A publicação d’este decreto provocou alguns protestos; o rei teve conhecimento d’elle, mandou proceder a investigações, e em resultado d’ellas deu ordem para que o referido decreto ficasse sem effeito. Foi, porém, induzido a revogar essa ordem, organizou-se clandestinamente uma expedição, e durante sete mezes de carnificina, com todos os seus acompanhamentos de traição e de infame brutalidade, foram totalmente destruidas vinte e duas cidades e aldeias, pereceram 4:000 homens e mulheres, e perto de 700 foram enviados para as galés. Assim desappareceu uma geração, e a Reforma em França estava ainda luctando pela sua existencia no meio de perseguições mais terriveis do que aquellas de que os protestantes foram victimas n’outro qualquer paiz. =Henrique II e os Guises.=—Em 1547 Francisco I morreu, succedendo-lhe Henrique II, seu filho, que seguiu a politica de seu pae, a qual obedecia ao intuito de enfraquecer o imperio da Allemanha e consolidar, em França, o poder real. Isto obrigava a occasionaes allianças com os principes protestantes allemães, e dava logar, em França, a uma continua perseguição aos protestantes. Todos os favoritos que tinha na sua côrte eram inimigos da fé protestante. O rei desposara a celebre e infame Catharina de Medicis, sobrinha do papa Clemente VII; e, além da rainha, o protestantismo tinha por inimigos poderosos e sem escrupulos: Diana de Poitiers, o Condestavel de Montmorency, primeiro ministro da corôa, que gozava de grande reputação como perito na arte da guerra e na gerencia dos negocios publicos, e os Guizes, notavel familia de procedencia estrangeira, que alcançara grande poder em França. Francisco, duque de Guize, tinha já conquistado grande renome como general; e seu irmão, o cardeal de Lorraine, que foi durante vinte e tres annos o conselheiro de Henrique II, era um dos homens mais sagazes da Europa. A irmã casou com Jayme V da Escocia, e tiveram por sobrinha Maria Stuart, rainha da Escocia, educada em França debaixo do cuidado d’elles, e casada por elles com o Delphim de França. Francisco fizera da perseguição aos protestantes um negocio tão urgente que os tribunaes de justiça tiveram de interromper o julgamento de varias causas. Henrique creou uma nova divisão judicial, que se occupava exclusivamente dos casos de heresia, e as sentenças proferidas por estes tribunaes especiaes eram tão severas que o povo chamava-lhes _chambres ardentes_. Os martyres exhibiram um extraordinario heroismo, e a perseguição não estorvou o derramamento do Evangelho. Conta-se que Henrique manifestou em certa occasião o desejo de ver com os seus proprios olhos, e interrogar, um d’esses obstinados herejes. Foi levado á sua presença um pobre alfayate, preso sob a accusação de ter trabalhado n’um dia santo, e esse homem, com grande espanto da côrte, respondeu ousada e respeitosamente a todas as perguntas sobre theologia que lhe foram feitas. Diana de Poitiers emprehendeu reduzil-o ao silencio mediante a zombaria; mas o alfayate, que lhe conhecia o caracter e estava ao facto da posição occupada por ella, retorquiu-lhe solemnemente: «Senhora, dê-se por satisfeita em ter contaminado a França, e não queira tocar com o seu veneno e com a sua immundicie uma coisa tão pura e tão sagrada como é a religião de nosso Senhor Jesus Christo.» O rei, encolerisado porque á amante fossem dirigidas estas palavras, deu ordem para que immediatamente o julgassem e executassem, e quiz assistir ao supplicio. Quando Henrique assomou a uma janella que dava para a praça onde o martyr ia ser queimado, este viu-o, e não despregou mais d’elle os olhos. Mesmo já depois de rodeiado pelas labaredas não deixou de perseguir o rei com aquelle olhar, e Henrique referiu depois que durante muito tempo aquelle espectaculo não se lhe varria da memoria durante o dia e lhe perturbava o somno durante a noite. Tornou-se manifesto para todo o reino, incluindo a côrte, que estas repetidas execuções não estavam contribuindo para a repressão da Reforma. Outros martyres se apresentavam jubilosamente para substituir aquelles que os tinham antecedido; viuvas, mancebos, estudantes, raparigas mimosas, fidalgos da mais elevada estirpe, todos preferiam o cruel martyrio a negarem Christo. A côrte não pensava senão em medidas mais severas de repressão, e em 1551 foi promulgado um novo edicto, o de Chateaubriand, o qual, como os edictos de Decio, nos primeiros seculos, mandava destruir toda a litteratura christã, na idéa de que por essa fórma se faria desapparecer o christianismo. Genebra estava situada na fronteira da França. Toda ella se encheu de refugiados francezes. Um certo numero de rapazes, cheios de coragem e de fé, instruidos por Calvino e seus companheiros nas verdades do Evangelho, havia-se offerecido para distribuir livros e folhetos por todos os pontos da França. O Edicto de Chateaubriand visava estes colportores, assim como os livros e tratados que elles vendiam. Prohibia terminantemente a entrada de quaesquer livros provenientes de Genebra ou de outras localidades notoriamente rebeldes á Santa Sé, a existencia nas livrarias de obras condemnadas, e toda a impressão clandestina. Estabelecia uma inspecção semestral a todas as typographias, mandava examinar todos os volumes que chegassem do estrangeiro, e submettia, de quatro em quatro mezes, a grande feira de Lyão a uma fiscalisação especial, pois que mediante ella é que se haviam espalhado pelo reino muitos livros suspeitos. Foi prohibida a venda ambulante de livros, fossem elles de que natureza fossem. Todo aquelle em cujo poder fossem encontradas cartas de Genebra era preso e castigado. Ás pessoas analphabetas não se consentia que discutissem pontos de fé nas tabernas, nas officinas, nos campos, ou em reuniões clandestinas. Por determinação da côrte, ficava, portanto, o povo impedido de se instruir, se é que edictos e officiaes de justiça o poderiam impedir. A sementeira proseguia. Dispostos para a vida ou para a morte, partiram de Genebra e de Strasburgo, para diversos pontos da França, muitos mancebos, levando comsigo Biblias, assim como livros e folhetos evangelicos. Beza mandou dizer n’uma carta a Bullinger que foram em numero espantoso os homens que se offereceram para arrostar com todos os perigos para que a Egreja de Deus avançasse. =Organisação da Egreja reformada.=—No meio d’estas terriveis perseguições, os protestantes de França começaram a organizar-se em Egreja. Havia mais de trinta annos que elles, ou estudavam isoladamente a Biblia, ou formavam pequenos nucleos de crentes. A perseguição augmentou-lhes a coragem, e resolveram por fim constituir uma communidade. O nascimento de um filho de La Ferriêre, fidalgo francez residente em Paris, em cuja casa um pequeno grupo de protestantes costumava reunir-se, é que motivou essa decisão. O pae do recemnascido declarou aos seus irmãos na fé que não podia ausentar-se de França, afim de obter que lhe fosse administrado um sacramento puro, e que de fórma alguma consentiria em que o baptismo se fizesse segundo o rito da Egreja romana. Implorou-lhes, pois, que formassem uma Egreja, e escolhessem um pastor, pondo assim termo a todas as difficuldades. Acharam bom o alvitre, e, depois de jejuarem e fazerem oração, escolheram para pastor a João Le Maçon, que tinha por sobrenome La Riviére, contava vinte e dois annos, e havia abandonado familia, riqueza e perspectivas de um brilhante futuro pela causa de Christo. A pequena assembléa passou em seguida a escolher os presbyteros e os diaconos, estabeleceu-se uma Egreja segundo o modelo de Genebra, e foi adoptada uma breve constituição. Faltava só em França, ao que parecia, quem se collocasse á testa do movimento. Succedendo-se rapidamente umas ás outras, as communidades constituiram-se em congregações, com os seus presbyteros e diaconos. Tres mezes depois da eleição de La Riviére, foi de Paris enviada a Genebra uma carta em que se pedia outro ministro. Passado um mez, Angers tinha tres pastores protestantes; e, posto que a perseguição continuasse sempre com a mesma violencia, nunca deixava de haver quem se offerecesse para esses perigosos logares, e a Reforma ia fazendo progressos. =Os Huguenotes: Coligny e os irmãos Bourbon.=—Vendo que eram inuteis todos os esforços empregados para impedir a Reforma, o cardeal propoz o estabelecimento, em França, de uma Inquisição, modelada pela de Hespanha, de que Fillippe se havia servido, com tanta efficacia, para escorraçar de seus dominios a heresia. O espirito de liberdade constitucional não estava, porém, tão morto em França que se permittisse a perda total de todas as garantias que as leis concedem aos innocentes, o que necessariamente viria a acontecer se se introduzisse a inquisição hespanhola. Os varios tribunaes, e em particular os parlamentos, protestaram contra essa proposta. O rei e os seus conselheiros insistiram na adopção de similhante medida, mas em breve descobriram, para seu espanto, que o unico resultado colhido foi algumas pessoas nobres, das que de maior influencia dispunham, se declararem protestantes; e de ahi em deante (1558) a côrte e os romanistas tiveram de se defrontar com um forte partido huguenote. A devassidão da côrte franceza trazia desgostosos muitos dos principaes representantes da nobreza, e o que elles observaram tambem no procedimento do clero levou-os a procurarem homens de vida pura que os instruissem no christianismo. Alguns membros da mais alta aristocracia que antipathizavam com os Guizes aggregaram-se aos calvinistas, uns por simples politica, mas muitos outros por convicção. Estes homens faziam uma opposição moral á licenciosidade da libidinosa vida palaciana, que Francisco I tinha animado, e uma opposição politica ao systema absolutista do rei e dos seus conselheiros. Á testa d’este partido estavam os irmãos Bourbon, o almirante Coligny e seu irmão Francisco d’Andelot. Um filho de S. Luiz havia desposado a herdeira da casa Bourbon, e esta familia era, no meiado do seculo dezeseis, representada por Antonio, duque de Bourbon, que, na falta do rei e dos filhos d’este, era o herdeiro do throno de França, e por seu irmão Luiz, duque de Condé. Antonio Bourbon tinha casado com a piedosa e heroica filha de Margarida de Angouleme, Joanna d’Albret, herdeira da corôa de Navarra, cujo filho foi Henrique IV de França. Em virtude do seu casamento, recebeu o titulo de rei de Navarra, e residia uma grande parte do tempo em Pau, onde assistia ás prégações dos pastores protestantes. Quando voltou para a côrte, começou tambem lá a frequentar as reuniões evangelicas, e declarou-se, por fim, protestante. O duque de Condé fez o mesmo. Andelot, o irmão mais novo do almirante Coligny, e a quem o povo chamava «o cavalleiro sem pavor», introduziu prégadores protestantes no seu castello da Bretanha, os quaes dirigiam a palavra a grandes agglomerações de gente. Foi preso, mas, em vista da sua gerarquia e do seu poder, não se atreveram a castigal-o. Henrique, derrotado pelo partido opposicionista, concluiu um tratado de paz com a Hespanha para poder dedicar toda a sua actividade á destruição dos calvinistas. Era vastissimo, segundo se diz, o plano que elle tinha preparado. Genebra e Strasburgo iam ser destruidas, e a heresia soffreria um golpe mortal, tanto em França como nos Paizes Baixos. No meio, porém, d’estes preparativos, Henrique, ferido accidentalmente n’um torneio que teve logar em Junho de 1559, morreu. =O primeiro synodo nacional.=—Um caso interessante é que, ao mesmo tempo em que se estavam planeando novas medidas de repressão, os protestantes francezes houvessem tomado uma deliberação que era mais um testemunho da sua progressiva força. Debaixo de muito segredo, reuniram, n’uma casa do Faubourg St. Germain, o seu primeiro _Synodo Nacional_. O que motivou essa reunião foi o seguinte: Em 1558, quasi no fim do anno, Antonio Chandieu, pastor de uma das egrejas de Paris, foi a Poitiers, afim de auxiliar o serviço da Communhão que se ia celebrar n’esta cidade. Encontrou-se lá, como era vulgar em similhantes occasiões, com pastores que tinham vindo de varios pontos, e, conversando ácerca do estado da Egreja, lamentaram a falta de unidade, assim como de modelos doutrinaes. Chandieu foi encarregado de apresentar no consistorio de Paris as opiniões dos irmãos. Resultou de ahi que a congregação parisiense enviou cartas ás outras congregações, convidando-as a mandar delegados a uma conferencia que ia realisar-se em Paris. Foi d’esta maneira que teve origem o primeiro Synodo Nacional. Era uma pequena assembléa, em que estavam representadas onze congregações apenas; mas proveu a Egreja franceza de uma Confissão de Fé e de um Livro de Disciplina. A Confissão, conhecida depois pelo nome de _Confessio Gallica_, foi provavelmente redigida por Chandieu, e baseava-se n’uma resumida Confissão que Calvino compoz, chamando para ella a attenção do rei. Foi mais tarde revista por mais de uma vez, mas podemos ainda chamar-lhe a Confissão da Egreja Protestante Franceza. _O Livro da Disciplina Ecclesiastica_ foi modelado pelas _Ordenanças_ que Calvino escreveu para uso das egrejas de Genebra, mas contém notaveis differenças, e mostra o que o livro de Calvino teria sido se o conselho de Genebra lhe houvesse dado toda a liberdade de acção. A constituição da Egreja franceza era inteiramente democratica e de um caracter representativo. Reconhecia os consistorios, que já existiam nas congregações, e, para os tornar verdadeiramente representativos, preceituava que as eleições para presbyteros e diaconos fossem annuaes. Provia tribunaes de appellação nos synodos provinciaes, que se reuniam duas vezes por anno, e em que cada congregação era representada por um pastor e um presbytero; e unia a Egreja toda sob um Synodo Nacional, ou Assembléa Geral, que constituia o ultimo tribunal de appellação, e a suprema auctoridade ecclesiastica. É interessante observar como n’um paiz cujo governo se tornava de anno para anno mais arbitrario e absolutista esta «Egreja sob o peso da Cruz» organizava para seu uso um governo, que reconciliava mais perfeitamente talvez do que todos quantos teem sido organizados desde então, o principio da soberania popular com o de uma suprema auctoridade central. Para a constituição do presbyterianismo escocez a França contribuiu mais do que Genebra, e a organização da primitiva Egreja escoceza, a de Knox, era quasi uma exacta reproducção da franceza, O facto d’ella se afastar posteriormente do modelo francez, tornando vitalicios os cargos de presbytero e diacono, e a usurpação do exclusivo direito, pela junta mais moderna do presbyterio, de enviar representantes á Assembléa Geral, privou o presbyterianismo escocez, inglez e americano de uma grande parte do elemento popular que constituia a força das primitivas egrejas escocezas e francezas. =Anne de Bourg.=—A morte do rei não alterou em coisa alguma a politica da côrte. Succedeu-lhe Francisco II, um mancebo de dezeseis annos. Este tinha por esposa Maria, rainha da Escocia, e sobrinha dos Guises, e a sua subida ao throno atirou com o poder para as mãos d’este fanatico partido, que era capaz de tudo para conseguir os seus fins. Os Guises, porém, não podiam fazer aquillo que só um legitimo soberano, consciente do poder que n’elle reside, pode fazer. Pediram com instancia medidas para a repressão dos protestantes mediante a exterminação, e aquelle seu grande empenho em que se derramasse sangue veiu por fim voltar-se contra elles proprios. O partido recebeu um golpe tremendo com o julgamento e execução de Anne de Bourg, sobrinha de um dos chancelleres de França, que era tambem juiz. O seu crime consistiu em ter, em conselho publico, dito a Henrique II que era uma coisa muito seria condemnar aquelles que, no meio das chammas, invocavam o nome do Salvador dos homens. Quando, mais tarde, foi interrogada pelos Guises, fallou com tanta eloquencia e ousadia que ganhou o apoio de uma grande parte do publico. Ao ser proferida a sentença de condemnação á morte por meio da fogueira, tornou a fallar com um tão tocante fervor, com uma resolução tão pathetica, que até os proprios juizes se commoveram «Coisa alguma nos poderá separar de Christo, sejam quaes forem as ciladas que nos armem, sejam quaes forem as enfermidades que ataquem os nossos corpos. Sabemos que somos ha muito como ovelhas que são levadas para o matadouro. Que nos matem, pois, que nos despedacem; os que morrem no Senhor não deixam jámais de viver, e todos hão de apparecer na resurreição geral.... E, sendo assim, para que hei de eu permanecer mais tempo n’este mundo? Apodera-te de mim, verdugo, e conduze-me ao logar do supplicio.» Desde a execução de Bourg a historia do protestantismo francez começa a ser outra. Os protestantes, que a pouco e pouco se haviam compenetrado da força de que dispunham, começaram de aquelle ponto em deante a reunir-se para tratarem do modo como se deviam manter na defensiva, e do modo como deviam aproveitar a crescente impopularidade dos Guises. Alguns dos mais impetuosos foram de parecer que se arvorasse immediatamente o estandarte da revolta. Calvino e Beza, a quem consultaram, dissuadiram-n’os de uma insurreição declarada. Não obstante, organizou-se uma conspiração. La Renaudie, protestante, e inimigo declarado dos Guises, foi o chefe d’essa conspiração, e a guerra civil que depois se seguiu teria sortido bom effeito se a conspiração não houvesse sido denunciada. Os Guises tiraram uma sangrenta vingança dos humildes adversarios da sua politica, e houve enormes carnificinas, particularmente em Amboise, que ficaram bem gravadas na memoria dos huguenotes. Os Guises accusaram judicialmente Condé de ser o cabeça da conspiração. Este requereu uma assembléa de todos os principes e de todos os membros do Conselho privado, e desafiou os seus inimigos a que o denunciassem. O duque de Guise não se sentiu com animo de o atacar de novo. =O morticinio de Amboise=, longe de aterrorizar os protestantes, parece que lhes deu uma nova coragem. Começaram então a ser conhecidos pelo nome de _Huguenotes_. A origem d’este nome é obscura; tudo o que ao certo sabemos a seu respeito è que depois da conspiração de Amboise andava na bocca de toda a gente. Em Valence um bando armado apoderou-se da Egreja dos franciscanos, onde os serviços religiosos passaram a ser feitos por prégadores protestantes, sendo enorme a assistencia do povo. A Ceia do Senhor foi, por bandos armados, celebrada «á moda de Genebra», em Nismes, no Languedoc. O tempo das assembléas secretas tinha passado, e grandes reuniões ao ar livre, no norte, meio-dia e sul da França, demonstravam que a Reforma tinha sido abraçada por uma immensa quantidade de gente. =Coligny na Assembléa dos Notaveis.=—A côrte, comtudo, estava convencida de que a unica politica a seguir era a de exterminaçao, e as perseguições continuavam com o mesmo vigor. Necessitava, porém, de dinheiro, pois que as despezas do reino foram gradualmente excedendo as receitas, e em Fontainebleau foi, por fim, convocada uma Assembléa dos Notaveis. Os protestantes aproveitaram a opportunidade, apresentando o almirante Coligny, chefe da grande casa de Chatillon, duas supplicas, uma ao rei, outra á rainha mãe, da parte dos huguenotes da Normandia. Pediam a cessação das perseguições e a liberdade para celebrarem publicamente o culto divino. Este corajoso acto de Coligny fez com que outros ganhassem animo. O bispo de Valence fallou a favor dos huguenotes da sua diocese, e pediu que fossem revogadas as leis que se oppunham á entoação dos hymnos e á leitura das Escripturas, e que se convocasse um concilio geral. O arcebispo de Vienne ainda se atreveu a mais. Perguntou se «estava resolvida a morte da França para agradar a Sua Santidade». A côrte viu-se obrigada a permittir que se realisasse a tal assembléa geral. Os Guises não desanimaram. Para exterminio do protestantismo, tomaram a resolução de matar os seus homens de maior nomeada, e, segundo parece, tinham tambem em mente um massacre geral dos huguenotes. Fizeram com que o rei chamasse á côrte os Bourbons, isto é, o rei de Navarra, e seu irmão Luiz, duque de Conde, os quaes, sem se importarem com o perigo, para lá partiram. O duque foi preso e sentenciado á morte, e o rei de Navarra por pouco escapou de ser assassinado. Quando, porém, a tempestade estava prestes a estalar, o rei adoeceu e morreu. «Já lêstes ou vos referiram» diz Calvino n’uma carta que enviou a Sturm, «algum acontecimento mais opportuno do que esta morte do rei? Quando a desgraça tinha chegado a tal ponto que não se podia remediar, Deus revela-Se de subito lá do céu. Aquelle que traspassou os olhos do pae feriu agora os ouvidos do filho». =Catharina de Medicis.=—Pela morte de Francisco ficou herdeiro do throno Carlos IX, que tinha então dez annos. Para regente foi nomeado o protestante Antonio de Bourbon, rei de Navarra. A mãe do joven rei, Catharina de Medicis, de quem haviam feito pouco caso durante a vida do marido, e que havia sido offuscada pelos Guises durante o reinado de seu filho mais velho, reivindicou então o direito de governar, na qualidade de tutora natural de seu filho. Os amigos do rei de Navarra instaram com este para que tambem fizesse valer os seus direitos. Se elle assim tivesse procedido, o futuro da França seria, porventura, mais pacifico. Ter-se-hia alcançado uma duradoura tolerancia religiosa, e ter-se-hiam lançado os alicerces de uma monarquia constitucional; elle, porém, teve a fraqueza de não fazer valer esses seus direitos, e Catharina foi investida no poder. As circumstancias, porém, obrigaram-n’a a fazer concessões a todos os partidos. Não podia passar sem o apoio dos Guises, e ao mesmo tempo era indispensavel entrar em negociações com os huguenotes. Todos os herejes que estavam presos recuperaram, por meio de um edicto, a sua liberdade, mas foram avisados de que deviam não dar mais motivo de queixa. No entretanto reunia-se o Estado Geral, que havia sido convocado antes da morte do ultimo rei. Coligny pediu, em nome dos huguenotes, liberdade de religião; uma reforma no governo da Egreja, e, em particular, a eleição livre dos bispos e do clero; um concilio nacional, sob a presidencia do rei, para discutir as questões religiosas, e, no entretanto, egrejas para os protestantes, e uma reunião da Assembléa dos Notaveis de dois em dois annos. Offereceu-se tambem para auxiliar o governo na promulgação de uma lei que auctorizasse a venda dos bens da Egreja para occorrer ás despezas do Estado. As reclamações de Coligny constituiam, no dizer de Ranke, o programma da revolução do seculo dezoito; e, se ellas tivessem sido attendidas, essa revolução não seria assignalada com o atheismo que a desacreditou, e não seria necessario derrubar a monarquia e a aristocracia. A côrte não estava preparada para essas mudanças radicaes, e o mais que se poude obter de Catharina foi uma conferencia religiosa em Poissy, onde podessem ser discutidos pontos de fé entre pastores protestantes e padres catholicos romanos. Em virtude da tolerancia que havia sido concedida aos huguenotes, voltou para França muita gente que se tinha refugiado na Inglaterra, na Allemanha, nos Paizes Baixos, e até mesmo na Italia. Vieram tambem alguns pastores de Genebra, não faltando, d’esse modo, homens bem instruidos que dirigissem as congregações protestantes. Era impossivel, porém, mudar todas as coisas por meio de um compromisso politico. Os Guises ameaçavam vingar-se. O idoso condestavel de Montmorency, que se tinha na conta de ser o campeão da antiga fé, resolvera oppôr-se áquella corrente conciliatoria, e fanaticas turbas se levantaram contra as assembléas protestantes. Nas localidades onde os huguenotes estavam em maioria, tornou-se difficil evitar que elles decisiva e energicamente defendessem os seus direitos. N’algumas cidades o povo correu em massa ás egrejas, derrubou as imagens e os quadros, e queimou as reliquias. Os que entre os huguenotes occupavam os primeiros logares fizeram todo o possivel por conter os seus correligionarios. Calvino escreveu de Genebra, protestando energicamente contra toda e qualquer illegalidade. «Deus nunca disse a pessoa alguma que destruisse os idolos, exceptuando aquelles que cada um tenha em sua casa, ou os que em publico se encontrarem revestidos de auctoridade.... A obediencia é melhor do que o sacrificio, e devemos ver bem o que nos é licito fazer, e manter-nos dentro de certos limites». =A Conferencia de Poissy.=—A data designada para a Conferencia approximava-se com rapidez, e por toda a parte eram convidados todos os francezes que tivessem qualquer coisa a dizer em materia de religião a apresentarem-se na proxima assembléa de Poissy, na certeza de que não correriam perigo algum e seriam escutados com a maxima attenção. Os huguenotes tinham grande empenho em que Beza comparecesse, e pediram-lhe encarecidamente que fosse lá represental-os. Elle ao principio não queria ir, pois que estava convencido de que de similhante rainha se não tiraria resultado algum. Por fim acquiesceu, e os huguenotes ficaram descançados por saberem que os seus interesses estavam entregues em tão boas mãos. Francez, nascido, em 1519, em Vezelay, e de nobre ascendencia, renunciara a um brilhante futuro ao abraçar a causa da Reforma. Era um homem de magestosa presença, muito illustrado, e de um trato captivante. Abaixo de Calvino, era elle a pessoa por quem as egrejas reformadas se deixavam guiar com maior confiança, e em quem viam o seu mais legitimo representante. Foi recebido pelo rei de Navarra, e por seu irmão, Luiz de Condé, e apresentado por elles á rainha mãe e ao cardeal de Lorraine. O seu porte, a sua erudição, e os seus modos de grande personagem, produziram sensação na côrte. Quando teve logar a discussão publica, tornou-se tristemente manifesta a ignorancia dos bispos francezes, e o cardeal de Lorraine e outros mais trataram logo de pôr termo á conferencia, ou, no caso de não conseguirem esse proposito, de a tornarem completamente esteril. O resultado da discussão foi ambas as partes nomearem delegados para conferirem sobre determinados pontos, e d’essas conferencias proveiu um Edicto de Tolerancia, publicado em Janeiro de 1562. Os protestantes tinham de renunciar ás suas egrejas e ás suas reuniões secretas, mas era-lhes permittido fazer os seus cultos ás claras, e a qualquer hora do dia, fora das povoações; e todos os seus ministros eram obrigados a declarar, sob juramento, que não ensinariam coisa alguma que não estivesse de accordo com as Escripturas e com o Credo de Nicéa. A tolerancia era, como se vê, muito limitada; mas desapparecia o fundamento legal para qualquer perseguição, e Calvino e Beza foram de parecer que um tal compromisso, não obstante as pouco favoraveis condições em que era feito, devia ser acceite. «Se a liberdade que o Edicto nos promette fôr duradoura», escreveu Calvino, «o papismo cae por si mesmo». Os catholicos romanos não estavam de fórma alguma dispostos a chegar a um accordo com os protestantes. Os funccionarios civis, nas cidades e nas provincias, pertenciam á religião do estado, e os parlamentos, ou tribunaes de justiça permanentes, abominavam o protestantismo. Sabia-se, além d’isso, que o Edicto da Tolerancia era apenas um ardil de Catharina para ganhar tempo. Por outro lado, os Guises eram formalmente oppostos a qualquer convenio, e todas estas circumstancias incitaram os dois partidos a prepararem-se para uma guerra civil. =O massacre de Vassy: outros massacres.=—O signal foi dado pelo duque de Guise, o qual, com o maior atrevimento, violou o Edicto da Tolerancia. No dia 1.º de Março de 1562, a um domingo de manhã, entrou, á frente de um grupo de cavalleiros armados, na cidade de Vassy, onde uma pequena e indefeza congregação de protestantes estava prestando culto a Deus n’um celleiro. Quasi no fim levantou-se um tumulto, e as pessoas presentes, que não tinham armas para se defender, foram, na sua grande maioria, assassinadas. Foi este o inicio d’essas medonhas guerras civis que tanta devastação produziram em França até Henrique IV subir ao throno. O exemplo da carnificina que teve logar em Vassy foi seguido em muitos outros pontos em que os catholicos romanos estavam em maioria. Em Paris, em Sens, em Rouen, em toda a parte, emfim, os logares de culto protestantes foram atacados e os que n’elles se haviam reunido tiveram morte violenta. Em Toulouse os protestantes, temendo uma carnificina, fecharam-se no Capitolio; foram atacados pelos catholicos romanos, e, ao cabo de uma certa resistencia, entregaram-se sob a promessa de que lhes seria permittido sair da cidade sem serem molestados. Uma vez cá fóra, foram todos massacrados—homens, mulheres e creanças, tendo perecido, ao todo, para cima de 3000 pessoas. Este morticinio de protestantes, em que houve violação de um juramento, foi commemorado pelos catholicos romanos de Toulouse em 1662 e 1762, e tel-o-hia sido egualmente em 1862 se o governo de Napoleão III se não houvesse opposto á celebração do centenario. Estes sanguinolentos massacres provocaram represalias. Os huguenotes precipitaram-se para as egrejas papistas, e destruiram as imagens, os altares e as reliquias. Destruição de imagens e derramamento de sangue era a ordem do dia na maior parte das provincias de França. =A guerra civil. Os iconoclastas.=—No meio de tudo isto os dois partidos formaram-se gradualmente em dois exercitos inimigos, ficando um, o papista, sob o commando de Francisco, duque de Guise, e o outro, o protestante, sob o commando de Luiz, duque de Condé, e do almirante Coligny. A França poude então presenciar todos os horrores de uma guerra civil, em que o fanatismo religioso accrescentou, ás barbaridades communs a todas as guerras, as mais atrozes crueldades. O embaixador de Veneza, escrevendo aos chefes do seu Estado, exprimiu a opinião de que esta primeira guerra religiosa obstou a que a França se tornasse protestante. As crueldades dos papistas tinham desgostado um grande numero de cidadãos francezes, que, sem serem impulsionados por fortes sentimentos religiosos, ter-se-hiam de muito bom grado alliado áquelles que, pela sua moderação, se mostravam competentes para inaugurar, e manter na pratica, um systema de tolerancia. Os chefes huguenotes faziam o maximo empenho em poder provar que os seus adherentes sabiam fugir aos excessos, e Calvino e Beza recommendaram que não se interviesse no culto dos catholicos romanos, excepto quando o caso fosse tratado judicialmente, e ainda assim com muita serenidade. Não, foi, porém, possivel evitar que os protestantes despedaçassem as imagens e dessem cabo de tudo quanto encontraram nas egrejas. Em Orleans foram umas poucas de egrejas atacadas ao mesmo tempo. Condé, acompanhado de Coligny e de outros vultos importantes, dirigiu-se a toda a pressa para a egreja de Santa Cruz, onde o tumulto era maior. Ao chegarem á egreja, Condé reparou n’um soldado huguenote, que havia subido a um ponto elevado da frontaria e se preparava para atirar cá para baixo com a imagem de um santo. O duque pegou n’um arcabuz, apontou-o ao dito soldado, e ordenou-lhe que descesse quanto antes. Elle não parou com o que estava fazendo, proferindo, porém, estas palavras: «Deixe-me primeiro fazer este idolo em migalhas, e depois mate-me, se isso fôr da sua vontade». Tratando-se de gente assim, que preferia morrer a deixar de destruir as imagens, era impossivel esperar que se podesse pôr um dique á iconoclastia, e onde quer que as tropas protestantes entrassem as egrejas ficavam n’uma completa desordem. Este procedimento foi tomado em toda a França como um indicio de que os protestantes, se chegassem a ter o poder nas mãos, seriam tão intolerantes como os catholicos, e, por consequencia, a sympathia pela sua causa, que até ali fôra sempre crescendo, começou a declinar. O desenvolvimento da guerra foi, no seu conjuncto, desfavoravel aos huguenotes. Francisco, duque de Guise, era um admiravel general, e os papistas estavam bem providos de dinheiro e recebiam auxilio de fóra; ao passo que os huguenotes estavam quasi exclusivamente dependentes dos seus proprios recursos, e achavam-se muito mal fornecidos de fundos para o proseguimento da lucta. Os huguenotes perderam a batalha de Dreux, em Dezembro de 1562, graças, principalmente, á admiravel disciplina dos auxiliares suissos de Guise; mas, por seu turno, os papistas perderam o duque de Guise, que foi assassinado em Fevereiro de 1563. Com a morte do duque, Catharina adquiriu maior poder, e tornou-se mais facil a paz. Os huguenotes não tinham conseguido vencer os papistas; e, do mesmo modo, os papistas não tinham conseguido exterminar os protestantes. Não se haviam reconciliado uns com os outros, mas achavam-se cançados; e convieram n’uma suspensão de hostilidades. O Edicto da Paz garantia aos protestantes os privilegios que lhes haviam sido concedidos um anno atraz, e accrescentava outros, sendo o mais importante este: «Em cada baliado será escolhida uma cidade em cujos arrabaldes os protestantes poderão realisar os seus cultos, e em todas as cidades, excluindo Paris, onde em 7 de Março do anno corrente era praticada a religião protestante, será a pratica d’esta permittida em dois recintos _intra-muros_, que serão opportunamente designados pelo rei». O Edicto de Amboise, saido em 12 de Março de 1563, só resolveu as coisas por metade, o que irritou ambas as facções. Os catholicos romanos não gostavam d’elle por tolerar a religião reformada, e os protestantes por não lhes conceder tudo quanto elles desejavam. Foi obra de Catharina e de Condé, cada um dos quaes confiava em que o futuro se encarregaria de tornar inoffensivas para o seu partido as concessões que fazia. As treguas duraram cerca de cinco annos, ao cabo dos quaes arrebentou a segunda guerra religiosa. A lucta durou mais de um anno. A unica acção decisiva foi a batalha de St. Denis, em que Montmorency foi morto. Seguiu-se então o armisticio de Longjumeaux, cujas condições eram identicas ás do Edicto de 1562. Este armisticio durou apenas alguns mezes, findos os quaes começou a terceira guerra religiosa. Os protestantes receiavam-se do duque de Alba, o feroz governador dos Paizes Baixos, que se estava preparando para ajudar a côrte franceza a exterminar todos aquelles que não quizessem submetter-se á Egreja Catholica Romana, e resolveram tomar a offensiva. Condé e Coligny souberam que o duque tinha aconselhado a rainha a tirar a vida aos chefes huguenotes, cair depois sobre o povo, e, finalmente, supprimir a obnoxia fé. Os cabeças fugiram para La Rochelle, e a guerra começou. Combateu-se durante quasi todo o anno de 1569, com alternativas de bom e mau exito, tanto diplomatico como militar. Por fim, teve logar a batalha de Jarnac, onde os huguenotes foram derrotados, e onde Condé e varios outros encontraram a morte. A sorte parecia ter-se tornado crudelissima para os huguenotes. Os chefes hereditarios do partido eram Henrique de Navarra, moço de quinze annos, e seu primo Henrique de Conde, que não tinha muito mais edade do que elle, de modo que Gaspar de Coligny é que teve de arcar com toda a responsabilidade. Tratou de reunir as forças dispersas, e, não obstante alguns revezes, poude obter um tratado de paz que offerecia vantagens como nunca os huguenotes tinham logrado alcançar. Foi auctorizado o culto publico n’um grande numero de cidades, e quatro d’ellas—La Rochelle, Montauban, Cognac e La Charité—foram dadas aos protestantes como logares de refugio. =Coligny e Carlos IX.=—O almirante Coligny ficou sendo, em virtude d’este tratado de paz, o chefe em quem os huguenotes mais confiavam. Deixou-se ficar em La Rochelle, no meio dos seus correligionarios, e encarregou-se da tutella dos dois jovens principes que eram as esperanças dos protestantes, Henrique de Navarra e Henrique de Condé. O fim principal que elle tinha em vista era de tornar permanentes as vantagens que os reformados tinham conquistado mediante as terriveis guerras religiosas. Convidaram-n’o a ir á côrte, e, a despeito de todos os avisos em contrario, foi. «Prefiro», disse elle, «morrer mil vezes do que, por uma indevida solicitude pela minha vida, dar occasião a que se avente uma suspeita em todo o reino». Como quer que fosse, o nescio, fraco e dissoluto Carlos IX sympathizou com o velho fidalgo. O pobre rei, que tinha então uns vinte annos, não havia conhecido nunca um homem como aquelle. A enfermidade não o havia deixado desde a infancia, e estivera rodeiado por pessoas que tinham interesse em o educar na imbecilidade e na devassidão. Assim que se poz em contacto com Coligny, que era um homem que inspirava um instinctivo respeito, que nada dizia ou fazia que não estivesse de accordo com as suas convicções, que se havia tornado a mais celebre individualidade da França, que fora o organisador do partido protestante, que era quasi adorado pelos seus amigos, e que, apezar da sua edade avançada, estava ainda em todo o vigor da vida, não poude deixar de confiar n’elle como nunca tinha confiado em pessoa alguma. Catharina, Henrique de Anjou, seu filho, e os Guises conheceram que o rei estava sob uma nova influencia, a que precisavam de subtrahil-o a todo o transe. Tinham medo de que o rei, tendo a seu lado um homem pundonoroso, lhes escapasse das mãos; e esta extraordinaria affeição que o debil Carlos sentiu por Coligny foi, segundo affirmam alguns historiadoros, a causa do massacre de S. Bartholomeu. Catharina e Henrique de Guise tramaram o assassinio de Coligny. O attentado, porém, falhou. Catharina foi então ter com seu filho, e referiu-lhe que Coligny e todos os demais huguenotes estavam convencidos de que elle, Carlos, entrara também na conspiração que tinha por fim a sua morte, e que, portanto nunca havia de ter paz emquanto os protestantes não fossem exterminados. Em seguida propoz uma chacina dos vultos preponderantes, em que o rei, fortemente instado, consentiu. =A matança de S. Bartholomeu.=—Esta terrivel carnificina de protestantes, que teve logar na vespera de S. Bartholomeu (24 de Agosto de 1572) foi obra de Catharina de Medicis, de Henrique de Anjou e dos Guises. A matança foi feita em Paris por 20:000 milicianos da cidade, coadjuvados por alguns soldados e pelos mercenarios suissos, que eram pagos pelo duque de Guise. As forças a que se commetteu aquella tarefa eram commandadas pelos irmãos Guise. Assassinaram em primeiro logar Coligny e alguns dos principaes cabeças, e depois o massacre tornou-se geral. As casas dos protestantes tinham sido previamente marcadas com cruzes brancas, e os assassinos, para reconhecimento mutuo, traziam faxas brancas, além de outros signaes. Só em Paris foram mortos, pelo menos, 2000 homens, metade dos quaes eram pessoas de distincção. O historiador protestante Crespin diz que foram mortos em Paris 10:000; e Brantôme, creatura sceptica e dissoluta, fixa o numero em 4000. Organizaram-se carnificinas pelas provincias, e o numero das victimas tem sido calculado entre 30:000 e 100:000. Sully, primeiro ministro de Henrique IV, que estava provavelmente bem inteirado, affirma que cairam sem vida 70:000 pessoas. Ultimamente os escriptores catholicos romanos não se teem mostrado muito orgulhosos de aquelle commettimento, mas quando a matança teve logar muitos d’elles exultaram. Sabe-se perfeitamente que, se o acto não foi instigado de Roma, o papa e a curia estavam, pelo menos, scientes de que elle ia realisar-se. Houve illuminações em Roma para festejar o acontecimento, os canhões do castello de S. Angelo salvaram, organizou-se uma procissão que foi até á egreja de S. Marcos, e cunhou-se uma medalha para commemorar o _Hugonotorum Strages_. Alguns dos principes catholicos romanos enviaram mensagens de congratulação, e diz-se que o pobre e corrompido Filippe II de Hespanha sorriu, pela primeira e ultima vez na sua vida, quando a noticia lhe constou. O massacre diminuiu cruelmente o poder dos huguenotes, e privou-os de quasi todos os seus caudilhos; mas elles continuavam a existir, e, em vez de se intimidarem, de se darem por vencidos, perante aquelle acto sanguinario, resolveram em seus corações vingar-se d’elle. Ainda restavam algumas cidades em poder dos protestantes; La Rochelle, Sancerre, Nismes, Montauban, e ainda outras, fecharam as suas portas, e negaram-se a dar entrada aos governadores que de Paris lhes enviaram. La Rochelle foi atacada pelas tropas reaes commandadas por Henrique de Anjou, e os habitantes soffreram todas as calamidades de um cerco, obrigando, por fim, os sitiantes a retirar-se. Uma egualmente bem succedida resistencia da parte de outras cidades forçou a côrte a entrar em negociações com os seus odiados subditos protestantes, e ficou restabelecida a paz. D’esta vez os huguenotes convenceram-se de que deviam estar sempre preparados para a guerra. Os horrores da vespera de S. Bartholomeu haviam-lhes mostrado o quão implacaveis eram os seus inimigos, e a traição por elles commetida quando foi do cerco e capitulação de Sancerre deu-lhes uma prova da sua deslealdade. Os protestantes estiveram sitiados oito mezes, e durante esse periodo morreram de fome quinhentos homens, pelo menos, e todas as creanças com menos de doze annos. «Porque chora», exclamou um rapazito de dez annos, «ao ver-me morrer de fome? Eu não lhe peço pão, mãe; sei que não tem nenhum para me dar. Visto Deus querer que eu morra d’esta forma, devemos acceitar isso alegremente. Lazaro, aquelle homem santo, não tinha tambem fome? Não o li eu na Biblia?» E depois de a cidade se haver rendido teve logar, não obstante a promessa que lhe tinha sido feita sob juramento, uma horrivel scena de homicidio e pilhagem. Os huguenotes, que não tinham quem os dirigisse, resolveram organizar-se, para que podessem estar sempre promptos, e tão diligentemente pozeram os seus planos em execução que n’um curto prazo se encontraram aptos para pôrem 20.000 homens em campo, á primeira voz. Foi em Montauban que tudo organizaram, e foi de lá que dirigiram uma representação ao rei, em que Coligny havia insistido pouco antes de principiarem as guerras religiosas. A côrte ficou sabendo que o espirito huguenote não se havia extinguido. Desde a matança de S. Bartholomeu um outro partido ia adquirindo lentamente importancia em França. Era elle constituido pelos catholicos romanos moderados, que estavam fartos de carnificinas, e que attribuiam todos os males do Estado ao poder de que os estrangeiros dispunham no reino. Exigiam a expulsão dos florentinos e dos lorrenezes, isto é, da rainha-mãe e dos Guises; e insistiam na reintegração das antigas liberdades da nação. Estes «Politicos», como também eram chamados, ainda mais se aferraram ás suas idéas quando tiveram conhecimento do traiçoeiro ataque a La Rochelle, e do programma politico que os huguenotes expozeram em Milhau, e, revestidos de paciencia, esperaram a occasião de intervir. Posto que o cerco de La Rochelle e de outras cidades protestantes—a quarta guerra religiosa, como lhe chamaram—fosse seguido de um tratado de paz, nunca, de um modo ou do outro, se deixou de combater, e a rejeição do pedido feito pelos huguenotes não permittia duvidas quanto á imminencia de outra guerra ainda. Entretanto Carlos IX morria, em Maio de 1574, de uma terrivel enfermidade em virtude da qual o sangue lhe sahia por todos os poros da pelle, e o povo attribuiu-a a um castigo da carnificina de S. Bartholomeu. Succedeu-lhe Henrique de Anjou, o terceiro e mais vil dos filhos de Catharina, e que era o favorito d’esta. Henrique era ao mesmo tempo um papista cheio de superstições e um libertino cheio de impudencia. Henrique III tinha-se, durante a vida de seu irmão, associado aos Guises, e adherira ao partido papista; pouco depois de subir ao throno, porém, como o amedrontasse a possibilidade de uma alliança entre os «politicos» e os huguenotes, concedeu, por meio de um edicto, uma parte do que os protestantes pediam. Concedeu, exceptuando em Paris, uma illimitada liberdade religiosa, egualdade de privilegios sociaes, o direito de ser julgado por um tribunal composto, em partes eguaes, de romanistas e de protestantes, e, além d’isso, ficavam oito fortalezas, como penhor, nas mãos dos protestantes. =A Santa Liga.=—Este procedimento do rei deu logar á fundação da Santa Liga, sociedade formada pelos Guises e pelos jesuitas, cujo fim era promover uma alliança dos catholicos francezes com Filipe II de Hespanha e com o papa. Visava, em primeiro logar, a governar a França no interesse da fé catholica romana, não transigir em coisa alguma com os huguenotes, e impôr-se ao rei; para mais tarde ficaria o aniquilar os Bourbons, ou, pelo menos, o impedir que a corôa passasse para Henrique de Navarra. Originaram-se de aqui as chamadas Guerras da Liga, em cujos variados incidentes não necessitamos de entrar. Tanto a quinta, como a sexta, como a setima guerra civil concluiu por um tratado de paz favoravel aos protestantes. Em 1585 a Liga foi remodelada, consolidando-se o poderio dos Guises. A oitava guerra civil terminou em julho, mediante o tratado de Nemours, que não era tão favoravel para os protestantes. A nona guerra civil teve logar pouco depois. Foi denominada a Guerra dos Tres Henriques—Henrique III, Henrique de Guise, e Henrique de Navarra, o qual, apezar da sua pouca edade, havia ganho a confiança dos huguenotes. Essa guerra teve o seu termo na batalha de Coultras, em que os huguenotes ficaram victoriosos. As luctas foram interrompidas pelas questões que surgiram entre o rei e o duque de Guise, presidente da Liga. O rei percebeu que a sua auctoridade diminuia rapidamente. Os Estados Geraes, que se reuniram em Blois, em Outubro de 1588, mostraram-lhe que a França estava sob o dominio do duque; e a insurreição que teve logar algumas semanas antes foi uma revelação do quanto a Liga se havia ramificado. Não querendo sujeitar-se por mais tempo áquella dependencia, resolveu libertar-se da Liga mediante a morte dos seus dirigentes. Henrique, duque de Guise, e Carlos, o cardeal, foram, portanto, assassinados em Dezembro de 1588, juntamente com muitos dos seus amigos; mas a Liga continuou a existir. É que ella havia estabelecido em toda a França associações similhantes aos clubs jacobinos do periodo revolucionario; e, quando os Guises foram assassinados, a sociedade mãe, ou, por outra, a Liga dos Dezeseis, como era conhecida, apoderou-se do governo, collocou adherentes seus em todos os logares de confiança, e submetteu os actos do rei á apreciação do parlamento. Henrique III, accomettido de um desprezivel medo, fugiu para o meio dos huguenotes, entregando-se ao seu grande rival, o rei de Navarra. Jacques Clemente, frade dominicano, e um dos fanaticos da Liga, foi, porém, em sua perseguição, e apunhalou-o. Algumas horas depois Henrique III expirava, e o general huguenote ficava sendo o legitimo herdeiro da corôa de França. =Henrique de Navarra.=—Ao principio foi apenas reconhecido pela parte protestante da França. A Liga dispunha de grande poder, e estava resolvida a impedir que o throno fosse occupado por um huguenote. Até mesmo os catholicos romanos moderados com dificuldade podiam admittir que reinasse em toda a França um rei que professava a religião da minoria. O papa recusava-se a reconhecer um soberano protestante, e Filippe II de Hespanha fez a ameaça de uma invasão das suas tropas. N’estas circumstancias, Henrique de Navarra fez uma coisa extraordinaria: pediu para ser instruido nas doutrinas da religião catholica romana. Isto chamou para o seu partido um grande numero de romanistas moderados, e o rei poude desbaratar a Liga nas batalhas de Arques e Ivry. A Liga continuava ainda a intimidai-o muito e projectava levar ao throno Carlos de Guise, duque de Mayenne, ou o Cardeal Bourbon, tio de Henrique, (que reinou effectivamente sob o nome de Carlos X), ou Filippe II de Hespanha, que tinha casado com uma Valois. Em face de todas estas complicações, Henrique deu um passo que a sua heróica mãe nunca teria dado. Fez-se catholico romano. O effeito d’isto foi que n’um maravilhosamente curto espaço de tempo a Liga se dissolveu, e Henrique IV foi acclamado rei por quasi toda a França. Os seus velhos companheiros de armas e correligionarios, posto que deplorassem a sua apostasia, não abandonaram o joven que desde a infancia havia sido seu associado e chefe, e que, depois dos afflictivos dias de Bartholomeu, havia deixado a côrte assim que isso lhe fôra possivel, para combater junto d’elles. Elle, em troca, concedeu-lhes aquillo por que haviam luctado durante trinta annos. =O Edicto de Nantes.=—Em 1598 foi assignado o famoso Edicto de Nantes, que se adeantava mais em tolerancia religiosa do que qualquer outro edicto do seculo dezeseis. Tinha, porém, um grande defeito, e era que as circumstancias em que a França se encontrava tornavam impossivel garantir liberdade religiosa sem conceder aos protestantes certos privilegios politicos que os constituiam um estado no estado, e que mais tarde obstaram á completa fusão dos dois partidos n’um governo. Este edicto outorgava completa liberdade de consciencia; de ahi em deante ninguem mais seria perseguido por causa das suas idéas religiosas. Todos os nobres que possuissem aquillo a que se chamava «superior jurisdicção» tinham auctorização para ensinar o calvinismo, e toda a gente podia aproveitar-se das suas lições. Os nobres que não possuissem essa jurisdicção gozavam do mesmo privilegio, e podiam ter ao seu serviço quantas pessoas quizessem, quando residissem em localidades onde não houvesse catholicos romanos com a «superior jurisdicção». Dava licença para que continuasse, ou fosse restaurado, o culto publico «a que chamam reformado» em todas as cidades onde elle já existia em Agosto de 1597. Quando os protestantes estivessem espalhados por um districto provinciano, designar-se-hia para local do culto uma das povoações. Prohibia-se aos protestantes o culto publico em Paris, ou a cinco milhas de distancia d’essa cidade, e nas seguintes cidades, onde predominava o fanatismo catholico romano: Reims, Toulouse, Dijon e Lyon. N’outra qualquer parte os protestantes podiam ter egrejas, sinos, escolas, etc. Os principaes limites da liberdade religiosa consistiam em que a religião romana era declarada a religião estabelecida, e em que os protestantes tinham de pagar dizimos ao clero official, não podiam trabalhar nos dias santificados, e eram obrigados a conformar-se com as leis matrimoniaes da egreja catholica. Os protestantes, ficou também declarado, tinham os mesmos deveres civis e os mesmos privilegios dos catholicos romanos, e podiam concorrer a todos os empregos e dignidades do Estado. Estabeleciam-se tribunaes de justiça especiaes, para julgamento dos protestantes. Estes retinham durante oito annos todas as cidadellas que lhes pertenciam anteriormente a 1597, com todo o material de guerra; e n’essas cidades os governadores eram nomeados pelos huguenotes. CAPITULO IV A REFORMA NOS PAIZES BAIXOS Os Paizes Baixos, pag. 113.—A politica de Carlos V, pag. 114.—Os principios da Reforma, pag. 115.—Filippe II e os Paizes Baixos, pag. 115.—A inquisição, pag. 117.—Os novos bispados, pag. 118.—Tornar-se-ha hespanhol o paiz? pag. 119.—Os _mendicantes_, pag. 120.—Prégações ruraes, pag. 120.—O duque de Alba nos Paizes Baixos, pag. 121.—A prisão do conde Egmont e do conde Horn, pag. 122.—A guerra civil. O principe de Orange, pag. 124.—Os mendigos do mar, pag. 124.—A tomada de Brill, pag. 126.—Requescens y Zuniga, pag. 128.—O cerco de Leyden, pag. 129. Negociações entre as provincias do sul e as do norte, pag. 130.—D. João de Austria, pag. 131.—Alexandre de Parma, pag. 132.—O tratado de Utrecht, pag. 132.—A Egreja hollandeza, sua organização e confissão, pag. 133.—O _Confessio Belgica_, pag. 134.—A constituição da Egreja hollandeza, pag. 134.—A força da Egreja na Hollanda, pag. 136. =Os Paizes Baixos.=—A revolta dos Paizes Baixos contra Roma foi talvez a ultima d’esse genero se a datarmos do triumpho final, mas aquelle paiz teve a honra de fornecer os primeiros martyres da fé protestante. Os Paizes Baixos ficavam em volta das boccas do Scheldt e do Rheno, e na edade media constituiam o lado norte do velho reino de Lotharingia, ou Lorrena, o celebre reino central, como era chamado. A sua situação, com uma extensa costa maritima, e os grandes rios que o atravessavam, tornava-o naturalmente um paiz commercial. O mar estava constantemente usurpando a parte secca, e era necessario oppôr-lhe diques; os rios trasbordavam, e era necessario evitar que os campos ficassem submergidos. A perpetua lucta com a natureza a que estes perigos forçavam o povo fez d’elle uma gente endurecida e apta para tratar de si sem o auxilio alheio. O paiz abundava em grandes cidades, habitadas por gente livre e opulenta. A vida burgueza começou mais cedo nos Paizes Baixos do que na maioria das nações europeas. A liberdade civica era conhecida apreciada. N’alguns pontos os dirigentes eram principes, ou bispos-principes; n’outros havia um conselho districtal, o qual, como succedia em Utrecht, considerava seu subdito o bispo da provincia. Outras influencias contribuiam, para que se preservasse o espirito da liberdade. O sul dos Paizes Baixos tinha sido a terra dos Trouvères, e a sua influencia era ainda bastante para que no povo se conservasse vivo o espirito anti-clerical. O clero romano nunca teve muito predominio nas cidades mais importantes, e mesmo nas provincias não conseguiu jámais levar de vencida as «Camaras de Oradores», como eram chamadas, as quaes algumas vezes, sob o disfarce de clubs de archeiros, ou sociedades de canto, eram na realidade agrupamentos que tinham por fim cultivar os talentos dramaticos dos seus membros, ou para representarem os oratorios medievaes, ou, mais frequentemente, para comporem e recitarem poesias satyricas e comicas em que os vicios dos homens da Egreja eram inexoravelmente atacados. Os Paizes Baixos tinham sido tambem o theatro dos labores de Gerardo Groot, o fundador das escolas para creanças pobres e dos asylos para orphãos; e os seus collaboradores, os Irmãos da Vida Commum, tinham diffundido os seus sentimentos de mystico desprezo por uma Egreja mecanica e politica, e a sua ambição de que todos os paizes em redor fossem devidamente educados e seguissem a religião do coração. Thomaz á Kempis, João Wessel, João Goch, e outros reformadores que viveram antes da Reforma, todos elles eram dos Paizes Baixos. =A politica de Carlos V.=—No seculo quinze a maior parte d’estes estados livres e d’estas cidades opulentas tinha caido sob o dominio dos duques de Borgonha, que eram ao mesmo tempo vassalos da corôa franceza e do Imperio. Não vem agora a proposito relatar a avidez com que Filippe o Bom, e seu filho, Carlos o Ousado, luctaram para fazer do seu ducado um reino, e para mostrar como o genio violento de Carlos deu motivo a que os seus planos fracassassem. Os paizes arrancados ás garras da França constituiram o dote de Maria de Borgonha, filha de Carlos, quando casou com Maximiliano de Austria, que era neto de Carlos V, o imperador na epoca em que se deram os primeiros episodios da Reforma. Carlos V, que era conde de Hollanda, e _stadtholder_ dos Paizes Baixos, assim como rei de Hespanha e imperador da Allemanha, nasceu e foi educado nos Paizes Baixos, e reputava essas provincias suas propriedades exclusivas. A politica constante do imperador foi a de auxiliar, até onde podesse ser, os privilegios provinciaes e a liberdade civica, e nos Paizes Baixos fez tudo quanto estava ao seu alcance para centralizar o governo e remover os antigos privilegios constitucionaes. O povo não recebia com agrado estas medidas, mas attribuia-as a conselhos de procedencia hespanhola. =Os principios da Reforma.=—Quando a Reforma começou na Allemanha, e foi publicado o famoso edicto de Worms, collocando Luthero, os seus adherentes e as suas obras sob o anathema do Imperio, Carlos fez sair nos Paizes Baixos um decreto que continha disposições similhantes. O edicto foi inefficaz na Allemanha, mas Carlos poude constranger á obediencia nos Paizes Baixos. Em 1523, dois frades agostinhos, Henrique Voes e João Esch, foram detidos pelas auctoridades, e, apoz um inquerito, foram queimados em Bruxellas, sendo elles os primeiros martyres da Reforma. Luthero compoz um hymno em sua honra, que intitulou «Cantico dos dois martyres de Christo em Bruxellas, queimados pelos Sophistas de Louvain.» Foram prohibidas as reuniões religiosas, assim como a introducção das obras de Luthero. Não obstante estas restricções, o Novo Testamento de Luthero foi traduzido em hollandez, e impresso em Amsterdam em 1523, e as doutrinas da Reforma tornaram-se largamente conhecidas. Os regentes que estavam á frente das dezesete provincias em nome de Carlos não deram plena execução aos severos edictos que lhes foram confiados. Margarida de Saboya, tia de Carlos, era inclinada á tolerancia em materia de religião, e Maria da Hungria, sua irmã, era, segundo se diz, secretamente partidaria da Reforma. N’estas circumstancias o movimento alastrou-se com rapidez no meio do povo, que estava acostumado a ler, pensar e julgar por si proprio; pois que, diz um historiador, «até nas cabanas dos pescadores da Frisilandia se depara com pessoas aptas não somente para ler e escrever, como tambem para discutir, quaes letrados, as interpretações biblicas.» O movimento soffreu um grande revez com uma irupção do fanatismo anabaptista em 1534. Em Leyden os fanaticos tentaram apoderar-se da cidade e incendial-a. Em Amsterdam percorreram as ruas soltando loucos vaticinios. Na Frisilandia penetraram n’um convento, e combateram desesperadamente com os soldados que pretendiam fazel-os abandonar o edificio. O governo foi inexoravel com elles. Deu-se-lhes uma verdadeira caça, e foram torturados e mortos, affirmando-se que pereceram quasi trinta mil pessoas, e entre ellas muitos e pacificos protestantes que não approvavam de modo algum aquelles ardores anabaptistas. A Reforma, apezar d’este contratempo, foi fazendo progressos nos Paizes Baixos, até que, em 1555, Carlos V abdicou em seu filho Filippe II, começando então o povo a luctar pela liberdade politica e religiosa. =Filippe II nos Paizes Baixos.=—Carlos viu todos os seus projectos transtornados pela Reforma; seu filho Filippe resolveu adoptar a mesma politica, usando, porém, do maior rigor e severidade. «Queria impôr, illimitada e incondicionalmente, o despotismo temporal e espiritual a que o restabelecido poder pontificio aspirava.» Sabemos agora que o empreendimento de Filippe era, desde o principio, irrealisavel; mas o elle ser ou não bem succedido constituiu um problema que teve a Europa suspensa durante quasi meio seculo. Por fim só em Hespanha é que logrou bom exito, para desgraça d’esta nação. O interesse que a lucta nos Paizes Baixos desperta provém do facto de ser a primeira revolta contra a politica de Filippe, e devido a ella o poder de Hespanha ficou tão abalado que a Europa poude sentir-se em segurança. Ao tomar conta dos dominios hereditarios de seu pae, Filippe achava-se nos Paizes Baixos. Elle tinha observado com desgosto os progressos que a religião reformada fazia n’essa terra. A Hespanha estava segura, pois que se havia inteiramente extinguido n’ella toda a liberdade civil e religiosa. Filippe podia, portanto, permanecer nos Paizes Baixos, e superintender pessoalmente o inicio da sua obra de repressão. Descobriu que a Biblia estava toda traduzida em hollandez, por Jacob Liesfeld, que muitos dos nobres estavam em constante communicação com os principes lutheranos da Allemanha, e que os protestantes dos Paizes Baixos se entendiam tambem perfeitamente com os huguenotes francezes. As suas medidas para exterminio da heresia foram cuidadosamente elaboradas e com muita paciencia postas em pratica. Confiava, para o bom exito, na presença do exercito hespanhol, n’uma especie de conselho que lhe fosse dedicado e executasse a sua vontade nos mais minuciosos detalhes, no estabelecimento da inquisição, e n’uma remodelação do episcopado das provincias. Os territorios da Hespanha, incluindo a parte que ficava ao sul dos Pyrenéus e os Paizes Baixos, confinavam com a França, tanto ao norte como ao sul, e quando em guerra com este paiz as tropas hespanholas haviam-se aquartellado nas dezesete provincias, com o fim de se encontraram com o exercito francez n’essa fronteira. Filippe resolveu conservar ahi essas tropas e servir-se da presença d’ellas para impôr os seus designios. Esta permanencia de tropas estrangeiras no seu territorio sem o seu consentimento representava um attentado contra um dos privilegios que as provincias mais apreciavam; o paiz, além d’isso, tinha acabado de passar por uma grande fome, e a brutalidade dos soldados ainda mais exasperava o povo, chegando os habitantes da Zelandia a declarar que antes queriam morrer afogados do que continuarem por mais tempo sujeitos aos ultrajes da soldadesca. Filippe não podia ficar para sempre nos Paizes Baixos, pois que a sua presença era necessaria na Hespanha, e antes de se retirar precisava de nomear uma pessoa que ficasse governando em seu nome. As provincias queriam que esse encargo recaisse sobre um dos seus nobres, e os nomes de dois membros da aristocracia, Guilherme de Orange e o Conde Egmont, que eram tambem principes do Imperio Allemão, foram frequentemente pronunciados na presença do rei. Tinham sido ambos muito affeiçoados a Carlos V, havendo demonstrado por meio de actos a sua dedicação, e possuíam todos os requisitos para o desempenho de aquelle logar. A escolha de Filippe, porém, caiu em sua cunhada, Margarida de Parma, que estava inteiramente dependente d’elle, era estranha ao paiz, cuja lingua ignorava, e conforme Filippe suppunha, lhe obedeceria cegamente. Deixou junto d’ella, como primeiro conselheiro, Antonio Perrenot, mais conhecido pelo cardeal Granvella, creatura sua, e mais um ou dois que elle sabia ao certo que executariam sem hesitação qualquer ordem que mandasse. =A Inquisiçao.=—O mais importante elemento de repressão, comtudo, foi a inquisição. Esta terrivel instituição differia inteiramente da organização que, com o mesmo nome, existiu antes da Reforma. A primeira inquisição, estabelecida para exterminio dos albigenses do sul da França, causou grandes soffrimentos aos não-conformistas da edade media, mas as suas funcções eram geralmente entregues aos dominicanos e aos franciscanos, e a rivalidade que havia entre uns e outros, combinada com o facto de terem sido estas duas grandes ordens as que deram acolhida á heresia medieval, obstou a que ella fosse o perseverante instrumento de repressão de que os papas de epocas posteriores á da Reforma, os jesuitas e os monarcas como Filippe II careciam. Foi, por conseguinte, remodelada em Roma sob a superintendencia do cardeal Caraffa, que mais tarde se chamou Paulo IV, separada das ordens monasticas, e restabelecida sobre uma base independente. Tinha por fim, segundo a bulla que presidiu á sua fundação, extirpar a heresia, primeiro em Italia, e em seguida em todo o mundo; e no seu funccionamento havia quatro regras a observar. Em materias de fè não se permittia um momento de demora, e a inquisição tinha de proceder com o maior rigor á mais leve suspeita, não se respeitava as pessoas dos principes ou dos prelados, por mais elevada que fosse a sua posição; usar-se-hia de um rigor especial para com aquelles que se acolhessem á protecção de um rei ou de uma personagem equivalente; e não se concederia uma falsa tolerancia a qualquer heresia, sobretudo ao calvinismo. A idéa do cardeal Caraffa era tornar a inquisição alliada do Estado, prestando o poder civil a sua coadjuvação para que as ordens da Egreja fossem cumpridas, e acoimando esta de heresia qualquer acto ou phrase que um Estado despotico entendesse que lhe era hostil. A inquisição tornava-se assim uma terrivel maquina nas mãos de um governo despotico, e, na verdade, onde quer que a sua presença se fez sentir por muito tempo, toda a liberdade civil e religiosa foi suffocada. A Italia e a Hespanha ainda não se restabeleceram das feridas por ella abertas. Carlos V estabeleceu a Inquisição tanto em Hespanha como nos Paizes Baixos, e, de accordo com o que ella preceituava, publicou alguns edictos cheios de violencia, aos quaes, não obstante a passiva opposição dos regentes, não houve remedio senão obedecer. Foi prohibido imprimir, copiar, conservar escondido, comprar, vender ou dar qualquer livro de Luthero, Œcolampadius, Zwinglio, Bucer, Calvino, ou qualquer outro hereje. Foi tambem prohibido damnificar, de uma ou outra fórma, a imagem de qualquer santo canonizado, assistir a reuniões hereticas, ler as Escripturas, e entrar n’uma discussão ou controversia religiosa. Os transgressores, se se retractassem, eram mortos á espada ou enterrados vivos; se não se retractassem, eram queimados, com confiscação de todos os seus bens. Aquelle que denunciasse um hereje recebia uma boa parte da sua fortuna, logo que fosse provada a veracidade da accusação. Os suspeitos de heresia eram obrigados a abjurar, e, se tornava a haver duvidas a seu respeito, procedia-se com elles como se fossem herejes declarados. Durante o reinado de Carlos houve todos os annos um bom numero de execuções, e, não obstante, a Reforma ia-se propagando. Em 1550 já tinham fugido á inquisição 10:000 pessoas, que procuraram refugio em paizes estrangeiros. Filippe, a cujo conhecimento isto chegou, era de opinião que o terrorismo ainda não tinha sido exercido senão em pequena escala; concedeu, portanto, mais amplos poderes á inquisição, e ordenou á regente e ao seu conselho que prestassem aos inquisidores todo o auxilio que lhes fosse necessario. =Os novos bispados.=—No principio do seculo dezesseis havia nos Paizes Baixos quatro bispados: o de Arras, o de Cambray, o de Tournay e o de Utrecht. Filippe, só com uma pennada, propoz que se acerescentassem quatorze. O cardeal Caraffa, já então o papa Paulo IV, deu logo o seu apoio a essa proposta, pois que, disse elle, a heresia andava desenfreiada pelos Paizes Baixos, e a seara era abundante mas poucos os obreiros. O clero dos Paizes Baixos protestou; o povo, indignado, appellou para a constituição do paiz, que não permittia que o clero fosse augmentado sem o consentimento d’este. Todos os protestos, porém, foram baldados. Em 1560 o paiz foi dividido em quinze bispados, que ficaram sobre as ordens de tres arcebispos, tendo por primaz o arcebispo de Mechlin; e Filippe alcançou assim um bom numero de voluntarios instrumentos de repressão, assim como uns poucos de tribunaes onde os casos de heresia fossem julgados e sentenciados. =Tornar-se-ha hespanhol o paiz?=—No entretanto o paiz ia-se alarmando. Estas mudanças foram para a maioria dos neerlandezes indicios de que se intentava reduzir os Paizes Baixos á condição de Hespanha. O patriotismo identificou-se com a Reforma, e a causa nacional e a religião evangelica caminharam, por assim dizer, de mãos dadas. Isto deu um grande impulso ao movimento protestante. Tornou-se a causa popular. Multidões intervieram nos castigos ecclesiasticos, apoderaram-se das victimas condemnadas á morte pela inquisição, promoveram tumultos por occasião da missa, e por vezes atacaram as egrejas e derrubaram as imagens. Os nobres assustaram-se, e reuniram-se para formularem as suas queixas. O objecto da sua ira era Granvella, que tornaram culpado de todas as medidas dignas de censura. Filippe, fingindo concordar com os nobres, transferiu Granvella para outro ponto; mas o velho systema de terrorismo continuou, e os nobres perceberam que o rei, com a sua usual duplicidade, os queria fazer passar por culpados da tyrannia contra a qual haviam protestado. A proclamação dos decretos do Concilio de Trento provocou uma nova resistencia. O principe de Orange, com toda a intrepidez, fallou contra a proposta em termos violentos; houve uma assembléa de nobres, e resolveu-se encarregar o conde Egmont da missão especial de informar o rei dos sentimentos do povo das provincias; porque ainda se julgava que Filippe ignorava certas coisas de que aliás estava perfeitamente informado. Egmont era um zeloso romanista, e tinha provado ser um subdito leal do monarca hespanhol. Se alguem podia tirar partido de Filippe, esse alguém, segundo a opinião geral, era Egmont. Partiu para Madrid em 1565, onde foi recebido com apparente cordialidade, e assegurou-se-lhe que as representações dos nobres seriam attendidas. Como de costume, Filippe II não tinha intenção alguma de cumprir as suas promessas. Deu, pelo contrario, ordem para que em todas as cidades fossem proclamados, de seis em seis mezes, os decretos de Trento, os edictos com caracter de perseguição e os sanguinarios mandatos da inquisição. Segundo contam os historiadores, o effeito d’isto foi quasi indescriptivel; o commercio ficou paralysado, as industrias desappareceram, e todo o paiz parecia ter passado por um enorme cataclismo. Distribuiam-se pamphletos, que eram avidamente lidos, contendo apaixonados appellos ao povo para que pozesse termo á tyrannia. Um d’elles, que tomou a fórma de uma carta aberta ao rei, dizia: «Estamos prontos a morrer pelo Evangelho, mas lemos n’elle «Dae a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus.» Damos graças a Deus por até os nossos inimigos se verem constrangidos a dar testemunho da nossa piedade e da nossa innocencia, e tanto assim que se diz commummente: «Fulano não pragueja, porque é protestante.» «Fulano não pratíca immoralidades nem se embriaga, porque pertence á nova seita». «E, comtudo, atormentam-nos com toda a especie de castigo que se pode inventar.» =Os mendicantes.=—Os que entre os jovens fidalgos e burguezes tinham um espirito mais ousado resolveram unir-se para resistirem á tyrannia. Os seus chefes naturaes, que eram o principe de Orange e os condes de Egmont e de Horn, conservaram-se afastados, por considerarem insensata aquella empreza. Os confederados resolveram começar dirigindo-se em solemne procissão á regente para lhe pedirem a abolição da inquisição e a revogação de alguns dos edictos. Encontraram-se com a duqueza em 5 de Abril de 1556, e leram-lhe a representação que tinham preparado; e a regente, perturbada com a imponencia do acto, convocou a toda a pressa o conselho para saber o que havia de responder. Barlaymont, um dos seus conselheiros, e pessoa muito da intimidade de Filippe, foi de opinião que «aquelle bando de mendicantes» devia ser posto, á força, fóra do palacio, A duqueza despediu-os cortezmente, mas houve quem lhes referisse as palavras de Barlaymont. Achando-se trezentos d’elles reunidos n’um banquete para deliberarem, o conde Brederode levantou-se, e disse: «Chamam-nos mendicantes. Acceitamos esse nome. Empenhamos a nossa palavra em como havemos de resistir á Inquisição, e conservar-nos fieis ao rei e á Sacola do Pedinte.» Em seguida poz aos hombros uma sacola de coiro como as que usam os mendigos que andam de terra em terra, e, deitando vinho n’um copo de madeira, bebeu á prosperidade da causa. =Prégações ruraes.=—O nome de mendicantes foi adoptado com grande enthusiasmo, e fez-se do distinctivo um uso quasi universal. Por toda a parte se viam burguezes, advogados, aldeãos e fidalgos com a sacola de coiro dos mendigos vagabundos. O povo começou a compenetrar-se da força de aquella aggremiação. Realisaram-se logo grandes conventiculos, ou prégações ruraes, em todo o paiz. O povo vinha armado, accomodava as mulheres e as creanças no ponto mais central, e punha sentinellas em redor, collocando-se os homens, armados, um pouco fóra do ajuntamento, e assim escutavam as pregações dos ministros excommungados. Liam as Escripturas, cantavam hymnos, e ouviam orações feitas na sua lingua natal. Era tal a agglomeração de gente, e estavam tão vigilantes e tão bem armados, que os soldados não se atreviam a atacal-os. A regente convenceu-se de que, se não lhe mandassem mais forças hespanholas, não poderia conter a excitação popular. O povo, encorajado com a immunidade com que as prégações ao ar livre se faziam, começou a atacar os logares de culto catholicos romanos. Quando os padres passavam pelas ruas de Antuerpia levando processionalmente a milagrosa imagem da Virgem o Povo exclamava: «Mayken! Mayken! (Mariasinha) chegou a tua hora!» Uma turba de marinheiros invadiu a cathedral e destruiu os paramentos, as imagens e os quadros. N’outros pontos, como Tournay e Valenciennes, tiveram logar outros actos de violencia. A regente via-se sem forças para pôr termo aos tumultos, e, em desespero, concedeu ao povo a abolição da inquisição e a tolerancia da doutrina protestante. Confiando na sinceridade d’estas concessões, os nobres tomaram sobre si o encargo de apaziguar a população e de reprimir as desordens que se tinham levantado, e Guilherme de Orange e o conde Egmont tomaram uma parte proeminente na obra da pacificação. Filippe, encolerizado pelo facto de a regente se haver desviado do regimen que elle adoptara, de desapiedada repressão, determinou, na primeira opportunidade, subjugar aquelle paiz e exterminar os cabeças de motim. Com a sua habitual dissimulação, procurou disfarçar os seus intentos, e o conde Egmont foi por elle enganado. O principe de Orange, sempre bem informado, e cauteloso por indole, sabia algumas coisas e suspeitava de outras que estavam para sobrevir á sua desditosa patria, e preveniu Egmont do perigo que este corria. Elle sabia que o rei havia de voltar ao seu velho systema de repressão; que os nobres que haviam dirigido o movimento não estavam suficientemente unidos para resistir; que os chefes menos cautos dos Mendicantes se haviam de revoltar; e que o rei havia de tomar, indescriminadamente, uma furiosa represalia. Os mendicantes fizeram uma tentativa para se apoderarem de Walcheren; reuniram-se em grande numero em Anstruweel, e ameaçaram Antuerpia. Na sua marcha, destruiram reliquias e despojaram as egrejas das imagens e dos paineis. Egmont, querendo provar a sua fidelidade ao rei, caiu sobre esses insurgentes e desbaratou-os, terminando, por esse modo, a rebellião. O rei, porém, tinha achado o pretexto que procurava; e o principe de Orange tinha tão exactamente interpretado o curso dos acontecimentos que, quando elle ainda ia a caminho do seu voluntario exilio, da Allemanha, ia nos Paizes Baixos o duque de Alba, á frente de um novo corpo de exercito hespanhol. =O duque de Alba nos Paizes Baixos.=—Fernando Alvarez de Toledo, duque de Alba, era um dos servidores de Filippe II que mais se parecia com o seu amo. Era um hespanhol fanatico, um ignorante em todos os assumptos politicos e economicos, um avarento, e um impudente enganador. Publicações recentes teem demonstrado que elle possuía muito pouco do talento que os remotos historiadores lhe teem attribuido. O que o recommendou a Filippe foi a sua cruel obstinação, a sua dedicação por elle, rei, a sua fanatica inclinação pela egreja catholica romana, e o seu desprezo por todas as fórmas constitucionaes e por todos os impulsos de misericordia. Filippe, ao mandar o duque de Alba e as tropas, continuava a dissimular. Assegurou á regente que não era sua intenção fazel-a substituir por elle, e fez todo o possivel para acalmar as suspeitas dos nobres e dos estados dos Paizes Baixos. Ao mesmo tempo dava ordem ao duque para acabar com a Reforma de um modo radical; para tirar uma sanguinolenta vingança de todos os disturbios que tinham sido commettidos; e para impôr conversões á ponta da espada. As instrucções que o rei enviou, por carta, ao duque de Alba eram: «Apoderar-se dos homens mais eminentes que haviam tomado parte nos tumultos e pôl-os em condições de não tornarem a fazer damno; prender e castigar os que de entre o povo estivessem criminosos; obter pela violencia todas as riquezas do paiz para abastecimento dos cofres de Madrid e para sustento das tropas; pôr em execução, com a maxima severidade, os edictos contra a heresia; ultimar a organização dos novos bispados, e punir as cidades rebeldes com a Inquisição e com a imposição de subsidios.» As tropas embarcaram em Carthagena, desembarcaram em Genova, e marcharam, atravez de Saboya, da Borgonha e da Lorrena, para o Luxemburgo e Paizes Baixos. Alba sabia perfeitamente o que se esperava d’elle, e todo o seu desejo era desempenhar a missão que Filippe lhe confiara de um modo que agradasse a seu amo. Uma das suas maximas favoritas era: «Antes assolar uma nação por meio da guerra, se d’esse modo ella se conservar fiel a Deus e ao rei, do que deixal-a intacta em beneficio de Satanaz e de seus adherentes, os herejes.» Elle entrou nos Paizes Baixos inteiramente convencido de que poderia subjugar o espirito nacional e religioso dos seus habitantes. «Eu, que já submetti uma gente de ferro, em pouco tempo domesticarei esta gente de manteiga», disse elle, pouco depois de ter entrado no paiz. =A prisão dos Condes Egmont e Horn.=—A primeira coisa que elle fez foi lançar mão dos dirigentes do povo, e para isso recorreu á mais vil dissimulação. Convidou-os para irem a Bruxellas, dispensou-lhes todas as amabilidades, e fez todo o possivel para os conservar ao seu alcance até ter opportunidade da os mandar prender. Ficou muito desapontado quando Guilherme de Orange se lhe escapou das mãos, e empregou todos os esforços para o attrair novamente. De subito, sem o menor aviso, prendeu o Conde Egmont e o almirante Horn, e mandou encerral-os n’um carcere. Este facto produziu uma enorme consternação. Ambos aquelles fidalgos tinham mostrado a sua grande lealdade ao rei. Egmont havia incorrido no odio do povo pela firmeza com que procurou reprimir a insurreição, e Horn perdera todos os seus bens e todo o seu dinheiro no serviço de Filippe. Aquellas prisões mostraram aos neerlandezes e á Europa que o reinado do «rigor» tinha começado. A fuga de Guilherme de Orange foi publicamente lamentada pelos hespanhoes. Quando Granvella soube em Roma, do feito de Alba, perguntou: «Elle tem em seu poder o Silencioso?» E, depois de o informarem de que Guilherme estava em liberdade, disse que Alba não tinha conseguido coisa alguma, afinal de contas, pois que o homem que se lhe havia escapado tinha mais valor do que todos os outros juntos. Havendo-se apoderado dos dois fidalgos, Alba tratou em seguida de aterrorisar o povo. Organizou um _Conselho de Disturbios_, que substituiu o antigo Conselho de Estado, e que teve a sua primeira, reunião em 20 de Setembro de 1567. Este conselho suspendeu todo o julgamento de causas pelos tribunaes ordinarios, e o povo chamava-lhe o «Conselho de Sangue». Alba presidia a elle, e procurava com todo o afan dar os crimes por provados e infligir o respectivo castigo. Fazia todo o possivel para evitar que os jurisconsultos interviessem. «Os juizes» dizia elle, «só teem servido até aqui para lavrar a sentença depois de se fazer prova do crime; mas agora as coisas passam-se de outra fórma». Este conselho de disturbios privava toda a gente das suas garantias individuaes, e ia investigar todos os delictos commettidos no passado. A accusação vulgar era a de ter conspirado contra o rei e contra a egreja, ou, na linguagem do codigo medieval, de ser réu de traição a Deus e ao rei. Todos os que haviam assignado petições para que os edictos contra a heresia deixassem de ser applicados, todos os que se haviam, de algum modo, opposto á creação dos novos bispados, todos os que haviam dito que o rei tinha obrigação de respeitar as liberdades das provincias, eram tidos como traidores, e castigados com multas, com prisões e com a pena capital. Todos os que eram apanhados a cantar o hymno dos mendicantes, todos os que não se haviam opposto activamente ás prégações feitas ao ar livre, ou que não haviam reagido contra a destruição das imagens, eram egualmente tidos como traidores. Era sufficiente a suspeita, dispensava-se a convicção, e em tres mezes o Conselho de Sangue enviou para o cadafalso mil e oitocentas pessoas. Isto teve logar durante annos. Guilherme de Orange pasmava da paciencia dos seus compatriotas, que soffreram sem uma organizada resistencia, e escreveu apaixonadamente: «Onde está o vosso espirito de liberdade? Onde está a vossa antiga bravura?» No entretanto os Mendicantes continuavam a existir. Grupos d’elles vagueiavam pelo paiz, escapando á vigilancia das tropas hespanholas, roubando egrejas, mosteiros e residencias de clerigos. O paiz havia caido na anarquia. =A guerra civil. O principe de Orange.=—Em 1568 o principe de Orange conjecturou que o paiz estava preparado para a revolta. Seu irmão, Luiz de Nassau, entrou na Frisilandia, e conseguiu evitar que o inimigo se apoderasse d’essa provincia. O duque de Alba marchou então contra os protestantes. Antes de se pôr a caminho, porém, executou, para espalhar o terror na capital, vinte membros da nobreza, e entre elles os condes Egmont e Horn. A patriotica milicia não poude bater-se vantajosamente com os disciplinados soldados de Alba, que derrotou por completo o exercito de Luiz e o obrigou a sair dos Paizes Baixos. Regressou depois a Bruxellas, para assistir ás sessões do Conselho de Sangue. O principe de Orange, á frente de outro exercito, passou a vau o Meuse, chegando, segundo se diz, a agua ao pescoço dos soldados, marchou sobre o Brabant, e procurou dar batalha a Alba. O duque, que conhecia a sua inferioridade, diligenciou evital-o, cançar-lhe as tropas com exhaustivas marchas, e desalental-as. O exercito protestante, que era composto, na sua maior parte, de mercenarios allemães, começou a exigir clamorosamente o seu soldo, e o principe, a quem os hespanhoes deixavam sempre de mau partido, viu-se obrigado, com a approximação do inverno, a licenciar as suas tropas. Uma parte do exercito, composta de neerlandezes, conservou-se junto d’elle; e o principe de Orange, com os seus dois irmãos (o terceiro havia sido morto em combate) atravessou a fronteira, e foi em auxilio dos huguenotes francezes. Guilherme, o silencioso, como os seus contemporaneos lhe chamavam, tinha até esse tempo sido catholico romano. Havia combatido contra os hespanhoes mais por patriotismo do que por motivos religiosos; mas durante o segundo desterro, quando a situação da sua patria se tornou extremamente precaria, transformou-se, fez-se outro homem. Acceitou as verdades da religião reformada, e tornou-se um firme protestante. Desde esse tempo em deante foi um homem sincero e profundamente religioso, descançando confiadamente na direcção e protecção de Deus. =Os mendigos do mar.=—A parte mais valente da população neerlandeza eram os marinheiros e os habitantes da costa, que luctavam quotidianamente com as ondas do oceano germanico. Essa gente tinha, em grandissima parte, acceitado as doutrinas dos pastores reformados, e havia sempre nutrido o amor da liberdade, a despeito da implacavel oppressão dos hespanhoes e a despeito da inquisição. Diz-se que o almirante Coligny, o prestigioso chefe dos huguenotes francezes, chamou a attenção do principe de Orange para a utilidade de constituir com estes marinheiros, pescadores e traficantes maritimos uma força naval. Quando Alba regressou á Bruxellas, para continuar a sua obra de execução por meio do fogo, da agua e da decapitação, o principe conseguiu pôr-se em communicação com os marinheiros e pescadores hollandezes. Tinha resolvido crear uma armada para dar caça aos navios hespanhoes, e conservar acceso o espirito patriotico das provincias. Deu as suas instrucções aos commandantes dos improvisados vasos de guerra, e os «Mendigos do Mar» tornaram-se dentro em pouco o terror dos hespanhoes. Estes corsarios hollandezes recrutavam, ao principio, as suas tripulações, e abasteciam-se, nos portos inglezes, mas, em virtude de uma reclamação do embaixador hespanhol, a rainha Isabel prohibiu que desembarcassem em Inglaterra. Viram-se compellidos a saquear as costas da Hollanda, tornando-se assim o terror dos hespanhoes tanto no mar como em terra. O governo de Alba tinha quasi conduzido o paiz á ruina. As suas proscripções e execuções haviam diminuido muito a população. O commercio tinha chegado á ultima; da agricultura ninguem cuidava; as industrias estavam paralysadas. Alba estava embaraçado por não ter dinheiro com que pagasse ás tropas. Elle tinha promettido, ao sair de Hespanha, que havia de fazer com que desde Antuerpia até Madrid o oiro constituisse um rio com umas poucas de braças de profundidade. Era um leigo no que diz respeito a economia politica, e não comprehendia que com as disposições que tomara havia feito seccar os mananciaes da riqueza, transformando em poucos annos um paiz rico n’um paiz pobre. Julgou que ainda seria possivel extrair dinheiro dos hollandezes, e para conseguir esse fim estabeleceu novos impostos. Acudiu-lhe á mente um genero de contribuição que em Hespanha estava matando a vida commercial, e propoz o introduzil-a nos Paizes Baixos. O seu plano consistia em tributar um por cento sobre toda a propriedade; esse imposto ficou sendo chamado a _Centesima_. A accrescentar a isto, ficava-se tambem na obrigação de contribuir com cinco por cento, ou seja a vigesima parte, de todas as rendas de terras, ou bens immoveis, e com dez por cento, ou a decima parte, de todas as vendas de generos ou de bens moveis. Este novo imposto, dividido em tres taxas, representava a ruina completa do paiz. Seria impossivel existir commercio n’uma terra onde elle tivesse de ser pago. Provocou maior opposição do que tudo quanto Alba tinha até então posto em pratica. A primeira provincia que protestou foi a de Utrecht, e logo depois todas as outras fizeram coro com ella. Alba, comtudo, estava precisadissimo de dinheiro. O seu poder dependia do exercito, e este tinha de ser pago; reconhecendo, porém, que tinha avançado de mais, addiou a cobrança das decimas para de ali a dois annos. A necessidade de dinheiro forçou-o, por fim, a pôr desde logo em execução o que tinha decretado, e deu ordens terminantes para se começarem a cobrar os dez e os vinte por cento. O resultado foi parar logo todo o commercio e industria. Os padeiros não quizeram cozer pão, os cervejeiros não quizeram fabricar cerveja, os sapateiros recusaram-se a fazer calçado; e não havia quem vendesse os artigos de primeira necessidade. E, como coisa alguma se vendesse, é claro que o imposto sobre as vendas não podia ser cobrado. =A tomada de Brill.=—Emquanto os estados permaneciam n’uma insurreição passiva, a esquadra: dos «Mendigos do Mar», organizada por Guilherme, guerreava incessantemente os hespanhoes, e, com uma ousadia que o bom exito até ali alcançado lhes dava, aproaram de subito á ilha de Voorn, e tomaram a cidade de Brill, que era considerada uma das chaves da Hollanda. A posse d’essa cidade assegurava-lhes um ponto de ataque sobre toda a costa dos Paizes Baixos e da Islandia, e foi a ella que ficou devendo a sua origem o Estado das Sete Provincias. De ahi em deante os hespanhoes nunca mais foram completamente senhores dos Paizes Baixos. A sorte das armas esteve incerta durante muito tempo, mas houve sempre uma parte do territorio flamengo independente de Hespanha. Os «Mendigos do Mar», perfeitamente seguros em Brill, dirigiram repetidos ataques ás povoações da costa, e em breve todas as principaes cidades da Hollanda e da Zelandia estavam em seu poder, acabando por proclamar Guilherme, principe de Orange, chefe da nação. O principe acceitou esse perigoso cargo. Estava em França quando lhe deram a noticia, e, disfarçando-se de camponez, atravessou as linhas do inimigo, e deu-se pressa em tomar o commando dos insurgentes. Antes de chegar até junto d’elles, a Hollanda e a Zelandia tinham-se pronunciado a seu favor. Convocou uma assembléa dos Estados em Dordrecht, ou Dort, onde de eommum accordo se resolveu estabelecer uma nova constituição, e, por unanimidade de votos, o principe foi reconhecido «o verdadeiro representante do rei na Hollanda, Zelandia, Frisilandia e Utrecht. Os estados, ali reunidos, convieram em reconhecer a sua auctoridade, em votar impostos, e em proseguir na politica d’elle. O seu primeiro decreto foi proclamar liberdade de culto tanto aos catholicos como aos protestantes. Organizou-se um novo exercito, e o principe de Orange, atravessando o Meuse, tomou Oudenarde, Roermonde, e diversas outras cidades. Foi acclamado em toda a parte, e a sua marcha foi tão facil que elle contava chegar em pouco tempo a Bruxellas. Uma vez lá, confiou na promessa que Coligny lhe fez de o ajudar a expulsar os hespanhoes do territorio flamengo. Quando, porém, parecia estar em pleno successo, eis que chega uma noticia que o deixou atordoado, como se (segundo as suas proprias palavras) «tivesse levado com um malho na cabeça». Coligny e os huguenotes francezes tinham sido massacrados na vespera de S. Bartholomeu. Tudo estava perdido, pelos modos. Tornava-se necessario abandonar Mons, que Luiz de Nassau tinha tomado pouco antes; e o exercito do principe, apoz a retirada, foi dispensado do serviço. Alba saiu de Bruxellas, e vingou-se atrozmente de Mons, Mechlin, Tergoes, Naarden, Haarlem e Zutphen. As clausulas da capitulação de Mons foram ignominiosamente violadas. Mechlin foi, de caso pensado, saqueada e incendiada pelas tropas hespanholas. O general a quem foi confiado o esbulho de Zutphen recebeu ordem para queimar todas as casas e matar todos os habitantes. Haarlem foi sitiada, resistiu desesperadamente, e por fim capitulou sob a promessa de um tratamento benevolo. Quando os hespanhoes tomaram posse d’ella, degolaram, a sangue frio, todos os soldados hollandezes, e com elles muitos centos de cidadãos, e, ligando os corpos a dois e dois, lançaram-n’os na lagoa de Haarlem. Dir-se-hia que os catholicos romanos tinham resolvido exterminar os protestantes quando vissem que não podiam convertel-os. Algumas cidades resistiram, e a causa da liberdade não estava inteiramente perdida. O filho de Alba, D. Frederico, o verdugo de Haarlem, foi derrotado na pequena cidade de Alkmaar, sendo obrigado a retirar-se. Os «Mendigos do Mar» fizeram frente á esquadra hespanhola que fôra enviada para os destroçar, dispersaram os navios e fizeram prisioneiro o almirante. A nação de pescadores e de lojistas, de quem a Hespanha e a Europa haviam escarnecido por verem a paciencia com que supportavam as indignidades, tinha-se por fim mostrado uma raça de heroes resolvidos a não se sujeitarem mais ao jugo hespanhol. Guilherme o silencioso, a alma da revolta, tornou-se de um momento para o outro uma importante personagem na Europa, que os reis precisariam de lisongear. Publicou uma carta dirigida aos principes da christandade, para justificar a revolta dos seus compatriotas. «Alba», disse elle, «ha de tingir todos os rios e regatos com o nosso sangue e pendurar em cada arvore da Hollanda um hollandez para que os seus desejos de vingança fiquem satisfeitos. Pegámos, pois, em armas contra elle, em defeza das nossas mulheres e dos nossos filhos. Se elle tiver mais força do que nós, pereceremos, mas antes ter uma morte honrosa, e legar um nome aureolado de gloria, do que curvar os pescoços deante do jugo e permittir que a nossa terra fique escravisada. É por isso que as nossas cidades se comprometteram a resistir a todos os cercos, a soffrer todas as calamidades, a mesmo, se tanto necessario fôr, lançar fogo ás casas e deixar-se morrer nas chammas, o que tudo seria preferivel a obedecer ás intimativas d’esse algoz sedento de sangue». A tormenta não podia deixar de inquietar Alba, apezar de toda a confiança que elle tinha em si proprio. Pediu ao monarca que o mandasse retirar dos Paizes Baixos. Como todos os tyrannos, considerou sempre efficacissimo o seu systema, mesmo depois dos revezes soffridos. Era sua opinião que se tivesse sido um pouco mais severo, se tivesse accrescentado mais algumas gotas do sangue que fez derramar, o seu exito seria completo. Quando Filippe, accedendo ao seu pedido, o demittiu do cargo que occupava, não teve outro conselho a dar ao seu successor senão o de mandar arrazar as cidades em que elle não podera pôr uma guarnição hespanhola. =Requescens y Zuniga, o novo representante do rei.=—A pessoa que Filippe II escolheu para substituir o duque de Alba foi D. Luiz Requescens y Zuniga, membro da mais alta aristocracia de Hespanha e cavalleiro de Malta. Era elle um homem de indole magnanima, de nobre caracter, e, se tivesse sido enviado á Hollanda dez annos mais cedo, a historia d’esse paiz teria sido, certamente, muito diversa. Chegou, porém, tarde de mais, e elle em breve o reconheceu. A Hespanha dispunha ainda, n’aquella epoca, de um thesouro inexgotavel e de um illimitado numero de soldados. Os patrioticos defensores da Hollanda não poderiam leval-a de vencida em campo aberto; comtudo, o novo commandante hespanhol não os intimidou. Em todas as cidades fortificadas se luctava com a energia do desespero, e os «Mendigos do Mar» alcançavam triumphos sobre triumphos. E, comtudo, aos patriotas faltava gente e dinheiro. Requescens, depois de observar tudo isto, escreveu a Filippe: «Antes da minha chegada aqui, não comprehendia como os rebeldes podiam sustentar frotas tão consideraveis, quando vossa magestade nem uma, sequer, podia. Agora vejo que os homens que se batem pelas suas vidas, pelas suas familias, pelos seus bens, pela sua religião, embora falsa, pela sua causa, em summa, não exigem paga; dão-se por satisfeitos com a sua ração quotidiana». Tratou logo de adoptar um methodo inteiramente opposto ao de Alba. Aboliu os odiados impostos, dissolveu o Conselho de Sangue, e proclamou uma amnistia geral. Procurou também chegar a um accordo com os insurrectos. Os habitantes da Hollanda e da Zelandia tinham tido uma amarga experiencia de amnistias e accordos hespanhoes. «Temos ouvido demasiadas vezes», disse Guilherme, «as palavras Combinado e Perpetuo. Ainda mesmo que dessemos ouvidos ás vossas propostas, quem nos garante que o rei as não daria depois por não feitas, sendo absolvido d’esse delicto pelo papa?» A lucta continuou, portanto, e Requescens, que detestava a politica do seu predecessor, teve de proseguir n’uma guerra que essa mesma politica havia provocado. A sorte das armas parecia manter-se inalteravel. Os hespanhoes tinham saido sempre victoriosos em campo aberto, e quando no principio da primavera de 1574 Guilherme e seu irmão Luiz entraram na Hollanda á frente de um novo exercito composto, na sua maioria, de mercenarios allemães, alcançaram outra victoria na Mooker Haide, mais decisiva, segundo pareceu, do que qualquer outra que tivessem ganho anteriormente. O exercito de Guilherme foi inteiramente derrotado, perecendo os seus dois irmãos Luiz e Henrique, e com elles Christovão, Conde Palatino. Mais uma vez se afigurou que os hollandezes acabariam, por fim, n’uma completa submissão aos hespanhoes. Como sempre, porém, os heroes da patria, vencidos em terra, eram vencedores no mar, e nas cidades fortificadas combateu-se com tal denodo e perseverança que os hespanhoes não poderam deixar de reconhecer a sua derrota. Os «Mendigos do Mar» pozeram em debandada uma frota no principio d’esse anno. Atacaram outra no Scheldt, apoderando-se de quarenta navios e mettendo o resto no fundo. =O cerco de Leyden.=—A cidade conservava-se havia muito tempo em poder dos patriotas, e os hespanhoes faziam o maximo empenho em se apoderar d’ella. Luiz de Nassau fez levantar o primeiro cerco que lhe pozeram, mas desde maio de 1574 que o inimigo lhe dirigia repetidos e vigorosos ataques. Não foi possivel a Guilherme, depois da batalha de Mooker Haide, encontrar-se frente a frente com as tropas hespanholas. Precisava de todos os seus homens para guarnecer as cidades fortificadas. Leyden estava em perigo de ser conquistada, e não se lhe podia enviar soccorro algum. Achava-se situada n’uma planicie cheia de pomares e de searas que já pouco tempo esperariam pela ceifa, e esta planicie, como quasi todas as da Hollanda, estava abaixo do nivel do mar, sendo, por conseguinte, facil inundal-a, bastando para isso destruir os diques que se oppunham á invasão das ondas. Guilherme não viu outro meio de a soccorrer senão fazendo chegar a esquadra junto dos seus muros, e apresentou esse alvitre aos respectivos habitantes, que o acceitaram. Foram, pois, abertos os diques, e a esquadra dos «Mendigos do Mar» preparou-se para entrar com a maré e navegar em seguida sobre submersas hortas, pomares e campos de semeadura. O plano era este, mas levantou-se a contrarial-o uma chusma de difficuldades. Tornou-se uma tarefa difficil arrombar os diques; a agua começou a entrar, mas lentamente; violentissimos ventos a impelliam para fóra. Entretanto os viveres eram cada vez mais escassos na cidade, e a faminta população, subindo aos campanarios, via a agua sempre lá ao longe, via que os soccorros se approximavam muito vagarosamente, como se nunca houvessem de chegar, ou então como se houvessem de chegar tarde de mais. Os hespanhoes, que tambem conheciam o perigo e a miseria em que a cidade se encontrava, promettiam amnistias e uma honrosa capitulação. «Temos dois braços», exclamou do alto das muralhas um dos defensores, «e quando a fome nos apertar muito comemos o esquerdo, e deixamos o outro para manejar a espada». Quatro mezes se passaram n’um indescriptivel soffrimento, e por fim, em 3 de outubro, o mar chegou ao sopé das fortificações, e com elle a frota hollandeza. Os hespanhoes fugiram aterrorisados, pois que os «Mendigos do Mar» cairam sobre elles, soltando o seu costumado grito de guerra: «Antes turcos do que papistas». Os marinheiros e os habitantes da cidade dirigiram-se á sumptuosa egreja para dar graças a Deus pelo livramento que, por Sua misericordia, lhes viera do mar. Quando a numerosa congregação estava entoando um psalmo de libertação, as vozes calaram-se de subito, e não se ouvia senão soluços. Toda a gente, enfraquecida pelas longas vigilias e pelas privações, tendo agora uma consciencia nitida do seu inesperado livramento, se pozera a chorar. A boa nova foi levada a Delft por Hans de Brugge, que chegou a esta localidade quando o principe de Orange estava assistindo ao serviço religioso da tarde, sendo só depois de elle terminar que o povo soube do succedido. O principe, apezar de doente, montou a cavallo, e partiu logo para Leyden, para tomar parte no regozijo publico. Propoz que, em acção de graças, se fundasse na cidade um estabelecimento de instrucção, e foi assim que teve origem a famosa universidade de Leyden. A cidade tornou-se o centro do protestantismo das provincias. Picou sendo na Hollanda o que Wittenberg era na Allemanha, Genebra na Suissa, e Saumur em França. =Negociações entre as provincias do sul e as do norte.=—O levantamento do cerco de Leyden mareou um novo periodo na guerra da independencia. O oommissario hespanhol via que se estava formando, vagarosa e quasi imperceptivelmente, um novo estado protestante, e as difficuldades que de todos os lados o assediavam eram, pode-se dizer, invenciveis. Estava elle luctando com ellas, quando de subito morreu, em 5 de Março de 1576. A sua morte inesperada foi um golpe para a dominação hespanhola, e os acontecimentos que se lhe seguiram mostraram aos neerlandeses que eram catholicos romanos aonde o governo hespanhol poderia tel-os conduzido. A morte de Requescens produziu uma certa perturbação na politica hespanhola. Desde o tempo do duque de Alba o pagamento das tropas tinha sido feito com difficuldade, e agora os cofres publicos estavam despejados, e os soldados queixavam-se de se lhes dever alguns mezes de soldo. Por fim, perdida a esperança de que essa divida fosse liquidada, revolucionaram-se. «Dinheiro ou liberdade para saquear qualquer cidade», era o seu grito. A guarnição de Aalst foi a primeira a revoltar-se, sendo secundada pelas de quasi todas as cidades fortificadas das provincias do sul. Os revoltosos pozeram a saque as cidades de Aalst, Maestricat e Antuerpia. Deram-se por toda a parte horriveis scenas de roubo e assassinio e durante tres calamitosos dias de novembro a populosa e opulenta cidade de Antuerpia soffreu tudo quanto sobre ella podia ser exercido por uma soldadesca dissoluta e brutal. O principe de Orange aproveitou esta sublevação para avançar com as suas tropas, e dentro em pouco estava de posse da importante cidade de Ghent. Os habitantes das provincias do sul tanto nobres como plebeus, tinham, por sua vez, sido victimas de aquellas horrorosas calamidades que os seus compatriotas os protestantes do norte, tinham, havia muito, experimentado. Antuerpia tinha soffrido; Bruxellas, mais resoluta, pegou em armas e expulsou os soldados hespanhoes. Os nobres de Flandres e de Brabante estavam anciosos por se unirem ás provincias do norte; e pediram a Guilherme que os livrasse dos hespanhoes. Em Ghent realisou-se um congresso de representantes das provinciais do norte e do sul, ficando assentes os preliminares de uma duradoura união. Foi a isto que se chamou a _Pacificação de Ghent_, que foi assignada por delegados de dezesete provincias. Por este tratado eram expulsos os hespanhoes, estabelecia-se uma completa liberdade de commercio entre as provincias do norte e as do sul, ficavam revogados todos os edictos contra os protestantes, concedia-se protecção aos catholicos romanos, todas as provincias se uniam para constituir um unico Estado, e o principe de Orange ficava sendo _statholder_ até posterior decisão, que seria tomada depois de se retirarem os hespanhoes. =D. João de Austria nos Paizes Baixos.=—A _Pacificação de Ghent_ alarmou em subido grau os politicos de Madrid. D. João de Austria, irmão de Filippe, e homem de brilhante reputação, foi enviado aos Paizes Baixos na qualidade de _statholder_ com plenos poderes. Os estados recusaram reconhecel-o emquanto elle não fizesse sair as tropas hespanholas. Apoz algumas negociações, as provincias obtiveram, apparentemente, que elle attendesse ás suas aspirações com a publicação do _Edictum Perpetuum_, que garantia a expulsão das tropas, a tolerancia para com os protestantes, e a unificação dos estados; por algumas cartas confidenciaes que foram interceptadas, viu-se, porém, que Filippe e o seu regente não haviam abandonado a antiga politica de repressão, e o conhecimento d’este facto uniu novamente os catholicos romanos do sul com os protestantes do norte. Os Estados Geraes não reconheceram a sua auctoridade, e designaram o principe de Orange para governador de Brabante. Havia, comtudo, muita difficuldade em que o norte e o sul se unissem por laços affectuosos. A tolerancia era impossivel n’aquelles tempos, em que os credos differentes se hostilisavam por uma fórma violenta, e as rivalidades locaes não se podiam vencer facilmente. Os nobres de Flandres e de Brabante representavam dois papeis, e essa sua duplicidade animou D. João de Austria a atacar as forças do principe de Orange. A guerra terminou com a batalha de Gemblours, em que os hespanhoes alcançaram uma completa victoria. O principe, comtudo, mostrou-se, como sempre, tão grande na derrota como na victoria, e o _statholder_ sentia fugir-lhe a esperança de que a totalidade da Hollanda, se conservasse fiel ao rei hespanhol. Morreu, cercado por todas estas difficuldades, em 1 de Outubro de 1578, e succedeu-lhe Alexandre de Parma, o mais habil, talvez, dos representantes de Filippe. =Alexandre de Parma nos Paizes Baixos.=—Alexandre Farnese, principe de Parma, filho de Margarida de Parma, já tinha desempenhado anteriormente aquelle cargo, e, no dizer de alguns auctores, foi o ultimo dos grandes homens que a Hespanha possuiu no seculo dezeseis. Era um excellente general, um habil politico, e um homem de tacto. Encontrou as coisas nas provincias n’uma grande confusão. O seu unico elemento de força era a rivalidade que existia entre o norte protestante e o sul catholico romano. O Tratado de Ghent tornou-se letra morta. As provincias do norte suppozeram que Flandres e Brabante as tinham traido nos negocios de que resultou a batalha de Gemblours. As provincias do sul não queriam submetter-se á dominação dos herejes do norte. Alexandre aproveitou-se habilmente d’esta desunião para prender as provincias do sul á Hespanha, com o inevitavel resultado de que os protestantes do norte se uniram mais estreitamente uns aos outros e se tornaram mais resolutos na sua determinação de permanecerem livres. =O Tratado de Utrecht.=—Em 1579, a Hollanda, a Zelandia, Guelders, Zutphen, Utrecht, Overyssel e Gröningen fizeram-se representar n’uma assembléa, e redigiram o celebre Tratado de Utrecht, que continha, em esboço, a futura constituição das provincias unidas. As Sete Provincias não se separaram da Hespanha. Diziam-se ainda subditas da corôa hespanhola, mas reivindicavam o direito de darem culto a Deus e de se governarem segundo o seu modo de ver. Dois annos depois repelliram inteiramente o jugo hespanhol, e proclamaram a sua independencia, escolhendo Guilherme de Orange para seu governador perpetuo. Isto teve logar em Julho de 1581, em resposta a uma proclamação de Filippe, em que este denunciava Guilherme como um inimigo da humanidade, e offerecia uma recompensa de vinte e cinco mil corôas de oiro, e, além d’isso, um titulo de nobreza e o perdão de todos os crimes commettidos anteriormente, a quem assassinasse o principe. Do Tratado de Utrecht em deante, as Provincias Unidas foram attingindo gradualmente uma completa independencia politica e tornaram-se uma potencia protestante. Guilherme da Orange foi em 1584, morto a tiro por um fanatico catholico romano chamado Gerardo, cujos herdeiros reclamaram e obtiveram parte da recompensa promettida por Filippe. A sua obra não terminou com a sua morte. As Sete Provincias elegeram, para Governador em seu logar, a seu filho Mauricio, mancebo de dezesete annos, mas já educado por seu pae para ser um habil general e um prudente chefe politico. Poz-se resolutamente á testa de aquelle conflicto com a Hespanha, que parecia interminavel. Isabel de Inglaterra prestou-lhe o seu auxilio, com o qual ella ficou mais prejudicado do que outra coisa. Depois da destruição da Armada, e do golpe que esse facto vibrou na monarquia hespanhola, alcançou uma notavel victoria sobre as tropas catholicas romanas. A guerra durou até 1604, ora vencendo uns ora vencendo outros, e, por fim, no referido anno os hollandezes abalaram fortemente o dominio hespanhol, apoderando-se dos navios que voltavam das indias Occidentaes e Orientaes, carregados de preciosidades. Em 1607 combinou-se um armisticio, e em 1609 ficou resolvido que houvesse treguas durante doze annos, tendo-se, porém, convertido essas treguas n’uma paz definitiva. Os hollandezes tinham conquistado a sua independencia, e constituiam uma poderosa nação protestante, cuja supremacia no mar só era disputada pela Inglaterra. =A Egreja Hollandeza. Sua organização e confissão.=—Durante os annos de dura perseguição que o protestantismo soffreu nos Paizes Baixos desde o principio da sua existencia, os protestantes, não obstante os rigores postos em pratica contra elles, poderam organizar-se sob a fórma de egreja, e publicar uma confissão. Isto não foi feito sem dificuldades, que até entre elles proprios surgiram. Os habitantes dos Paizes Baixos tinham recebido de varias origens a nova fé, e cada qual entendia que só era verdadeira Reforma aquella que primeiramente havia chegado ao seu conhecimento. Os primeiros reformadores dos Paizes Baixos haviam aprendido o Evangelho em Wittemberg, com Luthero, e nas provincias do norte eram numerosos os lutheranos. Um pouco mais tarde as opiniões de Zwinglio penetraram na Hollanda, e foram adoptadas por pessoas que tomavam muito a peito a pureza da religião. Nas provincias do sul a Reforma foi transmittida ao povo por theologos francezes, educados no calvinismo. E assim, nos Paizes Baixos, havia adherentes de Luthero, de Zwinglio e de Calvino. Cada um dos partidos differençava-se dos outros, especialmente pelo que dizia respeito ao governo da egreja; e, posto que estas differenças fossem quasi vencidas, reappareceram mais tarde na contestação que teve logar entre a egreja e o Estado Protestante, acerca da vida e governo da egreja. Gradualmente, comtudo, o calvinismo foi levando de vencida o lutheranismo e o zwinglianismo, e a egreja dos neerlandezes tornou-se calvinista, tanto na doutrina como na disciplina. =A Confissão Hollandeza.=—N’uma epoca relativamente afastada, isto é, em 1559 (alguns dizem que em 1561) um joven pastor flamengo, Guido de Brés, juntamente com Adriano de Saravia, Modetus, capellão de Guilherme de Orange, e Wingen, prepararam uma Confissão de Fé, para, diziam elles, justificar pela Escriptura a religião reformada. Guido de Brés, que foi um dos primeiros evangelistas e martyres dos Paizes Baixos, nasceu em 1540, na cidade de Mons. Havia estudado para padre, e converteu-se dos erros do romanismo mediante o estudo das Escripturas Sagradas. Depois da sua conversão fugiu para Inglaterra, onde, nos dias de Eduardo VI, aprendeu theologia protestante. Foi depois para a Suissa, e ao voltar tornou-se um ardente evangelista no norte da França e no sul dos Paizes Baixos. Era um ardente admirador da Confissão da Egreja Franceza, e modelou a sua Confissão para a Egreja Flamenga pela celebre _Confessio Gallica_. Esta Confissão, a Confissão Belga, como lhe chamavam, foi revista por Francisco Junio, discipulo de Calvino, em 1561, e foi apresentada ao rei, Filippe II, em 1562, assim como a Confissão de Augsburgo foi apresentada a seu pae Carlos V. O eloquente discurso que acompanhou a Confissão pode ser comparado á dedicatoria a Francisco I, que prefaciou os _Institutos_ de Calvino. Os protestantes negam que sejam rebeldes ao governo, e declaram que só o que desejam é liberdade para adorar a Deus segundo a consciencia e a Divina Palavra. De modo algum negarão a Christo, ainda mesmo que tenham, segundo a linguagem que empregaram, de «offerecer as costas ás chibatas, as linguas ás facas, e os corpos ao fogo, certos de que os que seguem a Christo devem carregar com a cruz de Christo, e renunciar-se a si proprios». Esta Confissão, gradualmente adoptada pelos protestantes dos Paizes Baixos, introduziu o calvinismo nas egrejas d’essa parte do mundo. =A Constituição da Egreja Hollandeza.=—Em 1563, isto é, quando ainda havia perseguição, os delegados de varias congregações protestantes reuniram-se em synodo, e concordaram n’um systema de governo de egreja, que copiou, em grande parte, os seus principios das _Ordenanças Ecclesiasticas_ de Genebra; e a constituição da egreja, quasi desde o seu inicio, foi baseada no modelo de Genebra. A organização presbyteriana, com pastores, professores, presbyteros e diaconos, não foi adoptada nos Paizes Baixos sem protesto da parte dos lutheranos, mas quando veiu sobre elles a feroz perseguição do duque de Alba a fórma presbyteriana do governo da Egreja foi a que melhor resistiu a todos os embates, sendo por fim a que se tornou preponderante. O systema consistorial de Luthero é apenas possivel quando o Estado esteja em favoraveis disposições para com a egreja, mas o presbyterianismo, como a França, a Escocia e os Paizes Baixos mostraram, pode manter-se, até mesmo quando a «Egreja sentir o peso da cruz.» N’uma assembléa da Egreja que teve logar em Dordrecht, em 1574, a primeira assembléa geral da Egreja Hollandeza, foi revista, ampliada e formalmente adoptada uma serie de artigos que já haviam sido approvados n’uma reunião em Emden, e que continham os principaes elementos da organização presbyteriana. Todos os ministros tinham de obedecer ás _assembléas classicas_, ou presbyterios; e todos os presbyteros e diaconos tinham de assignar a Confissão de Fé e os artigos respeitantes ao governo da Egreja. Torna-se necessario explicar duas particularidades do presbyterianismo hollandez. As sessões da egreja não são, como na maioria das outras egrejas presbyterianas, assembléas congregacionaes que se occupem do governo de uma congregação. A sessão da egreja é composta de ministros e presbyteros de um certo numero de congregações, e, a certos respeitos, assimilha-se a um presbyterio. E, comtudo, como as das outras egrejas presbyterianas, o tribunal de primeira instancia. A outra particularidade da organização da Egreja hollandeza consiste em que raras vezes podia deliberar como egreja. Isto era devido em parte ao ciume do Estado protestante, e em parte á constituição politica das Provincias Unidas. A Hollanda, ou as Provincias Unidas, era uma confederação de estados, a muitos respeitos independentes uns dos outros. A Reforma tendia a descentralizar a Egreja, e a produzir uma organização ecclesiastica separada para cada estado politico independente. Tambem se notava na Hollanda a tendencia para a formação de tantas egrejas separadas quantas eram as provincias. As Sete Provincias não constituiam uma nação; constituiam, antes, uma confederação. Tinham-se obrigado a proteger-se umas ás outras na guerra, e, portanto, a manter um exercito commum, e a contribuir para um fundo militar commum; mas não formavam um estado. Os negocios internos de cada provincia estavam sob a superintendencia de cada estado separado. Quando Guilherme de Orange foi eleito governador vitalicio, uma das clausulas a que elle ficava obrigado era a de que não reconheceria qualquer concilio ou consistorio ecclesiastico que não tivesse a approvação da provincia em que propozesse reunir-se. Os negocios religiosos de cada provincia tinham de ser regulados por essa provincia. Isto dava um aspecto de divisão á Egreja hollandeza, e impedia, realmente, a acção incorporada e unida. A Egreja só podia reunir-se em assembléa geral quando todas as Sete Provincias concordassem em dar-lhe permissão. Este embaraço politico obstou muito á utilidade e influencia da Egreja Reformada Hollandeza, e deu logar a uma continua lucta, na Hollanda, entre a Egreja e o Estado. =A força da Egreja na Hollanda.=—A prolongada peleja de quarenta e cinco annos contra a Hespanha e o papismo parecia estimular as energias da Egreja hollandeza e das suas universidades, e os seus collegios theologicos em breve rivalizaram com mais antigas sédes de instrucção. A universidade de Leyden, erguida em acção de graças quanto a uma milagrosa libertação, foi fundada em 1575; Franecker começou a existir dez annos depois (1585); as universidades de Gröningen (1612) Utrecht (1636) e Harderwyk (1648) seguiram em successão apoz alguns annos de intervallo. Todas estas universidades eram escolas theologicas, frequentadas por alumnos procedentes de quasi todos os paizes protestantes da Europa. Os theologos hollandezes do seculo dezesete tornaram-se famosos quanto á sua erudição, zelo e agudeza theologica. Quando surgiu a grande controversia armenia, que agitou mais tarde a Egreja hollandeza, os theologos da Hollanda foram os que na Europa se celebrizaram mais, tanto pelo que diz respeito á illustração como pelo que diz respeito á orthodoxia. A Confissão de Westminster, que se tornou o credo da maior parte das egrejas presbyterianas em paizes onde se fallava a lingua ingleza, é em grande parte baseiada na antiga Confissão Hollandeza; e os theologos que coordenaram os seus artigos copiaram muita coisa d’esses reformadores hollandezes recentemente emergidos da sua terrivel e prolongada lucta com o papismo hespanhol. CAPITULO V A REFORMA NA ESCOCIA Preparação para a reforma, pag. 137.—A antiga Egreja celtica o a Educação, pag. 137.—A Escocia e o lollardismo, pag. 138.—A Escocia e Huss, pag. 138.—A Egreja romana na Escocia e a situação politica, pag. 142.—João Knox, pag. 141.—A Congregação e a Primeira Convenção, pag. 142.—A _Confissão escoceza_, pag. 144.—A rainha Maria e a Reforma, pag. 145.—O _Livro de Disciplina_, e a _Primeira Assembléa Geral_, pag. 147.—A educação, pag. 148.—A morte de Knox, pag. 149.—Os bispos tulchanos, pag. 150.—André Melville, pag. 152.—O Segundo Livro de Disciplina, pag. 152. =Preparação para a Reforma.=—A Escocia, longe do centro da vida europeia no seculo dezeseis, recebeu, apezar d’isso, a Reforma quasi tão cedo como a maioria dos outros paizes, e acceitou-a mais completamente do que elles. A região tinha sido preparada para ella mediante a educação do povo, mediante o constante commercio entre a Escocia e as nações continentaes, especialmente a França e a Allemanha, e mediante a sympathia dos estudantes escocezes para com os primeiros movimentos religiosos na Inglaterra e na Bohemia; e por outro lado a condição da Egreja romana, a pobreza das classes aristocraticas, e a situação politica do paiz coadjuvaram em certa escala os esforços de aquelles que anhelavam por uma reformação religiosa na Escocia. =A antiga Egreja celtica e a Educação.=—A antiga Egreja celtica na Escocia, que havia conservado a sua influencia no paiz durante perto de setecentos annos, tinha sempre considerado a educação do povo como um dever religioso. Os seus regulamentos declaram que é tão importante ensinar os rapazes e as raparigas a ler e a escrever como administrar os sacramentos ou tomar parte na _intimidade das almas_, que era o nome que davam á confissão. O mosteiro celta era sempre um centro educativo, e n’alguns casos a instrução ahi ministrada era a melhor que se podia obter fóra de Constantinopla. Carlos Magno, ao estabelecer aquellas escolas superiores, que depois se tornaram as mais antigas universidades da Europa, procurou nos mosteiros celtas os primeiros professores. Quando a Egreja celta da Escocia cedeu o logar á Egreja romana, o seu systema educativo foi, em grande escala, adoptado, e a educação na Escocia continuou a ser muito melhor do que se poderia esperar do seu estado de civilisação. As escolas cathedraes e monasticas produziram um grande numero de professores e alumnos que desejavam ver os seus trabalhos continuados n’uma universidade como as que n’aquella epoca estavam apparecendo em toda a Europa. Ao principio os poucos recursos do paiz obstavam á fundação de universidades na Escocia, e mediante uma provisão feita pelo rei e pelos bispos foram enviados os melhores estudantes a Oxford, Cambridge e Paris. Professores viajantes foram da Escocia, com um certo numero de estudantes, aos centros, inglezes e continentaes, de instrucção. E era frequente que os jovens escocezes permanecessem fóra da patria na qualidade de leccionistas ou estudantes nomadas. =A Escocia e o lollardismo.=—Este contacto academico approximou muito a Escocia dos grandes movimentos intellectuaes da Europa. No período em que os estudantes escocezes iam em grande numero para Oxford, Wycliffe exercia o professorado, e o lollardismo triumphava na grande universidade ingleza. Os estudantes escocezes voltavam contaminados com as maximas constitucionaes e as aspirações religiosas dos grandes homens de Inglaterra, e o lollardismo propagou-se na Escocia. Depois das universidades de Aberdeen, Glasgow e St.º André terem sido fundadas, no seculo quinze, os velhos arquivos dizem-nos que as auctoridades ecclesiasticas effectuaram inspecções com o fim de expurgar o corpo docente dos erros de Lollard. A seu devido tempo, o lollardismo passou das universidades para o publico, e os primeiros chronistas da Reforma nunca deixam de se referir aos lollards, ou homens biblicos de Kent, e á entrevista que tiveram com James IV. Havia estudantes escocezes em Paris quando Pedro Dubois, Marsilio de Padua e Guilherme de Ockham ensinavam publicamente que a egreja è o povo christão, e que pode existir uma egreja sem papa e sem padres. =A Escocia e Huss.=—A Bohemia e os actos de João Huss n’esse paiz eram bem conhecidos na Escocia. Calderwood falla-nos de Paulo Craw, bohemio que foi convencido de heresia a instancias de Henrique Wardlaw, bispo de St.º André, perante sete doutores em theologia, por divulgar as doutrinas de João Huss e de Wycliffe, «negando que houvesse qualquer modificação da substancia do pão e do vinho na Ceia do Senhor, e reprovando a confissão auricular e as orações aos santos defuntos.» Foi condenado á fogueira, e no momento da execução «metteram-lhe uma bola de cobre na bocca; para que o povo não ouvisse o seu justo protesto contra a injusta sentença d’elles.» Recentes investigações arqueologicas teem tornado evidente uma mais intima connexão entre a Escocia e a Bohemia do que até então se suspeitava. =A Egreja romana na Escocia o a situação politica.=—A Egreja romana na Escocia era muito rica, e era talvez mais corrupta do que em qualquer outra parte fóra da Italia. A herança que lhe foi legada pela Egreja celta não era toda boa; os satyricos tinham começado a chamar a attenção para o contraste entre as profissões e as vidas dos ecclesiasticos, e os seus livros produziam grande impressão no povo baixo. «Quanto aos modos mais particulares por que muita gente na Escocia adquiriu algum conhecimento da verdade de Deus na epoca das grandes trevas,» diz João Row, «havia alguns livros, taes como _Sir David Lindsay, e as suas poesias ácerca das Quatro Monarquias_, que trata tambem de muitos outros pontos, e expõe os abusos do clero de aquelle tempo; os _Psalmos de Wedderburn_ e as _Balladas de Godlie_, em que se alteram para fins piedosos muitos dos antigos canticos papistas: e uma _Queixa_ feita pelos estropiados, cegos e pobres de Inglaterra contra os prelados, padres, freiras e outras individualidades da egreja que dispendiam prodigamente todos os dizimos e outros rendimentos ecclesiasticos em prazeres illicitos, de modo que elles, os queixosos, não podiam adquirir alimentação nem allivio, como Deus tinha ordenado. Estas coisas foram impressas, e penetraram na Escocia. Havia tambem peças dramaticas, comedias e outras historias notaveis, que eram representadas em publico; a _Satyra_ de Sir David Lindsay foi representada no amphitheatro de S. Johnston (Perth), na presença do rei James V, e de uma grande parte da nobreza e da classe abastada, durando a representação um dia inteiro, e fazendo sentir ao publico as trevas em que estava envolvido, e a perversidade dos homens da egreja, e mostrando-lhe como a Egreja de Deus seria se fosse dirigida de uma maneira differente, o que tudo foi muito benefico n’aquella ocasião. As riquezas da Egreja romana da Escocia tinham, havia muito, excitado a inveja dos barões, que esperavam a ocasião em que podessem, sem risco, apoderar-se de parte dos bens ecclesiasticos. Durante muito tempo não occorreu similhante opportunidade. O clero era um senhorio que gozava da estima geral. Os vassallos da Egreja estavam em muito melhores condições, e tinham uma vida mais descançada, do que aquelles que cultivavam as terras dos barões e de outras personagens de menor cathegoria. Os camponezes escocezes rir-se-hiam, talvez, com as satyras de David Lindsay, mas gostavam da Egreja, e perdoavam-lhe os defeitos. Quando os prégadores escocezes que tinham estado em Wittenberg, ou que tinham estudado as obras de Luthero e dos outros reformadores, ou que sabiam pela Escriptura o que era desejar ardentemente o perdão e a salvação, começaram a prégar um Evangelho reformado, então, e só então, é que o povo principiou a comprehender a mordaz significação das satyras que alvejavam a clerezia. As auctoridades ecclesiasticas fizeram todo o possivel para supprimir estes reformadores. Patricio Hamilton, Jorge Wishart e muitos outros prégadores cheios de fervor e de espiritualidade foram martyrisados; e estas crueldades contribuiram mais do que os sermões ou as satyras para que o povo escocez se desgostasse da Egreja romana. A sanguinaria Maria tinha tornado a Inglaterra protestante; e o cardeal Beaton, com os seus homicidios judiciaes, e particularmente com o homicidio do velho Walter Mill, fez com que o povo da Escocia se preparasse para Knox e para os lords da Congregação. Durante umas poucas de gerações a politica exterior da Escocia tinha sido de inimizade para com a Inglaterra e de amizade para com a França. A alliança com esta nação havia motivado o casamento da James V com uma princeza da casa de Guise, e, mais tarde, os esponsaes e casamento da herdeira do throno da Escocia com o delphim da França. James V morreu, ficando regente a rainha franceza, cuja conducta incutiu nos espiritos de muitos escocezes o receio de que a Escocia viesse a tornar-se uma provincia de França. Tinham sido nomeados francezes para cargos de confiança na Escocia; o castello de Dunbar tinha uma guarnição franceza; e a regente projectava crear um exercito permanente, segundo o systema francez. Este alarme foi tomando tal vulto que o partido nacional, que por fim triumphou, chegou a inverter a politica hereditaria da Escocia, e ficou tendo por objecto uma alliança com a Inglaterra e uma guerra com a França. A Inglaterra era protestante, emquanto que os verdadeiros senhores da França eram os Guises, os cabecilhas do fanatico partido romanista, os homens que planearam a carnificina de S. Bartholomeu. Tal era o estado das coisas na Escocia quando João Knox começou a sua admiravel obra de reformador. O povo estava educado acima da sua civilisação, e podia comprehender e saudar as novas idéas, tendo, como tinha, costumes grosseiros, e vivendo, como vivia, uma vida rude. A egreja tinha perdido a confiança da nação em virtude da immoralidade do clero, e por ultimo tinha excitado as paixões do povo contra si com a sua cruel perseguição de homens de uma vida immaculada que prégavam um Evangelho puro. Alguns dos barões tinham partilhado a revivificação religiosa começada pelos prégadores reformados; outros estavam anciosos por livrar o paiz do dominio francez, e outros, ainda, queriam a todo o transe seguir o exemplo da Inglaterra e enriquecer á custa da egreja. Todos estes motivos, uns puros e outros não, estavam agitando o povo da Escocia nos annos que precederam o de 1560. =João Knox=, nascido em Giffordsgate, nos arredores de Haddington, em 1505, educado na universidade de Glasgow, e ordenado padre em 1542, tornou-se primeiramente conhecido do povo da Escocia quando, muito novo ainda, andou em companhia de Jorge Wishart para proteger este prégador reformado emquanto elle dirigia a palavra a immensos auditorios. Depois do martyrio de Wishart, e do assassinio do cardeal Beaton, Knox aggregou-se á facção que havia tomado de assalto o castello de St.º André. Quando os defensores se viram forçados a capitular, os poucos membros da guarnição que estavam, incluindo Knox, foram enviados para França e condemnados á escravidão das galés. N’uma occasião em que puxava pelos remos, foi-lhe apresentada uma imagem da Virgem, de pau, para elle a beijar como meio de adoração. Knox recusou-se a honrar «o madeiro pintado», e atirou com a imagem ao mar, dizendo que, como ella era de pau, «não havia de ir para o fundo». Apoz um captiveiro de dezenove mezes, elle, juntamente com outros que haviam sido aprisionados em St.º André, foi solto a pedido de Eduardo VI de Inglaterra. Restituido á liberdade em fevereiro de 1549, foi direito a Inglaterra, onde se empregou como prégador viajante. A sua eloquencia, zelo e incomparavel coragem em breve o collocaram em primeiro plano. Foi-lhe offerecida a diocese de Rochester, mas recusou-a sob o fundamento de que não era sua crença que similhante cargo fosse auctorizado pelas Escripturas. Foi consultado ácerca da revisão dos _Artigos da Religião_, e suggeriu a celebre _declaração sobre o assumpto de ajoelhar na Communhão_, que ficou inserta no Segundo Livro de Oração Commum de Eduardo VI (1552). A subida de Maria ao throno obrigou-o, apoz uma arrojada tentativa de proseguir na sua obra de prégador nomada, a retirar-se para o continente. Um anno foi gasto a visitar varias localidades da França e da Suissa. Em Genebra tornou-se o intimo amigo de Calvino. Apoz uma curta estada em Frankfort sobre o Maine, onde foi pastor da congregação de refugiados inglezes que se haviam ajuntado ahi, tornou-se o pastor da Congregação ingleza de Genebra em 1555. Durante a sua curta permanencia ahi tomou parte na composição de aquelle directorio do culto publico, que, sob os varios nomes de Livro de Ordem Commum, Livro de Genebra e Lithurgia de Knox, serviu de guia no culto publico da Egreja reformada da Escocia até á publicação e adopção do Directorio dos Theologos de Westminster. Collaborou tambem ma traducção da mais popular das primitivas versões da Sagrada Escriptura, a Biblia de Genebra. Durante a sua ausencia foi ganhando a pouco e pouco a reputação de ser o unico homem competente para conduzir os esforços do partido reformista da Escocia a satisfactorio resultado final; e no outomno de 1555 regressou á sua terra natal. Com a sua coragem habitual, começou logo a fazer predicas nos aposentos que occupava em Edinburgo, e fez alguns gyros predicativos, como, por exemplo, a Forfarshire, sob a protecção de Erskine de Dun, e a West Lothian, sob a protecção de Lord Torphichen. Foi durante esta visita que Knox principiou a administrar a Ceia do Senhor á moda reformada. A primeira celebração foi em casa do conde de Glencairn, na primavera de 1556. O Reformador, provavelmente, não achou o paiz em estado de entrar em qualquer grande movimento que o approximasse da Reforma, e partiu da Escocia para Genebra em Julho de 1556. Queixou-se da lentidão, timidez e falta de união entre os protestantes, quando alguns dos fidalgos lhe solicitaram, em Março de 1557, que voltasse, e mandou dizer que achava melhor addiar o seu regresso. Esta reprehenção deu logar a uma Confederação dos nobres, que depois se tornou bem conhecida na Escocia sob o titulo de Lords da Congregação. =A Congregação e a Primeira Convenção.=—O turbulento caracter dos barões escocezes, e a fraqueza da auctoridade central, tanto do rei como dos estados, eram origem de constantes confederações de homens de todas as classes para realisarem, com segurança, emprezas, umas vezes legaes, e outras illegaes. Os confederados promettiam ajudar-se uns aos outros na obra que se propunham executar, e defender-se mutuamente das consequencias que se lhe seguissem. Estas combinações eram geralmente redigidas em fórma legal por notarios publicos, e o seu cumprimento tornava-se obrigatorio mediante todas as formulas de garantia que a lei facultava. Estes Lords da Congregação seguiram um costume predominante em todas as confederações quando se alliaram para manter e dar maior desenvolvimento á bemdita palavra de Deus e á Sua congregação, e para renunciar á congregação de Satanaz com todas as supersticiosas abominações e idolatria que lhe eram inherentes; mas introduziram um novo sentido espiritual n’esta alliança quando o seu pacto de federação se tornou tambem uma promessa feita a Deus em publico, como as que encontramos no Antigo Testamento, de serem verdadeiros e fieis á Sua palavra e direcção. Esta «faixa assignada pelos Lords», como Calderwood lhe chama, foi a primeira das cinco convenções que se tornaram famosas na historia da Egreja Reformada da Escocia. A esta convenção estavam ligadas duas resoluções, em que os confederados resolveram insistir no uso do Livro de Oração de Eduardo VI nas paroquias que estivessem debaixo do seu governo e dar incremento á exposição das Escripturas, particularmente, pelas casas, até que as auctoridades permittissem a prégação publica «por verdadeiros e fieis ministros». Este acto reanimou grandemente todos aquelles que desejavam uma reformação, e fez com que o povo tivesse ousadia para exprimir a sua aversão pelas supersticiosas ceremonias da Egreja Catholica Romana. A Côrte, em 1559, prohibiu de prégar todos aquelles que não estivessem auctorizados pelos bispos; e, como não se fizesse caso d’essa prohibição, os prégadores foram intimados a apresentar-se no tribunal de Stirling. N’este entretanto Knox voltou á Escocia. Desembarcou em Leith, a 2 de Maio, e dirigiu-se a Perth, onde os Lords da Congregação se haviam reunido para proteger o seu prégador. Chegou a Perth a noticia, emquanto Knox estava prégando, de que os ministros reformados estavam proscriptos, e no dia seguinte, depois do sermão, quando um padre tentou dizer missa na presença de uma excitada multidão, produziu-se um tumulto, e a «vil turbamulta», segundo a expressão de Knox, entrou nos conventos dos franciscanos e dos cartuxos, e pôl-os a saque. A rainha regente marchou a atacar os sediciosos; o conde de Glencairn saiu a proteger os reformados; estava prestes uma guerra civil. Quasi immediatamente, porém, a rainha cedeu; de ambos os lados se entrou em negociações sem uma mutua confiança. Por fim os Senhores da Congregação marcharam sobre Edinburgo, tomaram posse da cidade em Outubro de 1559, e, convocando os estados, depozeram a regente. Concluiu-se um tratado com a Inglaterra, e Isabel mandou tropas inglezas para protegerem a Congregação. Houve um combate entre a facção romanista, auxiliada pelo exercito francez, e a Congregação, auxiliada pelas tropas que tinham ido de Inglaterra, e os francezes foram repellidos. A rainha regente morreu em junho do anno seguinte, e a Congregação ficou senhora da Escocia. Os estados do reino reuniram-se, e foi posto á sua deliberação um pedido da Congregação, referente a uma reforma de doutrina, de disciplina, de administração dos sacramentos, e da distribuição do patrimonio da egreja. Em resposta, os estados requisitaram um summario das desejadas reformas doutrinaes; e de ali a quatro dias foi-lhes apresentado um decumento, conhecido depois pelo nome de _Confissão Escoceza_. Foi tomado em consideração, os prelados fizeram algumas, poucas, observações, e, posto a votos, foi approvado quasi por unanimidade. Egual sorte tiveram as outras tres Actas, que aboliam a jurisdicção do papa no interior do reino, revogavam todas as anteriores determinações do parlamento que eram contrarias á Palavra de Deus e á Confissão de Fé recentemente adoptada, e prohibida a assistencia á missa e a outras ceremonias idolatras. E a religião reformada ficou sendo a religião da Escocia legalmente auctorizada. A auctoridade, comtudo, era o poder dos Estados, independentemente do soberano; pois que a rainha regente tinha fallecido, e a sua filha, Maria, rainha da Escocia, ainda não havia regressado da França. =A Confissão Escoceza, ou Confessio Scotica.=—Apresentada aos Estados, e englobada nas suas Actas quando adoptada por elles, foi a obra de seis reformadores escocezes: Knox, Spottiswood, Willock, Row, Douglas e Winram. Diz-se que Maitland de Lethington, tido na conta de um dos mais habeis estadistas do seu tempo, reviu o livro e attenuou algumas das suas declarações. Redigido á pressa por um pequeno numero de theologos, é mais complacente e humano do que a maioria dos credos, e por essa razão tem-se recommendado a muitas pessoas que não se conformam com a logica impessoal da Confissão de Westminster. As primeiras phrases do prefacio dão uma idéa geral do todo. «Ha muito tempo que anceiavamos, queridos irmãos, por notificar ao mundo a summula de aquella doutrina que professamos, e pela qual nos havemos sujeitado ás ignominias e aos perigos. Tal tem sido, porém, a ira de Satanaz contra nós e contra Jesus Christo, cuja verdade eterna se manifestou ultimamente entre nós, que até hoje não nos tem sido concedido tempo para desobstruir as nossas consciencias, o que com muito regozijo teriamos feito.» O prefacio expõe tambem mais claramemte do que qualquer outra Confissão do mesmo genero a reverencia com que os vultos da Reforma tratavam a Palavra de Deus. «Pedimos a qualquer pessoa que notar n’esta nossa Confissão algum artigo ou phrase que esteja em desacordo com a Santa Palavra de Deus, que, dando prova da sua caridade christã, nos advirta d’esse erro por escripto, e, pela nossa honra e fidelidade, promettemos dar-lhe satisfação pela bocca de Deus, isto é, mediante a Sua Santa Escriptura, ou então emendarmos aquillo que se demonstrar que precisa de correcção. Perante Deus deixamos escripto nas nossas consciencias que abominamos, do fundo do coração, todas as seitas hereticas, e todos os promulgadores de doutrinas erroneas; e que com toda a humildade abraçamos a pureza do Evangelho de Christo, que é o unico alimento das nossas almas.» A Confissão contém as crenças communs a todas as ramificações da Reforma. Encerra, outrosim, todas as doutrinas chamadas ecumenicas, isto é, as verdades expostas nos primeiros concilies ecumenicos, e incorporadas no Credo dos Apostolos e ao Credo Niceno; e accrescenta aquellas doutrinas de graça, de perdão e de luz mediante a Palavra e o Espirito que com a reviviscencia da religião adquiriram uma proeminencia especial. Esta Confissão é mais notavel pelos seus titulos suggestivos do que por qualquer peculiaridade de doutrina. A doutrina da revelação é, por exemplo, definida por si propria, independentemente da doutrina da Escriptura, mediante este titulo: «A Revelação da Promessa». A Eleição é considerada, segundo o antigo calvinismo, um meio de graça, uma evidencia do «invencivel poder» de Deus quanto á salvação. Os pontos em que a verdadeira egreja se distingue da falsa são, diz-se na dita Confissão a genuina prégação da Palavra de Deus, a adequada administração dos sacramentos, e a justiça na applicação da disciplina ecclesiastica. A auctoridade das Escripturas, affirma tambem, procede de Deus, nada tem que ver nem com homens nem com anjos; e a egreja sabe que ellas são verdadeiras, porque «a verdadeira egreja ouve e obedece sempre á voz do seu Esposo e Pastor.» Esta Confissão foi primeiro lida toda de uma vez no parlamento, e depois tornada a ler clausula por clausula. Randolpho, o embaixador inglez, que assistiu a essa leitura, descreveu-a a Cecilio, o grande ministro de Isabel, e entre outras coisas diz-nos que, quando se leram os artigos, alguns dos barões ficaram tão commovidos que se levantaram dos seus logares, declarando que estavam promptos a derramar o seu sangue em defeza da Confissão», e que Lord Lindsay, com uma gravidade raras vezes presenciada, disse: «Tenho vivido muitos annos; sou o mais edoso de todos quantos aqui se encontram; e agora que aprouve a Deus deixar-me chegar a este dia, em que tantas pessoas, algumas d’ellas pertencentes á nobreza, sanccionaram uma obra tão digna, direi como Simeão, _Nunc dimitis_». =A rainha Maria e a Reforma.=—A Reforma não tinha de triumphar na Escocia tão de repente e com tanta facilidade. Sir James Sandilands, encarregado de levar a Paris a Confissão de Fé, não só não conseguiu que a joven rainha a assignasse, como o informaram do desagrado com que ella soube dos acontecimentos occorridos na Escocia; e só apoz sete annos de lucta, que terminou com a deposição da soberana, é que a Confissão foi finalmente ratificada e a Egreja Reformada alcançou na Escocia um completo reconhecimento official. Francisco II, esposo de Maria, morreu em 1561, e a joven rainha chegou á Escocia em agosto do mesmo anno. Vinha acompanhada de um numeroso e brilhante sequito, do qual tambem faziam parte tres de seus tios, membros da casa de Guise, e o filho do famoso Condestavel de Montmorency. O duque de Guise e o cardeal de Lorena acompanharam-n’a até Calais. Os reformadores escocezes conheciam bem os homens que rodeiavam a sua rainha, e que tão ostensivamente se achavam dispostos a protegel-a. Era do dominio publico que o duque de Guise estava á frente de aquelle partido que ambicionava exterminar os protestantes francezes por meio de um massacre geral. Fôra elle, segundo se presumia, o instigador do assassinio judicial de Anne de Bourg, e que havia planeada a, carnificina de Amboise. A devassidão dos Guises só era excedida pela sua deshumana crueldade. Taes eram os homens que passaram á Escocia para acompanhar e aconselhar a joven rainha. Não é, pois, para surprehender que, ponderando estas coisas, Knox e os seus amigos reputassem a vinda da rainha uma grande calamidade, e que vissem no nevoeiro e chuva que durante dois dias caiu sobre a costa oriental da Escocia, um como que aviso do céu, uma manifesta exposição da felicidade que ella trouxera comsigo para aquelle paiz, felicidade que se poderia traduzir por estas palavras: afflicção, dôr, obscurantismo e impiedade. A belleza physica, o privilegiado talento, os infortunios e o tragico fim da joven rainha teem-n’a circumdado de uma aureola romantica. E, comtudo, nem mesmo os seus admiradores teem feito inteira justiça á sua indomavel coragem e aos seus grandes dotes intellectuaes. Estava quasi só ao voltar para o seu paiz natal, e viu immediatamente que coisa alguma devia esperar da França e que necessitava de crear um partido em que podesse descançar confiadamente. Era uma rapariga de dezenove annos quando saiu de França; apezar d’isso, Knox, que teve com ella algumas entrevistas pouco depois da sua chegada, parece ter reconhecido n’ella uma mulher superior, e ter-se compenetrado de que havia motivo para receiar que uma das duas, ou a rainha ou a Reforma, tivesse de ir a terra. O combate que ella sustentou sósinha com a Reforma foi observado com anciedade por toda a Europa; e, se ella não tivesse sido educada n’uma côrte tão corrompida, e se não tivesse convergido para ella o odio que aquelles seus parentes, os Guises, haviam inspirado, podia muito bem ser que ficasse victoriosa. Poderá parecer cruel fallar d’este modo, agora que o perigo já lá vae ha seculos, mas o que é verdade é que bastantes familias pacificas e religiosas, tanto na Hollanda, como na França, como no Paiz do Rheno, e com mais razão ainda na Escocia e na Inglaterra, só respiraram á vontade quando o machado poz finalmente, em Fotheringay, termo á triste e agitada vida da rainha Maria. A lucta começou com a sua chegada. Ella e a sua côrte foram, com todo o espavento, ouvir missa logo no primeiro domingo, posto que fosse prohibido dizer e ouvir missa, sob pena de um severo castigo. Principiou, pois, por infringir as leis do estado, d’esse mesmo estado que havia implantado a Reforma. Se quizessemos contar detalhadamente o que de ahi em deante se passou encheríamos umas poucas de paginas. Apoz sete annos de lucta, Maria foi aprisionada no castello de Lochleven, e deposta, sendo collocado no throno o seu filho, ainda na infancia, James VI, e ficando como regente do reino seu irmão James Stewart, conde de Moray. O parlamento escocez votou novamente a Confissão de Fé; o regente assignou-a em nome do soberano; e, assim ratificado, foi incluido na legislação do paiz e a religião reformada ficou sendo a reforma do christianismo legalmente reconhecida na Escocia. =O Livro de Disciplina e a primeira assembléa geral.=—Pouco depois de o parlamento de 1560 ter encerrado as suas sessões, os auctores da Confissão foram encarregados de apresentar uma breve exposição do melhor systema de governo de uma egreja reformada. Surgiu então aquelle notavel documento que depois se chamou o Primeiro Livro de Disciplina, e que constituiu a primeira formula de governo ecclesiastico na Escocia. Dividia-se em sessões da egreja, synodos e assembléas geraes; e concedia o titulo de officiaes da egreja aos ministros, professores, presbyteros, diaconos, superintendentes e ledores. Os auctores do Livro de Disciplina declararam ter ido procurar directamente ás Escripturas as linhas geraes de aquelle systema de governo ecclesiastico a adoptar o qual elles aconselhavam os seus compatriotas, e havia, indubitavelmente, muita sinceridade, a par de muita exactidão, n’essa sua affirmativa. Eram, comtudo, todos elles, homens affeiçoados á Egreja de Genebra, e tinham tido relações pessoaes com os protestantes da França. A sua fórma de governo foi, evidentemente, inspirada pelas idéas de Calvino, e segue de perto as Ordenanças Ecclesiasticas da Egreja franceza. Os officios de superintendente e leitor foram addicionados aos outros tres, ou quatro, que caracterizam a fórma de governo presbyteriana. O cargo de superintendente devia a sua origem á situação incerta do paiz e á escassez de pastores protestantes. Os superintendentes tinham a seu cargo divisões territoriaes que não correspondiam exactamente ás dioceses episcopaes, e competia-lhes apresentar á Assembléa Geral relatorios annuaes do estado ecclesiastico e religioso das respectivas provincias. Os leitores deviam a sua existencia ao reduzido numero de pastores protestantes, á grande importancia que os primitivos reformadores escocezes davam a um ministerio educado, e tambem á difficuldade de obter fundos para a sustentação dos pastores de todas as paroquias. O Livro de Disciplina contém um capitulo sobre o patrimonio da egreja, que insiste na necessidade de reservar os dinheiros possuidos pela egreja para a manutenção da religião, as despezas com a educação, e os socorros dos pobres. Foi a existencia d’este capitulo que fez com que os Estados não aceitassem o livro com tanta promptidão como o fizeram com a Confissão de Fé. Os barões de diversas categorias, que tinham assento na camara, haviam-se, em muitos casos, apropriado do patrimonio da egreja em seu beneficio particular, e não queriam assignar um documento que condemnava o seu modo de proceder. O Livro de Disciplina, approvado pela Assembléa Geral, e assignado por um grande numero de nobres e burguezes, nunca recebeu a sancção official concedida á Confissão. A Assembléa Geral da Egreja Reformada da Escocia reuniu-se pela primeira vez em 1560, e, a despeito da luta em que a egreja se achava envolvida, houve, pelo menos, uma reunião por anno, e algumas vezes mais, podendo assim a egreja organizar-se e entrar em plena actividade. Fez-se uma traducção do _Catecismo para a Infancia_, de Calvino, e deu-se ordem para que se fizesse uso d’ella. O Livro de Ordem Commum, ou a Lithurgia de Knox, foi substituindo a pouco e pouco a Lithurgia do rei Eduardo VI, e a Egreja Reformada da Escocia, com a sua Confissão, a sua constituição ecclesiastica, o seu methodo de culto publico e as suas provisões para a instrucção das creanças, espalhou-se pelo paiz, levantando egrejas, melhorando o estado moral do povo e contribuindo efficazmente para a educação do mesmo. Uma das principaes dificuldades com que a egreja teve de luctar foi falta de dinheiro para pagar aos ministros. A Egreja Catholica Romana tinha sido officialmente abolida, e, comtudo, não se havia feito provisão alguma para a manutenção do clero reformado. A propriedade ecclesiastica estava em condições anormaes. Até 1560 a Egreja Catholica Romana da Escocia vinha sido muito opulenta, e havia estado de posse de uma grande parte do territorio da nação. Emquanto a egreja estivera luctando com Maria e procurando frustrar os esforços que ella empregava para introduzir de novo a religião e hierarquia romanista, os prelados distribuiram uma grande parte dos bens ecclesiasticos por quem elles muito bem entenderam, os nobres apoderaram-se de uma parte d’elles ainda maior, e o que restava e nominalmente pertencia á egreja estava nas mãos de homens que se intitulavam bispos, abbades, priores, deãos e curas, mas que nunca haviam recebido ordens, eram protestantes só no nome, e se serviam de aquelles titulos ecclesiasticos para poderem usufruir as propriedades a que o cargo dava direito. Depois de alguma discussão, a Assembléa obteve do Estado que aquelas pessoas que conservavam em seu poder bens que nominalmente pertenciam á egreja ficassem com dois terços de rendimento para as suas despezas particulares, e entregassem a restante terça parte para a manutenção do ministerio e das escolas, e para os encargos de beneficencia. A Egreja Reformada, porém, teve muita difficuldade em ver esta disposição convertida em lei, e assim, durante os primeiros annos da Reforma os ministros e as escolas foram principalmente mantidos por meio de offertas voluntarias, ou «benevolencias», como Knox pittorescamente lhes chamava. =A Educação.=—As idéas democraticas do presbyterianismo, avolumadas pela necessidade de cooperar com o povo, fizeram com que os reformadores escocezes se ocupassem seriamente da educação popular. Todos os impulsionadores da Reforma, quer na Allemanha, quer na França, quer na Hollanda, tinham reconhecido a importancia de esclarecer o povo; mas a Hollanda e a Escocia foram talvez os dois paizes onde a tentativa foi mais bem succedida. A educação do povo não era uma novidade na Escocia e, posto que nos agitados tempos que precederam a Reforma as escolas superiores tivessem desapparecido, e as universidades tivessem caido em decadencia, o desejo de aprender não se havia extinguido por completo. Knox e o seu amigo Jorge Buchanan tinham um plano magnifico para crear escolas em todas as freguezias, estabelecer collegios superiores em todas as cidades importantes e augmentar o poder e influencia das universidades. O seu plano, devido á cubiça dos barões que se haviam apoderado dos bens da egreja, pouco mais era do que uma devota imaginação, mas havia-se apossado do espirito da Escocia, e a falta de dotações era mais do que compensada pelo desejo ardente que o povo tinha de se instruir. As tres universidades, de Santo André, de Glasgow e de Aberdeen, receberam uma nova vida, e fundou-se uma quarta universidade, a de Edinburgo. Alguns estudantes escocezes que haviam recebido educação nas escolas continentaes, e que haviam abraçado a fé reformada, foram encarregados de superintender o re-organizado systema educativo do paiz, e tudo se fez em harmonia com o viver do povo, preferindo-se, nas escolas, e externato ao internato, e estabelecendo um systema de inspecção que era exercido, em cada circumscripção escolar, por um dos homens mais espirituaes e de maiores conhecimentos. Knox estava tambem disposto a impôr ás duas classes da sociedade, a mais baixa e a mais elevada, uma frequencia obrigatoria ás aulas; quanto á classe media, elle confiava no seu natural desejo de aprender. E desejava que o Estado exercesse a sua auctoridade no sentido de compellir os mancebos de posição a matricularem-se nas escolas superiores e nas universidades, para que podessem prestar serviços uteis á nação. =A morte de Knox.=—João Knox morreu em novembro de 1572. O assassinio do seu amigo, o conde de Moray, o Bom Regente, havia-lhe feito uma grande impressão, e a noticia do massacre de S. Bartholomeu, que havia chegado recentemente á Escocia, produziu-lhe um tremendo abalo. Elle nunca havia sido um homem robusto, e durante a sua vida havia passado por muitos trabalhos, mas o seu intrepido espirito a tudo resistira. «Ignoro» diz Smeaton, «se Deus poz jámais n’um corpo debil e franzino uma alma maior e mais santa do que a d’elle». As forças começaram a faltar-lhe muito antes de adoecer gravemente, mas luctou sempre contra o seu precario estado de saude, e nunca deixou de prégar e exhortar como costumava fazer. James Melville, que teve occasião de o ver quando estudava em Santo André, apresenta-nos um retrato d’elle pouco antes da sua morte. «Via-se que andava doente. Todos os dias eu o via passar para a egreja paroquial, andando muito cautelosamente, com o pescoço resguardado por uma pelle, de bengala na mão, e acompanhado pelo seu creado, o bom Ricardo Ballanden. Era esse dito Ricardo e um outro creado que o ajudavam a subir para o pulpito, a que elle se encostava durante algum tempo; logo, porém, que entrava no sermão, enchia-se de uma actividade e de um vigor taes que esse mesmo pulpito por pouco escapava de ficar feito em cavacos.» Morreu antes de ter effectuado por completo a sua obra, pois que a Egreja Reformada ainda tinha muitos obstaculos a vencer, e o facto de Knox não tomar parte na batalha tornava-lhe mais difficil o sair victoriosa. Elle não possuia a erudição de Calvino, nem uma disposição para se tornar popular, como Luthero, mas nenhum homem o poderia egualar em coragem. «Elle nada temia da carne, nem tão pouco a lisongeava.» E foi isso o que fez o reformador da Escocia. Como os seus contemporaneos francezes, tinha tanto de estadista como de dirigente ecclesiastico, e emquanto viveu foi o guia do povo escocez. Os nobres de bom grado teriam intervindo no movimento, e lhe teriam dado uma feição mais em obediencia ao seu modo de pensar, mas Knox fez do pulpito a força mais poderosa da Escocia, e com as suas ousadas prégações creou uma opinião publica com que era preciso contar. Elle era, individualmente, um homem de profunda espiritualidade, e «temia a Deus, mas coisa alguma fóra d’Elle lhe mettia medo». =Os bispos tulchanos.=—O poder da Egreja Reformada da Escocia foi consideravelmente fortalecido e consolidado mediante o caracter representativo dos seus conselhos, e, mais especialmente, da sua Assembléa Geral, e a liberdade com que todos os assumptos de interesse para a nação eram ahi tratados e discutidos deu á Assembléa da Egreja o caracter de um parlamento nacional onde o povo da Escocia encontrava uma defeza mais efficaz do que nos Estados do reino. Os olhos perspicazes da rainha Maria haviam discernido esta força da egreja, e ella empregou varios esforços, sempre infructiferos, para impedir a reunião da Assembléa Geral. Depois da morte do conde Moray, o Bom Regente, isto é, durante as regencias de Lennox, Mar e Morton, e durante o reinado de James, a Assembléa foi sempre mal vista por aquelles que ambicionavam um poder exclusivo. Sabia-se, porém, que era perigoso dirigir-se á Assembléa um ataque directo, e aqueles que no Estado dispunham do poder tentaram diminuir-lhe a auctoridade promovendo ecclesiasticos e elevando-os a posições que lhes permittissem tomar assento nos Estados e defender ahi as prerogativas da egreja. Depois da morte do regente Moray, a nobreza tratou constantemente de derrubar o governo episcopal, e collocar a Egreja sob o dominio dos bispos. Uma outra, e talvez mais visivel, causa por que aquelles estavam em auctoridade antipathisavam com a simples constituição presbyteriana que o Livro de Disciplina havia preceituado á Egreja era o facto de ella dar pouca occasião a que as receitas fossem espoliadas, ao passo que a nomeação de bispos reunia uma grande proporção dos dinheiros da Egreja em meia duzia de mãos, habilitava os patronos e entrar em negocios com os ecclesiasticos que elles nomeassem para esses cargos, desviando-se assim uma grande parte dos fundos de que a Egreja ainda estava de posse para as algibeiras dos fidalgos de primeira plana. Pouco antes da morte de Knox, a Assembléa, não sem protesto, tinha, a instancias dos Lords do Conselho, concordado em acceitar ecclesiasticos com o titulo de bispos, debaixo de certas condições, sendo as principaes as seguintes: os bispos não teriam um poder superior ao dos superintendentes, haviam de estar sujeitos á Assembléa Geral, e não seriam nomeados sem que devidamente se providenciasse quanto ao sustento do ministerio regular. Este accordo, chamado a _Convenção de Leith_, foi devido principalmente ás diligencias de João Erskine, o antigo amigo de Knox, um dos primitivos superintendentes, e que por mais de uma vez exerceu na Assembléa o logar de Moderador. Alguns annos de experiencia mostraram á egreja escoceza o perigo que para a sua vida livre, para a sua vida democratica, provinha das disposições desta convenção, e pouco depois da morte de Knox appareceram symptomas de um proximo conflicto. O mais flagrante exemplo do uso que os nobres mais proeminentes faziam d’estes bispos para defraudar a Egreja occorreu em 1581, que foi quando Boyd, o arcebispo de Santo André, morreu. Assim que o edoso prelado faleceu, o duque de Lennox resolveu apoderar-se das propriedades da sé. Era impossivel pôr similhante coisa em pratica sem um legalisado artificio, e o plano escolhido foi induzir Roberto Montgomery, ministro em Stirling, a acceitar o cargo de arcebispo, tornar-se d’esse modo herdeiro dos bens da sé, e passar depois os respectivos rendimentos para as mãos de Lennox. Este caso foi, talvez, o peior d’elles todos; mas em toda a Escocia se procedeu de uma fórma analoga, nomeando-se bispos, abbades, etc., para que podessem tomar legalmente posse dos dinheiros da Egreja, e, em vez de se lhes dar a devida applicação, passal-os para os bolsos dos patronos seculares. O povo chamava a estes bispos, assim como a quaesquer outros dignitarios que se prestavam a essas burlas, tulchanos, e a primeira lucta com os bispos escocezes não foi uma contestação entre o presbyterio e o episcopado, mas entre a Egreja, que queria a todo o custo conservar o seu patrimonio, e esses tulchanos. Quando na Assembléa se tratou do caso de Montgomery, «o moderador, David Dickson, pediu licença para expôr a significação de bispos tulchanos. Tratava-se de uma palavra em uso vulgar entre os montanhezes da Escocia. Quando uma vacca não se deixa mungir, põem junto d’ella uma pelle de vitello, empalhada, e é a essa pelle que chamam _tulchan_. Ora para esses bispos que possuíam o titulo e o beneficio, sem desempenharem o cargo, não se encontrou denominação mais significativa do que a de bispos tulchanos.» =André Melville.=—João Knox morreu quando este conflicto entre a Côrte e a Egreja estava no principio, e era necessario fazel-o substituir por outro dirigente. Entre os escocezes illustrados que o triumpho da Reforma e a renascença das letras haviam attraido para o seu paiz natal, André Melville era o que mais se tinha distinguido. Nascido, em 1545, em Baldovy, perto de Montrose, recebeu a sua educação na Escola Primaria d’essa cidade, e no Collegio de St.ª Maria, em St.º André. De ahi foi para Paris, onde teve por professor o celebre Pedro Ramus. Depois de terminar os estudos, obteve em Genebra uma cadeira de latim, e em 1574 voltou á Escocia, com a reputação de um dos mais eminentes sabios da Europa. Pouco depois do seu regresso foi nomeado reitor da universidade de Glasgow, e por tal fórma dirigiu esse estabelecimento de instrucção que correu a matricular-se n’elle um elevadissimo numero de mancebos, não só escocezes como estrangeiros. Foi um dos membros da Assembléa de 1575, em que a questão do presbyterio e do episcopado tomou pela primeira vez um caracter serio; e fez parte da comissão nomeada por essa Assembléa para considerar se o nome e deveres de um bispo tinham alguma auctorização biblica, isto é, se os bispos que havia n’aquelle tempo na Egreja da Escocia estavam ali, e desempenhavam os seus cargos, em obediencia á Palavra de Deus. A decisão a que se chegou foi que o nome de bispo pertencia a todos os pastores da Egreja de quem se havia confiado congregações, mas que tambem podia ser applicado aos ministros escolhidos por seus irmãos para implantar egrejas e inspeccionar as egrejas existentes, e o sentimento geral da Egreja a este respeito pode colligir-se d’estas tres expressões, que indicam tres especies de bispos: My Lord Bishop (_Meu Senhor Bispo_), My Lord’s Bishop (_Bispo do Meu Senhor_), e Lord’s Bishop (_Bispo do Senhor_), sendo os primeiros catholicos romanos, os segundos tulchanos, e os terceiros pastores das congregações. =O Segundo Livro de Disciplina.=—Quando a Egreja Reformada da Escocia se encontrou face a face com estes novos problemas ecclesiasticos, sentiu necessidade de um mais distincto e mais completo schema de governo da egreja do que aquelle que o Primeiro Livro de Disciplina continha. Esse systema de governo da egreja havia sido preparado á pressa, e fazia menção de differentes materias que estavam fôra da esphera de um livro de preceitos ecclesiasticos. A Assembléa de 1576 nomeou uma commissão para tratar d’esse assumpto, e redigir um livro que podesse substituir a obra de Knox e de Row. O dito livro foi escripto de vagar, com muita perseverança, e finalmente em 1578 deu-se ordem para que o _O Segundo Livro de Disciplina_ fosse impresso, afim de sujeital-o á critica e se fazerem as necessarias correcções. Tres annos se dispenderam em ponderar todos os seus pontos, todas as suas phrases, e o Livro de Politica, como se lhe chamou, foi então acceite pela Assembléa e incluido nas suas Actas. Este livro, que apresenta, n’um estylo conciso e claro, o esboço do governo da Egreja Presbyteriana na Escocia, começa por fazer distincção entre as leis ecclesiasticas e civis, e reivindica para a Egreja «uma politica differente da politica do Estado». O conjuncto do governo da egreja, diz o livro, comprehende doutrina, disciplina e distribuição; e para este triplice governo ha um triplice officialato, que se divide em pastor, ou bispo, presbytero e diacono. O Livro de Disciplina addiciona um quarto oficio, ou de doutor, ou ensinador. N’um curto capitulo vem descripta a natureza da vocação, assim como o modo da eleição e ordenação dos pastores. Faz-se tambem uma descripção dos deveres que cabem a cada uma das dignidades, e das varias assembléas em que aquelles que estão d’ellas revestidos teem de comparecer, no exercicio dos seus cargos. É singular que no anno que precedeu o da adopção do Livro de Disciplina pela Assembléa recebesse o seu complemento a organização presbyteriana da Egreja Escoceza mediante o universal reconhecimento do presbyterio como um tribunal superior á sessão da egreja, mas inferior ao synodo; e que este livro de politica não faça menção especial de similhante tribunal, que actualmente exerce funcções tão importantes na organização presbyteriana escoceza. Como a publicação do _Segundo Livro de Disciplina_ a Egreja Reformada da Escocia completou a sua organização ecclesiastica, e terminou a primeira parte da sua historia. A Reforma estava por esse tempo firmemente estabelecida, e o protestantismo tinha empolgado o povo da Escocia. A Egreja tinha deante de si uma longa lucta; o conflito, porém, não era com o papismo, mas com o Estado; não era no sentido de reformar a religião, mas de desenvolver e preservar a fórma democratica do governo da Egreja, que se impunha ao povo como sendo a mais conforme com a Palavra de Deus, e a mais adequada para a habilitar a desempenhar os seus deveres de Egreja de Christo. Em 1574 a Escocia achava-se em curiosas circumstancias ecclesiasticas. Haviam-se conservado as paroquias que existiam antes da Reforma, e cujo numero era superior a mil. Para seu funccionamento havia 289 ministros e 715 leitores, e muitos d’estes ultimos eram os padres catholicos romanos que tinham vindo para a religião reformada mas que não possuiam uma educação sufficiente para justificar a sua ordenação como pastores protestantes. Estas paroquias passaram depois a constituir presbyterios, os presbyterios foram agrupados em synodos, e o conjuncto estava sob a direcção da Assembléa Geral. A organização presbyteriana era, n’um certo sentido, completa. A par d’isto, porém, existiam as velhas dioceses, anteriores á Reforma, em numero de treze, na sua maior parte occupadas por homens que eram ministros protestantes, que haviam tomado o titulo de bispos, mas que não exerciam funcções episcopaes. Apenas tres d’esses bispos, o de St.º André, o de Glasgow e o de Aberdeen, haviam tentado exercer a jurisdicção episcopal, e não o tinham feito tanto na qualidade de bispos, como de superintendentes. Os bispos tinham assento no parlamento escocez, e os seus deveres principaes eram administrar as receitas da cathedral e desempenhar as funcções judiciaes que eram da competencia dos bispos n’outro tempo, anteriormente á Reforma. Esta organização episcopal vivia lado a lado com a activa e aggressiva constituição presbyteriana da Egreja. O estado dos negocios ainda mais anomalo se tornava com o facto de ainda viverem, e exercerem a sua fiscalização, tres dos antigos superintendentes; e os districtos dos outros superintendentes eram governados por commissarios provisorios nomeados pela Assembléa, que podia demittil-os quando entendesse. O fim que a Egreja tinha em vista com o conflicto que durou desde 1574 até 1638 era acabar inteiramente com aquillo a que chamava a inutil e nociva organização episcopal, que não tinha ligação alguma com a obra espiritual da Egreja, e substituir os superintendentes e commissarios por presbyteros, unindo assim a Egreja n’um todo harmonico. O fim que a côrte tinha em vista era conservar o velho systema episcopal, e, mediante elle, ir gradualmente dividindo a Egreja em fragmentos, cada um d’elles governado por um bispo que só era responsavel para com o parlamento; e, no fim de tudo, restabelecer o episcopado no velho sentido da palavra, e derribar por completo a constituição presbyteriana. O anno de 1638 foi o do triumpho da Egreja, mas a historia completa d’esta lucta ultrapassa os limites da presente obra. III PARTE A REFORMA ANGLICANA CAPITULOS: I—A EGREJA DE INGLATERRA DURANTE O REINADO DE HENRIQUE VIII. II—A REFORMA SOB EDUARDO VI, E A REACÇÃO SOB MARIA. III—A REFORMA SOB ISABEL. CAPITULO I A EGREJA DE INGLATERRA DURANTE O REINADO DE HENRIQUE VIII O caracter excepcional do principio da Reforma ingleza, pag. 157.—Antecipações da Reforma em Inglaterra, pag. 158.—O estado ecclesiastico de Inglaterra no principio da Reforma, pag. 159.—As relações de Inglaterra com o pontificado, pag. 160.—As antigas relações de Henrique VIII com o pontificado, pag. 161.—Henrique muda de opinião, pag. 163.—Henrique VIII, Francisco I, Carlos V, e a rivalidade que havia entre elles, pag. 164.—A submissão do clero, pag. 165.—O progresso da separação de Roma, pag. 166.—Separação de Roma e Reforma: duas coisas differentes, pag. 168.—Execução da sir Thomaz More, pag. 169.—Suppressão dos conventos e confiscação das propriedades da Egreja, pag. 170.—_Os Dez Artigos_, pag. 171.—_O Estatuto Sanguinario_, pag. 173.—A Egreja de Inglaterra em 1547, pag. 173. =O caracter excepcional do Principio da Reforma inglesa.=—A Egreja e o povo inglez romperam com o systema ecclesiastico medieval em circumstancias tão excepcionaes que é impossivel considerar esse rompimento como fazendo parte da Reforma, ou como tendo muita coisa em commum com os movimentos contemporaneos na Allemanha e na França. Emquanto durou o reinado de Henrique VIII, a Egreja de Inglaterra, que se havia separado do papa, pouco ou nada tinha de commum com a Reforma. O que durante aquelle reinado se fez foi simplesmente demolir a Egreja da edade media. A verdadeira Reforma começou no reinado de Eduardo VI, e a sua adopção formal teve logar no de Isabel. Henrique VIII destruiu a supremacia do papa, tanto espiritual como temporal; derrubou a grade ecclesiastica que unia a Egreja de Inglaterra á grande Egreja Occidental governada pelo bispo de Roma, mas não poz coisa alguma duradoura em seu logar. O seu fim era estabelecer um papado real, tão despotico e ainda mas secular do que aquelle que elle estava destruindo, sobre as minas da jurisdicção do bispo de Roma. A Egreja que elle construiu segundo o seu modelo não durou mais do que a vida d’elle; mas a sua obra durou o bastante para dar á Reforma da Egreja de Inglaterra, quando ella mais tarde se tornou um facto, aquelle caracter particular que a distinguiu dos movimentos do mesmo genero occorridos n’outros paizes. O objecto de Henrique era modificar de tal modo as condições ecclesiasticas da Inglaterra que o rei occupasse o logar do papa, e ficasse governando, não só temporal como espiritualmente, de modo que, mediante a Egreja, tivesse sobre os seus subditos um dominio absoluto. Todas as reformas de doutrina, de culto e de costumes eram tão abominaveis para Henrique como para o bispo de Roma. =Antecipações da Reforma em Inglaterra.=—Os historiadores ecclesiasticos fazem, geralmente, datar os principios da Reforma do tempo de João Wycliffe, o qual, no seculo quatorze, era, por assim dizer, a bocca da Inglaterra, revoltando-se contra a supremacia espiritual e temporal que o papa tinha no reino; mas é muito para duvidar que a sua influencia continuasse a ser exercida sobre o povo inglez até ao seculo dezeseis, e por tal fórma que a ella se devam attribuir os desejos de Reforma que enchiam os corações de muitas pessoas de bons sentimentos religiosos. Como Francisco de Assis e outros reformadores e revivificadores da Edade Media, Wycliffe tinha abraçado apaixonadamente a idéa de que os beneficios da salvação só podem ser aproveitados por aquelles que imitam Christo, e que para imitar Jesus Christo torna-se indispensavel viver na pobreza como Elle. Declarou, portanto, guerra aberta ao bem estipendiado clero da opulenta Egreja de Inglaterra, e prégava que a Egreja, para ser realmente de Christo, devia ser, pobre. Dizia que o Estado não faria mais do que beneficiar a Egreja tirando-lhe a riqueza, pois que era esta um obstaculo a que ella se parecesse com o seu Mestre. Em conformidade com estas idéas, organisou um corpo de prégadores ambulantes, denominados prégadores pobres, os quaes, tendo, a muitos respeitos, parecenças com os evangelistas do movimento wesleyanno, andavam por toda a Inglaterra, proclamando a doutrina da humildade. Era um fervoroso admirador dos grandes juristas medievaes, taes como Guilherme de Ockham, o querido mestre de Luthero, Marsillio de Padua, e Pedro Dubois de Paris. Elles haviam proclamado, n’uma epoca muito anterior, que o Estado não era outra coisa senão o povo; e Wycliffe, seguindo-lhes o exemplo, insistia em que a Egreja não era outra coisa senão o povo. Ora isto atacava o systema da Egreja medieval, que se apoiava na noção de que a verdadeira Egreja era o clero, e de que o povo só fazia parte d’ella quando se punha em contacto com os clerigos, que eram depositarios dos sacramentos. Foi por esse motivo que elle traduziu a Biblia, que era o Livro da Egreja, e, portanto, do povo christão, e não sómente do clero. As idéas da Wycliffe foram avidamente adoptadas por uma grande parte da população ingleza, e os seus discipulos, os lollardos, constituiram, por algum tempo, uma fortissima aggremiação. O lollardismo foi indubitavelmente uma preparação para a Reforma, e os homens biblicos, como lhes chamavam, teriam exercido uma grande influencia sobre o povo, no sentido de o predisporem para uma revivificação da religião espiritual se tivessem existido na epoca em que se operou o movimento reformador. Não se pode, porém, provar que elles communicassem com essa geração, e não ha indicio algum de que nos reinados de Henrique VII e Henrique VIII estivesse desenvolvido o gosto pela leitura da Biblia ou houvesse uma corrente de sympathia pelos prégadores pobres. O povo inglez, tomado na sua totalidade, parece não se ter inclinado para a Reforma antes do tempo de Isabel. =O estado ecclesiastico da Inglaterra no principio da Reforma.=—Quando começou na Allemanha o movimento da Reforma, houve, sem duvida, muitos inglezes que se sentiram attraidos para o reformador saxonio, e que desejaram ver introduzido na Egreja um credo mais simples e mais em harmonia com a Palavra de Deus, e uma fórma de culto como a que era usada nos tempos apostolicos; mas a maioria não partilhava essas idéas. Havia, certamente, muitissimas pessoas que desejariam ver modificados os costumes dos clerigos, e especialmente o caracter moral dos frades, e que ficariam satisfeitas se as propriedades da Egreja fossem sujeitas a impostos e os grandes rendimentos dos bispados e das abbadias soffressem alguma diminuição. E eram em numero sempre crescente as que se sentiam desgostosas com a ignorancia do clero, e que, por motivos politicos ou sociaes, desejavam ver cerceada a influencia do bispo de Roma. Não lhes agradava a sua interferencia nas questões politicas, e indignava-os a saida de grossas quantias para fóra do reino. Não é provavel que o caracter moral do clero romano fosse peior em Inglaterra do que em qualquer outro paiz, mas o que é verdade é que os padres, com a sua conducta, desacreditavam a Egreja. O clero era de uma ignorancia crassa, e havia, talvez, em Inglaterra menos conhecimento das Escripturas do que na França ou na Allemanha, pois que, desde a epoca do lollardismo, a leitura da Biblia era considerada um acto criminoso. A Biblia era um livro desconhecido para os padres, e Erasmo conta que viu, preso por uma corrente a uma coluna da cathedral de Canterbury um Evangelho de Nicodemos que era lido como fazendo parte da Escriptura canonica. O alto clero pouco tinha que fazer na Egreja, e occupava-se em dirigir os negocios do Estado, ou em presidir ás audiencias nos tribunaes de justiça. O arcebispo de Canterbury era Lord Chanceller, o bispo de Winchester director geral da Thesouraria, o bispo de Durham secretario de Estado, e o bispo de Londres guarda-mór dos arquivos. Os bispos de Bath, Hereford, Llandaff e Worcester nem sequer residiam no reino. Dadas estas circunstancias, não é para estranhar que aquelles que amavam sinceramente a instrucção se sentissem indignados perante a ignorancia do clero, e procurassem abrir os olhos, não só a estes como ao povo em geral; e que os patriotas inglezes, lembrando-se das antigas tradições de um paiz que durante seculos havia mantido uma attitude altiva e reservada para com as pretensões da Curia Romana, tivessem immensa vontade de annular o poder do papa em Inglaterra. Como que exteriorisando o desejo preponderante, surgiu um grupo de mancebos instruidos, capitaneados por Colet, deão de S. Paulo, e Thomaz More, cujo intuito era purificar a Egreja, o povo e o clero, e incitar a Egreja nacional de Inglaterra a resistir ás usurpações do bispo de Roma. =As relações de Inglaterra com o pontificado.=—Os bispos de Roma, na Edade Media, reivindicavam a supremacia, tanto espiritual como temporal, e o povo inglez havia resistido, por mais de uma vez, ás suas reivindicações. Os papas, desde o tempo de Innocencio III, sustentavam que todos os reis e principes eram seus vassallos, tanto pelo que dizia respeito ás coisas sagradas como aos negocios civis. Este direito havia sido imposto no reinado de João, que pagara tributo a Roma em reconhecimento da supremacia papal. Quando, porém, foi exigido esse tributo aos sucessores de João, elles, indignados, recusaram pagal-o. E a Inglaterra, sem deixar de pertencer á Egreja Catholica medieval, havia repudiado o direito do papa a intervir nas questões nacionaes. Rei algum inglez, excepto João, se considerou vassallo do papa. Não era uma coisa nova em Inglaterra, o não reconhecer a supremacia do papa nos negocios temporaes. Os papas tinham, desde o principio da Edade Media, exigido que os reputassem arbitros supremos em todos os negocios espirituaes, e, por consequencia, a Egreja ingleza devia estar sujeita ao seu dominio absoluto. Estas reivindicações apresentavam-se, na pratica, debaixo das seguintes fórmas: Os papas queriam que lhes fosse reconhecida a decisão final em todas as nomeações ecclesiasticas; isto é, nenhum bispo, ou abbade, ou outro qualquer dignitario da Egreja podia ser collocado n’este ou n’aquelle posto sem a approvação do papa em ultima instancia, e esta sua supremacia queriam que lhes fosse reconhecida de uma fórma prática mediante o pagamento do primeiro anno do estipendio que correspondia a cada oficio ecclesiastico. Queriam ter a decisão final em todas as questões que se levantassem no seio da Egreja ingleza. E isto significava, praticamente, que todos os clerigos, bispos, abbades, simples padres e frades só podiam ser julgados pelos tribunaes ecclesiasticos, e que o accusador ou o defensor tinha sempre o direito de appellar dos tribunaes inglezes para o tribunal pontificio. Reivindicavam tambem que as leis canonicas, isto é, as leis da Egreja promulgadas pelos concilios e pelos papas, fossem reconhecidas em Inglaterra e tivessem a mesma força que as leis ordinarias. A supremacia espiritual do papa tinha sido repetidas vezes repellida pelo povo inglez. Os reis de Inglaterra tinham declarado e tornado a declarar que em caso algum se poderia appellar dos tribunaes inglezes para a Curia Romana. Estas declarações tinham tomado a fórma de decretos, e no reinado de Ricardo II ficaram englobadas no famoso codigo de _Proemunire_. Segundo este codigo, ou estatuto, como lhe chamavam, qualquer appellação para um tribunal de justiça estrangeiro, romano ou de outra qualquer nacionalidade, era um crime a que correspondia um castigo severo. Sustentava, de uma maneira peremptoria, que o rei era o arbitro supremo em todas as questões civis ou ecclesiasticas, e tornava punivel qualquer appellação de sentenças proferidas nos tribunaes civis para juizos ecclesiasticos, quer da Inglaterra quer da Italia. Além dos protestos do rei e do parlamento, reunidos n’este estatuto, o povo, n’uma grande occasião pelo menos, negou solemnemente a supremacia do papa, e asseverou a independencia da Egreja ingleza. A _Magna Charta_ foi feita com o intuito de restringir o poder pontificio, assim como de reprimir o do rei; e a sua primeira clausula reivindicou a independencia da Egreja de Inglaterra—_Quod ecclesia anglicana libera sit et habeat omnia jura sua integra et libertates suas illaesas._ E Egreja e o povo inglez haviam-se acostumado a protestar contra a interferencia papal, e os reformadores que tinham simplesmente em vista promover a instrucção do clero, e reprimir a auctoridade que o papa exercia na Inglaterra, podiam dizer, com exactidão historica, que não punham em pratica uma coisa nova. As aspirações d’esses reformadores podem ser apreciadas no romance politico escripto por um dos mais intelligentes d’entre elles,—a _Utopia_, de Thomaz More. Para esses homens a Reforma era apenas um movimento intellectual e politico. Não era uma revivificação religiosa. Podiam sympathizar com os concilios reformistas do secolo quinze, mas entre elles e Wittenberg ou Genebra havia poucos pontos de contacto. =As primitivas relações de Henrique VIII com o pontificado. Defensor da Supremacia papal.=—Estes reformadores do estudo e da camara do conselho saudaram com regozijo a subida de Henrique VIII ao throno de Inglaterra. Suppunha-se, exactamente como aconteceu com o seu contemporaneo, Francisco I de França, que o joven rei fosse um amigo da nova litteratura, e um soberano predisposto a extirpar abusos. A desillusão não se fez esperar. Logo de principio mostrou ser um dedicado defensor da supremacia papal. A sua posição era estranha, e necessita de uma explicação. Henrique VII, o primeiro rei da casa de Tudor, havia conquistado o throno de Inglaterra no campo de Bosworth, e conservava-o mediante uma precaria subemphyteuse. Anhelava por tornar mais firme o seu poder mediante uma alliança com um paiz estrangeiro, e, passando a Europa em revista, certificou-se de que Fernando de Hespanha era quem o poderia auxiliar melhor. Effectuou, portanto, com alguma dificuldade, o casamento de seu filho mais velho, Arthur, com Catharina de Aragão, uma das filhas de Fernando. Arthur morreu passado pouco tempo; e Henrique, desejando manter a todo o transe a alliança hespanhola, tratou com todo o afan de casar Catharina com o seu segundo filho, Henrique, que foi depois Henrique VIII. O papa concedeu uma dispensa, e o casamento realisou-se. Henrique VIII teve, pois, por mulher a viuva de seu irmão. Nunca se poude saber ao certo se Arthur e Catharina foram realmente casados. Se o casamento não passou de um contracto legal, não havia motivo para que a dispensa do papa não fosse bem acceite mesmo por aquelles que não viam com muito bons olhos a supremacia papal; se foi, porém, um casamento em toda a accepcão da palavra, ficou então demonstrado que o papa tinha auctoridade para conceder uma dispensa que ia de encontro as leis divinas de parentesco. Segundo a opinião geral, Arthur e Catharina viveram conjugalmente, de modo que Henrique casou realmente com a viuva de seu irmão, e assim a dispensa do papa só poderia ser concedida no caso de elle possuir aquelles supremos poderes que os ultramontanos lhe atribuem. A legalidade do casamento de Henrique e a legitimidade de sua filha Maria baseiava-se, portanto, na supremacia do papa. E não é para admirar que Henrique VIII, no principio do seu reinado, se conduzisse, no tocante a essa supremacia, mais em conformidade com a opinião dos ultramontanos do que com as tradições da corôa de Inglaterra. É que a validade do seu casamento, a legitimidade de seus filhos, e o direito que a estes assistia de lhe succederem no throno, dependiam, como já dissemos, da supremacia do papa. Quando Luthero atacou o papa, Henrique tomou ostensivamente a defeza do Bispo de Roma, e rei algum, depois de João, apoiou mais em absoluto as reivindicações do papa do que elle. Os seus interesses pessoaes, assim como os interesses de sua mulher e de seus filhos, estavam dependentes d’esse seu apoio. A Inglaterra, no principio do reinado de Henrique, estava positivamente avassallada á Sé de Roma. Henrique, posto que se sentisse inclinado, pela educação recebida, a adoptar as idéas de Colet, More e Erasmo, via-se obrigado, em vista da situação particular em que se encontrava, a manter-se n’uma attitude de irreconciliavel hostilidade, e o facto de ter reprovado os actos de Luthero conquistou-lhe o titulo de Defensor da Fé. =Henrique muda de opinião.=—Henrique nunca deixou de reconhecer a supremacia do papa em todos os assumptos, durante os primeiros dezoito annos do seu reinado. De um momento para o outro, porém, começou a pensar de differente modo, e podem-se apresentar bastantes razões para essa subita mudança de idéas. Parece que elle teve sempre duvidas ácerca da legitimidade do seu casamento com Catharina, e que essas duvidas se avolumaram á medida que ia perdendo a esperança de ter um filho varão que lhe succedesse, chegando a convencer-se de que esse facto representava um castigo divino por haver desposado a viuva de seu irmão. Durante todo esse tempo, comtudo, a alliança hespanhola, que fôra tratada primeiramente com Fernando, e mais tarde com o neto d’este, o imperador Carlos V, havia sido de grande utilidade para Henrique e para a Inglaterra; e essa mesma aliança é que havia, na opinião do rei, de firmar o throno de sua filha, cuja legitimidade, declarada pelo papa, encontraria no imperador um inabalavel sustentaculo. Carlos V, porém, estava absorvido nos seus planos de anniquilar a Reforma, e estabelecer o imperio medieval, e o papa só pensava em conquistar para si uma posição independente, em se tornar o primeiro dos principes italianos, revestido de todo o poder secular, de modo que nenhum d’elles correspondia á expectativa de Henrique. Este deixou de ter confiança na fidelidade d’elles á sua casa, quanto á sucessão do throno. Encontrava-se n’uma situação embaraçosa, e, como meio mais rapido de sair das suas difficuldades, resolveu pedir ao papa que o divorciasse de Catharina de Aragão. Cessariam d’esse modo os seus escrupulos de consciencia por haver casado com a cunhada; poderia contrair novo casamento, a alimentar a esperança de ter um filho macho, seu legitimo herdeiro. Entendeu-se, pois, com o cardeal Wolsey, seu ministro, e dirigiu ao papa um pedido de divorcio. N’aquela ocasião, porém, o papa queria evitar qualquer desintelligencia com Carlos V, sobrinho de Catharina, e recusou dar o seu consentimento para o divorcio, sendo então que Henrique, homem muito exaltado, e a quem os obstaculos não faziam recuar, decidiu divorciar-se não obtante a recusa do papa. Todos os interesses pessoaes que até certo tempo levaram o rei a apoiar a supremacia papal se ligavam agora para que elle fizesse exactamente o contrario. Se o papa tivesse sanccionado o divorcio, não teria havido, provavelmente, ruptura com Roma, porque o rei continuaria a ter interesse em que se mantivesse a supremacia papal; as circumstancias, porém, aconselhavam-n’o a enveredar por outro caminho, e foi o que elle fez. Thomaz Cromwell alvitrou que se consultassem as universidades da Europa sobre a legalidade do casamento de Henrique e este acceitou o alvitre com grande alvoroço. Tratou-se, por conseguinte, de pôr esta idéa em execução, entregando-se a eminentes vultos, a verdadeiras summidades, o decidirem a questão segundo as leis canonicas, tendo ao mesmo tempo na devida consideração a sensivel consciencia do rei. Apoz algum tempo, e tendo-se dispendido com isso uma fabulosa quantia, as universidades declararam, por uma muito pequena maioria, que o casamento de Henrique com Catharina não era valido, concluindo-se d’esta decisão que Henrique não tinha herdeiro algum legitimo. Animado com este veridictum, resolveu pôr em pratica qualquer das duas coisas seguintes: alarmar o papa, obrigando-o assim o conceder o divorcio, ou repudiar a sua auctoridade suprema. Foram muitos os motivos secundarios que contribuiram para que elle tomasse esta ultima deliberação. Henrique, que gostava de viver com muita ostentação, tinha desbaratado, havia muito, as riquezas que o pae amontoara, e era-lhe impossivel augmentar os impostos. Os cofres do Estado estavam despejados, e para os encher bastaria o espolio dos conventos e mosteiros. Isto constituiu uma das razões, mas havia uma outra que appellava mais fortemente para a sua vaidade. =Henrique VIII, Francisco I, Carlos V, e a rivalidade que havia entre elles.=—As tres grandes potencias europêas no tempo da Reforma eram Hespanha, França e Inglaterra, e não podia deixar de haver rivalidade entre os respectivos monarcas. O rei de Hespanha, que era o mais poderoso dos tres, era tambem imperador da Allemanha, e todo o seu empenho consistia em restabelecer no imperio o esplendor que este tivera na Edade Media. Segundo as antigas noções medievaes, não havia mais do que uma christandade, o imperador era supremo e soberano, e todos os outros reis estavam sob a sua dependencia. Se Carlos fosse bem succedido nos seus esforços, Francisco e Henrique passavam a occupar uma posição inferior á que tinham, e, portanto, convinha-lhes trabalhar para que o plano de restauração não vingasse. Uma christandade medieval implicava uma egreja indivisa, centralizada no papa, o bispo de Roma. A politica dos reis da França e de Inglaterra insistia em obstar a essa centralização ecclesiastica, e fazer com que as egrejas das suas respectivas nações se tornassem o mais independentes de Roma que fosse possivel. Francisco havia conseguido isso quanto á França, e de um modo que contribuiu bastante para que o seu prestigio augmentasse, e o seu poder se consolidasse dentro do proprio reino. O papa, mediante a Concordata de 1516, havia, sob a condição de que os _annates_ seriam pagos com regularidade, e de que lhe seriam feitas certas e determinadas concessões, investido praticamente o rei de França na chefatura da egreja franceza, dando-lhe liberdade para prover como entendesse os differentes cargos ecclesiasticos. Henrique, rival de Francisco, era tambem seu imitador, e havia de lhe ser difficil deixar de ter inveja das regalias que o papa lhe tinha concedido. O que Francisco recebeu pela Concordata de 1516, deu o parlamento inglez a Henrique quando o proclamou chefe supremo, sobre a terra, da egreja de Inglaterra. De modo que em França a supremacia do rei sobre a egreja fez com que fossem toleradas as reivindicações papaes, ao passo que em Inglaterra promoveu a revolta contra Roma. A França, liberta do dominio papal por livre vontade do proprio papa, podia ficar por ahi, mantendo, a todos os outros respeitos, as velhas tradições da egreja. A Inglaterra, que alcançara a sua independencia contra a vontade do papa, e por meio de um acto de rebellião contra a sua auctoridade, tinha de ir mais longe; para conservar a posição que tomara era-lhe necessario afastar-se cada vez mais de Roma. Sucedeu, assim, que a Reforma em Inglaterra foi o avanço quasi involuntario de uma nação revoltada contra Roma, pois que a sua resistencia á curia romana foi, em primeiro logar, o meio de que um imperioso monarca se serviu para conseguir o seu engrandecimento pessoal, e, em segundo logar, o meio de que um povo se serviu para conseguir a sua independencia. A França, a despeito dos huguenotes, conservou-se catholica romana; a Inglaterra, a despeito de Henrique VIII, tornou-se uma nação protestante. =A submissão do clero.=—Henrique depressa se certificou de que não era possivel constranger o papa, mediante o medo, a conceder-lhes o divorcio, mas resolveu obrigar o clero inglez a conformar-se pelo medo com as suas deliberações. O cardeal Wolsey foi nomeado nuncio do papa em Inglaterra, e todos os bispos e mais clerigos o reconheceram como tal. Ora em 1531 o rei acusou-o abruptamente de haver transgredido a lei do _Proemunire_ pelo facto de acceitar aquelle cargo e cumprir, ainda que só apparentemente, os deveres que lhe eram inherentes, e accusou egualmente todos os clerigos de Inglaterra de serem cumplices d’esse crime pelo facto de o aceitarem na qualidade de embaixador do papa. Declarou, outrosim, que tanto Wolsey como todos os clerigos da egreja ingleza haviam incorrido, em virtude d’esse delicto, na perda de todos os bens ecclesiasticos de que estavam de posse. O clero ficou seriamente alarmado, e, para evitar uma catastrophe maior, sujeitou-se a pagar uma multa de 118:000 libras e a assignar, ainda que de má vontade, uma declaração de que o rei era «o unico protector, o unico senhor supremo, e, _até onde é permittido pela lei de Christo_, o supremo cabeça da egreja e do clero». A ambiguidade que se nota n’este reconhecimento foi intencional. Era um subterfugio para as consciencias fracas, mas o rei ficou satisfeito com a phrase, certo como estava de que poderia obrigar o clero a proceder segundo a interpretação que elle proprio lhe dava. Tratou sem demora de mostrar como era por ele compreendido o sentido pratico de similhante declaração, desdobrando-o em tres artigos, que os clerigos tiveram tambem de assignar. Declaravam que regulamento ou preceito algum ecclesiastico seria de ali em deante promulgado ou publicado pelo clero sem previo consentimento do rei; que approvavam a nomeação de uma commissão de trinta e duas pessoas para rever os antigos canones da egreja e cortar todos aqueles que fossem prejudicaes á autoridade do rei; e, finalmente que os canones ecclesiasticos só eram validos depois de ratificados com auctorização do rei. Estas proposições foram submetidas á Convocação, ou Assembléa Geral da Egreja de Inglaterra, e, depois de alguma hesitação, o clero, reunido, acceitou-as. A Convocação foi um pouco mais longe do que o rei, pois que pediu para que o clero inglez não pagasse mais os _annates_ á sé de Roma. Esta decisão tomada pela Convocação, de que a egreja de Inglaterra não podia fazer leis para sua direcção ou governo sem a sancção ou ratificação do rei, tem sido chamada a _Submissão do Clero_. Assim no ano de 1532 a egreja de Inglaterra, por ordem do rei e do parlamento, renunciava á sua obediencia a Roma. Esta renuncia ao governo papal incluia (1) o reconhecimento da supremacia real; (2) submissão á corôa pela cedencia do direito de fazer leis; e (3) a recusa ao papa das receitas que lhe haviam sido pagas durante gerações. A egreja conservava as mesmas doutrinas, governo e culto, consistindo apenas a differença em o rei tomar o logar que o papa tinha ocupado. O clero tinha alimentado a esperança de que lhe fosse permittido reter os _annates_ em seu poder, mas o rei mostrou que estava resolvido a que a supremacia real fosse tão genuina como a antiga supremacia do bispo de Roma, e insistiu em que o imposto pontificio fosse pago na thesouraria real. =O progresso da Separação de Roma.—O parlamento inglez, em 1529-1536.=—Durante os primeiros annos do reinado de Henrique VIII, quando era do interesse do rei estar bem com o papa e com o rei de Hespanha, todas as queixas contra a egreja haviam sido reprimidas. Agora, porém, que Henrique queria aterrorisar o papa para o obrigar a conceder-lhe o divorcio, as queixas eram animadas. Henrique servia-se do parlamento como Carlos V se podia ter servido da Dieta allemã. Todas as nações tinham accusações a apresentar contra a egreja. Os allemães publicaram as suas _Cem Afrontas_; o parlamento inglez, convocado para se reunir em 1529, tinha tambem queixas a fazer ácerca da libertação do clero da jurisdicção dos tribunaes judiciaes da nação, ácerca da auctoridade absoluta exercida pelos tribunaes ecclesiasticos sobre os leigos em pleiteados casos de casamento, testamentos, successão, calumnia, etc., ácerca das avarezas do clero e do elevado custo dos enterros e dos baptismos, e assim successivamente. O parlamento formulou estas queixas, e com isso alarmou, e não pouco, o clero, tornando-o mais submisso ás imperiosas ordens do rei. Em Janeiro de 1532 Henrique VIII desposou Anna Boleyn, provocando, d’esse modo, pessoalmente o papa. O seu casamento com Catharina de Aragão foi declarado nullo e sem effeito pelo arcebispo de Canterbury, que fallou em nome da Egreja de Inglaterra, e por deliberação do parlamento. O rei, a nação, e, um pouco constrangidamente, a egreja uniram-se, pois, para desafiar collectivamente o papa, e para se revoltarem contra o imperio ecclesiastico da Edade Media. O parlamento secundou este desafio approvando leis que tendiam a uma separação completa, e que, pelo lado politico, eram inoffensivas para os subditos inglezes. Sete dos seus decretos teem uma importancia especial. (1) Em 1533 o parlamento prohibiu ao clero o pagar os _annates_, ou o vencimento do primeiro anno, quando se entrava na posse de qualquer beneficio. Estas «primicias» tinham sido sempre consideradas uma homenagem devida á supremacia do papa. (2) Na mesma sessão o parlamento aboliu as appellações para Roma. O _Estatuto para Repressão das Appellações_ declarava que nenhum subdito inglez podia appellar de um tribunal da sua nação para outro qualquer, e que similhante appellação constituia uma violação do Estatuto de _Proemunire_, ficando sujeita ás devidas consequencias. Todas as questões que tivessem de ser submettidas ao juizo da Egreja deviam ser entregues aos tribunaes ecclesiasticos do reino. Continuavam a ser permittidas as appellações de um arcediago para um bispo, e de um bispo para um arcebispo; mas aqui parava o direito de appellar, e o tribunal do arcebispo era o supremo tribunal de appellação. Só o rei podia appellar d’este supremo tribunal ecclesiastico, e podia levar a sua appellação para a Convocação, mas não fóra do reino. (3) Em 1534 a _Submissão do Clero_ foi ratificada pelo parlamento. Ficou declarado que era necessario o consentimento do rei para todas as leis ecclesiasticas, e, para dar a isto um valor pratico, estabeleceu-se que em todos os pleitos havia o direito de appellar do supremo tribunal espiritual, que era o do arcebispo, para o rei. (4) O parlamento declarou, outrosim, que o papa não tinha direito de intervir na eleição dos bispos, e que todo e qualquer poder que se attribuia ao papa pertencia realmente ao rei. Esse direito era definido de tal fórma que se podesse dar todo o direito de nomeação ao rei, ao passo que se preservava a sombra do antigo uso ecclesiastico. Quando uma sé vagava, assistia ao rei o direito de auctorizar o deão e o capitulo a eleger para o cargo vago qualquer pessoa mencionada na carta de licença. As dispensações papaes eram tambem declaradas illegaes, e o poder dispensativo que n’outro tempo, segundo era por todos reconhecido, pertencia ao papa, ficava residindo agora na Egreja de Inglaterra, e o seu exercicio pertencia aos arcebispos de Canterbury e de York. (5) Para mostrar, comtudo, que todos estes Actos não tinham em vista reforma alguma, mas sómente uma separação politica da Egreja de Inglaterra quanto ao papado, o parlamento promulgou uma lei sobre a heresia, em que se declarava que os herejes seriam queimados como antigamente, em obediencia ao velho decreto _de combatendo hereticos_, e o rei, como cabeça da Egreja, recebia o encargo de a purificar de falsas doutrinas. Declarava-se, porém, que fallar mal do papa não constituia heresia. (6) Por ultimo, saiu d’este notavel parlamento o _Acto de Successão_ e o _Acto de Traição_. O primeiro declarava que a princeza Maria, filha de Catharina de Aragão, era illegitima, e transferia o direito de successão para a princesa Isabel, filha de Anna Boleyn. O _Acto de Traição_ punia com a morte todos aquelles que recusassem acceitar o _Acto de Successão_ ou reconhecer o novo titulo e as novas prerogativas do rei. =Separação de Roma e Reforma: duas coisas differentes.=—Em todos os Actos d’este parlamento, e em todas as decisões de uma submissa Convocação, nada houve que não fosse puramente politico. A Inglaterra não se havia tornado protestante ou lutherana, e Egreja reformada em Inglaterra era coisa que não existia. A Inglaterra havia-se, tão sómente, desligado de aquella alliança que, sob a superintendencia do imperador e do papa, realisava a idéa medieval de um systema de governação, tanto civil como ecclesiastico. O que torna importantissimas aquellas deliberações do parlamento é o facto de ter sido a Inglaterra a primeira nação que rompeu com o medievalismo e deixou de reconhecer o velho imperio ecclesiastico da Edade Media. Os herejes, isto é, aquelles que haviam acceitado as doutrinas de Luthero, ou que, entregando-se ao estudo da Biblia, tinham chegado ao conhecimento de um mais puro christianismo, eram perseguidos e mortos, usando-se com elles da mesma crueldade, do mesmo espirito de vingança, como quando a Inglaterra era uma escrava obediente do papa. Diz-se que Wolsey, no seu leito de morte, supplicou ao rei que destruisse todos os signaes de lutheranismo; e, a despeito da grande tolerancia de Thomaz More, os herejes eram procurados e castigados. Tindal, que tinha traduzido em inglez o Novo Testamento de Erasmo, foi caçado de logar em logar, como se fosse um animal feroz. Todos os que se atrevessem a fallar contra a missa, a transubstanciação, o culto dos santos e a efficacia das boas obras corriam o risco de ser presos e queimados como herejes. Os Actos do Parlamento não haviam promovido a liberdade de consciencia, tinham simplesmente dado logar a novos ensejos para perseguir e matar. Para ajuntar aos antigos crimes theologicos, appareceu um outro. Quem se recusasse a prestar o juramento de supremacia, quem se atrevesse a dizer que Catharina de Aragão era a esposa legitima do rei, e que a princeza Maria era a herdeira do throno, estava sujeito a ser preso, processado e executado. A Inglaterra encontrava-se n’um estado anormal, n’um estado de grande agitação, e os homens conscienciosos tudo soffriam por causa da consciencia. =A execução de Tomaz More.=—Thomaz More era o chanceller quando o parlamento, reunido em 1529, separou a nação, mediante successivos Actos do imperio ecclesiastico de Roma. Tinha sido na sua mocidade um distincto estudante, e havia-se entregue com amor aos «estudos modernos» de latim, grego e hebraico quando, em Oxford, assistira ás prelecções de Tinacre, um dos primeiros humanistas inglezes, que se havia educado em Italia para o seu trabalho escolastico em Inglaterra. Dedicara-se á carreira da jurisprudencia, foi magistrado em Londres, e tornou-se notoria a sua amizade ao deão Colet e a Erasmo. O seu livro _Utopias_ dá testemunho de que elle havia adoptado muitas das opiniões de Marcello de Padua e de outros juristas liberaes do fim da Edade Media. Elle opinava que tanto a Egreja como o Estado existiam para beneficio do povo, e todo o seu anhelo era uma reforma de costumes na Egreja. Investido no cargo de chanceller, toda a gente notou a brandura de que elle usava com os herejes; permaneceu, porém, ligado ás doutrinas da Egreja Catholica Romana, e abandonou algumas das suas primitivas opiniões em favor de mais estrictas idéas ácerca da origem divina da supremacia do papa. Reprovou, portanto, todo o procedimento da côrte e do parlamento inglez depois da queda de Wolsey. Avisou o rei de que não podia ser parte no divorcio de Catharina de Aragão. Não quiz assistir ao casamento e coroação de Anna Boleyn, e, ao ser ameaçado com as consequencias, disse ao rei que as ameaças eram para as creanças e não para elle. Henrique tinha uma forte affeição pelo seu chanceller; mas coisa alguma poderia augmentar mais a duvida com respeito á validade do divorcio, do novo casamento e da successão ao throno derivada d’este, do que a recusa da maior auctoridade juridica da nação de ver em Catharina de Aragão uma mulher que não era a esposa legitima de Henrique VIII. More foi, portanto, obrigado a prestar juramento de fidelidade á nova rainha, reconhecendo Anna Boleyn como a esposa legitima de Henrique VIII, e a confirmar a legalidade do _Acto de Successão_. N’esta conjunctura, elle tinha de obedecer á consciencia ou salvar a vida, e, com uma grande serenidade de espirito, preferiu obedecer á consciencia. A mulher foi ter com elle á prisão, rogando-lhe que se submettesse á ordem do rei. «Senhora Alice», retorquiu elle, com toda a ternura, «esta casa não estará tão perto do céu como a nossa?» A filha, Margarida Roper, que era afamada pela sua erudição, pela sua affabilidade e pela sua formosura, foi tambem vêl-o repetidas vezes, e as suas visitas como que lhe fortaleceram a serena coragem. Morreu em Julho de 1535. Erasmo soube da morte d’elle quando tinha entre mãos a sua _Pureza da Egreja_, a que ajuntou um prefacio que é quasi uma biographia do seu velho amigo, a que attribue uma alma mais pura do que a neve. O assassinio judicial de Thomaz More e do bispo Fisher, seu companheiro no soffrimento, veiu demonstrar o estado cahotico em que Henrique VIII havia feito cair a Inglaterra, pois que, ao passo que eram queimados os homens accusados de lutheranismo, executavam-se aquelles que mantinham a auctoridade do papa no que dizia respeito aos costumes e á doutrina. =A suppressão dos mosteiros e a confiscação dos bens da Egreja.=—Henrique VIII tinha sido sempre um grande gastador. Tudo quanto o pae lhe deixara havia desapparecido logo no principio do seu reinado, em virtude da guerra com a França. O rei e a côrte tinham grande necessidade de dinheiro. Thomaz Cromwell lembrou então que este podia ser obtido mediante a suppressão de alguns dos mosteiros. Do clero ninguem foi mais justamente atacado do que os monges, durante o periodo da Reforma. A sua preguiça, as suas riquezas, a sua cupidez e a sua má vida eram notorias em toda a Europa. Os auctores populares haviam composto satyras a seu respeito, e graves estadistas tinham chamado a attenção do papa para uma reforma das varias ordens. Gromwell insistiu n’uma syndicancia aos mosteiros, com o fim de se ficar sabendo se as queixas formuladas tinham fundamento. Foram visitadas tres d’essas casas, e constatou-se que as vidas dos frades e das freiras estavam longe de ser o que deviam ser, que a propriedade monacal havia sido pessimamente administrada, e que muitos dos religiosos, de ambos os sexos, desejavam desligar-se dos votos. O parlamento approvou uma proposta de lei para que fossem supprimidos os conventos menos importantes, e, passado algum tempo, eram encerrados todos os estabelecimentos monacaes. Os respectivos bens foram confiscados em proveito do rei. A grande somma de dinheiro que se obteve por esta fórma podia, nas mãos de um monarca astuto e economico, ter constituido um vasto capital cujo rendimento habilitaria o rei a prescindir de impostos, e, por consequencia, a prescindir de parlamento, o que redundaria na ruina, em Inglaterra, de todas as liberdades. Henrique era, por indole, um despota, mas não tinha em si a força de vontade necessaria para pôr em execução aquillo que lhe vinha á idéa. A sua ambição principal era poder dispôr de muito dinheiro, e as propriedades confiscadas aos frades foram postas em praça a vendidas pelo maior preço que foi possivel obter. O resultado d’isso foi augmentar consideravelmente o numero dos proprietarios em Inglaterra. Henrique dissipou em poucos annos todo o dinheiro que d’aquelle fórma lhe fôra parar ás mãos, e ficou tão pobre e tão necessitado do auxilio dos seus subditos como anteriormente. =Os dez artigos.=—Cranmer, o arcebispo de Canterbury, que havia sido um instrumento facil nas mãos do rei, quando este andou tratando de se assenhorear das liberdades da Egreja e de uma grande parte das suas riquezas, tinha uma secreta predilecção pelas doutrinas reformadas de Luthero e de Zwinglio. Thomaz Cromwell, que desde o fallecimento de Wolsey exercia o cargo de conselheiro politico do rei, era tambem um admirador dos homens da Reforma. Ambos tinham o desejo, depois da Inglaterra se ter separado politicamente do papado, e de se ter effectuado a suppressão dos mosteiros, de introduzir uma reforma de doutrina e de culto, e de equiparar a Egreja de Inglaterra ás egrejas reformadas da Allemanha e da Suissa. O schema politico de Cromwell consistia em collocar Henrique á frente de uma confederação protestante que podesse rivalisar com o imperio medieval de Carlos V. Isto sómente se poderia fazer, comtudo, se a Egreja da Inglaterra abraçasse as doutrinas da Reforma e animasse os homens que até ali tinham sido perseguidos como herejes. O rei desapprovou energicamente a proposta, mas por fim cedeu, e em 1536 foram publicados, com a approvação da Convocação, os _Dez Artigos_, que eram um breve formulario de doutrinas. Estes artigos asseveravam a auctoridade da Escriptura, dos tres grandes e antigos credos, e dos quatro concilios ecumenicos; affirmavam que o baptismo era necessario para a salvação; que a penitencia, a confissão e a absolvição eram egualmente coisas necessarias; que o corpo e sangue de Christo estavam substancial, real e corporalmente presentes no pão e vinho da Eucaristia; que a justificação tinha logar mediante a fé, junta com a caridade e com a obediencia; que nas egrejas era licito o uso das imagens; que se devia glorificar a Virgem e invocar os santos; que se devia conservar os varios ritos e dias santificados da Egreja medieval, fazendo-se uso dos paramentos, dos crucifixos e da agua benta; que existia o purgatorio; e que, finalmente, se devia fazer orações pelos defuntos. Estes Artigos, como se vê, não estavam em conformidade com a fé protestante. Alguns historiadores ecclesiasticos teem dito que elles foram muito judiciosamente collocados entre a doutrina dos reformadores mais pronunciadamente biblicos e as velhas superstições; mas teem sido mais bem descriptos como essencialmente «romanistas, com o papa atirado para a margem». Fuller diz que elles foram destinados para creancinhas «recentemente tiradas dos peitos de Roma.» Emquanto estes acontecimentos iam tendo logar, Catharina de Aragão morreu, em 1536, e o rei desembaraçou-se de Anna Boleyn, mandando-a decapitar sob a accusação de infidelidade. Sua rilha, a princeza Isabel, foi, pelo parlamento, declarada illegitima, e a successão tornou-se de novo incerta. O rei casou então com Jane Seymour, a cuja descendencia ficaram reservados os direitos á corôa. =A peregrinação da graça.=—As execuções de Thomaz More e do Bispo Fisher haviam desgostado muitissimos subditos do rei que eram affeiçoados a Roma, e estes, animando-se com a declaração da illegitimidade de Isabel e com a incerteza quanto á successão, promoveram rebelliões em Yorkshire e Lincolnshire. Os rebeldes contavam com o auxilio da Hespanha, e tinham tambem muita confiança no effeito que havia de produzir a bulla, que acabava de ser publicada, em que o papa excommungava Henrique VIII. Os seus projectos, porém, foram com facilidade mallogrados, e o nascimento de um filho de Jane Seymour, a quem o rei havia desposado depois da morte de Catharina de Aragão, deu ao rei a cubiçada successão legitima e fez cessar todos os sentimentos anarquicos entre o povo. Infelizmente, a rainha falleceu ao dar á luz o filho. Cromwell e Cranmer voltaram novamente com as suas idéas de uma união protestante. Cranmer, juntamente com uma commissão de prelados, redigiu, em 1537, o que se ficou chamando o _Livro do Bispo_, ou a _Instituição de um Christão_, e que continha uma exposição de theologia muito mais protestante do que os _Dez Artigos_. No anno seguinte Cranmer, que havia estado em correspondencia com os theologos de Wittenberg, organizou um outro credo chamado os _Treze Artigos_, e que era largamente baseado na Confissão de Augsburgo. O rei recusou sanccionar estes Artigos, e foi-se gradualmente afastando do plano de uma alliança protestante. Cromwell caiu no desagrado de seu amo em virtude da persistencia com que advogava esse plano, chegando a apresentar um projecto de casamento de Henrique com Anna de Cleves, com o fim de cimentar a alliança. Morreu no cadafalso, como havia succedido a More e a Fisher, e o rei foi-se tornando cada vez mais reaccionario. =O Estatuto Sanguinario, ou os Seis artigos.=—O primeiro indicio d’esse facto foi a publicação do _Livro do Rei_, ou a _Necessaria Doutrina e Erudição para todos os Christãos_. Em 1539, Henrique resolveu voltar á politica do primeiro periodo do seu reinado, e poz-se em communicação com Carlos V. A mudança na politica exterior do rei teve repercussão nos negocios internos. Foram promulgados os _Seis Artigos_, «para abolir a diversidade de opiniões», e foi revogoda a permissão de ler a Biblia traduzida por Tindal. Estes Artigos exigiam de todos os inglezes, sob pena de confiscação dos bens, e de morte, que cressem na transubstanciação, que negassem a necessidade dos leigos participarem do calix na communhão e que admittissem o celibato do clero, a obrigação dos votos de castidade e a necessidade das missas e da confissão auricular. As doutrinas das egrejas reformadas da Allemanha e da Suissa tinham feito algum progresso na Inglaterra, não obstante as perseguições, e haviam sido abraçadas por um grande numero de pessoas durante aquelles annos de tolerancia em que Cranmer e Cromwell dirigiram a politica do rei, e esta lei dos Seis Artigos deu logar a uma grande perseguição. O povo chamava-lhe o Estatuto Sanguinario e o Chicote das Seis Cordas. Deu principio a um reinado de terror, que só terminou com a morte do rei. Felizmente para a nação, esta não se fez esperar muito. =O estado da Egreja de Inglaterra em 1547.=—Henrique morreu em 1547, deixando tres filhos: Maria, filha de Catharina de Aragão, com 31 annos; Isabel, filha de Anna Boleyn, com 14; e Eduardo, filho de Jane Seymour, com 10. Maria e Isabel haviam sido declaradas illegitimas pelo parlamento. Eduardo succedeu a seu pae no throno. Henrique deixou atraz de si um caos, para sair do qual teve a nação de sustentar uma tremenda lucta. O rei, emquanto viveu, susteve com mão ferrea os romanistas extremos e o partido protestante, e manteve até ao fim o seu ideal, que era uma egreja catholica, desligada do papa. E conseguiu-o, pondo-se no logar outr’ora occupado pelo papa. Exercia sobre a Egreja uma auctoridade muito mais absoluta do que sobre o Estado. A posição era difficil de sustentar, e foi-o muito mais para os monarcas que succederam a Henrique, pois que as idéas reformistas iam-se propagando cada vez mais. Deixou tambem sem solução muitos problemas politicos. Os cofres publicos estavam vasios. A sua politica exterior foi um subterfugio, que collocou em grandes embaraços os seus successores. A venda dos bens da Egreja produziu uma mudança, tanto social como economica, que difficultou a vida da nação. O assumpto, porém, que exigia immediata resolução era: A Inglaterra devia abraçar a Reforma, ou voltar de novo para o romanismo? A Egreja não podia permanecer na situação em que Henrique a havia deixado. CAPITULO II A REFORMA NO TEMPO DE EDUARDO VI, E A REACÇÃO NO TEMPO DE MARIA Será adoptada a Reforma? pag. 175.—A visita real, o _Livro de Homilias_ e o _Livro de Oração Commum_, pag. 176.—A alliança com o protestantismo continental, pag. 178.—Os _Quarenta e Dois Artigos_, pag. 178.—Os principios do puritanismo, pag. 179.—A morte de Eduardo VI, pag. 181.—O estado da Inglaterra por occasião da acclamação de Maria, pag. 182.—A Hespanha necessitava do auxilio da Inglaterra, pag. 183.—Como Maria se firmou no throno, pag. 183.—A alliança hespanhola, pag. 184.—A reconciliação com Roma, pag. 184.—Porque não foi bem succedida a reacção papal? pag. 185.—As perseguições durante o reinado de Maria, pag. 186.—A questão dos bens de raiz da Egreja, pag. 186.—Os fructos do ensino no reinado de Eduardo, pag. 187.—A morte de Maria, pag. 187. =Será adoptada a Reforma?=—Quando Henrique morreu, succedeu-lhe seu filho, Eduardo VI, que era então um rapazito de dez annos. Pouco antes de morrer, Henrique fez testamento, em que deixou instituido um conselho de regencia, composto de dezeseis membros da nobreza, o qual entrou logo no exercicio das suas funcções, começando a governar. O referido conselho escolheu o conde de Hertford, que fazia parte d’elle, para o logar de protector do reino, recebendo n’essa occasião, em conformidade, segundo se diz, com o que estava estabelecido no testamento, o titulo de duque de Somerset. A questão mais grave que este conselho de regencia tinha de resolver era a questão religiosa. A Inglaterra não podia continuar no estado em que se encontrava. Ou a Egreja se reformava, ou a nação tinha de renovar a sua alliança com Roma. Se se tivesse consultado a opinião publica, ver-se-hia, provavelmente, que uma grande maioria era partidaria do romanismo. Os ultimos annos do reinado de Henrique tinham sido uns annos de terror, e todas as desventuras eram attribuidas á supremacia real em materia de religião. O povo de Inglaterra, por outro lado, estava pouco ao facto das doutrinas reformadas, e a Biblia não estava vulgarisada. A Reforma não havia sido prégada na Inglaterra, como o fôra na Allemanha e na França. Não havia excitado o enthusiasmo popular. A extincção dos conventos tinha feito com que a gente do campo desejasse voltar ao antigo systema. Os inglezes não haviam opposto obstaculo algum á extincção dos conventos e á confiscação dos bens da Egreja quando isso foi pela primeira vez decretado; mas os camponezes em breve descobriram que a unica coisa que havia resultado para elles fora uma substituição de amos com quem se davam perfeitamente por outros que custavam immenso a supportar. Os novos proprietarios vedavam os logradouros publicos, derrubavam os muros e as sebes que dividiam entre si as quintas pequenas para formarem extensas propriedades, e preferiam as pastagens ás searas de trigo, diminuindo assim o valor das terras e dando logar a uma grande falta de trabalho. A pobre gente suspirava por aquillo a que chamava os bons tempos. A extincção dos conventos tinha, por outro lado, atirado cá para fóra com uma legião de homens que não tinham profissão alguma e incapazes de ganhar a vida, era preciso cuidar d’essa gente. O governo havia entendido que o meio menos dispendioso de arrumar os frades era collocal-os nas freguezias, na qualidade de parocos ou de coadjuctores. E assim a Egreja encheu-se de homens que trabalhavam de má vontade, e que odiavam aquella nova ordem de coisas que lhes havia transtornado a vida. Todas estas coisas tornavam duvidoso se a Inglaterra adoptaria a Reforma ou se reconciliaria com Roma. Por outro lado, havia homens fervorosos e cheios de resolução, que estavam promptos a dar tudo quanto possuiam, e até a propria vida, pela causa da Reforma, que elles estavam na convicção de ser a causa de Christo. No numero d’esses homens figuravam o Protector, Somerset, e outros membros do conselho da regencia, que deliberaram introduzir a Reforma na Inglaterra. A intenção de se manter a supremacia real appareceu sob a fórma de uma carta dirigida aos bispos, intimando-os a solicitar do novo soberano a renovação das suas licenças. Isto tinha sido inventado por Cromwell para que não fossem prejudicadas as regias prerogativas. =A real inspecção.—O Livro das Homilias.—O Livro de Oração Commum.=—Ordenou-se uma real inspecção a todo o reino. O paiz foi dividido em seis circumscripções, e para cada uma d’ellas foi nomeado um funccionario, que deveria averiguar se os serviços ecclesiasticos estavam sendo executados segundo as leis vigentes. A jurisdicção episcopal esteve durante algum tempo suspensa, pois que os inspectores iam em nome do rei. Providenciou-se tambem para que fossem melhorados os serviços ecclesiasticos em certas localidades onde foram encontradas deficiencias. O arcebispo Cranmer, que lá no seu intimo havia sido sempre lutherano, e que animara o conselho da regencia em todos os planos d’este, compoz um _Livro de Homilias_, que foi entregue ao clero paroquial, com a recommendação de ser lido nas egrejas. A _Paraphrase do Novo Testamento_, de Erasmo, foi adaptado ao uso inglez, e deu-se ordem para que tambem fosse lida no culto publico. Estas medidas não foram tomadas sem opposição. Gardiner, bispo de Winchester, que tinha adquirido grande influencia sobre Henrique VIII nos ultimos annos da vida d’este, e que fôra um dos auctores do Estatuto Sanguinario, estava á testa do partido reaccionario, e protestou contra todas as propostas dos visitadores. Entretanto o parlamento reuniu-se, aboliu os _Seis Artigos_, declarou que os clerigos ficavam desobrigados do voto de celibato, que na Ceia do Senhor o vinho, assim como o pão, devia ser administrado aos leigos, e approvou a politica ecclesiastica do Protector Somerset. As inspecções proseguiram. A fim de tornar o serviço nas egrejas mais simples, mais attrahente e mais uniforme, ordenou-se o uso do _Livro de Oração Commum_, compilado, por Cranmer, dos antigos rituaes. Foi este o _Primeiro Livro de Oração Commum de Eduardo VI_, e, posto que mais tarde passasse por algumas modificações e fosse um tanto augmentado, é, no seu conjuncto, o de que a Egreja de Inglaterra faz uso actualmente. Iam apparecer em breve outros indicios de um afastamento do romanismo. As imagens e reliquias das egrejas foram destruidas. Aboliram-se os antigos dias de jejum, e o arcebispo Cranmer deu o exemplo, comendo carne, á vista de todos, na quaresma. Tudo isto desgostou immenso uma grande parte, talvez a maioria, do povo e do clero, sem que, comtudo, resistissem abertamente. Bonner, bispo de Londres, tentou oppôr-se indirectamente á corrente, declarando que o novo Livro de Orações podia ser tomado n’um sentido romanista; mas isso apenas levou a uma mais decisiva definição dos seus termos theologicos, á remoção dos altares das egrejas e á sua substituição por mesas, e á preparação de um novo _Livro de Ordem_. Dentro em pouco tempo todo o aspecto da Egreja se havia mudado, e em doutrina e culto a Egreja de Inglaterra tinha-se tornado protestante. As mudanças que se haviam feito tinham promovido um grande sentimento de desagrado para com Somerset; houve tentativas de revolta; e, posto que estas fossem suffocadas, a falta de bom exito do Protector, tanto na politica exterior como na interna, combinada com o desagrado produzido pelas suas medidas religiosas, deu origem á sua queda, sendo succedido pelo conde de Warwick. =A alliança com o protestantismo continental.=—A subida de Eduardo ao throno e a politica protestante de Somerset e Warwick animaram o arcebispo Cranmer a renovar o seu antigo plano de uma alliança entre a Egreja Romana e as Egrejas protestantes do Continente. Sob o congenial patrocinio de Somerset, o plano de Cranmer parece ter incluido uma assembléa, em Inglaterra, de delegados de todas as egrejas protestantes com o fim de convocarem um concilio protestante que podesse servir de resposta ao concilio de Trento e organizar um credo protestante commum. Isto nunca se levou a effeito; mas Cranmer conseguiu que diversos theologos estrangeiros o ajudassem a instruir o povo inglez na fé reformada. Martinho Bucer e Paulo Fagius vieram de Strasburgo para Inglaterra, e installaram-se em Cambridge, onde fizeram prelecções sobre theologia e sobre as Escripturas do Antigo Testamento. Dois distinctos italianos, Pedro Martyr de Florencia e Bernardo Ochino de Sienna, vieram leccionar para Oxford. Estes theologos estrangeiros, todos elles abalisados professores, instruiram um grande numero de rapazes nos artigos da fé reformada, e prepararam uma geração de prégadores para a futura Egreja de Inglaterra. Sustentaram tambem, segundo o uso continental, polemicas publicas sobre pontos controversos de theologia, taes como a Transubstanciação, o Celibato do Clero, o Purgatorio, etc. Todos estes theologos eram mais calvinistas do que lutheranos, e foi mediante elles que a Egreja de Inglaterra adquiriu aquella inclinação para o modo calvinista, opposto ao lutherano, de expôr as doutrinas da fé christã que serviu de molde aos seus artigos. =Os Quarenta e Dois Artigos.=—Um dos resultados d’estas discussões e disputas doutrinaes foi a publicação, em 1553, dos _Quarenta e Dois Artigos_, que tinham por fim exprimir em fórma confissional o credo da Egreja Reformada de Inglaterra. Foram obra de Cranmer, coadjuvado pelos bispos e por outros homens de erudição. Cranmer tinha começado a escrevel-os em 1549; e acabou-os em 1552. A apparição d’estes Quarenta e Dois Artigos foi muito opportuna. A rivalidade dos dois partidos, o romanista e o protestante, as polemicas publicas dirigidas pelos theologos estrangeiros, e os trabalhos dos prégadores ambulantes como João Knox, haviam feito com que o povo desejasse ardentemente uma auctorizada exposição de doutrina tal como estes artigos forneciam. Definiam com grande clareza os limites das mudanças que a Egreja havia feito, quanto á sua theologia medieval. Estes artigos de religião são em quasi todos os pontos eguaes aos Trinta e nove Artigos que constituem o credo da actual Egreja da Inglaterra. As sympathias de Cranmer tinham estado sempre voltadas para Luthero, e elle copiou tres, nem menos, dos seus artigos directamente da Confissão de Augsburgo. Esses artigos foram omittidos na revisão elizabethana, mas, pelo que toca aos pontos essenciaes, os Trinta e dois Artigos de Eduardo e os Trinta e nove Artigos de Isabel são um e o mesmo documento. =Os principios do puritanismo.=—A livre discussão da theologia reformada e das idéas da Reforma teve como um dos seus resultados a origem e desenvolvimento, em Inglaterra, de uma theologia que acceitava cabalmente os principios essenciaes da renascença da religião promovida pela Reforma. Um d’estes principios era que Deus se havia collocado tão perto do homem mediante a revelação da Sua pessoa em Jesus Christo, que os homens, apezar de sobrecarregados com o peccado, podiam implorar directamente a Deus o perdão, e, segundo as Suas promessas, recebel-o. As theses de Luthero tinham estabelecido este grande principio da Reforma, e todos os theologos insistiram na possibilidade de se ir directamente ter com Deus sem ser necessaria qualquer mediação humana. A Egreja medieval, por outro lado, havia negado este «sacerdocio espiritual dos crentes»—pois que sacerdocio quer dizer o direito de accesso a Deus—e havia collocado entre Deus e o povo o sacerdocio da Egreja. Tinha tambem tornado visivel o sacerdocio do clero, insistindo em que cada clerigo devia, quando exercesse o culto publico, usar um traje especial, symbolico do seu officio sacerdotal, e havia levantado em cada egreja um altar, ou logar especial onde se realisava o encontro de Deus com o sacerdote. Aquelles que haviam chegado ao conhecimento da verdade e magnificencia da doutrina da Reforma, de que todos os crentes são sacerdotes que gozam do direito de se approximarem de Deus por meio da fé, e de que qualquer porção do solo onde a alma expectante procura o Deus que a pode perdoar e remir é um altar, não podiam conformar-se com qualquer doutrina ou symbolo visivel do sacerdocio especial do clero. Não se contentavam com a exposição doutrinal das verdades da Reforma, não podiam supportar que o povo fosse desencaminhado por qualquer symbolo ou rito exterior que houvesse sido empregado, nos dias de superstição, para inculcar a falsa doutrina medieval da mediação. Objectavam, portanto, á conservação de todo e qualquer costume ecclesiastico que podesse desencaminhar o povo no tocante a esta importante doutrina. Oppunham-se, especialmente, ao uso das vestimentas ecclesiasticas e dos altares nas egrejas. Estes homens foram os precursores dos puritanos inglezes. É preciso ter sempre na lembrança que puritanismo não significou ao principio um systema de governo ecclesiastico, e que nada tinha que ver nem com o presbyterianismo nem com o congregacionalismo. Os primeiros puritanos da Inglaterra não protestaram contra o episcopado como systema de governo. As coisas ter-lhes-hiam succedido melhor por fim se o houvessem feito. O seu protesto era contra tudo quanto no credo ou no culto podesse desacreditar a doutrina do sacerdocio universal dos crentes. Era sua opinião que as vestimentas clericaes e os altares nas egrejas obscureciam a verdade vital, e recusavam-se a fazer uso das sobrepelizes e a collocar-se deante dos altares com as costas voltadas para a congregação. A questão tomou dentro em pouco tempo uma fórma definida. João Hooper, que havia sido monge cisterciano, e que adoptara as idéas da Reforma, tornou-se um prégador de nomeada na Egreja ingleza. Durante os ultimos annos do reinado de Henrique tivera a vida em perigo e havia fugido do reino para Genebra. O contacto que teve com os theologos suissos havia-lhe confirmado os principios, e ao regressar a Inglaterra achava-se resolvido a oppôr-se a todos os ritos que cheirassem a superstição medieval. Em 1550, o seu nome foi recommendado ao rei, quando se tratou de prover o bispado de Gloucester. Ao contrario de João Knox, não fazia objecção ao governo por meio de bispos, e acceitou a nomeação, mas não quiz fazer uso das vestes episcopaes; e recusou-se, egualmente, a proferir a seguinte phrase do juramento: «Assim Deus e todos os santos me ajudem». Muitos theologos, incluindo Calvino, haviam-se inclinado a considerar estas coisas como de pouca importancia, mas Hooper pensava de differente modo. Martinho Bucer e Pedro Martyr partilhavam a opinião de Calvino, e tentaram demover Hooper da sua resolução por meio de argumentos. Não poderam, porém, convencel-o, e elle recebeu ordem da côrte para se conservar em sua casa e deixar de prégar. Obedeceu, mas no seu forçado afastamento escreveu uma _Confissão e Protesto_ em que expunha com toda a clareza as razões que haviam imperado na sua recusa de fazer uso das vestes prelaticias. Por este seu feito, metteram-n’o na prisão. Passado algum tempo, porém, fez-se um convenio ácerca das vestimentas, foram omittidas do juramento as palavras «e todos os santos», e Hooper foi consagrado bispo de Gloucester. Mas o que havia occorrido fazia prever novas borrascas n’um futuro proximo. Ridley, um dos mais habeis cabeças do partido da Reforma no tempo de Eduardo, homem de vastos conhecimentos, de grande largueza de idéas, e muito tolerante—havia-se empenhado om que á princeza Maria se concedesse o servir a Deus conforme a vontade d’ella—quando o fizeram bispo de Londres em substituição de Bonner, limpou tambem todas as egrejas da sua diocese das imagens, reliquias e agua benta, e insistiu em que todos os altares fossem removidos e se pozessem em seu logar mesas para a communhão. Estas coisas eram um mau presagio para o timido accordo entre o romanismo e a Reforma, que era em que consistia o ideal de Cranmer relativamente á Egreja de Inglaterra. Despertaram uma mais severa opposição da parte de homens que haviam sido sempre partidarios da Egreja medieval. Quando Hooper e Ridley mostraram até onde a Reforma os poderia levar, Gardiner e Bonner redobraram de furia contra elles. O governo teve de refreiar ambos os partidos. Hooper tinha estado preso por causa das suas idéas reformistas. Gardiner e Bonner foram encerrados na Torre por causa das suas idéas medievaes. =A morte de Eduardo VI.=—O joven rei nunca havia sido muito robusto, e antes de terminar o anno de 1552 o seu estado de saude alarmou seriamente os principaes vultos do protestantismo. Á herdeira do throno era a princeza Maria, filha de Catharina de Aragão. Tanto o parlamento como a convocação haviam proclamado a sua illegitimidade, mas essas resoluções não tinham grande peso moral. Toda a gente, estava convencida de que Catharina tinha sido a esposa legitima de Henrique, e de que Maria era sua filha, devendo, portanto, esta occupar o throno no caso de Eduardo fallecer. Além d’isso, segundo a lei de successão ao throno, promulgada por Henrique VIII, ella tinha de succeder a Eduardo, no caso d’este não deixar herdeiros. Maria era uma ferrenha catholica romana, de descendencia hespanhola, que nunca havia esquecido os aggravos de que a mãe fora victima, e que considerava a Reforma como uma rebellião contra Deus e um insulto dirigido a ella propria. Prima de Carlos V, imperador da Allemanha, era uma grande admiradora dos seus talentos e da sua politica, e de muito boa vontade se collocaria n’uma completa dependencia d’elle. O conhecimento d’estas coisas enchia de anciedade os espiritos dos conselheiros de Eduardo. A subida de Maria ao throno seria um desastre para a Reforma, que os attingiria tambem a elles. Viram que lhes era necessario fazer todo o possivel para que o herdeiro do throno fosse um principe ou princeza protestante. Eduardo VI havia, em creança, abraçado firmemente o protestantismo, e todo o seu empenho era que o monarca que viesse depois partilhasse as mesmas crenças. Quando viu que lhe restava pouco tempo de vida, resolveu nomear o seu successor. Nada o poude persuadir de que não tivesse o poder de o nomear; e nada o poude induzir a que a nomeação recaisse n’uma de suas irmãs. Elle estava convencido de que eram ambas illegitimas, como o parlamento havia declarado, e que, por conseguinte, não tinham direito algum á successão. Aquelle rapaz, que estava prestes a morrer, era, pela sua tenacidade, um digno representante da casa de Tudor. Poz deliberadamente de parte tanto Isabel como Maria; poz tambem deliberadamente de parte Maria, a joven rainha da Escocia, representante de Margarida, a irmã mais velha de seu pae, e escolheu Joanna Grey, representante de Maria, irmã mais nova de seu pae. Joanna tinha casado com o filho mais velho do conde de Northumberland, e era protestante. Eduardo estava convencido de que o povo havia de acceitar a successora por elle mencionada. Os seus conselheiros estavam convencidos de que o protestantismo estava tão arraigado no paiz que nenhum catholico romano poderia ser bem succedido. Enganavam-se ambos. Assim que se deu o fallecimento de Eduardo, a rainha Joanna foi devidamente acclamada; mas o povo, tomado de surpreza, não correspondeu á acclamação. A princeza Maria fugiu, mas em volta d’ella reuniu-se muita gente, e o povo secundou as suas reclamações. Passada uma semana, tinha-se vencido toda a opposição, e o throno era de Maria. A magnanima, formosa e instruida rainha foi presa e decapitada, e o throno foi occupado, com o apoio geral, por uma soberana catholica romana. =O estado da Inglaterra por occasião da acclamação de Maria (1553).=—Quando Maria subiu ao throno, a Reforma, como um edificio politico e visivel, com tanto custo levantado por Eduardo e pelos seus conselheiros, desappareceu por completo, como coisa de nenhuma substancia. É que ella havia sido imposta á Inglaterra pelo governo, ao contrario do que acontecera em outros paizes, em que foi imposta ao governo pelo povo ou acceite egualmente por governantes e governados. Por outro lado, o paiz achava-se em pessimas circumstancias financeiras, devido em parte á crise economica que a Europa estava atravessando, mas devido principalmente ao desmedido fausto da côrte de Henrique VIII, e á depreciação da moeda. O povo attribuia a sua miseria ao governo e a todos os actos salientes das auctoridades. A extincção dos conventos e a venda dos terrenos da Egreja foram logo tidas como a causa das desgraças que affligiam o paiz; e os frades que haviam sido tirados das casas religiosas, e que estavam espalhados pelo paiz na qualidade de parocos e curas, ateiavam o fogo da antipathia pela Reforma, e preparavam o povo para um regimen reaccionario, pelo que dizia respeito á religião. Gardiner, bispo de Winchester, que havia saido da Torre quando Maria iniciou o seu reinado, e se havia tornado o seu ministro favorito, comprehendeu perfeitamente a situação. Elle sabia que o paiz, na sua quasi totalidade, preferia a antiga religião mas que nunca gostara do papa. Tratou, pois, de promover um regresso á situação em que se estava no principio do reinado de Henrique VIII, sem que, porém, se tornasse tão ostensiva a supremacia real. Maria, posto que se deixasse guiar por Gardiner, tinha idéas mais arrebatadas. A facilidade com que ella, apoz longos annos de indifferença e abandono, havia cingido a corôa parecia-lhe um indicio de que o povo se estava preparando com regozijo para o restabelecimento da antiga religião e que tinha na conta de tão malefico o que se havia passado nos ultimos annos como ella propria. Como filha de Henrique, e como rainha de Inglaterra, sentia em si o dever de reparar, de accordo com o papa, os ultrajes que a Egreja Romana havia soffrido ás mãos dos estadistas inglezes. Como filha de Catharina de Aragão, e como prima de Carlos V, parecia-lhe que devia prestar o seu auxilio aos hespanhoes, e unir a Inglaterra á Hespanha, tanto no que dizia respeito á politica internacional, como, e ainda mais especialmente, no que dizia respeito á politica ecclesiastica. =A Hespanha necessitava do auxilio da Inglaterra.=—Maria subiu ao throno em 1553. O Tratado de Passau, entre os principes protestantes da Allemanha e Carlos V, foi assignado em 1552. Carlos sentia-se forçado a confessar que a Reforma o tinha vencido, quando Maria lhe participou a sua acclamação e lhe supplicou que a aconselhasse. A alliança ingleza era a unica coisa que poderia annullar o triumpho da Reforma, e restituir o bom exito á politica austro-hespanhola. Carlos respondeu immediatamente, e o seu conselho mostrou a anciedade em que elle se encontrava. Maria, escreveu elle, devia, em primeiro logar, tornar firme o throno; em seguida devia tornar segura uma alliança hespanhola, casando com Filippe, herdeiro do imperador; e, executadas estas duas coisas, podia então fazer as pazes com o papa. O papa estava tão ancioso por congratular Maria como Carlos havia estado; mas o imperador não queria despertar os sentimentos anti-papistas do povo inglez; os interesses em jogo eram muitissimo fortes. E assim o Cardeal Pole, nuncio do papa, recebeu ordem para se conservar nos Paizes Baixos até a Inglaterra se achar preparada para o receber. =Como Maria se firmou no throno.=—Ao principio fel-o com bastante facilidade. A tentativa de collocar Joanna Grey no throno havia desacreditado e desanimado os protestantes mais em evidencia, e poucos d’entre elles appareceram. Foi, pois, facil a Gardiner obter que o parlamento revogasse todas as leis que diziam respeito ao divorcio de Catharina e á filiação de Maria. O decreto parlamentar que conferia ao rei uma supremacia absoluta em todos os negocios ecclesiasticos foi um meio excellente para fazer com que o paiz mudasse de religião. A rainha, por occasião da sua acclamação, ouviu missa, segundo o antigo costume. Cranmer protestou, sendo por esse facto remettido para a Torre, onde em breve se lhe reuniram Latimer e Ridley. Foi abolido o Livro de Oração Commum, e todas as mudanças introduzidas no culto no reinado de Eduardo foram postas de parte. A Egreja de Inglaterra foi reposta nas condições em que Henrique VII a havia deixado. =A alliança hespanhola.=—O povo inglez não via com bons olhos a alliança hespanhola, e era, em especial, hostil ao casamento da sua rainha com Filippe de Hespanha. O bispo de Gardiner, que conhecia a indole da nação, tratou de dissuadir a rainha, mas esta achava-se firmemente resolvida a desposar Filippe. Gardiner, ao ver que nada podia impedir o casamento, redigiu o contracto nupcial em termos taes que Filippe ficava sem direito ao titulo real, não podia succeder á consorte e era-lhe defezo exercer qualquer influencia nos negocios publicos de Inglaterra. O facto de Carlos e seu filho terem acceitado estas condições mostra o valor que elles davam a uma alliança estavel com a Inglaterra. O povo inglez ficou indignado com similhante casamento, e para mostrar o seu desagrado revoltou-se em diversas partes do reino; Pedro Carew poz-se á frente dos rebeldes em Cornwall e Devon, o conde de Suffolk nos condados do Centro, e Thomaz Wyatt em Kent. A unica revolta importante foi capitaniada por Wyatt, e se não teve consequencias mais graves foi isso devido á coragem da rainha. A nação reconheceu tambem que Maria era filha de seu pae, e a legitima herdeira, e não teve grande sympathia com as rebelliões contra ella. Filippe chegou, com instrucções de seu pae para fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para agradar ao povo inglez, as quaes elle, no seu modo extravagante, tratou de seguir, bebendo cerveja ingleza e fazendo outras coisas do mesmo genero, e o casamento celebrou-se com toda a pompa. Estava assegurada a alliança com a Hespanha. =A reconciliação com Roma.=—Filippe e Maria eram fervorosos catholicos romanos, e anhelavam por que a Inglaterra se libertasse do anathema papal que sobre ella havia caido quando Henrique desposou Anna Boleyn; mas não era facil conseguir isso. O povo inglez obstinara-se sempre em não reconhecer a supremacia papal, e eram muitos os pontos da sua historia que o aconselhavam a não se submetter facilmente ao pontifice romano. Carlos aconselhou o filho e a nora a procederem muito cautelosamente. Havia, comtudo, uma difficuldade ainda maior: era a questão das terras que haviam sido arrancadas do poder da Egreja e vendidas a particulares. Por um lado, o papa não deixaria de insistir na sua restituição, e, por outro, essa restituição iria, certamente, dar logar a violentos protestos. Poucas d’essas terras estavam na posse da corôa; a maior parte d’ellas tinha sido vendida, e o producto da venda gastara-se. A rainha estava impossibilitada de tornar a compral-as aos respectivos donos e restituil-as á Egreja. Carlos V poude, com alguma difficuldade, induzir o papa a renunciar á reivindicação d’esses bens abbaciaes, e a unica coisa que restava fazer era predispôr o povo inglez para a chegada do nuncio. O nuncio escolhido pelo papa foi Reginaldo Pole, segundo sobrinho de Eduardo IV. Pertencia, portanto, á aristocracia ingleza, mas havia preferido o desterro a reconhecer a supremacia real de Henrique VIII ou a legalidade do divorcio de Catharina de Aragão. Era parente de Maria, e fôra um dos que haviam soffrido por terem tomado a defeza da mãe d’ella. Solicitou-se do parlamento a sua reabilitação. Esta foi proclamada, e Pole foi recebido em Inglaterra como membro da nobreza. Apresentou então as suas credenciaes, que o acreditavam como legado do papa. O povo acolheu a noticia com indifferença. Por fim o parlamento approvou uma proposta para que se tratasse de promover a reconciliação com Roma. Em 1554, no dia de Santo André, o cardeal nuncio absolveu solemnemente a nação. Filippe e Maria, com ambas as casas do parlamento, ajoelharam-se na presença do cardeal emquanto este os restituia á communhão da Santa Madre Egreja. O parlamento revogou todas as leis que affirmavam a supremacia real e que rejeitavam a supremacia do papa. O clero, por outro lado, renunciou solemnemente a todas as reivindicações quanto aos bens abbaciaes e a outras propriedades da Egreja que haviam sido sequestradas. A união com Roma estava novamente restabelecida por completo. =Porque não foi bem succedida a reacção.=—No espaço de dois annos a Inglaterra estava, segundo todas as apparencias, inteiramente reconciliada com o papa. Como que parecia que o reinado de Eduardo nunca tinha existido, e que Henrique tinha vivido em harmonia com o papa até ao fim da sua vida. Tinha-se estabelecido a reacção catholica romana, que parecia disposta a levar tudo de vencida; mas apoz um curto periodo o movimento reaccionario foi obrigado a deter-se, e dentro de alguns annos a Inglaterra havia-se transformado n’uma grande nação protestante. Como se operou esta transformação? É talvez impossivel distinguir todas as causas, mas apparecem tres d’ellas á superficie da historia: as perseguições que tiveram logar durante o reinado de Maria, as questões por causa dos terrenos ecclesiasticos, e o alastramento da opinião favoravel á Reforma como resultado das predicas evangelicas no curto reinado de Eduardo. =As perseguições no reinado de Maria.=—Os protestantes que existiam em Inglaterra no tempo de Maria não soffreram tão atrozes perseguições como as que dizimaram os huguenotes da França ou victimaram os reformadores dos Paizes Baixos. Despertaram, comtudo, no paiz um tal horror ao papismo que ainda hoje subsiste. A razão d’isso foi devida, em parte, ao modo barbaro como se arrancou a vida aos martyres, e em parte á idéa, que se arraigou, de que as execuções eram instigadas por Filippe, fazendo parte do vasto plano que elle havia formado para reduzir a Inglaterra ao dominio hespanhol. A politica de Maria e de seus conselheiros era a de exterminar todos os que durante o reinado anterior haviam fomentado a Reforma. Os homens condemnados ao exterminio eram todos bem distinctos, tanto pelo nascimento, como pela eloquencia, como pela illustração, como pela piedade. Eram: Cranmer, o edoso primaz, Hooper, bem conhecido pela sua férvida eloquencia, Ridley, um dos mais sabios e mais tolerantes theologos reformados. O povo conhecia bem os homens que acabavam de ser derrubados, e não foi indifferente á morte d’elles. A Inglaterra viu serem entregues ao carrasco e queimados em vida os seus homens mais eruditos e de maior capacidade moral. E por que motivo? perguntaram todos. Por causa da alliança com a Hespanha. Era preciso agradar a Pilippe, o beato, o hypocrita, o homem insensivel a todos os males, e estar de bem com aquella nação que havia consentido que os seus proprios filhos e filhas fossem torturados pela inquisição, e, sem a menor sombra de revolta, se havia submettido ao mais esmagador despotismo. Os martyres encararam os ultimos momentos com um valor christão. Durante a vida não conseguiram despertar a confiança universal, mas com as suas mortes provaram que estavam bem convencidos do que apregoavam, e fizeram penetrar no coração do povo a verdade das opiniões que haviam forcejado por tornar dominantes emquanto poderam e pelas quaes morriam agora com satisfação. =As terras da Egreja.=—Maria havia sido prevenida por Carlos V de que não devia tentar restituir á Egreja os bens abbaciaes. Estes tinham sido vendidos, e, em virtude da venda, estavam divididos por cerca de quarenta mil pessoas. Tocar-lhes era atacar o direito de propriedade. A Egreja e o papa haviam renunciado á reivindicação da sua posse, antes mesmo do parlamento ter abolido as leis que eram contrarias ao pontificado e á religião catholica romana. Maria, porém, tinha o coração desasocegado. Aquellas terras pesavam-lhe na consciencia. Como poderia a Inglaterra ser abençoada emquanto tantos dos seus subditos e ella propria estavam aproveitando dos roubos feitos á Egreja? O papa Paulo IV, que havia sido consagrado em 1555, não approvou a conducta do seu predecessor no que dizia respeito áquella questão, e pediu repetidas vezes á rainha que fizesse a restituição. Maria accedeu, por fim, ás suas instancias, e conseguiu com alguma difficuldade, que as camaras dessem o seu consentimento para que as terras da Egreja, ainda em poder da corôa, passassem para os seus primitivos donos. Isto produziu um grande descontentamento. Fez com que os possuidores dos restantes bens abbaciaes deixassem de considerar garantidos os seus direitos, e a perda de dinheiro que a rainha soffreu obrigou-a a augmentar os impostos. A Egreja mostrava-se, como sempre, inexoravel, e o povo começou a odial-a. =O effeito do ensino da Reforma no reinado de Eduardo VI.=—Os theologos estrangeiros que no reinado anterior tinham vindo ensinar para Oxford e Cambridge haviam educado uma geração de jovens estudantes que, convencidos da verdade das suas opiniões, as acceitaram e as espalharam por entre o povo, e que com muita satisfação davam agora a sua vida por ellas. Até ali pouco tinha havido na Reforma ingleza que despertasse o enthusiasmo. O povo tinha passado, com a maior das facilidades, de uma profissão de fé nacional para outra. As perseguições de Maria tornaram heroica a Reforma; e jovens prégadores, amestrados por Martinho Bucer e Pedro Martyr, arriscavam com muito gosto as suas vidas para conseguirem que os seus compatriotas acceitassem as doutrinas biblicas dos reformadores. As traducções da Biblia, e em especial a de Tindal e a de Coverdale, eram lidas por centenas de pessoas, e a Inglaterra ia sendo esclarecida ácerca da significação da Reforma. O povo estava fartissimo de perseguições, e indignado contra a Egreja que as havia occasionado; sentia desdem pela avidez que a Egreja havia mostrado quando chamada a tomar de novo posse das propriedades que lhe haviam sido tiradas, e conhecia agora melhor as Escripturas e estava mais ao facto do que era a Reforma. Tudo indicava que a grande força de que a reacção poderia dispôr não se manifestaria por muito tempo. =A morte de Maria.=—Maria morreu em 1558, de uma hydropesia, escapando, talvez, d’esse modo, de ser victima de uma revolução. «A mais infeliz das rainhas, das esposas e das mulheres», o seu nascimento tinha enchido de regozijo uma nação, e tivera por mãe uma princeza da mais altiva casa da Europa. Na sua infancia havia recebido o tratamento de futura soberana de Inglaterra, e era, no dizer de todos, uma encantadora e sympathica rapariga. Depois, aos dezesete annos, foi-lhe vibrado um golpe esmagador, que a cobriu de trevas para toda a vida, O seu pae, o parlamento, e a Egreja do seu paiz chamaram-lhe filha illegitima, e, marcada com este ferrete maldito, foi chorar na solidão a sua ignominia. Quando a Inglaterra a saudou como rainha no seu trigesimo-setimo anno, era já uma velha de faces cavadas e voz aspera, conhecendo-se apenas pelos olhos, negros e cheios de fulgor, o quão formosa havia sido out’ora. O povo, porém, parecia amar aquella mulher, que durante tanto tempo anhelava por um affecto; casara com um marido da sua escolha, e ella propria se reputava um instrumento predestinado pelo céu para que se reintegrasse no divino favor uma nação excommungada. O marido, a quem ella idolatrava, aborrecendo-se d’ella passado um anno ou dois, retirou-se para Hespanha. A creança cujo nascimento ella desejava apaixonadamente não chegou a nascer. A Egreja e o papa, a quem ella tanto sacrificara, fizeram-se surdos ás suas supplicas, e pareciam não se importar com os desgostos que a affligiam. E o povo, que a recebera com tanto enthusiasmo, e a quem ella realmente amava, chamava-lhe Maria a Sanguinaria, e esse cognome tem sido transmittido de geração em geração até aos nossos dias. Cada tribulação por que passava era, no seu entender, um aviso do céu, por não ter ainda feito plena propiciação pelos crimes da Inglaterra, e, assim, as fogueiras da perseguição foram de novo accesas, e novas victimas se arremessaram para ellas, para aplacar o Deus do romanismo do seculo dezeseis. CAPITULO III A REFORMA NO TEMPO DE ISABEL A successão de Isabel, pag. 189.—Como se liquidou a questão religiosa, pag. 190.—_Os trinta e nove artigos_, pag. 197.—O puritanismo e as vestimentas ministeriaes, pag. 192.—A Inglaterra e o protestantismo de fóra do reino, pag. 194.—A lucta interna com o catholicismo romano, pag. 195.—A Armada hespanhola, pag. 196.—As prophecias, pag. 197.—Os _conventiculos_, pag. 198.—_Os pamphletos anti-prelaticios_, pag. 198.—A Reforma ingleza, pag. 198. =A sucessão de Isabel.=—Por morte de Maria, Isabel foi, sem opposição, proclamada rainha. O partido catholico romano, que se poderia ter opposto á sua successão, não dispunha de força para isso, pois que a Inglaterra estava em guerra com a França, e a unica rival de Isabel era a esposa do Delfim, Maria, a rainha da Escocia. E, comtudo, a sua legitimidade era para todos os catholicos romanos em extremo duvidosa. Isabel era filha de Anna Boleyn, e Catharina de Aragão ainda estava viva quando ella nascera. A Inglaterra achava-se em deploraveis condições quando ella subiu ao throno. Nos cofres do Estado não havia dinheiro, apezar de se terem cobrado adeantadamente as receitas, e a guerra com a França estava levando a ruina a todos os lares. A situação individual da rainha era a mais precaria que se póde imaginar. A sua legitimidade era mais do que duvidosa. A França, na primeira occasião opportuna, havia de fazer valer os direitos de Maria Stuart. A Hespanha, que era, apparentemente, a unica nação com que ella podia contar, era odiada pelos inglezes. A força do protestantismo nas provincias era duvidosa. Vendo os perigos de uma questão religiosa logo no principio do seu reinado, a rainha contemporizou. Ia á missa para agradar aos catholicos romanos. Prohibiu a elevação da hostia para agradar aos protestantes. E poz-se á espera de ver o que a Hespanha e a Inglaterra diziam. A Hespanha parecia estar em amigaveis disposições. Filippe II ofereceu-lhe a mão de esposo, mas a alliança hespanhola dependia tanto de Filippe como do papa, e Isabel não tardou em certificar-se de que da Curia Romana não acolheria benevolamente a filha de Anna Boleyn. Quando o embaixador anunciou a sua acclamação ao papa, este respondeu: «Isabel, na sua qualidade de filha illegitima, não podia subir ao throno sem o meu consentimento; é um desproposito da parte della, se o fizer. Que ella, em primeiro logar, submetta á minha decisão as suas reivindicações.» Não era preciso mais. Isabel não podia, de ahi em deante contar com a Hespanha. Não teve, tão pouco, de esperar muito tempo pela resposta da Inglaterra. O seu primeiro parlamento era quasi todo composto de protestantes. As côrtes reuniram-se em 1559, e restabeleceram a supremacia real, posto que de uma fórma modificada. Henrique VIII havia-se chamado a si proprio «o unico chefe supremo da Egreja de Inglaterra no mundo». Isabel contentou-se com um titulo menos pomposo, o de «Chief Governor» (Governador Geral), e o parlamento decretou que todos os clerigos e magistrados a reconhecessem, sob juramento, como rainha, «a quem pertencia o governo de todos os estados, quer civis quer ecclesiasticos.» Uma commissão de doutores em theologia, nomeada para rever o Livro de Oração Commum do rei Eduardo, modificou-o de maneira que podesse ser usado pelos catholicos romanos, e essa revisão foi, por recommendação d’elles, adoptada. A Inglaterra quiz abraçar o protestantismo, e Isabel, privada por Maria da Escocia de uma alliança com a França, e pelo papa de uma alliança com a Hespanha, não teve outro recurso senão o de conquistar as sympathias do povo inglez e fazer-se egualmente protestante. =Como se liquidou a questão religiosa.=—Isabel não era, de maneira nenhuma, o que se chama uma boa protestante. Não possuia fortes convicções religiosas. Parecia-se n’isso com a grande massa do povo e do clero que lhe coubera em sorte governar. Quando Eduardo subiu ao throno, era ella uma rapariga de dezeseis annos; apezar de tão nova, porém, sabia conduzir-se muito ajuizadamente, e provou-o conformando-se com a religião patrocinada pela côrte. Quando Maria cingiu, por sua vez, a corôa, contava ella vinte annos, e era dotada de um espirito muito resoluto. Conformou-se outra vez com o culto catholico romano. Era, pelo que tocava aos sentimentos, uma digna filha de seu pae, e preferia as doutrinas e o systema catholicos romanos, occupando o soberano o logar do papa. Era uma Tudor, e amava o luxo e a sumptuosidade. Havia herdado uma grande disposição para dominar, e a Egreja Catholica Romana era então o modelo por excellencia de um governo despotico. Ella havia recebido uma boa educação litteraria, e comprazia-se muito em ler os antigos auctores gregos. Gostava de uma Egreja que mostrasse reverencia pelas opiniões e praticas patristicas. Era muito amiga de festas e ceremonias, e preferia, por esse motivo, o ritual apparatoso da Egreja de Roma. O que, porém, não queria era encontrar o papa no seu caminho. Detestava João Knox, e, mediante elle, Calvino e toda a escola genebrense. Não gostava da doutrina da justificação pela fé, nem da simplicidade do culto genebrense, e, acima de tudo, abominava aquelles principios democraticos de governo da Egreja que se haviam identificado com o presbyteriannismo. Os reformadores da envergadura de Knox, com as suas doutrinas da predestinação, do livre perdão obtido directamente de Deus, e do sacerdocio espiritual de todos os crentes, temiam sómente a Deus. Isabel queria que os homens temessem tambem o rei, e estava convencida de que o temor da Egreja era uma boa preparação para o temor do monarca. Ella não possuia a subtileza de espirito para dizer como o seu successor, «Sem bispo não pode haver rei», mas pensava-o. O parlamento havia-lhe demonstrado que a Inglaterra era mais protestante do que ella desejaria que fosse, e submetteu-se acceitando o Livro de Oração Commum e outras usanças protestantes. Os bispos catholicos romanos que haviam sido promovidos a essa dignidade durante o reinado de Maria tiveram a coragem de protestar contra taes mudanças. Resignaram os seus cargos ou foram d’elles exonerados. Em 1559 estavam vagas todas as sés episcopaes, á excepção da de Llandaff. Foi instituido um novo episcopado, e á sua frente collocou a rainha Matheus Parker, que havia sido um dos capellães de sua mãe. Conseguiu-se completar o numero indispensavel de bispos para uma consagração legal, chamando do isolamento a que se haviam acolhido os bispos de Eduardo VI que a rainha Maria tinha deposto. As idéas de Parker eram muito mais protestantes do que as de Isabel, mas parece que elle não se preocupou muito com as innovações introduzidas pela rainha. Escolheram-se outros bispos do mesmo caracter, e o todo ficou constituindo uma Egreja protestante que descançava sobre uma visivel base catholica romana. Isabel em breve descobriu, porém, que os seus bispos eram muito mais protestantes do que ela desejaria que fossem. As perseguições executadas por ordem de Maria fizeram com que muitas familias inglezas se retirassem para fóra do reino. Tinham formado colonias em Francfort, em Genebra, e n’outras partes, tinham adquirido intimidade com os theologos calvinistas, e, ao voltarem para Inglaterra, eram tambem calvinistas. Eram pessoas que não podiam estar silenciosas; tinham soffrido, e os martyres do ultimo reinado eram tidos em grande honra; tinham opiniões, e podiam apresentar um motivo da sua fé. Os bispos sabiam que a Egreja de Inglaterra não podia ser aquillo que Isabel desejava que fosse, e devia possuir uma auctorizada exposição de doutrinas, um credo cujos delineamentos principaes fossem calvinistas. A rainha viu-se obrigada a consentir n’isso, e os bispos prepararam uma profissão de fé chamada _Os Onze Artigos_. Isabel queria conservar as imagens, os crucifixos e os paramentos, mas os bispos sabiam que o povo não se conformaria com similhantes coisas. A questão prolongou-se tanto que os bispos, n’uma occasião, ameaçaram-n’a com um pedido collectivo de demissão. O artigo undecimo declarava, portanto, que «as imagens eram coisas vãs». =Os trinta e nove artigos.=—Este curto formulario de doutrinas foi, passado algum tempo, considerado insufficiente, e, além d’isso, a rainha teimava em dar á Egreja uma orientação que a tornava muito parecida com a catholica romana. Queria, por exemplo, tornar obrigatorio o celibato clerical. Os bispos reconheceram a necessidade de uma serie, ou exposição, auctorizada dos pontos dogmaticos da Egreja. O arcebispo Parker, com a assistencia dos bispos de Ely e de Rochester, pegou nos _Quarenta e dois Artigos_ de Cranmer, omittiu tres, e reviu os restantes. A revisão foi apresentada ás Casas da Convocação, que lhe fizeram uma segunda revisão. A rainha leu e esquadrinhou os Artigos antes de dar o seu consentimento, e fez duas muito caracteristicas alterações. Inseriu a primeira clausula do Artigo XX: «A Egreja tem poderes para decretar ritos ou ceremonias, e auctoridade nas controversias sobre a fé»; e riscou o Artigo XIX: «Dos impios, que não comem o corpo de Christo á Mesa da Communhão». Os bispos, porém, insistiram na re-introducção d’esse Artigo, e a rainha submetteu-se. Estes Artigos são, e houve intenção de que o fossem, calvinistas na sua theologia. O bispo Jewel, que lhes fez uma definitiva revisão em 1561, escreveu a Pedro Martyr, que se encontrava em Zurich: «Quanto a pontos de doutrina, fomos cortando tudo até chegar á carne viva, e não differimos de vocês na espessura de uma unha.» Assim a Egreja, que havia alterado o seu Livro de Oração Commum para o amoldar ao gosto catholico romano, formulou os seus artigos de religião, o seu credo, de tal modo que ficou em conformidade com as egrejas reformadas da Suissa. =O puritanismo e as vestimentas clericaes.=—A rainha não gostava dos trinta e nove artigos, e havia-o manifestado. A sua approvação tinha sido uma victoria para o partido protestante com que ella dificilmente se conformava. Animados com o bom exito alcançado, os puritanos tentaram, de uma maneira vigorosa abolir o Livro de Oração Commum, e desembaraçar-se de todos os ritos e paramentos que procediam da Egreja medieval, e estiveram a ponto de ser bem succedidos. Isabel resistiu com toda a força e tenacidade de que era dotada, e saiu, por fim, victoriosa. Este conflicto com os puritanos começou cerca do anno de 1564, e durou durante toda a vida de Isabel. Ao principio o ponto principal em discussão era o uso da capa de asperges e da sobrepeliz, que é uma sobrevivencia da toga branca, ou traje de ceremonia, do imperio romano. Os puritanos do tempo de Isabel mantinham-se n’uma posição identica á de seus irmãos no reinado de Eduardo VI. Sustentavam que os cargos na Egreja christã não são sacerdotaes nem senhoriaes; ninguem era eleito bispo pelo facto de ser clerigo, e poder por essa razão approximar-se mais de Deus do que os seculares, ou porque o governo lhe havia sido conferido por uma auctoridade de fóra da Egreja, mas porque os officios de superintendente e pastor são de utilidade para a Egreja, e porque a Egreja chama esses homens para a servirem no limite das suas funcções. Recusavam fazer uso dos paramentos, porque estes significavam uma coisa em que elles não criam. A contestação tomou em breve um caracter violento. Os bispos sentiam-se inclinados a contemporizar, pois que sabiam o quanto se havia espalhado e quão profundamente arraigada estava aquella opposição ás vestes clericaes; mas a rainha não lh’o permittiu. Fez uso do poder que a supremacia lhe dava sobre os bispos para os obrigar a pôrem em execução a Acta da Uniformidade, e isso deu logar a que o puritanismo fosse como que um protesto contra a supremacia real e contra a constituição episcopal, e como que um brado para que o povo tivesse voz activa no governo da Egreja, o que só o presbyteriannismo ou o congregacionalismo pode proporcionar. Durante os annos de 1565 e 1566 foram em grande numero os ministros que perderam os seus logares por não se quererem conformar com os usos estabelecidos. A rainha entendia que a sua posição como governadora da Egreja a auctorizava a proceder a continuos inqueritos ao modo como era conduzido o culto publico nas paroquias de Inglaterra. Nomeou commissarios reaes para inspeccionar e dar-lhe as necessarias informações, e estes agentes de Isabel vieram a constituir o Tribunal da Alta Commissão, que se tornou um instrumento de tyrannia ecclesiastica nos reinados de seus successores. Por estes commissarios foi Isabel informada da existencia dos não-conformistas, e insistiu n’uma submissão ás praticas estabelecidas. O povo fez, na sua maioria, causa commum com os ministros que estavam inhibidos de tomar parte nos serviços. As prisões e as multas só serviram, como sempre aconteceu, para ateiar as chammas da dissidencia. Esta fez a sua apparição nas universidades. Os estudantes recusaram fazer uso da sobrepeliz ou assistir aos serviços religiosos feitos por clerigos paramentados. Foram tantas as paroquias que vagaram que não era possivel arranjar ministros para todas; e, quando qualquer ministro submisso era collocado n’uma d’ellas, o povo, em geral, apupava-o. Alguns dos mais zelosos ministros separaram-se da Egreja nacional. O grande dirigente dos puritanos era Thomaz Cartwright, que, tendo sido educado no Collegio de S. João, em Cambridge, veiu a ser depois professor de theologia. Era um homem piedoso e illustrado, e um eloquente prégador, e, tendo perdido a sua cadeira de lente por causa das suas opiniões, ainda por cima teve de soffrer o exilio. Dois puritanos, Field e Wilcox, escreveram um folheto moderado—_Uma advertencia ao parlamento_—sobre a disciplina da Egreja e as medidas violentas que haviam sido tomadas contra os puritanos. Foram mandados para Newgate, como dois criminosos quaesquer. Cartwright escreveu uma _Segunda Advertencia_ em defeza dos seus amigos, e teve, pela segunda vez, de fugir do paiz. A rainha respondia a cada pedido de tolerancia com novas exonerações, a ponto de haver n’uma só diocese, a de Norwich, segundo consta, não menos de trezentos ministros suspensos. O arcebispo Parker morreu em 1575, havendo-lhe o cargo de executor da rainha, que desempenhava bem contra sua vontade, tornado amargosissimos os ultimos annos da sua vida. =A Inglaterra e o protestantismo de fóra do reino.=—Ha alguma desculpa para as medidas tomadas por Isabel contra os puritanos no principio do seu reinado. A Inglaterra estava fraca, estava empobrecida, e o throno de Isabel não offerecia estabilidade. Não sympathisava com a Reforma no que ella mais profundamente significava, e não a animava o desejo de ver o seu povo convertido n’uma nação de enthusiasticos reformadores. A Inglaterra, segundo a sua opinião, precisava de descanço e de paz para recuperar as suas esgotadas energias. Se a Inglaterra tivesse abraçado o protestantismo com verdadeiro enthusiasmo, não assistiria de braços cruzados ás crueldades commettidas para com os protestantes francezes e hollandezes pela França e pela Hollanda. Desempenharia na Escocia, nos Paizes Baixos e na França o papel de campeão protestante. Isabel, com a sua impassivel politica, conservou o povo inglez de reserva para o grande futuro que o esperava. «Nada de guerra, meus senhores, nada de guerra», exclamava ella invariavelmente quando Cecil ou outro qualquer ministro manifestava o desejo de a ver collocada á frente de uma liga protestante. Isabel não obstante a sua anterior attitude de resistencia, não desejava romper por completo com os papistas, ou apresentar-se quer aos seus subditos catholicos romanos, quer ás nações continentaes, como uma rainha forte e resoluta. A Inglaterra necessitava de descanço, e a rainha havia determinado conservar em paz o seu paiz. Isto explica em parte a sua politica de indifferença perante a lucta em que os protestantes se achavam envolvidos n’outros paizes. Cecil, o maior dos ministros que Isabel teve, queria que ella se pozesse á frente de uma grande liga protestante e prestasse um auxilio efficaz aos protestantes da Escocia, dos Paizes Baixos e da França. Os ciumes que Isabel tinha de Maria Stuart forçaram-n’a a coadjuvar em grande medida o partido protestante da Escocia—a coadjuval-o até ao ponto de elle poder tornar preponderante aquella fórma de protestantismo em que tanto havia perseverado. Pelo que, porém, diz respeito aos Paizes Baixos e á França, Isabel não deu outro auxilio além do que era sufficiente para que o partido protestante continuasse a existir, e isso mesmo foi feito mais com o fito de consumir as forças da França e da Hespanha do que com o de proteger perseguidos correligionarios. =Luctas intestinas com o catholicismo romano.=—A politica da côrte romana e especialmente as declarada sintenções e designios dos jesuitas forçaram Isabel, depois de ter reinado quasi doze annos, a mostrar-se mais decidida a defender a fé protestante, tanto em Inglaterra como fóra d’ella. Os jesuitas tinham insistido repetidas vezes em que não se devia guardar fidelidade aos chefes de estado protestantes; alguns dos seus emissarios tinham pregado o assassinio como meio licito de desembaraçar os paizes dos seus soberanos protestantes, e não faltavam exemplos que advertissem Isabel da sorte que a esperava. A sua rival, Maria Stuart, expulsa da Escocia, era para a Inglaterra uma prisioneira perigosa. A morte de Isabel podia tornal-a, a ella que era a esperança do partido catholico romano, a herdeira mais proxima do throno inglez. Em 1570, o regente Moray, que era o chefe politico da Reforma na Escocia, foi escandalosamente assassinado. Em 1572 foi planeado, e barbaramente posto em pratica, o massacre de S. Bartholomeu. No mesmo anno o duque de Alba, Filippe II e o papa conferenciaram com Ridolfi, florentino que residira durante muito tempo em Inglaterra, sobre a possibilidade de uma insurreição catholica romana em Inglaterra, dirigida pelo duque de Norfolk. Descoberta a conspiração, Norfolk foi decapitado. Todos estes casos mostraram a Isabel que toda a sua salvação estava em entrar verdadeiramente no caminho da Reforma, e mostraram tambem ao povo o quanto Isabel era essencial para o triumpho do protestantismo. É talvez uma evidencia de que a rainha e os seus subditos protestantes se ligaram mais estreitamente o facto de Edmundo Grindal, clerigo de pronunciadas tendencias puritanas, ter sido collocado na sé de Canterbury, vaga em virtude da morte de Matheus Parker. Em todo o caso, Isabel, se não se mostrou menos intolerante no reino, reconheceu que era de seu dever enviar mais soccorro aos protestantes de fóra. Os huguenotes receberam um auxilio pecuniario. Os aventureiros inglezes, e entre elles Francisco Drake, tiveram permissão para fazerem todo o mal que podessem ao commercio hespanhol. Isabel mandou, mesmo, um corpo de exercito para ajudar os neerlandezes na sua guerra com a Hespanha. Este procedimento fez com que as forças catholicas romanas trabalhassem com mais ardor para a ruina da Inglaterra. Estabeleceu-se um seminario em Douay, e um collegio em Roma, onde se preparassem padres inglezes que iriam depois para o seu paiz promover agitação entre os romanistas. E eram continuos os rumores de novas conspirações para collocar Maria Stuart no throno de Inglaterra. Isabel e os seus conselheiros compenetraram-se, por fim, do perigo que ella corria. O parlamento promulgou que os missionarios romanistas ficavam sujeitos ás penalidades que correspondiam a crimes de alta traição, e quando se descobriu a conspiração de Babington, para assassinar Isabel e pôr Maria em liberdade, e se provou que Maria estava ao facto de toda a trama, ficou decidida a execução da rainha dos escocezes. Isabel não representou um papel muito heroico n’esta tragedia, mas adquiriu a certeza de ter, d’esta vez, quebrado todas as relações com Roma, assim como Roma e os poderes romanos não poderam deixar de reconhecer que o tempo das conspiratas tinha findado, e que, ou a Inglaterra seria subjugada, ou ter-se-hia de admittir a Reforma como um facto consumado. =A Armada hespanhola.=—Roma e Hespanha descobriram por fim o que o astuto Guilherme Cecil tinha descoberto desde o principio. «O imperador aspira á soberania da Europa, coisa que elle jámais poderá conseguir sem que seja suprimida a religião reformada; e não poderá esmagar a Reforma sem que primeiro esmague a Inglaterra». Carlos V tinha visto isso, mas não muito claramente, quando se mostrou tão ancioso por uma alliança com a Inglaterra, no principio do reinado de Maria. Filippe II viu-o quando se offereceu para marido de Isabel. Coube, finalmente, a vez ao papa, o qual, de mãos dadas com Filippe, fez convergir todos os seus esforços no sentido de subjugar a Inglaterra. A occasião era propicia. Filippe e a Santa Liga da França tinham, apparentemente, triumphado. A Inglaterra encontrava-se isolada. O papa Sixto V excommungou a rainha Isabel, e encarregou Filippe II de executar a sentença. Sua Santidade contribuiu tambem com uma grande quantia para ajuda da empreza. Os hespanhoes reuniram uma grande esquadra, com a qual se propunham atacaria Inglaterra, e, para ter mais seguro o bom exito, Alexandre de Parma, o mais habil general da Europa, recebeu ordem para partir dos Paizes Baixos com o mesmo destino, levando comsigo a flôridas tropas hespanholas. Isabel appellou para o patriotismo da nação, e esta não se fez surda ao seu appello. A Escocia, não obstante a execução de Maria, não quiz levantar-se contra a Inglaterra. A França permaneceu inactiva, pois que a liga não havia triumphado tanto como se suppozera e não tinha sido possivel extinguir os huguenotes. Toda a Inglaterra pegou em armas. Equiparam-se duzentos navios. A nação, fremente de enthusiamo, estava preparada para o ataque. A Armada, composta de numerosos vasos de guerra de grandes dimensões, aproou á Inglaterra, mas os ventos produziram-lhe enormes avarias antes de chegar ao seu destino. Os navios inglezes cercaram-n’a, e travaram com ella uma serie de combates navaes, que a pozeram em deploraveis condições. Um temporal medonho completou a obra; e a soberba frota, que os hespanhoes haviam equipado á custa de mil sacrificios, deu miseravelmente á costa, sendo pouquissimos os barcos que conseguiram chegar aos portos de onde haviam saido. Foi desde então que a protestante Inglaterra ficou sendo a maior potencia europeia. Não foi possivel supprimir a Reforma porque não foi possivel vencer a Inglaterra. É dificil dizer quanto o lado menos nobre de Isabel contribuiu para a consecução d’este resultado final; o que é certo é que ella administrou habilmente os recursos da nação, teve o maior cuidado em reprimir o enthusiasmo d’esta, até que a ella se podesse entregar sem perigo algum, e determinou, mediante o Acto de Uniformidade, cuja transgressão ficava sujeita a severas penas, unificar exteriormente a Inglaterra. Pode ser que os meios de que lançou mão não fossem reputados necessarios, mas attingiu, pelo menos, o fim que tinha em vista. =As prophecias.=—A nomeação de um arcebispo puritano não produziu os beneficios que se esperava. Isabel tinha o costume de demonstrar aos seus bispos que a supremacia real era uma coisa que existia de facto. A rigorosa suppressão da não-conformidade havia occasionado uma grande falta de ministros. Não era raro prover-se individuos sem aptidões para prégar. Certos pastores animados de bons intuitos promoviam reuniões clericaes, onde se discutia theologia e havia uma especie de curso de oratoria. Estas reuniões, que tinham algumas parecenças com os «Exercicios» da Escocia, e que eram, talvez, uma imitação d’elles, chamavam-se as «Prophecias». A rainha não gostava d’ellas. Ella não via, mesmo, a necessidade de se prégar sermões, e entendia que os ministros se deviam limitar a ler as _Homilias_ ás congregações. O arcebispo Grindal era favoravel a estas _Prophecias_, e quando a rainha lhe ordenou para as prohibir recusou-se a fazel-o. A rainha, enfurecida, ameaçou-o com a deposição, e chegou a suspendel-o do exercicio das suas funcções episcopaes. Esta suspensão durou até quasi ao fim da vida do arcebispo. =Os conventiculos.—Os pamphletos anti-prelaticios.=—Quando Grindal morreu, Whitgift, o irreconciliavel adversario de Cartwright e do puritanismo, foi elevado a arcebispo de Canterbury. A desastrosa politica da rainha, rigorosamente executada por elle, teve as suas naturaes consequencias. O povo, privado dos serviços dos clerigos a quem respeitava, e obrigado a ouvir outros que não tinham direitos nenhuns sobre elle, recusou-se a frequentar as egrejas. Reunia-se em casas particulares e n’outros logares apropriados, e ahi fazia oração e observava outros pormenores do culto publico. Estes conventiculos foram declarados illicitos, mas, apezar d’isso, eram cada vez mais numerosos. Surgiram as seitas não-conformistas. Knox na Escocia e Beza em Genebra alarmaram-se com o estado da Egreja na Inglaterra. Elles estavam ao facto das ameaças do poder catholico romano, e sabiam bem que o protestantismo inglez precisava de estar muito unido. Não sympathisavam de modo algum com o systema de Isabel, e, comtudo, eram de opinião que o horror dos puritanos pelos paramentos religiosos era algum tanto affectado e exaggerado. Escreveram aos dirigentes do partido, rogando-lhes que se conformassem, mas a espada da perseguição tinha penetrado demasiadamente nas suas almas. Impedidos de prégar, começaram a escrever, e por entre o povo foram apparecendo diversos pamphletos por elles publicados. O que se tornou mais notavel de tudo foi uma serie de opusculos chamados _Anti-prelaticios_. Esses opusculos atacavam o systema episcopal da Egreja de Inglaterra, e expunham com uma implacavel severidade as varias ceremonias papistas que ella ainda conservava. Um dos auctores, Nicolau Udal, foi descoberto, sendo executado em 1593. =A Reforma ingleza= ficou firmemente estabelecida depois da derrota da Armada hespanhola. A Inglaterra reconheceu finalmente que lhe competia dirigir os Estados protestantes da Europa; e, não obstante o caracter anomalo da Egreja reformada ingleza, o paiz soube tornar-se digno da sua posição. A Reforma ingleza, comtudo, era de um caracter tal que não pode ser facilmente comparado com o do movimento do mesmo genero que teve logar n’outros paizes. No primeiro periodo, um monarca caprichoso e absolutista obrigou o reino a desligar-se do papado, ao mesmo tempo que reprimia selvaticamente todas as tentativas de uma reforma religiosa, quer na doutrina quer no culto. Depois uma minoria da nação, onde figuravam, sem duvida, os homens de maior capacidade intellectual e de melhores sentimentos, tratou de promover uma reforma de doutrina e de culto. O movimento, empurrado, por assim dizer, de fóra, não foi bem acolhido pelo conjunto da nação, que, com a mudança de governo, voltou para o romanismo. No reinado de Isabel a nação começou realmente a interessar-se pela Reforma religiosa que havia agitado outros paizes, mas a supremacia real encerrou o movimento dentro de uns certos limites que fizeram com que elle não representasse verdadeiramente as aspirações da Egreja. Tem sido moda nos ultimos annos entre os escriptores anglicanos e ritualistas representarem a historia como se a Egreja tivesse sido levada pelo seu proprio discernimento a assumir a attitude que assumiu para com o romanismo, de um lado, e para com o decidido protestantismo, do outro; mas estas representações não são defendidas pela evidencia contemporanea. Os anglicanos fazem um grande cavallo de batalha do direito que a Egreja tinha de se governar a si mesma mediante a sua organização episcopal regularmente estabelecida; e empenham-se, tambem, em provar que a posição que elles chamam catholica, e que outros chamam anomala, foi assumida pela propria Egreja, actuando sob a direcção da sua regular jurisdicção episcopal; mas os factos que se relacionam com este caso são contra elles. A posição anomala de que se jactam não foi dada á Egreja pelos seus bispos, mas pelo poder civil que actuava mediante a supremacia real. Foi a supremacia real, de que elles não gostavam, que fez com que fosse possivel á Egreja o adquirir uma fórma tal que podesse dar ás suas theorias uma apparencia de base historica. Foi a supremacia real que alterou o Livro de Oração Commum de Eduardo VI, transformando-o n’um outro dentro de cujas formulas havia logar para pessoas que teriam preferido conservar-se catholicas romanas se considerações politicas não as obrigassem a passar para o lado protestante. Foi a supremacia real que insistiu em reter os paramentos e os ritos contra os quaes os puritanos se revoltaram, e que diligenciou reter as imagens, os crucifixos e a agua benta. Foi a supremacia real e o seu conselho da Alta Commissão—conselho que nada tinha que ver com o governo episcopal da Egreja, e que era de um caracter inteiramente erastiano—que estabeleceu a Acta da Uniformidade, e que impoz a conformidade sob pena de severos castigos, que podiam ser exoneração, multa, prisão e até perda da vida. Os cabeças ecclesiasticos, os bispos e o alto clero de Inglaterra tinham, pela maior parte, o desejo de pôr a Egreja de Inglaterra muito mais em harmonia, respectivamente á doutrina e ao culto, com as egrejas reformadas do Continente, que haviam tomado Genebra para modelo. Os bispos prepararam os _Os trinta e nove Artigos_, que o bispo Jewel, a quem os seus irmãos confiaram a ultima revisão, declarou que haviam sido redigidos com o proposito de mostrar que havia perfeita uniformidade de doutrina, e especialmente da que se refere ao sacramento da Ceia do Senhor, entre Genebra e Canterbury. Os bispos, se os deixassem fazer o que entendessem, teriam sensatamente tolerado as objecções dos puritanos quanto ás capas de asperges e ás sobrepelizes, e teriam preferido o Segundo Livro de Oração Commum de Eduardo VI, em uso havia muito tempo na presbyterianna Escocia, aquelle que foi indicado por Isabel para satisfazer os escrupulos dos catholicos romanos. Os bispos obrigaram a rainha a declarar-se contra as imagens, os crucifixos, a agua benta e o celibato do clero, isto é, contra todas as coisas que ella desejaria conservar; e compelliram-n’a a acceitar o Artigo vigesimo nono, que defende a theoria calvinista da Ceia do Senhor. Se os bispos tivessem tido liberdade de acção, haveria logar na Egreja de Inglaterra para os não-conformistas da actualidade, pois que a sua queixa, começando por ahi, não era contra o governo episcopal, mas contra os symbolos e ritos supersticiosos que lhes foram impostos pela rainha e pela sua Commissão: difficilmente, porém, haveria logar para os modernos ritualistas anglicanos. Devem a posição, que legal e historicamente lhes deve ser concedida, a duas coisas—(1) á supremacia real, que teve a força sufficiente para reprimir e ter sujeito a si o episcopal e nacional desejo de uma Reforma completa; e (2) ao facto de a uma numerosa parte do clero de Inglaterra serem tão indifferentes as mudanças que poderam conservar-se no exercicio das suas funcções durante os reinados de Eduardo, Maria e Isabel, isto é, sob o systema puritano, romanista e anglicano. A supremacia real deu á Egreja de Inglaterra o caracter claudicante da sua reforma, e habilitou as pessoas que vivem actualmente a fallar dos principios catholicos, isto é, medievaes, da Egreja ingleza. Os historiadores teem mostrado que Isabel tinha necessariamente de proceder da maneira cautelosa como procedeu, e, com aquella prepotencia que a caracterizava, obstar a que a Egreja do seu paiz se reformasse por completo. Ha alguma verdade no seu criticismo. Foi, comtudo, uma politica myope, que só tratava de acudir ás primeiras necessidades, e que obedecia muito ao principio de «depois de mim o diluvio.» Foi a supremacia real de Isabel, imposta mediante o tribunal da Alta Commissão, que preparou o caminho para a revolta puritana no reinado de Carlos I e para o dia do Negro Bartholomeu no reinado de Carlos II. Se a Egreja de Inglaterra tivesse sido entregue aos seus instinctos espirituaes, se a sua acção não tivesse sido contrariada pelo erastianismo, poder-se-hia ter evitado estas duas calamidades. IV PARTE OS PRINCIPIOS DA REFORMA CAPITULOS: I—OS PRINCIPIOS DA REFORMA. II—COMO A REFORMA SE POZ EM CONTACTO COM A POLITICA. III—A CATHOLICIDADE DOS REFORMADORES. IV—OS PRINCIPIOS DOUTRINARIOS. CAPITULO I OS PRINCIPIOS DA REFORMA A Reforma foi uma revivificação da religião no meio de particulares condições sociaes, pag. 205.—Uma revivificação da religião e uma approximação de Deus, pag. 206.—Como a Egreja medieval chegara a impedir o caminho para Deus, pag. 208.—Revoltas medievaes em favor de uma religião espiritual, pag. 209.—A imitação de Christo, pag. 209.—Francisco de Assis, pag. 210.—Os mysticos da Edade Media, pag. 211.—A significação do perdão, segundo a Reforma, pag. 212.—Previsões de uma revivificação religiosa operada pela Reforma, pag. 213. =A Reforma foi uma revivificação da religião no meio de particulares condições sociaes.=—O movimento da Reforma surgiu n’um dos mais notaveis periodos da historia europea. A tomada de Constantinopla pelos turcos ottomanos no meiado do seculo quinze dispersou por toda a Europa os thesouros litterarios e os sabios de aquella rica e illustrada cidade. Muitas pessoas começaram a estudar diligentemente os antigos auctores latinos; aprenderam a lingua grega, e sentiram despertar-se-lhes a sympathia pelos nobres pensamentos proferidos pelos velhos poetas e philosophos gregos; leram o Novo Testamento na lingua em que foi escripto; e os rabbis judeus encontraram, com grande surpreza sua, no mundo occidental, homens com immensa vontade de aprenderem a sua antiga lingua, o hebraico, e de estudarem o Velho Testamento guiados por elles. Um mundo de novas idéas, quer na poesia, quer na philosophia, quer na litteratura sagrada, se estava abrindo deante dos homens do periodo em que a Reforma appareceu. A descoberta da America por Colombo não só revolucionou o commercio e tudo quanto se relaciona com elle, como tambem excitou a imaginação da Europa. O que não poderiam os homens fazer, visto que tanto tinham feito já, tanto tinham descoberto? Tudo quanto se disse e se escreveu n’aquella epoca foi dito e escripto por homens que se julgavam em vesperas de grandes acontecimentos. Foi um tempo de universal expectativa. As condições politicas da Europa occidental tinham tambem mudado. Os seculos quatorze e quinze assistiram ao nascimento das modernas nações europeas. Haviam-se desprendido, umas apoz outras, do systema politico medieval, e tornado independentes, com sentimentos, sympathias e aspirações nacionaes, o que fez com que cada nação comprehendesse que tinha um caminho especial a percorrer. O resultado de tudo isto foi os homens sentirem que aquelle mundo de costumes sociaes e de restricção politica e religiosa em que tinham anteriormente vivido era pequeno de mais para elles; sentiram a necessidade de mais espaço para respirarem. O mundo era maior; a vida tinha muito mais aspectos do que aquelles que os paes d’elles tinham jámais posto na sua idéa. Iam desapparecendo as velhas coisas, e tudo era agora novo. Emquanto o medievalismo durou, a Egreja, o Imperio e a philosophia escolastica tinham dominado sobre as almas, os corpos e as mentes dos homens, e traçado limites que elles não podiam ultrapassar. Estas barreiras haviam-se desmoronado sob a influencia da nova vida que por todos os lados penetrava n’elles, e os homens descobriram que a religião era uma coisa maior do que a Santa Madre Egreja Catholica; que a vida social, com todas as suas ramificações, não cabia nos limites do Sacro Imperio Romano; que havia no coração do homem pensamentos que escapavam á perspicacia dos mais eminentes sabios. Em epocas anteriores alguns, mas poucos, pensadores tinham, com toda a ousadia, dado expressão a essas idéas e aspirações, lucrando apenas com isso o encontrarem-se na grave situação de isolamento social, como acontece a todos aquelles cujos pensamentos não são comprehendidos pelos homens do seu tempo. A invenção da imprensa tornou, porém, esses pensamentos propriedade commum, e as multidões principiaram a ser agitadas por elles. Taes eram as condições sociaes do mundo quando a Reforma appareceu; mas o movimento, em si, não pode ser explicado simplesmente por meio de uma descripção d’essas condições sociaes. Teve logar uma verdadeira renascença da religião, um cumprimento da promessa do derramamento do Espirito Santo sobre a Egreja, que o esperava, e o movimento religioso que surgiu n’uma tão especial conjunctura amoldou-se ás circumstancias, e tirou d’ellas mesmas a sua força. =Uma revivificação da religião e uma approximação de Deus.=—O que mais agita os corações dos homens que se encontram no meio de um grande movimento religioso dentro da Egreja christã é o desejo de se approximarem de Deus, de se sentirem em communhão pessoal com aquelle Deus que se mostrou cheio de graça e perdão mediante a vida e obra do Senhor Jesus Christo. Os homens que estão realmente sob a influencia de um grande despertamento religioso, e que são arrastados por um movimento de revivificação, devem sentir este anhelo; e coisa alguma deve contrarial-os mais do que depararam com o seu caminho atravancado de obstaculos exactamente no ponto onde esperavam ter accesso á presença divina. Quando, no seculo dezeseis, a religião começou a revivescer, e mesmo durante algum tempo depois, os homens que estavam sob a influencia d’essa revivificação encontraram no seu caminho as taes barreiras de que já falámos. A Egreja, que se intitulava a porta que dava accesso á presença de Deus, tinha atravancado o caminho com a sua classe sacerdotal, com a sua maneira de administrar os sacramentos, com a sua enfadonha lista de penitencias e «boas obras». A Egreja, que devia ter mostrado a vereda que conduzia á presença de Deus, parecia ter rodeiado o Seu santuario de um triplice muro que tornava difficilima a entrada. Quando um homem ou uma mulher sentia o peccado a atormentar-lhe o espirito, a Egreja dizia-lhe que fosse ter, não com Deus, mas com o homem, muitas vezes de vida immoral, e confessar-lhe tudo quanto havia feito ou pensado. Quando anhelavam por ouvir consoladoras palavras de perdão, era-lhes este assegurado, não por Deus, mas por um padre. A graça de Deus, de que o homem tanto precisa durante a vida, e de que tanto precisa tambem á hora da morte, era-lhes concedida por meio de uma serie de sacramentos a que tinham de sujeitar todos os passos que davam n’este mundo. Renasciam mediante o baptismo; adquiriam a sua maioridade perante a Egreja mediante a confirmação; o seu casamento ficava isento do peccado da concupiscencia mediante o sacramento do matrimonio; a penitencia restituia-os á vida, depois de terem commettido qualquer peccado mortal; o sacramento da Ceia do Senhor, administrado pelo menos uma vez por anno, alimentava-os espiritualmente; e, finalmente, a extrema unção garantia-lhes o descanço eterno quando se encontravam no leito da morte. Estas coisas não constituiam de maneira alguma os signaes da livre graça de Deus, sob cujo vasto docel o homem passa a sua vida espiritual. Eram, antes, umas portas guardadas com toda a vigilancia, e que os padres abriam de mau humor, e quasi sempre só depois de lhes pagarem, para dispensar aquella graça que Deus dá gratuitamente. Ninguem podia, tão pouco, viver livremente uma vida christã, dedicando ao serviço de Deus todos os talentos que possuia. Para se viver santamente era necessario observar umas tantas coisas que a Egreja prescrevia, como, por exemplo, os frequentes jejuns, as interminaveis rezas, as flagellações, e um conjuncto de tediosas ceremonias, que, se eram manifestações de amor a Deus, não o eram, comtudo, em conformidade com a maxima de S. João, beneficiando o proximo. A Egreja estava sempre como que de sentinella á presença, de Deus, proclamando a todos que, se almejassem por se approximar do compassivo Redemptor só o poderiam fazer passando pelas estreitas portas que ella guardava, e exigindo por essa passagem, isto é, pelo baptismo, pela confirmação, pelo casamento, e pelos restantes sacramentos, umas vis moedas, e inpondo de quando em quando uma compra de indulgencias, para acabar de encher os seus cofres. A grande Reforma foi um movimento religioso inspirado pelo irresistivel desejo de uma approximação de Deus, e satisfez cabalmente esse desejo levando deante de si, e fazendo desapparecer, todas as barreiras e obstaculos. =Como a Egreja medieval chegara a impedir o caminho para Deus.=—É natural que occorra esta pergunta: Como é possivel que a Egreja se esquecesse a tal ponto da sua missão e do verdadeiro fim da sua existencia que, como os reformadores constataram, estivesse fazendo exactamente o contrario de aquillo que devia fazer? A Egreja está no mundo para conduzir os homens a Deus, e para os conservar junto d’Elle; mas Luthero e os seus irmãos na fé haviam descoberto que ella se interpunha entre elles e Deus, e que os conservava longe d’Elle. Como poude a Egreja tornar-se uma coisa inteiramente opposta ao que era licito esperar que ella fosse? Como poude a Egreja de Deus converter-se, segundo a graphica expressão de Knox, «n’uma synanoga de Satanaz»? Para respondermos integralmente, ser-nos-hia necessario um espaço de que não podemos dispôr; vamos, porém, dar uma idéa geral do que se passou. «A separação do mundo» é uma das maximas da vida christã, symbolisada nos preceitos do Antigo Testamento, e incorporada nas normas da vida do Novo testamento. A Egreja devia viver separada do mundo, e, em todos os seculos, aquelles a quem coube a educação religiosa do mundo teem-se esforçado por mostrar que isso pode ser facilmente posto em pratica. Gregorio VII, mais conhecido pelo seu nome secular de Hildebrando, e que viveu no principio da Edade Media e foi o grande organizador da Egreja medieval, declarou que essa separação devia ser perfeitamente visivel; trabalhou para que a Egreja se convertesse no reino de Christo; e aquella sua opinião influiu muito no modo de ser da Egreja medieval. Nos seus dias todo o governo politico estava nas mãos do chefe do Imperio Romano, e Gregorio VII diligenciou fazer com que o reino de Christo fosse tão visivel como esse imperio, e se constituisse em seu rival sobre a terra. A idéa não era original, e quem a havia inspirado fôra o grande Agostinho, mas Gregorio deu-lhe uma fórma pratica. Nas suas mãos a Egreja tornou-se um reino em contraposição ao Imperio Romano da Edade Media, seu adversario visivel. Isto não se poderia fazer sem transformar a Egreja n’uma monarquia politica, pois que não pode haver comparação entre duas coisas a não ser que sejam fundamentalmente analogas. O grande, o fatal, defeito n’aquela idéa de separação do mundo, em que Gregorio andava absorvido, proveiu do facto d’elle tomar uma parte do mundo, isto é, o Imperio politico, pelo mundo todo de que era necessario haver separação, de modo que a Egreja ficou separada do imperio, mas não ficou separada do mundo. A Egreja era santa, era espiritual, era o reino de Deus; todas estas phrases, empregadas na Escriptura para descrever o parentesco espiritual entre Deus e o seu povo foram malignamente applicadas a esta organização politica visivelmente separada do Imperio politico da Edade Media. Um homem era chamado _santo_ se pertencia a um dos reinos, e secular se pertencia ao outro; um frade era um homem _santo_, um guarda do imperador era um homem secular. Um campo era _santo_ se um papa ou um clerigo qualquer recebia a respectiva renda; era secular se o proprietario não tinha ordens ecclesiasticas. Todas as palavras e phrases que se deviam reservar para quando se tratasse de assumptos espirituaes eram applicadas na descripção de aquillo que era visivel e externo, de aquillo que pertencia áquelle reino visivel a que se dera o nome de Egreja. A Egreja era aquella organização dentro da qual se rendia culto a Deus; era a esphera da religião; e quando, de caso pensado, ou em virtude do modo habitual de fallar, se ensinou aos homens que a Egreja era simplesmente uma sociedade visivel, a religião espiritual decaiu, sendo substituida por uma outra que consistia apenas na observancia de um certo numero de ceremonias. Esta petrificação da Egreja e da religião tornou-se cada vez mais intoleravel, e contra ella se protestou praticamente mediante diversas tentativas de revivificação. Quando a Reforma appareceu era já impossivel supportal-a por mais tempo, e os homens insistiram em que os nomes espirituaes fossem applicados ás coisas espirituaes, ou, por outra, em que não se fizesse uso d’elles para desencaminhar as almas piedosas. =Revoltas medievaes em favor da religião espiritual. A imitação de Christo.=—Posto que a Egreja medieval tivesse tendencia para se tornar cada vez mais um reino politico, e cada vez menos uma egreja, não se deve suppôr que durante a Edade Media não houvesse religião espiritual. O Livro de Oração Commum da Egreja de Inglaterra era quasi todo copiado de antigos livros cultuaes, escriptos n’uma epoca em que a idéa de Egreja andava geralmente ligada á idéa de politica, e é innegavel que esse livro está impregnado de um profundo sentimento religioso. Muitos dos hymnos que eram cantados no culto publico por todas as egrejas protestantes foram originalmente compostos por devotos poetas medievaes, que dedicavam os seus talentos á causa de Christo. Esta religião espiritual tinha a sua existencia dentro da Egreja medieval, e não estava em antagonismo com o ritual d’esta. É que quasi nunca se chegou a pôr em contacto com as theorias e doutrinas que eram não-espirituaes e friamente politicas. Vivia comsigo mesma, n’uma verdadeira separação do mundo, sem procurar definir as suas idéas, ou descutir o facto de terem os guias politicos da Egreja restringido o sentido das phrases evangelicas. Vieram, porém, tempos em que os homens se sentiram estimulados a exprimir os seus pensamentos, e o modo como os exprimiam nem sempre estava em harmonia com as definições dos estadistas ecclesiasticos. Para exemplificação d’isto, vamos passar em revista dois periodos de reviviscencia. =Francisco de Assis.=—Francisco de Assis, commovido pelas dolorosas scenas que observava nas cidades, onde a população indigente, pela maior parte composta de camponezes que haviam deixado as suas terras para se livrarem do pagamento das contribuições e dos pesados serviços a que os senhores feudaes, cheios de rapacidade, os obrigavam, vivia em miseraveis e repellentes bairros, resolveu consagrar a sua vida ao ensino espiritual d’esses parias da sociedade. E poz enthusiasticamente mãos á obra, não com infatuação, nem movido por qualquer interesse, mas como sob a influencia de uma grande idéa. Essa grande idéa era a tal maxima da «separação do mundo», a mesma que, erradamente interpretada, havia tornado politica a Egreja; mas elle deu-lhe outro sentido. A separação do mundo não podia, segundo a sua opinião, ser explicada por meio de dois espaços—um d’elles occupado pela Egreja e outro pela sociedade politica; tinha de baseiar-se na conducta individual. Gregorio VII tinha definido a separação de uma maneira negativa; havia dito «A Egreja é uma coisa que o mundo não é, e está onde o mundo não está.» Francisco definiu-a de um modo mais claro e mais descriptivo. A separação do mundo não consiste em estar onde Christo está, mas em fazer o que Christo fez. Francisco havia-se apossado de uma idéa que Anselmo de Chanterbury expozera n’uma arida fórma escolastica, a da _imitação de Christo_; e foi com o auxilio d’essa idéa que poude descrever a verdadeira e individual separação do mundo, muito differente da separação politica de Gregorio VII. Anselmo e Bernardo de Clairvaux tinham, um de uma maneira fria e dogmatica, e outro n’um estylo de fervoroso prégador da renascença, feito uso d’esta imitação de Christo, affirmando ser ella o unico meio de os homens se aproveitarem dos beneficios que Christo lhes alcançou. Os peccadores podem tomar parte na obra de Christo imitando-O. Francisco pegou, por assim dizer, n’esta idéa e, ligando-a com a maxima da separação do mundo, disse: «Eis aqui a verdadeira separação. Christo não era d’este mundo. O Seu reino não era d’este mundo. A separação do mundo é posta em pratica quando os homens teem sentimentos analogos aos de Christo.» Francisco, porém, vivia n’uma epoca em que os homens não tinham grande largueza de vistas, e a vida e obra de Christo, assim como a Sua separação do mundo, apresentavam-se-lhe claramente, mas de uma maneira limitada. Nosso Senhor não era casado; estava separado da vida social que provém do casamento. Era pobre; estava separado do mundo da riqueza, do mundo possuidor de bens. Levou a Sua obediencia até ao ponto de Se deixar matar; estava separado do mundo da livre vontade, da independencia de vida e de acção. Prendeu-se a estes aspectos exteriores da vida de Christo; fez consistir a imitação de Christo e a consequente separação do mundo n’estes modos visiveis de proceder como Christo; e imitar Christo ficou significando, entre os seus adeptos, fazer votos monasticos de pobreza, castidade e obediencia. O movimento revivificador dirigido por elle produziu grandes resultados e teve um rapido successo; mas, como todos os outros movimentos que se baseiam em imitaçõees exteriores da vida divina, depressa deixou de impulsionar os espiritos, e os homens piedosos pozeram-se á procura de uma melhor separação do mundo, uma separação mais profunda, e de uma mais genuina imitação de Christo. =Os Mysticos medievaes.=—Os mysticos julgaram ter encontrado uma solução para o problema. A imitação de Christo e a separação do mundo á maneira de Christo deviam, disseram elles, ser mais profunda e mais intima. Deviam ser postas em connexão com uma religião espiritual, pois que é a alma, e não aquillo que a cerca, que deve approximar-se de Christo, afim de O imitar e de O seguir na Sua separação do mundo. O homem tem, disseram elles, uma vida dupla; uma vida intrinseca, que é propriamente a vida da alma, e uma vida exterior, uma vida visivel, passada no meio da sociedade. Põe-se em communhão com Deus, não mediante aquella vida exterior, que todos os homens vivem, mas mediante a que possue espiritualmente, mediante a vida da alma. A separação do mundo não consiste n’uma norma de proceder, n’uma separação de parte de aquella vida visivel que todos teem necessariamente de viver, pois que separação do mundo significa communhão com Deus, e essa communhão não tem logar de uma fórma visivel, mas muita reconditamente, quando a alma se encontra a sós com Elle. Os homens deviam renunciar a todas as affeições, a todos os desejos, a todos os actos que podessem impedir a communhão da alma com Deus, e entregar-se, n’uma deliberada solidão, áquelle Christo que está sempre prompto a acolher o Seu povo. Tinham, como se vê, ácerca da separação do mundo, a mesma idéa de Gregorio. Ligavam-n’a com aquella idéa de imitação de Christo, em que Francisco de Assis tanto insistia. Vivendo, porém, n’uma epoca calamitosa, em que abundavam as guerras, em que abundavam as fomes, em que abundavam as epidemias, foram levados a reconhecer, como a ninguem, antes ou depois d’elles, tem succedido, que o reino de Deus está no interior dos corações. A renuncia ficou sendo a sua senha, e essa sua renuncia era toda espiritual, e com ella se armaram para soffrer pacientemente tudo quanto a Deus, na Sua Providencia, aprouvesse enviar-lhes. Mostraram a Luthero o que vinha a ser religião espiritual, mostraram-lhe que a religião deve, para ter esse nome, ser espiritual, e approximaram-se, indubitavelmente, mais de Christo do que Gregorio com a sua Egreja politica ou do que Francisco de Assis com a sua pictorica imitação dos aspectos da vida de Christo no mundo. =A significação do perdão, segundo a Reforma.=—Todos estes movimentos eram revivificações da religião. Eram todos elles tentativas para se chegar a uma verdadeira separação do mundo, que é o mesmo que approximação de Deus. A Egreja sustentou esta prolongada lucta como preparação para a Reforma, fazendo dos seus proprios desenganos outras tantas alpondras para attingir coisas mais elevadas. E Luthero passou por todas ellas. Como Gregorio VII, reconheceu a irresistivel força das reivindicações da consciencia quando, a despeito da opposição da familia, deixou de estudar direito para estudar theologia. Foi Francisco de Assis quando pensou que a vida monastica e a imitação de Christo segundo as regras monacaes lhe proporcionariam aquella paz da alma que é o fructo de uma convivencia com Christo. Foi João Tauler ou Nicolau de Basiléa quando se inteirou de que a religião, para ser verdadeira, deve ser espiritual. Mas ainda assim elle não ficou satisfeito. Não se sentiu tão perto de Deus em Christo como sabia que lhe era indispensavel estar senão depois de experimentar aquella bem-aventurada sensação de perdão pela qual anhelava. E porque havia feito esta pergunta, «Como hei de eu adquirir a certeza do perdão? Como hei de eu transpôr essa insuperavel barreira do peccado que se ergue entre mim e o Deus de toda a santidade?» e considerara este ponto como de summa importancia durante todo o periodo em que o seu espirito passou por varias vicissitudes, é que poude fallar em nome de milhares de pessoas piedosas que almejavam por aquella revivificação da religião que a Reforma effectuou. Durante toda a Edade Media, de que a devoção foi um dos principaes caracteristicos, se desejou ardentemente viver perto de Deus, mas esse desejo era manifestado mediante differentes perguntas, e cada tentativa de revivificação tornava mais evidente a possibilidade de que elle fosse satisfeito, Gregorio perguntava: «Como posso eu separar-me do mundo?» Francisco de Assis dizia: «Como posso eu tornar-me similhante a Christo?» Os mysticos perguntavam: «Como posso eu ter o sentimento do perdão, e saber que Deus me perdoou os pecados?» Todos luctam com a mesma dificuldade, todos desejam a mesma coisa; está-se cada vez mais perto da solução do problema, á medida que as gerações se succedem, até que por fim vieram os reformadores, que com tanto zelo procuraram revivificar a religião, e pozeram em primeiro logar a questão do perdão, e, conseguintemente, a do peccado, tocando assim no ponto principal. Desembaracemo-nos do peccado, disseram elles; alcancemos o perdão, e haverá então separação do mundo, imitação de Christo e communhão com Deus. A revivificação da religião operada pela Reforma fez da espiritualidade o ponto de partida, e corresponde-lhe sempre do mesmo modo. Os homens alcançam o perdão de Deus indo pedil-o directamente a Deus, e confiando na Sua promessa de que perdoaria. A livre e clemente graça de Deus, revelada na pessoa e obra de Christo, e a confiança do homem n’essa promettida graça são os dois polos entre os quaes vibra sempre a vida religiosa da Reforma. Deus, por amor de Christo, prometteu perdoar o peccado do Seu povo. O peccador confia n’essa promessa. Tal é o simples aspecto religioso do movimento da Reforma. Todos aquelles que, sentindo a necessidade do perdão, e tendo perfeita confiança na promessa do perdão que Deus fez mediante Christo Jesus, vão ter com Elle, e, deixando de pensar em si e no que podem fazer, descançam simplesmente n’essa promessa e entregam tudo a Deus, são perdoados e teem a consciencia d’isso. =Previsões de uma revivificação religiosa operada pela Reforma.=—Sendo este o verdadeiro modo de encarar o movimento da Reforma, é manifesto que elle não constituiu um caso singular, isolado, na historia da Egreja. Todos os christãos piedosos teem sentido pouco mais ou menos a mesma coisa, o seu espirito tem passado pelos mesmos transes. Teem ido ter com Deus para serem perdoados; teem confiado na obra de Christo e na promessa de Deus revelada n’essa obra. As orações de todas as gerações christãs dão d’isso testemunho, os hymnos que se referem á vida do christão dizem a mesma coisa, e o que a Reforma fez foi definir claramente que todos os christãos tinham, com mais ou menos consciencia do facto, sentido. Os christãos medievaes não tinham reconhecido que o que espiritualmente experimentavam, e que era a linha central da sua vida religiosa, estava, n’uma multiplicidade de modos, em contradicção com o credo, o culto e a organização theoretica da sua Egreja. Não ha nada mais surprehendente do que o contraste entre as exposições doutrinaes e as posições ecclesiasticas de muitos e distinctos vultos da Egreja medieval e os hymnos que elles não sómente cantavam como escreviam e as phrases que empregavam nas suas orações. A sua theologia tinha muitos pontos de contacto com a philosophia pagã de Aristoteles, no seu culto estavam consubstanciados muitos ritos do paganismo, a fórma como a Sua Egreja era dirigida era mais modelada na constituição do imperio romano do que na constituição da Egreja do Novo Testamento; os christãos piedosos viveram n’estas heterogeneas circumstancias até ao momento em que os elementos pagãos que haviam sido introduzidos na sua Egreja se tornaram tão preponderantes que elles se viram forçados a protestar contra elles. Luthero achou o perdão antes de se haver desligado de Roma, e talvez que nunca fosse compellido a revoltar-se se o paganismo que havia na Egreja não tivesse tido a audacia de vender o perdão de Deus por dinheiro. Isso levou-o, a elle e a muitos outros, a dar attenção a certos assumptos, e compenetrou-se de que a venda do perdão dos peccados não era uma horrivel profanação enxertada na Egreja que elles veneravam, mas sim uma verdadeira e logica deducção de principios com que elles não se tinham até ali preoccupado. Quando, pois, quizermos investigar os antecedentes da Reforma, devemos procural-os n’aquelle evangelismo que sempre existiu na Egreja medieval, manifestando-se na santidade da vida, na nobreza dos hymnos, nas confissões do peccado, e na confiança nas promessas do Deus do pacto. Os protestantes não precisam de reivindicar a sua affinidade com homens cujo unico signal de vida religiosa consiste em não terem reconhecido a auctoridade do papa, ou terem protestado contra o viver religioso do seu tempo, em favor de idéas extraidas do mahometanismo ou dos auctores pagãos. Teem uma mais nobre ascendencia em todos esses homens e mulheres piedosas que, mesmo nos seculos mais obscuros da Egreja, foram ter directamente com Deus, confiados, tanto no tocante á vida presente como no tocante á vida futura, n’aquelle perdão e graça renovadora que Elle revelou em Christo. CAPITULO II COMO A REFORMA SE POZ EM CONTACTO COM A POLITICA O velho systema ecclesiastico estava profundamente arraigado na vida social da epoca, pag. 215.—A Reforma desfez a nação medieval de uma sociedade politica, pag. 216.—Revolta contra o medievalismo, anteriormente á Reforma, pag. 217.—O _De Monarchia_ de Dante e o _Defensor Pacis_ de Marcello de Padua, pag. 218. =O velho systema ecclesiastico estava profundamente arraigado na vida social da epoca.=—A Reforma começou simplesmente como uma tentativa de dar o culto a Deus de uma maneira mais simples, segundo os dictames da consciencia e os impulsos da vida interior, da vida espiritual; mas não podia ficar por ahi; significou por fim uma revolução nas condições da sociedade e uma grande mudança na situação politica da Europa. A Egreja medieval era muito rica, e possuia muitos bens de raiz, e quando uma freguezia, ou uma provincia, ou um paiz se tornava protestante, levantavam-se discussões sobre o destino a dar a estas propriedades. Deviam ficar em poder dos padres, deviam passar para o do pastor protestante, ou deviam as auctoridades civis tomar conta d’ellas e administral-as como bens do Estado? A Egreja tinha o direito de cobrar dizimos—o dizimo grande, ou a decima parte da colheita do trigo ou do vinho, e o dizimo pequeno, ou a decima parte das ovelhas, dos vitellos, dos porcos e dos ovos. Os padres e os frades recebiam remuneração pelos baptismos, pelos casamentos, pelas confirmações e pelos enterros. Quando as familias se tornavam protestantes, e dispensavam os serviços dos clerigos da Egreja medieval, por não se quererem sujeitar a ritos supersticiosos, aonde ir buscar aquelles dizimos e aquelles emolumentos? A permissão para se render culto a Deus segundo as consciencias preceituavam envolvia questões de dinheiro, que eram muitas vezes levadas aos tribunaes, e que obrigaram, mesmo, a uma modificação das leis concernentes á propriedade. A Egreja medieval tinha o seu systema de celibato. Os clerigos não podiam casar, e, alem dos parocos e dos curas, havia frades e freiras celibatarias e que haviam feito votos de castidade, sanccionados pelo Estado. Quando qualquer d’estes homens ou mulheres se tornasse protestante, ser-lhe-hia permittido desligar-se dos votos e abandonar o convento? e, no caso de ter levado dinheiro comsigo para o convento, ser-lhe-hia restituido? Se todos os moradores de uma casa religiosa abraçassem a fé protestante, poderiam conservar-se n’essa casa, e continuar disfructando a respectiva dotação? A todas estas questões juridicas deu logar a Reforma. Mas havia outras questões muito mais graves. A Egreja medieval, segundo o costume da epoca, tinha jurisdicção sobre muitos pleitos, que na Europa moderna são julgados pelos tribunaes civis. As questões entre marido e mulher, entre paes e filhos, e as que diziam respeito a heranças e testamentos, estavam na alçada dos tribunaes ecclesiasticos, e nunca eram submettidos ás instancias ordinarias do reino. A Egreja é que decidia se um casamento era ou não legal, se este ou aquelle grau era prohibido, se este ou aquelle filho era legitimo, etc. Estas questões levantavam sempre comsigo uma outra, a da propriedade, pois que só os filhos ligitimos podiam herdar os bens de seus paes. Só era licito o casamento que fosse feito dentro dos graus auctorizados, e effectuado á face da Egreja por um sacerdote ordenado. E isto porque, em conformidade com as idéas da Egreja medieval, o matrimonio era um sacramento. E assim protestante algum podia estar legalmente casado, porque a legalidade de um matrimonio só podia provir de um sacramento que não podia ser administrado a rebeldes, por constituir um acto de desobediencia á auctoridade da Egreja. E a lei da Egreja era a lei da nação; pois que antes da Reforma a Egreja tinha o direito de resolver todos estes casos. A não ser que as leis fossem alteradas, filho algum de protestantes, casados por pastores protestantes, podia herdar de seus paes, pois que, segundo a lei da Egreja medieval, os paes não tinham contraido um casamento legal. E, portanto, não andavam sómente envolvidas n’isto as questões que diziam respeito á propriedade; affectava-se tambem a honra pessoal, e a dignidade das esposas e dos filhos. Poderiamos multiplicar os casos indefinidamente; mas os que citámos são sufficientes para mostrar como o simples desejo de dar culto a Deus segundo a consciencia alterou todas as condições da vida social. O velho systema ecclesiastico descia até aos proprios alicerces da vida quotidiana, e tudo apertava nas suas garras. A Reforma, ao atacal-o, atacou por esse facto todas as leis: a da propriedade, a do casamento, e a da hereditariedade. =A Reforma desfez a noção medieval de uma sociedade politica.=—Segundo as noções medievaes, a sociedade estava dividida em Egreja e em Estado politico. O poder ecclesiastico estava todo centralizado na pessoa do papa, que era o sacerdote universal; e o poder civil estava todo centralizado na pessoa do imperador, que era o soberano universal. Um era sacerdote dos sacerdotes, e o bispo dos bispos, e o outro era o rei dos reis. Um homem pertencia á Egreja se estava sob a jurisdicção do papa; era membro da sociedade civil se estava sob o dominio do imperador. Tres poderosos chefes francos tinham, uns apoz outros, no fim do seculo oitavo, proporcionado ao christianismo o dilatar-se, sem ser incommodado, n’uma parte da Europa occidental. Com os seus fortes exercitos obstaram ao avanço das hordas dos barbaros frisios e saxonios que pretendiam opprimir a Europa com uma nova Dispersão das Nações, e obrigaram os serracenos a retroceder para alem dos Pyrinéus. Como preito de gratidão, o papa havia conferido a Carlos Magno, o ultimo dos tres, o titulo de Imperador dos Romanos e reunido em volta d’elle o prestigio do nome romano e tudo quanto restava das leis, artes e sciencias romanas. O imperio assim estabelecido apresentava um estranho dualismo. Tinha um chefe civil e outro espiritual, Cesar e o papa; e toda a jurisprudencia europea se fundava na dupla theoria da representação; o imperador era reputado o vigario de Deus nos negocios civis, ou terrestres, ao passo que o papa governava em nome de Deus nas coisas espirituaes. Segundo as noções medievaes, quando um homem recusava obedecer ao papa no que dizia respeito ás materias espirituaes rebellava-se contra a sociedade, pois que esta se baseava na idéa de que o papa e o imperador eram os senhores supremos. O protestantismo quebrou esta união dos dois elementos da christandade, que se affigurava necessaria para dar á sociedade uma existencia politica e mantel-a sobre uma firme base moral. =Revolta contra o medievalismo, anteriormente á Reforma.=—As idéas medievaes tinham soffrido alguma coisa antes de apparecer a Reforma. O nascimento das nações modernas, com os seus interesses em separado, o que dava origem a constantes conflictos, e com as suas aspirações de completa independencia, vibrou um golpe á noção medieval de christandade indivizivel. Este sentimento de independencia nacional significava revolta contra o imperador, a qual foi seguida, de uma fórma menos perceptivel, de sedições nacionaes contra o papa. A lei ingleza de _Proemunire_, que prohibe appellações para Roma, significava que existia no reino de Inglaterra uma jurisdicção de que não se podia appellar; e isso era uma revolta contra a noção medieval da christandade unida, segundo a qual todas as appellações deviam ser depostas junto do throno do imperador ou da cadeira do papa. Noções independentes queria dizer egrejas independentes, e a revolta de Henrique VIII não teve maior significação do que a de Eduardo III ou a de Filippe, o Bello. A theoria gauleza foi, n’uma epoca posterior, uma revolta contra a mesma idéa medieval de centralizar em Roma o poder ecclesiastico. A Reforma intensificou esta revolta. Deu-lhe um sentido mais amplo; tornou-a permanente; animou a tendencia para a descentralização. Depois de ter surgido a Reforma as nações tiveram mais um motivo para dissenções, pois que a differença de credo indispôl-as umas com as outras. Os mysticos medievaes, com as suas theorias de religião espiritual, tinham dado pouca importancia ás idéas de unidade politica e ecclesiastica que prevaleciam então na Europa, mas não as atacaram. A convicção em que estavam de que a religião consiste n’uma communhão espiritual com Deus tornava-os extremamente indifferentes a todas as combinações e associações extrinsecas. De todos os reformadores só Luthero mostrou partilhar o seu quietismo, ou passiva indifferença, perante a união politico-ecclesiastica. A Reforma, porém, não era um simples movimento individualista; fez ver a conveniencia de os homens se ligarem uns com os outros, com a differença, comtudo, de que o centro d’esse movimento associativo, d’essa força colligadora, não era aquelle que as nações medievaes indicavam. Nutria a vida nacional; os homens, pela razão de terem combatido lado a lado, de terem vivido no mesmo paiz, de terem herdado as mesmas tradições, de terem soffrido os mesmos infortunios, mantinham entre si uma especie de unidade espiritual. As egrejas nacionaes, as protestantes, obedeciam a esta nova lei de desenvolvimento do interior para o exterior. A Reforma, que operou uma tão completa separação de Roma, e que, apezar d’isso, não destruiu a sociedade, mostrou a todos os homens que podia haver vida social e communhão religiosa sem aquella pressão exterior, sem que as idéas de ordem e associação andassem ligadas á idéa de um imperio e uma egreja universaes. A noção medieval de uma Europa unificada constrangia todas as nações a obedecerem a um poder central, que residia no imperador; a noção reformista era a de uma fraternidade de povos. =A De Monarchia de Dante (1311-1313), e o Defensor Pacis (1324-1326), de Marcello de Padua.=—Appareceram dois notaveis livros antes da Reforma, um que pertencia ao passado que ia desapparecendo, e outro que pertencia ao futuro que se avisinhava. Dante, lamentando as interminaveis contendas dos estados italianos e das nações europeas, escreveu a sua _De Monarchia_ para mostrar aos seus contemporaneos como podiam viver em paz. O que elle propunha era o restabelecimento, em toda a sua força, do velho imperio medieval, o qual, mesmo visto do seu lado melhor, pouco mais era do que um sonho, conservando o seu poderio mediante o poder que tinha de arrebatar a imaginação, O reinado da paz universal teria logar, pensava elle, quando se restabelecesse o poderoso imperio dos Cesares ou de Carlos Magno, isto é, quando um energico imperador, com a sua côrte no centro do mundo civilisado, ouvisse e julgasse os casos que de todos os pontos da terra fossem submettidos á sua decisão final, e fizesse sentir o peso da sua ferrea mão a todos aquelles que armassem contendas com os seus irmãos. Este livro é o epitaphio do medievalismo. Marcello de Padua, pouco mais ou menos pelo mesmo tempo, escreveu o seu livro, o _Defensor Pacis_, que explicava como a verdadeira paz e segurança nacional começam de dentro. Para Marcello o Estado é o povo, e do povo—dos seu desejos, das suas aspirações, dos seus temores, dos seus intentos—é que provém a vida nacional. O governo é do povo e para o povo. E o mesmo se dá com a Egreja. O seu governo é ministerial; o seu poder é derivado de aquelles sobre quem se exerce. Emquanto Dante procurava um poder compellidor que operasse de fóra, Marcello predizia que a força que havia de dominar as nações não podia deixar de ser uma força auto-coerciva que tivesse a sua origem no proprio povo. A Reforma contribuiu para que essa predicção se cumprisse, e para que as suas theorias viessem a constituir uma descripção da vida politica e social da actualidade. Tal foi a revolução politica effectuada pela Reforma. Mudou o centro da vida nacional de uma força repressora exterior para uma invisivel fonte de acção. Fez para a vida politica da Europa o que Kepler fez para a astronomia e Kant para a metaphysica: mudou o centro de fóra para dentro. CAPITULO III A CATHOLICIDADE DOS REFORMADORES Os reformadores não tinham em mente crear uma nova Egreja, pag. 221.—Reivindicaram a sua posição por meio de um apello á Constituição do Imperio medieval, pag. 221.—A catholicidade da Reforma, segundo Luthero e Calvino, pag. 222.—A sua posição reivindicada pelo Credo dos Apostolos, pag. 223. =Os reformadores não tinham em mente crear uma nova Egreja.=—Nenhum dos reformadores—nem Luthero, nem Zwinglio, nem Calvino—pensou que procurando dar culto a Deus da maneira mais simples que a Escriptura aconselhava, e que a sua experiencia espiritual approvava, se estava afastando da Egreja. Estavam abandonando o papa, e recusando ter communhão espiritual com elle; mas continuavam, no seu entender, a pertencer á Egreja em que tinham nascido, pela qual haviam sido baptizados, e em cuja communhão tinham prestado culto a Deus desde a infancia. Elles não pensavam que a Reforma queria dizer deixarem a Egreja de seus antepassados. Não tinham desejo algum de fazer uma nova Egreja, e ainda menos de crear uma nova religião. A religião que elles professavam era a religião do Velho e do Novo Testamento, a religião dos santos de Deus desde os dias de Pentecoste. A Egreja a que elles pertenciam desde a sua separação de Roma era a Egreja doa Apostolos, dos Martyres e dos Padres. Era a Egreja em que Deus tinha sido adorado, em que Christo havia sido acreditado, e em que se havia sentido a presença do Espirito Santo, desde o tempo dos apostolos até aos seus dias. A Reforma conservava-os dentro da Egreja de seus paes, pensavam elles; não os tirava d’ella. Como poderiam elles mostrar a toda a gente a evidencia d’esse facto, a que davam tão grande importancia? =Reivindicaram a sua posição por meio de um appello á Constituição do Imperio medieval.=—Os reformadores tinham-se desligado do papa, e não viviam mais em communhão com elle ou com a curia romana. No seu tempo, porém, estar na Egreja era ter communhão com o papa e com Roma. Estar fóra do districto dos cuidados pastoraes do papa significava, n’aquelles tempos de excommunhões e interdicções por atacado, estar fóra dos privilegios da Egreja. Se o papa recusava ter communhão com qualquer homem, ou cidade, ou provincia, e a tornava interdicta, ou a excommungava, eram, por esse facto, interrompidos todos os serviços religiosos. Emquanto sobre aquella area pesasse a excommunhão, não podia haver baptismos, nem casamentos, nem confortos espirituaes á hora da morte. As egrejas permaneciam fechadas, e todos os serviços do culto publico ficavam suspensos até ser levantada a excommunhão. Segundo as idéas da epoca, não ter communhão com o papa era estar fóra da Egreja. Era difficil demonstrar o contrario, de um modo claro, sem auxilio de uma argumentação theologica. O intelligentissimo espirito de Luthero descobriu um meio de mostrar ao povo que a Egreja não se limitava ao circulo formado por aquelles que estavam em communhão com o papa. O Santo Imperio Romano da Edade Media era mais do que um estado politico; era tambem, sob um certo ponto de vista, uma Egreja. O seu imperador recebera ordens de sub-diacono. Chamava-se-lhe a Christandade. E, acima de tudo, os seus cidadãos deviam a posição que occupavam dentro dos seus limites protectores ao facto de terem acceite o Credo Niceno sob a fórma latina approvada pelo papa Damaso. A Edade Media apresentava, portanto, a Egreja de Christo sob dois aspectos: um era o da communhão com o papa, e o outro o da posição que occupava no Imperio Romano. Luthero manteve ostensivamente o seu direito de cidadão do imperio. Declarou uma e outra vez a sua adhesão ao Credo Niceno sob a fórma prescripta. Era, segundo a distincção feita pelo imperador, um christão orthodoxo. Estava dentro da christandade, era membro da grande communidade christã, posto que não estivesse em communhão com o papa. Luthero aproveitou-se do caracter ecclesiastico do imperio da Edade Media; teve o cuidado de declarar, o mais manifestamente possivel, que era subdito do imperio, e que era, portanto, segundo a antiga classificação ecclesiastica, christão, e membro da Egreja christã, ainda que não estivesse em communhão com Roma. Fez com que aos seus contemporaneos se tornasse evidente que a Egreja era mais ampla, mesmo segundo as noções medievaes, do que a communhão com Roma. Elle proprio estava fóra da communhão com Roma, e, comtudo, era membro da christandade, e estava, por conseguinte, dentro da Egreja. =A catholicidade da Reforma, segundo Luthero e Calvino.=—O imperio medieval tinha o Credo Niceno como marca dos seus cidadãos, e a sua dilatação era, portanto, egual á da Egreja christã. Luthero, para mostrar que, não obstante haver-se desligado de Roma, não tinha abandonado a Egreja Catholica de Christo, pegou no Credo dos Apostolos, no Credo Niceno, e no Credo de Athanasio, e publicou-os como sendo a sua confissão de fé. Diz elle no seu prefacio: «Reuni e publiquei estes tres Credos, ou Confissões, em allemão, Confissões que teem sido até hoje sustentadas por toda a Egreja; e com estas publicação testifico, de uma vez para sempre, que adhiro á verdadeira Egreja de Christo, que até agora tem mantido estas Confissões, mas não aquella falsa e pretenciosa Egreja, que é a peor inimiga da verdadeira Egreja, e que tem collocado subrepticiamente muita idolatria a par d’estas bellas Confissões.» Além d’isso, no seu tratado de controversia contra os erros da Egreja Romana, seguiu a orientação do prefacio que acabamos de citar. Intitulou-o _Sobre o Captiveiro Babylonico da Egreja de Deus_. Diligenciou provar que a Egreja tinha sido levada captiva pelo papa e pela curia, exactamente como acontecera aos israelitas quando foram transportados para Babylonia. A Egreja, libertada do jugo romano, ficava com todos os privilegios que a Egreja de Deus sempre tivera, e ficava, além d’isso, livre da escravidão. A Reforma, na opinião de Luthero, tirou a Egreja de um captiveiro peior do que o de Babylonia, e os vultos da Reforma eram homens comparaveis a Zorobabel, Esdras e Nehemias. Não estavam fundando uma nova Egreja, estavam reconduzindo a antiga Egreja dos Apostolos da servidão para a liberdade. Calvino era tambem um extremo defensor d’esta idéa, posto que não a expozesse de um modo tão descriptivo. No prefacio aos seus _Institutos_ diz-nos que escreveu o livro para responder áquelles que diziam que as doutrinas dos reformadores eram novas, duvidosas, e contrarias ás dos Paes da Egreja. E refuta essas accusações, mostrando a catholicidade da theologia da Reforma. Prova que todos os reformadores sustentaram as grandes doutrinas catholicas que a Egreja manteve em todos os seculos, e que, quando se afastaram do ensino da Egreja de Roma, ou de outra qualquer doutrina, o fizeram justamente no ponto onde as idéas pagãs e as praticas supersticiosas foram, de uma maneira bastante censuravel, introduzidas. =A sua posição reivindicada pelo Credo dos Apostolos.=—Os cabeças da Reforma, que se encontravam á frente de uma grande revivificação religiosa, não imaginavam que estavam dirigindo um movimento novo, e muito menos que estavam fundando uma nova religião. Tinham, no seu entender, uma ascendencia espiritual, e reputavam-se os verdadeiros herdeiros e successores da Egreja dos Apostolos, dos Martyres e dos Paes, e, tambem, da Edade Media. Nova era a Egreja Romana, e não a d’elles. Pertenciam á antiga Egreja, reformada, e eram os verdadeiros herdeiros dos seculos de vida santa que os tinham precedido. Eram, porém, accusados pelos seus adversarios de serem scismaticos e herejes, de terem abandonado a Egreja Catholica de Christo, e de procurarem crear uma nova Egreja e fundar uma nova religião. Disseram-lhes que a Egreja de Roma era a unica communidade christã, e a unica Egreja Catholica e Apostolica. Como responderam elles a isto tudo? A sua resposta estava-lhes preparada pela propria Egreja Catholica Romana. A Egreja de Roma acceita o Credo dos Apostolos, e esse Credo faz uma descripção da Egreja que está em completo desaccordo com aquillo que o romanismo insinúa. O Credo dos Apostolos diz «Creio na Santa Egreja Catholica e na communhão dos santos», e não «Creio na Santa Egreja Catholica, e na communhão de Roma». Não ha em nenhum dos credos antigos uma palavra que dê a entender que catholicidade significa communhão com Roma; catholicidade quer dizer, pelo contrario, _communhão com os santos_. Este ponto é bem frisado pelos principaes reformadores. O Credo diz que a Santa Egreja Catholica se baseia n’uma santa communhão, e que a santa communhão se baseia no perdão dos peccados. A verdadeira catholicidade provém de uma santa communhão, e esta existe em virtude do perdão que se alcança para todos os peccados mediante a obra redemptora de nosso Senhor Jesus Christo. CAPITULO IV OS PRINCIPIOS DOUTRINARIOS DA REFORMA Os principios _formaes_ e _materiaes_ da Reforma, pag. 225.—O sacerdocio de todo os crentes: o grande principio da Reforma, pag. 226.—Explica a _Doutrina da Escriptura_, pag. 227, e da _Justificação pela Fé_, pag. 228.—A _Doutrina da Escriptura_ da Reforma em contraste com a medieval, pag. 228.—A Doutrina medieval da Escriptura, pag. 229.—O quadruplo sentido da Escriptura, pag. 229.—A definição medieval de _fé salvadora_. Interpretação infallivel, pag. 230.—Os reformadores e a Biblia, pag. 231.—A doutrina da _justificação pela fé_ da Reforma em contraste com a medieval, pag. 232.—A absolvição clerical e justificação pela fé, pag. 233.—Justificação pela fé e justificação pelas obras, pag. 234.—Conclusão, pag. 235. =Os principios formaes e materiaes da Reforma.=—Os principios theologicos, ou doutrinarios, que deram um caracter distinctivo á revivificação da religião promovida pela Reforma costumam ser divididos em duas cathegorias, sendo uma d’ellas constituida pelos _formaes_ e a outra pelos _materiaes_. O dr. Dorner, historiador sagrado, estabelece este modo de encarar o movimento reformista com muita clareza e energia na sua _Historia da Theologia Protestante_. Segundo o dr. Dorner, a doutrina da Palavra de Deus é o principio _formal_ da theologia da Reforma, e a doutrina da Justificação pela Fé é o principio _material_ da mesma. O uso d’estes termos technicos pode, comtudo, obscurecer, tanto na vida religiosa como na theologia, o verdadeiro sentido do movimento que com elle se quer explicar. O principio da Reforma, o impulso predominante no movimento, era simplesmente aquelle que deve inspirar todas as revivificações da religião, isto, é o fervoroso desejo, a ancia, de uma approximação de Deus, o anhelo por estar na presença de Aquelle que Se revelou, para que podessemos ser salvos, na pessoa de Jesus Christo. Aquillo a que se tem chamado os principios, _formaes_ e _materiaes_, da Reforma está unido a este mais simples, mas mais energico, impulso, e é proveniente d’elle. O direito de chegar á presença de Deus foi, segundo a crença dos reformadores, conferido por Elle a todos os que fazem parte do Seu povo; mas o direito de chegar á presença de Deus é o que se chama o sacerdocio, e o grande principio da Reforma baseia-se no _sacerdocio de todos os crentes_—o direito que teem todos os homens e mulheres crentes, todos os clerigos e seculares, de se dirigirem a Deus, e de procurarem alcançar d’Elle o perdão mediante a confissão dos seus peccados, a luz que lhes illumine os entendimentos, a communhão que os faça sair do seu solitario isolamento, e o vigor necessario para viverem diariamente em santidade. =O sacerdocio de todos os crentes: grande principio da Reforma.=—Quando Luthero e Zwinglio se revoltaram contra os abusos com que o romanismo havia desfigurado a Egreja medieval, os dois grandes abusos eram a venda das indulgencias e a excommunhão. Quanto ao primeiro d’esses abusos, a venda das indulgencias, a Egreja medieval dizia praticamente que não era necessario ir ter com Deus para obter o perdão, pois que a Egreja podia concedel-o em melhores condições. O perdão que Deus dava, mediante a obra de Christo, áquelles que se apresentassem contrictos e arrependidos fornecia-o a Egreja a troco de uns tantos ducados. Punha-se deliberadamente entre os pecadores e Deus, e afastava-os d’Elle, insinuando-lhes, de uma maneira blasphema, que podia vender-lhes o perdão mais barato. O homem não necessitava de ir ter com Deus cheio de tristeza e arrependimento, nem de incutir na alma a confiança nas Suas promessas. A Egreja sahia ao caminho de todo aquelle que possuisse dinheiro. N’outras occasiões a Egreja recusava absolutamente o perdão. Se uma cidade, ou uma diocese, ou um paiz offendia, mediante os seus governantes, o papa ou a sua côrte de Roma, era-lhe imposta a interdicção, e emquanto esta não fosse levantada não havia perdão para peccado algum. A Egreja colocava-se entre a creança recemnascida e o baptismo, entre o christão moribundo e a graça que lhe era concedida á hora da morte, entre o mancebo e a donzella e o laço matrimonial abençoado por Deus, entre o povo e o culto quotidiano. Ninguem se podia approximar do Deus de toda a misericordia pelo motivo dos magistrados, dos bispos ou do rei e seus conselheiros terem offendido o papa. A Egreja tinha a faculdade de impedir o caminho, pois que havia declarado que só por intervenção dos padres é que se poderia ter accesso a Deus; e quando aos padres se prohibia o exercerem as suas funcções eclesiasticas, o ministrarem os sacramentos, ficava cortada toda a comunicação com Deus. O papa podia, com uma pennada, impedir que uma nação inteira se approximasse de Deus, pois que tinha o direito de ordenar aos padres que suspendessem os serviços religiosos; e, segundo a theoria medieval, essas funcções exercidas pelos padres eram o unico meio de ter accesso a Deus. Os reformadores, por outro lado, diziam: «O homem deve approximar-se de Deus por meio da oração, por meio do perdão, por meio da communhão, por meio do esclarecimento espiritual, sempre que fielmente o procurar fazer; é impossivel que o caminho para Deus se feche de aquella maneira.» Luthero disse que não fazia objecção alguma ás indulgencias se ellas fossem consideradas o unico meio de se declarar que Deus é sempre misericordioso. Recusava, porém, acreditar n’ellas, ou n’outro qualquer rito da Egreja medieval, quando se fazia uso d’ellas para declarar que os homens podiam alcançar o perdão sem se approximarem de Deus com um espirito contricto, ou que podiam ser inteiramente excluidos da presença de Deus por determinação de quaesquer outros homens. Era esta idéa—que a presença de Deus é livre para quem fielmente a procurar, que Deus não recusa ouvir a oração de qualquer penitente, e que Elle faz com que as Suas promessas fallem directamente aos corações de todos aquelles que compõem o Seu povo—que se enleiava em volta de base da theologia da Reforma, e era a fonte de onde brotavam, em particular, as doutrinas da Escriptura e da justificação pela fé. =O principio do sacerdocio dos crentes explica a doutrina reformada da Escriptura.=—Todos os reformadores criam que na Biblia Deus lhes fallava da mesma maneira em que, em tempos remotos, havia fallado á Egreja pelos Seus prophetas e apostolos. Diziam elles que o povo, tendo nas mãos a Biblia traduzida do grego e do hebraico para uma lingua que elle comprehendesse podia ouvir a voz de Deus, podia chegar-se a Elle para receber instrucção, admoestação e lenitivos. Nos tempos do Antigo Testamento Deus fallou ao Seu povo, umas vezes em sonhos e outras por meio de visões, mas principalmente mediante embaixadores instruidos por Elle, a que se chamava prophetas. Nos tempos do Novo Testamento Deus fallou no meio do povo mediante Seu Filho, e o Seu Espirito fallou tambem por intermedio dos apostolos de Christo. Todas estas revelações, inseridas na Escriptura do Velho e Novo Testamento, são apresentadas de tal fórma que Deus falla, na Biblia, ao Seu povo exactamente como lhe fallou pela bocca dos homens santos da antiguidade. Os reformadores proclamavam que na Biblia todos os crentes podem ouvir Deus, que lhes falla directamente, e que a Sua voz pode ser ouvida por todos aquelles em cujas mãos estiver a Biblia. A doutrina reformada da Palavra de Deus exprime simplesmente um dos lados do cumprimento de aquelle anhelo pelo accesso á presença de Deus, que constitue o elemento essencial, não apenas da Reforma, mas de toda a verdadeira revivificação religiosa. =O principio do sacerdocio espiritual de todos os crentes explica a doutrina reformada da justificação pela fé.=—A doutrina da justificação pela fé é um outro modo de asseverar que o anhelo pelo accesso a Deus não é um desejo vão, mas uma coisa que pode ter um positivo cumprimento. Segundo a theologia medieval, o peccador não podia implorar directamente a Deus o perdão. Tinha que ir ter com o padre, e esse padre ficava auctorizado a metter-se de permeio entre elle e Deus, e a negar o perdão de Deus, se isso lhe fosse ordenado pelo papa ou por um seu superior hierarquico. Por muito sincero que fosse o seu pezar, por muito forte que fosse a sua confiança, o padre collocava-se entre elle e o seu clemente Deus, e elle não podia confessar a Deus os seus peccados nem ouvir de Deus a sentença do perdão senão pela bocca do padre. A doutrina da justificação pela fé significa, na sua fórma mais simples, que é Deus em pessoa quem profere o perdão, e que perdoa em attenção de tudo quanto Christo fez e pode fazer pelo peccador; e que o homem pode ouvir proferir este perdão se tiver fé na misericordia, na salvação e nas promessas de Deus. =A doutrina reformada da Escriptura, em contraste com a medieval.=—A doutrina reformada da Escriptura é muitas vezes apresentada sob uma fórma que não a põe em immediata connexão com o impulso preponderante no movimento da Reforma. Os reformadores deram mais credito á Biblia, o livro infallivel, do que á palavra de uma Egreja fallivel. Na Edade Media os homens appellavam para a Egreja em ultima instancia, e acceitavam as decisões dos papas e dos concilios como constituindo a ultima palavra em todas as controversias sobre a doutrina e a moral; os reformadores substituiram a Egreja, isto é, as decisões dos concilios e dos papas, pela Biblia, e ensinaram que era para ella que se devia appellar em ultima instancia. Este modo de expôr a differença entre os reformadores e os seus antagonistas teve uma expressão mais concisa no dito de Chillingworth, famoso theologo inglez, de que a Biblia, e só a Biblia, é a religião dos protestantes. Tudo isto é verdade, e, comtudo, não é a inteira verdade, podendo, portanto, dar logar a uma noção erronea. Os catholicos romanos e os protestantes não dão o mesmo sentido á palavra Biblia, e essa differença de sentido traz á luz uma verdade que é algumas vezes esquecida. Quando os catholicos romanos fallam da Biblia querem dizer uma coisa, e quando os protestantes fallam da Biblia querem dizer outra, e n’esta differença no emprego da palavra está uma parte importantissima da doutrina reformada da Escriptura. A Egreja medieval não se oppunha, em regra, a que o povo lesse a Biblia para sua edificação. Era, pelo contrario, uma maxima na theologia da Edade Media que todo o systema doutrinal da Egreja se fundava na Palavra de Deus. Thomaz de Aquino, a maior auctoridade entre os theologos medievaes, diz expressamente, no principio da sua importante obra, A _summula da theologia_, que todo o circulo da doutrina christã se apoia na Escriptura, que é a Palavra de Deus. Durante a Edade Media fizeram-se continuamente traducções das Escripturas nas linguas dos povos da Europa; é um perfeito erro suppôr-se que as primeiras traducções da Biblia se fizeram durante o tempo da Reforma; em regra geral, animava-se o povo a ler e estudar as Escripturas. Nos primeiros periodos da controversia reformada, os arguentes catholicos romanos recorriam tanto á Biblia como Luthero e os que estavam do seu lado. Estava guardado para a Egreja Catholica posterior á Reforma o prohibir aos leigos a leitura da Palavra de Deus. =A doutrina medieval da Escriptura.=—Os theologos medievaes faziam, comtudo, da Biblia um uso muito differente de aquelle que os protestantes faziam, e na controversia protestante a differença de sentido não tardou em fazer-se notar. Os theologos da Edade Media jámais consideraram a Biblia um meio de graça; tinham-n’a na conta de um livro cheio de informações, divinas informações, ácerca da doutrina e da moral. Era para elles um repositorio de verdades doutrinarias e preceitos moraes, e mais nada. Os protestantes vêem n’ella um repositorio de verdades infalliveis, mas vêem mais alguma coisa. É um meio de graça. Crêem que os homens alcançam com a simples leitura da Biblia não só instrucção como tambem communhão com Deus, não só o conhecimento de Deus como tambem intimidade com Elle. Não se limita a apresentar verdades novas ácerca das coisas divinas; excita para a vida espiritual. É para o protestante tudo o que era para o theologo da Edade Media, e é mais alguma coisa. É um tão efficaz estimulo de fé e vida santa como os sacramentos, ou a oração ou o culto. Mediante um diligente uso da Biblia, os homens, na opinião dos theologos protestantes, não sómente adquirem o conhecimento de Deus; podem tornar-se participantes de aquella bemdita communhão entre Deus e o Seu povo de que a Biblia faz menção. =O quadruplo sentido da Escriptura.=—Esta noção medieval ácerca da Biblia—que ella é um repositorio de informações ácerca das doutrinas e da moral, e nada mais—encontra uma seria difficuldade: é que similhante descripção não parece ser applicavel a uma grande parte de Biblia. As Escripturas conteem longas listas de genealogias, capitulos que tratam quasi exclusivamente dos utensilios do templo, ou são descripções da vida humana, ou da historia nacional. N’essas porções da Biblia, que constituem uma não pequena parte d’ella, não parece haver muita informação doutrinal ou muitas regras para uma vida santa, e, não obstante, são estas coisas que, segundo a definição medieval, compõem a Biblia toda. O theologo medieval tinha, portanto, ou de cortar o que lhe parecesse materia inapplicavel, ou inventar alguma maneira de transformar as taboas genealogicas em doutrinas ou preceitos moraes. Optou pela ultima d’estas coisas, e declarou que em todas as passagens da Biblia havia mais do que um sentido. A Biblia, disse elle, tinha um quadruplo sentido. Havia, em primeiro logar, o sentido _historico_ da passagem lida, que era aquelle que se inferia das regras grammaticaes e de interpretação. Seguiam-se depois os outros tres sentidos: O _allegorico_, o _moral_ e o _anagogico_. Estes varios sentidos differiam do historico, e os expositores medievaes extrahiam complicadas doutrinas das genealogias de Abrahão e de David, e regras de conducta da descripção das vestes do summo sacerdote ou da narrativa da viagem que nosso Senhor fez de Capernaum a Naim. É algumas vezes difficil saber qual é o verdadeiro sentido de certas passagens da Biblia, mesmo quando o leitor se occupa simplesmente da significação historica; e a difficuldade quadruplicará, se é verdade que cada passagem tem quatro sentidos. Qualquer trecho da Biblia pode significar aquillo que o leitor quizer, bastando para isso que o tome n’um sentido mystico, ou allegorico. =Definição medieval da fé salvadora. A interpretação infallivel.=—Emquanto os theologos medievaes faziam quasi perder a esperança de vir a saber-se ao certo o que a Biblia dizia segundo a sua doutrina do quadruplo sentido, uma outra theoria d’elles tornava de summa importancia que o crente tivesse precisas informações ácerca do contheudo da Biblia. Diziam que fé não era confiança n’uma pessoa, mas assentimento ás informações correctas; a fé que salva era, sustentavam elles, assentimentos ás proposições acerca de Deus, do universo, e da alma humana, contidas na Biblia. Por um lado, a sua doutrina do quadruplo sentido tornava quasi impossivel a qualquer pessoa o certificar-se do que a Escriptura ensinava; por outro, a sua definição de fé salvadora tornava importantissimo, tanto no que diz respeito a esta vida, como no que diz respeito á futura, que cada um tivesse noções claras e exactas do texto biblico. E assim a Egreja medieval era obrigada a asseverar que havia, não indicada por ella, uma maneira auctorizada de interpretar a Biblia, e isso conduziu-a á sua doutrina da infallibilidade das declarações dos concilios e dos papas no tocante ao ensino da Biblia. É escusado dizer que, se a Biblia é por si propria de duvidosa interpretação, e se é essencial para a salvação que o crente possua uma verdadeira e correcta interpretação a que possa dar o seu assentimento, o que fornecer uma interpretação infallivel tem mais valor do que aquillo que é interpretado. E foi isso o que effectivamente succedeu. As decisões dos concilios e dos papas, e a tradicional e auctorizada interpretação da Biblia pela Egreja, adquiriram mais valor pratico do que a propria Biblia. Os homens que consultassem simplesmente a Biblia podiam cair no erro, e cair no erro era a morte; aquelles que confiassem na interpretação biblica da Egreja nunca seriam induzidos ao erro. Tudo isto, porém, tornava impossivel que a Biblia fosse um meio de communhão entre Deus e o homem. Entre a Biblia e o crente collocavam os theologos medievaes as opiniões dos concilios e dos papas, ou, n’uma palavra, a Egreja. A Egreja interceptava o caminho para Deus mediante a Sua Palavra interpondo-se ella propria e a sua auctorizada interpretação entre o crente e a Biblia. Os reformadores, anhelando pela communhão com Deus, e sabendo por aquillo que o seu espirito havia experimentado que era possivel têl-a mediante a simples leitura da Biblia, compenetraram-se do dever de deitar abaixo essa barreira, e assim o fizeram. Essa barreira, porém, não podia ser derrubada simplesmente com o dizer-se que a Biblia, e não as tradições da Egreja, é que era a guia infallivel. A Biblia como os catholicos romanos a entendiam, essa Biblia que expunha apenas preceitos de doutrina e de moral, e cujas passagens tinham quatro sentidos, era simplesmente um livro embaraçoso. Os reformadores tinham de mostrar a Biblia atravez de outro prisma para que podessem dizer que era infallivel e que era o arbitro supremo em todas as controversias. =Os reformadores e a Biblia.=—Deram á Biblia a significação que ella realmente tinha. Deus havia-lhes fallado por meio d’ella. O Deus pessoal, que os creara e que os remira, havia-lhes fallado nas paginas da Biblia, e tornara-os scientes do Seu poder e da Sua vontade de salvar. A linguagem era algumas vezes obscura, mas encontraram outras passagens mais claras, e os pontos faceis explicaram-lhes os difficeis. Podia ser que os homens simples não a comprehendessem toda, não soubessem ligar todas as suas asserções de modo a constituir um encadeado systema de theologia; mas toda a gente, fosse ou não fosse theologa, podia ouvir a voz de seu Pae, inteirar-se do proposito do seu Redemptor e ter fé nas promessas do seu Senhor. Seria uma boa idéa fazer uma selecção de textos e formar o systema de theologia protestante que tornasse as coisas mais comprehensiveis; mas o essencial era ouvir o Deus pessoal e obedecer-Lhe; era Elle fallar-lhes como em todos os seculos fallou ao Seu povo, promettendo-lhes a salvação, ora directamente, ora mediante a narrativa do Seu procedimento com o povo escolhido ou com homens excepcionalmente favorecidos. Detalhe algum de vida, nacional ou individual, era inutil; pois que ajudava a completar o quadro da communhão entre Deus e o Seu povo de outr’ora, esse povo que havia de reviver n’elles e perpetuar assim o grato sentimento de communhão com o Deus da alliança, bastando para isso que tivessem a mesma fé dos santos do Antigo e Novo Testamentos. Animados, como estavam, d’estas idéas, a Biblia não podia ser para elles o que era para os theologos medievaes. Deixava de existir o quadruplo sentido. A Biblia era Deus fallando com elles, um Pae fallando com Seus filhos, do mesmo modo que um homem falla com os seus similhantes; e ficava subsistindo apenas o sentido manifesto, o sentido historico. Era mais do que um repositorio de doutrinas e de regras de moral; era, acima de tudo, uma memoria e uma descripção da bemdita communhão que os santos haviam tido com o Deus dos pactos desde a primeira revelação da promessa. A fé era mais do que um frio assentimento ás verdades concernentes á doutrina e á moral; era uma confiança pessoal no Salvador pessoal que Se lhes dirigia por meio da Biblia. Deram-se, por conseguinte, pressa em traduzir a Biblia em todas as linguas, e collocar a Biblia nas mãos de todos, e declararam que um homem que possuisse a Biblia, isto é, que ouvisse a voz de Deus, estava mais ao facto do caminho da salvação do que os concilios e os papas sem ella. A sua doutrina, que era fructo de tudo aquillo que elles haviam espiritualmente experimentado, inculcava que o anhelo pela communhão com Deus era satisfeito mediante a leitura e prégação da Palavra de Deus. A Biblia porporcionava aos homens o encontrarem-se na presença de Deus e ouvirem as Suas palavras de conforto. =A doutrina reformada da justificação, em contraste com a medieval.=—O segundo grande principio da theologia da Reforma é, por consenso universal, a doutrina da justificação pela fé sómente. Pode-se tambem pôl-a em directa connexão com o principio fundamental da Reforma, o sacerdocio de todos os crentes, ou o direito de accesso, promettido na Palavra de Deus, á Sua presença. Ao contrastar a doutrina reformada com a medieval no tocante á justificação, occorre a mesma difficuldade com que já deparámos no contraste entre as duas doutrinas ácerca da Escriptura. Diz-se vulgarmente que os reformadores apregoaram uma justificação pela fé sómente, ao passo que os seus antagonistas apregoaram uma justificação pelas obras; mas, posto que isto seja perfeitamente verdadeiro, devemos lembrar-nos de que a palavra «justificação» é usada em dois sentidos distinctos pelos dois disputantes. Para os theologos medievaes, _justificar_ significa tornar justo; para os reformadores significa declarar justo. Para aquelles é uma operação que se faz durante um certo tempo; para estes é um acto momentaneo, é um acto da livre graça de Deus, pelo qual Elle perdoa todos os nossos peccados e nos acceita como justos a Seus olhos. Para aquelles é uma obra de purificação do peccado, uma obra de santidade; para estes é a formação de um juizo, ou, como os theologicos dizem, um acto _forense_. Os reformadores viram que os theologos medievaes empregavam a palavra justificação no sentido mencionado, e trataram de apresentar a sua outra significação. E justificaram esse seu procedimento dizendo que o sentido que deram ao termo é o que o Novo Testamento lhe dá, pois que o emprega na accepção de acto, de sentença, de juizo, e nunca na de obra. O primeiro contraste não é, portanto, entre a justificação medieval e a doutrina da Reforma, mas entre a doutrina reformada da justificação pela fé e a que lhe corresponde na Egreja medieval. Justificação, na theologia reformada, quer dizer o acto de perdoar e de acceitar como justo; corresponde a essa doutrina, na egreja medieval, a da absolvição dada pelos padres, pois que era o unico modo como poderia ser concedido o perdão dos peccados. =A absolvição clerical e a justificação pela fé.=—Segundo a theologia da Edade Media, o perdão divino do peccado tinha sempre de ser proferido por um sacerdote. Quando o penitente se confessasse e se mostrasse arrependido, tanto por palavras como por actos, o padre tinha auctorização para pronunciar a sentença absolutoria, e essa sentença era acceite como sendo proferida pelo proprio Deus, pois que o clero era o orgão mediante o qual, e sómente mediante o qual, Deus perdoava. Luthero e os outros reformadores viram que o padre que se suppunha occupar o logar de Deus e fallar em nome de Deus commettia acções impias, e a consciencia disse-lhes que, em vista de similhante facto, o perdão do padre não podia ser o perdão de Deus. Luthero viu que um homem, munido de um certificado de indulgencias, ia ter com um padre e recebia perdão sem mostrar arrependimento quer por palavras quer por obras, sem que, apparentemente, sentisse tristeza alguma no seu coração. Viu que os padres pretendiam ser a trombeta de Deus, e que concediam perdão em certos casos em que elle seria negado por um Deus justo e santo. Luthero e os seus amigos tinham presenciado ou ouvido fallar de casos em que o perdão de Deus havia sido recusado quando um Deus misericordioso o teria concedido. Uma successão de papas havia castigado a cidade de Strasburgo com uma interdicção pelo facto de ella ter tomado uma attitude na politica allemã que não era do agrado da côrte pontificia, e durante todo esse tempo não podia ser proferida uma palavra de perdão a qualquer peccador contricto e arrependido. Os padres perdoavam quando Deus não perdoava, e recusavam perdoar quando Deus estava prompto a conceder o Seu perdão. Luthero, vendo isto, e sabendo como havia sido perdoado por confiar simplesmente nas promessas de Deus, declarou que o peccador pode ir ter directamente com Deus, pezaroso por haver peccado e cheio de confiança nas promessas de Deus, e obter d’Este o perdão. Asseverou que a não ser que se alcance primeiramente o perdão de Deus, o do padre não tem valor algum, e que, depois de se alcançar o perdão de Deus, o do padre é inutil. O perdão alcançava-se indo ter com Deus, e não indo ter com o padre e ouvindo d’elle a absolvição. A doutrina protestante da justificação mostra o direito de accesso a Deus para Lhe rogar perdão, e declara que padre algum está auctorizado a interpôr-se entre Deus e o peccador arrependido. Deitou por terra a doutrina medieval de que o perdão divino só pode ser alcançado mediante a absolvição clerical, e de que o peccador arrependido não se deve prostrar aos pés de Deus mas deante do confissionario. =Justificação pela fé e justificação pelas obras.=—Segundo a theoria medieval, antes de o perdão ser obtido pela fórma ordinaria, mediante a absolvição sacerdotal, era indispensavel confessar os peccados, mostrar contricção e fazer penitencia. Na confissão o peccador deve mencionar ao padre todos os peccados que commetteu desde a ultima vez que se confessou, e n’este catalogo de peccados não se deve faltar a um só pormenor. Peccado algum pode ser perdoado sem que se tenha feito menção d’elle. A confissão deve ser mecanicamente completa. Em seguida á confissão vem a contricção, ou a dôr por haver offendido a Deus, e esta, segundo a doutrina medieval, deve manifestar-se de certos modos esteriotypados que a Egreja tem sanccionado. Depois, e só depois, é que é possivel a absolvição, quer dizer, o perdão. A Egreja da Edade Media collocava duas coisas entre o peccador e o perdão divino proferido pelo sacerdote: uma completa confissão, mecanicamente feita, em se que fizesse menção de todos os peccados cujo perdão se desejava, e uma contricção manifestada de certos modos estabelecidos, taes como a recitação de um grande numero de orações, a abstenção da comida, etc., e a absolvição dependia da automatica integridade da confissão e da contricção. Os reformadores tinham a convicção de que o peccado era uma coisa séria de mais para que o seu perdão dependesse de uma completa confissão, e de uma contricção exteriormente manifestada. Deus perdoava por amor de Christo, não em virtude de uma completa confissão ou de uma perfeita contricção. Declararam, por consequencia, que, posto que o peccador deva confessar os seus peccados, e esforçar-se seriamente por se conservar no caminho da obediencia, o perdão depende da soberana graça de Deus, revelada em Christo. Tornou-se-lhes evidente a necessidade de derrubar os obstaculos que a Egreja medieval havia erguido entre Deus e o homem, e que eram constituidos pela confissão mecanica, e pela contricção, ou penitencia. O arrependimento sincero, o arrependimento do coração, é que era de grande importancia, porque abrangia confissão, contricção e confiança; e Deus, á vista d’estas coisas, perdoava por amor de Christo. Justificação pela fé, portanto, significa que o peccador contricto pode dirigir-se immediatamente a Deus, confiando na consummada obra de Christo, e alcançar o perdão sem a intervenção de padres ou de uma serie de rotineiras ceremonias. Deus perdoa em attenção áquillo que Christo fez, não em attenção áquillo que nós possamos fazer; e, desde que o perdão se alcança mediante a obra de Christo, e não pelo nossos esforços, pode ser, e é, dado no principio da carreira christã, não sendo necessario esperar penosamente por elle até ao fim, como uma doutrina de justificação pelas obras implicaria. A doutrina da justificação pela fé, segunda columna da theologia reformada, provém de aquelle anhelo pela approximação de Deus, ponto de apoio da Reforma. Significa que o peccador que se sente arrependido, e tem confiança nas promessas de Deus, pode ir immediatamente implorar-Lhe o perdão e obtel-o sem interferencias clericaes e sem o cumprimento de praticas mecanicas. =Conclusão.=—A Reforma, que foi uma grande revivificação da religião, tendo por base principal o anhelo pela presença de Deus, a Quem só era possivel chegar-se mediante o arrependimento e a confissão, acompanhados de plena confiança nas Suas promessas, aconselhava, pois, os crentes a terem communhão com Elle por intermedio da Biblia, e a rogarem o perdão prostrados junto do escabello de Seus pés, e derrubou as barreiras que foram erguidas pela Egreja politica da Edade Media em frente da livre e soberana graça de Deus. A nova espiritualidade que animava os reformadores e os seus adherentes tinha, alimentada pela Palavra de Deus, e ensinada pelo Seu Espirito, desabrochado por todos os lados, dando logar a uma theologia reformada, onde a doutrina da predestinação substituiu a theoria da communhão com Deus por intervenção do papa e dos seus bispos onde a theoria dos sacramentos foi purificada pela doutrina do Espirito Santo, onde as Escripturas arbitravam em todas as controversias, e onde o perdão era proferido por Deus, e não pelo homem; e em todas as suas ramificações se encontra como idéa predominante o sacerdocio espiritual conferido por Deus a todos os crentes. SUMMARIO CHRONOLOGICO Acontecimentos contemporaneos 1493-1515.—Jan. 12, Maximiliano I. Imperador. Por sua morte ficou como vice-rei Frederico, o Sabio, da Saxonia (1480-1525). 1499-1535.—O eleitor Joaquim I (Nestor) de Brandenburgo. 1500-1539.—O duque Jorge da Saxonia. 1509-1547.—Henrique VIII de Inglaterra. 1515-1547.—Francisco I de França. 1518-1567.—Filippe, o Magnanimo, de Hesse. (Nasc. em 1504). 1519.—Junho, _Carlos V, (Rei de Hespanha desde 1516)_—27 de Agosto de 1556, _Imperador da Allemanha (fall. em 1558)_. 1519-1566.—O sultão Suliman I. 1519-1521.—Fernando Cortez descobre e conquista o Mexico. 1520.—Magalhães faz uma viagem de circumnavegação. 1521-26.—Primeira guerra entre Carlos V e Francisco I. 1525.—Batalha de Pavia. 1526.—Paz de Madrid. 1523-33.—Frederico I da Dinamarca. 1523-60.—Gustavo Vasa, da Suecia. 1525.—Alberto de Brandenburgo (fall. em 1568); chefe dos cavalleiros allemães; duque da Prussia, sob o dominio polaco. 1525-32.—O Eleitor João, o Constante, da Saxonia (irmão de Frederico, o sabio). 1526.—Ago. 29: Luiz, rei da Hungria e da Bohemia, morre em Mohacz, em combate com os turcos. O seu successor, Fernando de Austria (Em Out., rei eleito da Bohemia), tem de defender os seus direitos á Hungria, em detrimento dos turcos. 1527.—Saque de Roma. 1527-29.—A segunda guerra entre Carlos V e Francisco I; Paz de Cambrai, em Agosto de 1529. 1527.—Henrique VIII de Inglaterra procura divorciar-se de Catharina do Aragão (tia de Carlos V); 1529, Wolsey cae no desagrado; o chanceller Thomaz More. 1529.—Set. a 14 de Out.; Suliman põe cerco a Vienna. 1531.—Fernando de Austria, rei dos romanos; opposição da Baviera e Saxonia. 1532.—Ago. de 1547, João Frederico o Magnanimo, Eleitor da Saxonia, fall. em 1554. Henrique VIII divorciado, pelo parlamento, de Catharina de Aragão; Nov. desposa Anna Boleyn. 1534.—O duque Ulrico de Würtemberg é rehabilitado por Filippe de Hesse. 1535.—Joaquim II, Eleitor de Brandenburgo. 1536-38.—Terceira guerra entre Carlos V e Francisco I. 1538.—A convenção de Nice: dez annos de treguas. 1541-53.—O duque Mauricio da Saxonia; recebeu o titulo de Eleitor em 1547. 1541.—Dieta em Regensburgo; Suliman submette os hungaros ao seu dominio. 1542-44.—Quarta guerra de Carlos V com Francisco I; a Paz de Crespi. 1542.—Dieta de Spira; união contra os turcos. 1544.—Dieta de Spira; reconhecimento dos protestantes; tudo em socego, na expectativa de um Concilio Geral. 1545.—_Reformatio Wittenbergensis._ 1546.—Segunda Conferencia Religiosa em Regensburgo; 18 de fev., Luthero morre em Eisleben; os protestantes não apparecem na Dieta. 1546-47.—A guerra de Schmalkald; 19 de jun. liga entre Mauricio e o imperador; 20 de jul., decreto contra João Frederico e Filippe; 27 de out., Mauricio é nomeado eleitor; 24 de abr., batalha de Mühlberg, ficando prisioneiro João Frederico; Filippe entrega-se em Halle; o imperador falta á sua palavra. 1547-59.—Henrique II de França; desposa Catharina de Medici; fallece em 1589. 1547-53.—Eduardo VI de Inglaterra: nasc. em 1537. 1553-58.—Maria (a Sanguinaria) de Inglaterra. 1554.—9 de jul., Mauricio morre n’uma batalha perto de Sievershausen, contra Alberto, Margarve de Brandenburgo. Fernando é batido pelos turcos na Hungria. 1555-98.—Filippe II de Hespanha. 1556-64.—_Fernando I, imperador._ 1558-1603.—Isabel de Inglaterra. 1559-60.—Francisco II de França (casado com Maria da Escocia) 1560-74.—Carlos IX de França. 1560-78.—Maria, rainha dos escocezes; executada em 1587. 1564-76.—_Maximiliano II, imperador._ 1574-89.—Henrique III de França. 1576-1612.—_Rodolpho II, imperador._ 1558-1648.—Christiano IV, rei da Dinamarca. 1589-1610.—Henrique IV de França, tornou-se catholico romano em 1593; assassinado por Ravaillac em 14 de Maio de 1610. 1598-1621.—Filippe III de Hespanha. Egreja Lutherana 1517.—Out. 31. MARTINHO LUTHERO (nascido em 10 de Nov. de 1483, em Eisleben; 1497, estudando latim em Magdeburgo; 1499, em Eisenach (Frau Cotta, f. em 1511); 1501, em Erfurt; 1505, mestre de artes; 17 de Julho, entrou para o convento doa agostinhos, em Erfurt; 1508, professor em Wittenberg; 1510, em Roma; 19 de Out. de 1562, doutor em theologia) pregou 95 theses contra o abuso das indulgencias na egreja do castello de Wittenberg. Contra-theses de João Tetzel, compostas por Conrado Wimpina. 1518.—Silvestre Mazzolini de Prierio: _Dialogos in proesumptuosas M. L. Conclusiones de potestate Papae; Resp. ad Silv. Prier._, de Luthero. 26 Abril, Luthero na Polemica do Heidelberg. Ago.: Citado para comparecer em Roma. 25 Ago.: Melanchthon em Wittenberg. 13-15 de Out.: Luthero em Augsburgo, perante o cardeal Thomaz Vio de Gaeta: sua appellação _a papa male informato ad melius informandum_. Nov.: _O sacramento da Penitencia_, de Luthero. 1519.—Jan.: Entrevista de Luthero com Carlos de Miltitz, camarista do papa, em Altenburgo; Treguas. 27 de Jun. a 16 de Jul.: Polemica em LEIPSIC: (i) entre Eck e Carlstadt, sobre a doutrina do Livre Arbitrio; (ii) entre Eck e Luthero, _De primeto Papae_. A controversia já não é sobre pontos de theologia ecclesiastica; abrange toda a roda dos principios ecclesiasticos. Ruptura com a christandade romana. A doutrina do sacerdocio de todos os crentes. A liberdade christã e o direito do juizo particular. Sermões de Luthero sobre os sacramentos do arrependimento e do baptismo, e sobre a excommunhão. Pedido para que na Ceia do Senhor se fizesse uso dos dois elementos. 1520.—Abril: Ulrico v. Hutten (n. em 21 de Abr. de 1488, f. em 29 de Ago. de 1523); Dialogo: Vadiscus, ou a Trindade Romana; 15 de Jun., Bulla de excommunhão contra 41 proposições de Luthero; o prazo de 60 dias para retractação; 23 de Jun., a obra de Luthero, «Aos fidalgos christãos da nação allemã, Sobre a reforma de um Estado christão»; Out. _De Captivitate Eccles. Babylonic._; _De libertate Christiana_ (sobre a libertação do christão); 10 de Dez.; A queima da bulla pontificia. 1520.—17 e 18 de Abr., =Luthero na Dieta de Worms=; 26 de Abr., retira-se de Worms; Março 3 a Maio 4 de 1522, em Wartburgo (Em Dez. principio a traducção do N. T.)—Tratados: _Sobre a Penitencia_, _Contra as missas particulares_, _Contra os votos clericaes e monacaes_, _O commentador allemão_. 26 de Maio, Edicto de Worms, falsamente datado do 8 de Maio. 28 do Maio, Decreto Imperial contra Luthero. Junho: Carlstadt contra o celíbato. Out.: É abolida a missa em Wittenberg, pelos frades agostinhos (Gabriel Didymus). Dez. As innovações de Carlstadt. 25 de Dez.: A Ceia do Senhor nas duas especies. 27 de Dez.: Os prophetas em Wittenberg. 1522.—Fev.: Tumultos em Wittenberg contra as imagens e as pinturas. 7 de Maio: Luthero novamente em Wittenberg. 9-16 de Maio: Sermões contra o fanatismo. Julho: _Contra Henricum regem Angliæ._ Set.: Fica prompta a traducçao do N. T. (a Biblia completa em 1534). Dez.: Dieta em Nürnberg. Os Cem aggravos dos estadas allemães, em resposta ao Breve de Adriano VI, de 26 de Nov. 1522-23.—A Reforma vence na Pomerania, na Livonia, na Silesia, na Prussia, no Mecklenburgo; na Frisilandia Oriental desde 1519; 1523, em Frankfort sobre o Maine, em Hall, na Suabia; 1524, Ulm, Strasburg, Bremen, Nürnberg. 1523.—1 de Jul., Henrique Voes e João Esch (agostinhos) são queimados em Bruxellas; os primeiros martyres. Gustavo Vasa estabelece a Reforma na Suecia (Olaf e Lourenço Petersen, Lourenço Andersen). 7 de Maio, assassinio de Sickingen; revolta dos nobres, suffocada pelos principes. Luthero: =Da Ordem do Culto Publico=: Dec.: _Formula Missæ_ (A Ceia do Senhor _sub utraque_). 1524.—_O primeiro hymnario allemão._ Maio a Jun. de 1525, A GUERRA DOS CAMPONEZES; os camponezes são massacrados em Frankenhausen. (Os doze Artigos de João Henglin). 1525.—Jan.: Luthero, _Contra os prophetas celestiaes_. Maio: Exhorta os principes e os camponezes a conservarem a paz, com commentarios sobre os Doze Artigos. Depois: _Contra os camponezes que roubam e assassinam_. 13 de Junho, Desposa Catharina von Bora. Tendencia conservadora da Reforma Lutherana; separação de elementos reformatorios. 1525.—Dez.: Luthero, _De Servo Arbitrio_ (a mais estricta predestinação supralapsariana) contra Erasmo, Διατριβὴ _de libero arbitrio_, Set. 1524. 1526.—Maio 4: Liga, em Torgau, entre Filippe de Hesse e João, o Constante, a que adheriram em Junho, em Magdeburgo, outros principaes evangelicos. Junho 26, Liga, em Dessau, de principes catholicos romanos do sul da Allemanha. Junho e Julho, Dieta em Spira «Em materias de religião cada Estado deve conduzir-se de uma maneira digna para com Deus e para com Sua Magestade Imperial.» Out. 20, Synodo em Homberg; Ordem ecclesiastica de Besse, instituida por Francisco Lambert (nasc. em 1487, em Avignon; Franciscano; em 1525 fugiu para a Allemanha; 1527, professor em Marburgo; fallec. em 1539); incondicional independencia da communidade christã, e estricta disciplina ecclesiastica. =Luthero.=—Missa allemã; ordem do culto publico. Frederico I da Dinamarca adhere á doutrina lutherana. (João Tausen, em Jütlandia desde 1524). 1527.—Livro de Inspecção, de Melanchthon; Gustavo Vasa propõe a Reforma á Dieta em Westeräs. Frederico I da Dinamarca, na Dieta de Odensee, dá á religião reformada privilegios eguaes aos que a catholica romana tem. 1528.—Otto V. Informações dadas por Pack ácerca de uma Liga Catholica romana formada em Breslau, em 1527; a Reforma propaga-se na Noruega. 1529.—26 de Fev., =Dieta de Spira=; 12 de Abr., a decisão da maioria catholica romana dos Eleitos e Principes «Quem quer que tem imposto o Edicto de Worms deve continuar a fazel-o; os demais não devem permittir mais innovações; a ninguem se deve impedir celebrar missa.» 19 de Abr., concordam com ella as cidades. PROTESTO: 25 de Abr. Appello dirigido ao imperador e ao Concilio pela Saxonia, Hesse, Brandenburgo, Anhalt, Lüneburgo, e quatorze cidades. Separação entre os protestantes lutheranos e os do sul da Allemanha; Luthero oppõe-se a uma resistencia armada; Zwinglio planeia a abolição do papado e do imperio medieval; Philippe de Hesse diligenceia promover a união. 1-4 de Out.—Conferencia religiosa em Marburgo (Luthero, Melanchthon, Zwinglio, Œcolampadius, Justo Jonas, Osiander, Brenz, etc.); 4 de Out., união em quatorze artigos, divisão no quinquagesimo—O Sacramento da Ceia. _Zwinglio_: «Não ha na terra homens com quem eu mais gostosamente me identificaria do que os de Wittenberg.» _Luthero_: «Vós tendes um Espirito differente do nosso.» 16 de Out., Luthero no convento de Schwabach; 30 de Nov. em Schmalkald; a Saxonia separa-se dos outros estados do sul da Allemanha. 1530.—=Dieta de Augsburgo=; 15 de Jan. entrada do imperador; infructiferas negociações com os principes evangelicos para os induzir a incorporar-se na procissão de Corpus-Christi; 20 de Jun., abertura da Dieta; 25 de Jun. é lida a Confissão de Augsburgo (3 de Ago., é lida a Refutação); 11 de Jul., é lida a Confissão Tetrapolitana (em 17 de Out. a Refutação) e a _Fidei Ratio_, Zwinglio; 16 a 29 de Ago. Negociações com Melanchthon, em que elle mostra muito pouca firmeza. 19 de Nov. Decreto da Dieta. Depois d’Abril de 1531, suppressão violenta do protestantismo. 1531.—Liga protestante de Schmalkald: á frente d’ella, Hesse e Saxonia. 1532.—Dieta de Nürnberg: tolerancia até haver um Concilio Geral. Dessan adopta a Reforma. 1534.—O Würtenburgo abraça a Reforma Lutherana. 1536.—A concordata de Wittenberg; Melanchthon Bucer; a _Ceia do Senhor_ conforme o lutheranismo; evita-se que tomem parte n’ella os indignos e os incredulos; _Baptismo_; _Absolvição_; escondem-se os pontos em voz de se explicarem. Victoria da Reforma na Dinamarca. 1537.—Convenção de Schmalkald; os Artigos de Schmalkald. 1538.—Liga Catholica Romana em Nürnberg. 1539.—Victoria da Reforma na Saxonia Ducal, e no Brandenburgo Eleitoral. 1540.—Junho: Conferencia em Hagenau. 25 de Nov. a 14 de Jan. em Worms (Granvella, Melanchthon, Bucer, Capito, Brenz, Calvino, Eck, Cochlæus). 1541.—27 de Abr. a 22 de Maio, conferencia em Regensburgo (Contarini, Melanchthon, Bucer, Eck), a questão da Transubstanciação. 1542.—Nicolau V. Amosdorf, bispo de Naumbugo. 1544.—Dieta de Spira; reconhecimento dos protestantes; tudo em socego, na expectativa de um Concilio Geral. 1545.—_Reformatio Wittenbergensis._ 1546.—Segunda Conferencia Religiosa em Regensburgo; 18 de fev., Luthero morre em Eisleben; os protestantes não apparecem na Dieta. 1546-47.—A guerra de Schmalkald; 19 de jun. liga entre Mauricio e o imperador; 20 de jul., decreto contra João Frederico e Filippe; 27 de out., Mauricio é nomeado eleitor; 24 de abr., batalha de Mühlberg, ficando prisioneiro João Frederico; Filippe entrega-se em Halle; o imperador falta á sua palavra. 1543.—Reforma no arcebispado de Köln; Hermann V. Wied, o arcebispo, é avisado por Bucer e Melanchthon; excommungado em 1546; abdica em 1547; fall. em 1552. 1548.—15 da maio, o Interim de Augsburgo conserva as hierarquias, ceremonias, festividades e jejuns da Egreja Catholica Romana; casamento dos clerigos e Ceia do Senhor _sub utraque_. 1548.—Interim de Leipsic (Mauricio da Saxonia e Melanchthon). 1551.—Vehemente desejo do imperador de que os protestantes se submettam ao Concilio de Trento; Liga clandestina de Mauricio da Saxonia com Henrique II de França. Out.: Embaixadores do Würtemburgo, e jan. de 1552, embaixadores saxonios em Trento. 1552.—20 de mar., Mauricio põe-se em fuga; 19 de maio, apodera-se do castello de Ehrenberg, e da Passagem de Ehrenberg, as chaves do Tyrol; dissolve-se o Concilio; julho: Tratado de Passau; João Frederico e Filippe ficam livres. 1555.—25 de set. _Paz religiosa de Augsburgo_; a Egreja Lutherana fica com os mesmos direitos legaes da Catholica Romana: _Cujus regio ejus religio; o Reservatum ecclesiasticum_; a Egreja Reformada não é reconhecida. 1558.—Disputas entre os antigos lutheranos (Gnesiolutherani) e os discipulos de Melanchthon. 1560.—Morto de Melanchthon, 19 de abril. 1586-91.—Embaraços cripto-calvinistas na Saxonia eleitoral; supressão do calvinismo; execução de Krells, em 1601. _A Egreja Lutherana perde:_ (_a_) Em favor da Egreja Catholica Romana 1558.—A Baviera. 1578.—O ducado da Austria (Rodolpho II). 1584.—Os bispados Würzburgo, Bamberg, Salzburgo, Hildesheim, etc. 1594.—Steiermark, Carinthia (Fernando II). 1607.—Donauwerth. (_b_) Em favor da Egreja Reformada 1560.—O Palatinado; 1563, o Catecismo de Heidelberg (Reformado sob Frederico III; Lutherano sob Luiz VI, 1576-83; Reformado sob Frederico IV, 1583-1618). 1568.—Bremen. 1596.—Anhalt (João Jorge, 1587-1603); revogação do Systema Consistorial e do Catecismo Lutherano; 1597-1628, Artigos Calvinistas. 1605.—Hesse-Cassel, que estava sob o dominio do Landgrave Mauricio (1592-1627). 1613.—O Brandenburgo, que estava sob o dominio do Eleitor João Sigismundo 1614, _Confessio Marchica_. _Anti-Trinitarios_ _Miguel Servetus_, da Aragão; 1530, em Basiléa; 1531, _De Trinitatis erroribus_; 1534, em Lyons; 1537, em Paris; 1540, em Vienna; 1553, _Christianismi restitutio_; 1553, queimado em Genebra. _Valentinus Gentilis_, da Calabria; decapitado em Berne, em 1556. _Laelius Socinus_: nasc. em 1525, em Veneza; 1547, percorre a Suissa, a Allemanha e a Polonia; fall. em 1562, em Zurich. _Faustus Socinus_: nasc. em 1539, em Siena; 1559, em Lyons; 1562, em Zurich; 1574-78, em Florença, e depois em Basiléa; 1579-98, na Polonia; fall. em 1604.—_De Jesu Christo servatore: De Statu primi hominis ante lapsium_, 1578. 1605.—Catecismo Racoviano. Egreja Reformada ULRICO ZWINGLIO: nascido em 1 de Jan. de 1484, em Wildhaus, no condado de Toggenburgo; discipulo de Henrique Wolflin (Lupulus) em Berne; de Thomaz Wyttenbach, em Basiléa. 1499, discipulo de Joaquim Vadianus em Vienna; 1506, mestre de artes; 1506-16, pastor em Glarus; 1516-18, prégador em Santa Maria, Einsiedeln. (Diebold de Geroldseck e o abbade Conrado de Rechenberg). 1518.—Zwinglio contra a indulgencia prégada por Bernardino Sampson (Guardião do convento franciscano de Milão.) 1519.—1 de Jan., Zwinglio prega o seu primeiro sermão em Zurich; sermões sobre o Evangelho da S. Matheus, os Actos e as Epistolas de Paulo; sermões reformistas, expondo uma clara distincção entre o christianismo biblico e o romanista; Estudo humanista da Escriptura (Epistolas Paulinas). EM FRANÇA, propaganda das doutrinas reformadas por Guilherme Briçonnet, bispo de Meaux desde 1521. Juntamente com Le Fébre e Farel. 1521.—Cornelio Hoën, jurisconsulto allemão, escreve _De Eucharistia_ (a Ceia do Senhor puramente symbolica); a doutrina é introduzida em Wittenberg e em Zurich por João Rhodius, presidente da Casa dos Irmãos, em Utrecht. 1522.—16 de Abr. Zwinglio: _Von Erkiesen und Fryheit der Spysen_; Ago.: _Apologeticus Archeteles_, ao bispo de Constança. A theologia zwingliana torna-se gradualmente a mais forte nos Paizes Baixos. 1523.—29 de Jan. Discussão em Zurich, entre Zwinglio e João Faber, vigario geral do bispo; as 67 theses de Zwinglio. 26 de Out., Discussão em Zurich ácerca do culto das imagens e da missa. 17 de Nov., Instrucção do Concilio de Zurich aos pastores e prégadores. 1524.—Perfeita reforma esclesiastica em Zurich; os quadros das egrejas são arreados; os conventos dos frades são encerrados. Victoria da Reforma em Berne (Berchtholdt Haller. Nic. Manuel), Appenzell, Solothurn; a Liga Romanista e os Cantões Florestaes de Lucerna. 1525.—A missa é abolida em Zurich; o culto publico muito simples e na lingua allemã; a Ceia do Senhor _sub utraque_. O commentario de Zwinglio, e a primeira parte da traducção da Biblia de Zurich (primeira edição completa em 1531). Zwinglio expôe detalhadamente o que pensa ácerca da Ceia do Senhor. (Carlstadt torna publica, no sul da Allemanha, a sua theoria da Ceia de Senhor, δεικτικῶς: Este meu Corpo, é o Corpo, etc.) Zwinglio a Matheus Alber em Reutlingen, 16 de Nov. de 1524, _Menducatio spiritualis_; depois no seu commentario. _Contra_ Zwinglio: Bugenhagen. _A favor_ de Zwinglio: Œcolampadius. O Syngramma Suevicum, 1525, (em Hall), por Brenz, Schrepf, Griebler, etc., e mais tarde Calvino. Luthero contra Calvino—(1) no seu prefacio á traducção de Agricola do Syngramma Suevicum; (2) em 1527 «Que a Palavra» etc. Principios ecclesiasticos e politicos de Zwinglio; a sua reforma politica na Suissa; liga politica dos cantões florestaes catholicos romanos para conservarem a sua supremacia. 1526.—Os cantões catholicos romanos atacam os evangelicos. Maio: Polemica em Baden (Eck e Œcolampadius). 1528.—Victoria da Reforma em St. Gall (Joaquim Vadianus, João Kessler). 1529.—A Reforma vence em Basiléa (Œcolampadius, Capito, Hedio). Liga de cinco cantões florestaes com a Casa de Hapsburgo. 24 de Jun., Paz de Cappel; os cantões florestaes abandonam a Liga de Hapsburgo e reconhecem a libertade de consciencia. Separação entre os protestantes lutheranos e os do sul da Allemanha; Luthero oppõe-se a uma resistencia armada; Zwinglio planeia a abolição do papado e do imperio medieval; Philippe de Hesse diligenceia promover a união. 1-4 de Out.—Conferencia religiosa em Marburgo (Luthero, Melanchthon, Zwinglio, Œcolampadius, Justo Jonas, Osiander, Brenz, etc.); 4 de Out., união em quatorze artigos, divisão no quinquagesimo—O Sacramento da Ceia. _Zwinglio_: «Não ha na terra homens com quem eu mais gostosamente me identificaria do que os de Wittenberg.» _Luthero_: «Vós tendes um Espirito differente do nosso.» 16 de Out., Luthero no convento de Schwabach; 30 de Nov. em Schmalkald; a Saxonia separa-se dos outros estados do sul da Allemanha. Os cantões catholicos romanos não observam as clausulas da paz. 1531.—15 de Maio, em Aarau nega-se provisões aos cantões florestaes com a reprovação de Zwinglio. 11 de Out., Batalha de Cappel; _Zwinglio é assassinado_; Segunda Paz de Cappel. Henrique Bullinger, successor de Zwinglio. _Reforma promovida por Calvino na Suissa franceza._ _Guilherme Farel_ (nasc. em 1489, no Delphinado; desde 1526, reformador em Berne; em 1530, em Neufchatel; fall. em 1565, em Genebra); _Pedro Viret_ (nasceu em 1511, em Orbe; 1531-59, em Lausanne; desde 1561, em Nismes e Lyons; fall. em 1571); desde 1534, faz-se em Genebra propaganda da Reforma. 1536.—JOÃO CALVINO em Genebra; nasc. em 10 de jul. de 1509, em Noyon; estudou em Orleans e em Paris; 1533, abraçou a Reforma em Paris; em Basiléa; 1536, =Instituto Christianæ Religionis=; depois em Ferrara; rigorosa disciplina ecclesiastica; em 1538, pela pascoa, é expulso de Genebra e ratira-se para Strasburgo; chamado novamente a Genebra em 1541; fall. em 27 de Maio de 1564. _Systema ecclesiastico adoptado por Calvino em Genebra._—Culto: oração e prégação. Organisação presbyterianna. Jan. de 1542: _Ordonnances ecclésiastiques de l’église de Genève._ Pastores, doutores, presbyteros e diaconos. Disciplina da Egreja. _A Reforma em França_, 1559-98 _Francisco I_, Humanista, importando-se pouco com a religião, fez da Reforma arma politica; sua irmã Margarida, rainha de Navarra (fall. em 1549) protege os reformadores; severa perseguição dos protestantes francezes, não obstante a alliança com os principes protestantes allemães e o pedido feito a Melanchthon para ir residir em França, em 1565. Henrique II: Antonio de Navarra e sua mulher Joanna d’Albret põem-se á testa do protestantismo em França. 1559-25.—29 do maio, Primeiro synodo reformado em Paris, organizado por Antonio Chandieu, pastor parisiense; Confissão Gauleza. 1561.—Set.: Conferencia religiosa em Poissy, Theodora Beza. 1562.—Jan.: Os protestantes alcançam o direito de se reunirem para o culto fóra das cidades; Francisco de Guise massacra a congregação protestante de Vassy. 1562-63.—A guerra huguenote. Morte de Antonio de Navarra; Francisco de Guise é alvejado perto de Orleans. 1567-68 e 1569-70. Guerras huguenotes. 1572.—24 de ago., massacre de Paris na vespera de S. Bartholomeu; assassinio de Coligny e de 50:000 huguenotes. 1574-76.—Guerra huguenote; a Santa Liga dos Guises. 1588.—Assassinio de Henrique e Luiz de Guise. 1589.—Henrique é morto por um fanatico da Liga, J. Clement, em 1 de ago. 1593.—_Henrique IV faz-se catholico romano._ 1598.—EDICTO DE NANTES: liberdade de consciencia; é permittido o culto publico; todos os privilegios civis; cidades de refugio para os huguenotes. 1620-28.—Revoltas huguenotes. 1620.—Tomada da Rochella. Edicto de Nismes. São garantidos aos huguenotes direitos ecclesiasticos. 1552.—_Os 42 Artigos._ 1554.—O cardeal Reginaldo Pole, legado pontificio; 1555-58, Sanguinolentas perseguições no reínado de Maria; 1556, 21 de maio, Cranmer é queimado em Oxford. _A Rainha Isabel restabelece a Reforma_ 1559.—Junho: Acta da Uniformidade, Matheus Parker, arcebispo de Canterbury. Revisão e readopção do livro de Oração Commum. 1562.—23 de jan., _Os 39 Artigos_: Doutrina calvinista da Predestinação, Doutrina calvinista da Ceia do Senhor. 1567.—Os puritanos são excluidos da Egreja. Puritanismo; Reforma espiritual mediante a collectividade evangelica, acceitação, em Inglaterra, da doutrina do sacerdocio espiritual de todos os crentes, e consequente guerra ás capas de asperges e outros paramentos ecclesiasticos. 1570.—Thomaz Cartwright é expulso de Cambridge. 1582.—Roberto Browne, capellão do duque do Norfolk; separação da Egreja e do Estado; cada congregação fórma uma egreja independente. Movimentos Revolucionarios _Os Mysticos_ A Nova Prophecia, o Espiritualismo, o Millenearismo, uma Congregação dos perfeitamente santos, opposição ao baptismo de creanças. Primeiro periodo até 1535. 1521.—Os Prophetas (de Zwickau) em Wittenberg: Nicolau Storch, Marcos Thomé, ou Stübner, Martinho Celiarius. André Bodenstein de Carlstadt: 1504, professor em Wittenberg; 1520, em Copenhague, 1522, tumultos por causa das imagens e dos paramentos; 1523-24, em Orlamünde; excommungado depois no sul da Allemanha, na Frisilandia Oriental, na Suissa; fallecido em 1541, em Basiléa. 1523.—Conrado Grebel, Felix Manz, e Stumpf. em Zurich, contra Zwinglio. 1524.—Alterações da ordem em Stockholmo; Melchior Hoffmann. 1525.—Thomaz Münzer em Mülhausen; executado em Maio de 1525. Tratado: _Wider das geistlose sanftlebende Fleisch ze Wittenberg_, 1522. Janeiro: Levantamento dos anabaptistas; Jürg Blaurock, monge proveniente de Chur. Severa perseguição dos anabaptistas (Hanz morre afogado em Zurich, em 1527; Balth. Hubmater é queimado em Vienna, em 1528; Hetzer é decapitado em Constancia em 1529). _Melchior Hoffmann_: nasc. em Hall, na Suabia; 1523, em Livonia; 1527, em Holstein; 1529, em Strasburgo; de ahi foi para a Frisilandia, onde se aggregou aos baptistas; depois nos Paizes Baixos; 1533, em Strasburgo; fall. em 1540. (_Ordinanz Gottes_): um estricto millenario do genero mais espiritual; propaga entre os baptistas as idéas millenarias. _Gaspar Schwenkfeld_: nasc. em 1490, em Ossing, perto de Liegnitz; ao serviço do duque de Liegnitz; 1525, julgou ter descoberto uma interpretação das palavras da instituição da Ceia «Quod ipse panis fractus est corpori esurienti, nempe cibus, hoc est corpus menm, cibus videlicet esurientium animarum;» de onde proveiu a sua doutrina ácerca de Christo, A Palavra Escondida (_De cursu Verbi Dei, origine fidei et ratione justificationis_, 1527); da Pessoa de Christo (não feito homem, mas gerado pela natureza divina: da sua carne divina); 1528, expulso da Silesia; em Strasburgo, Spira, Ulm, Perseguido desde 1539 pelos theologos lutheranos; em muitas controversias; fall. em 1561, em Ulm; discipulos seus na Silesia; na Pennsylvania desde 1730. 1533.—_O Reino de Christo_ em Münster. Bernardo Rothmann, superintendente evangelico em Münster, ajunta-se aos anabaptistas; Henrique Roll e os prégadores de Wassenberg, provenientes de Jülich. No verão; Melchioritas in Münster. Nov.: Jan. Matthiesen. 1534.—Quaresma: Tumulto, destruição das imagens e dos conventos. Vespera da Pascoa: Queda de Matthiesen; João de Leyden colloca-se á frente dos anabaptistas (Theocracia com communidade de bens e de esposas). 1535.—Vespera de S. João: tomada de Münster. 1536.—22 de Jan. João de Leyden, Knipperdolling e Krechting são executados. 1534.—David Joris: nasc. em 1501, em Delft; associa-se aos anabaptistas; promove reformas entre elles; a sua influencia nos Paizes Baixos e na Frisilandia Oriental. 1542, o seu _Wunderbuch_; 1544, em Basiléa; uma especulação mystico-espiritualista com tendencia racionalista. _Os Mennonitas_ Menno Simonis: nasc. em 1496, em Witmarsum; 1524, padre; 1536, deixou de exercer as suas funcções, desgostoso com a perseguição dos anabaptistas de Münster, baptisado por um apostolo de Jan Matthiesen; reformou e organisou as congregações anabaptistas na Hollanda e na Frisilandia; fall. em Oldesloe; fez cessar o enthusiasmo fanatico, e deu maior incremento á tendencia para o Donatismo. Os seus discipulos, os mennonitas, tolerados em 1572, nos Paizes Baixos, por Guilherme de Orange, encontravam-se tambem em Emden, Hamburgo, Danzig, Elbing, no Palatinado e na Moravia; moderaram o espirito anabaptista primitivo; rejeitaram todos os dogmas; prohibiram os juramentos e a guerra; appellaram para a letra da Escriptura. Egreja Anglicana Inglaterra, 1547-1600, sob Henrique VIII: João Frith, Guilherme Tindal. 1534.—Acta do Parlamento ácerca da supremacia real; o Rei «o unico chefe supremo, sobre a terra, da Egreja ingleza»; á frente do partido evangelico, Thomaz Cranmer (1533, arcebispo de Canterbury) e Thomaz Cromwell; Traducção da Biblia, em 1538. 1539.—28 de jul., Transubstanciação; negação do calix aos leigos; celibato clerical; missas pelos defuntos; confissão auricular. A Reforma de Henrique VIII foi um acto do rei, e significava apenas uma revolta contra o systema medieval, sendo o papa substituido pelo rei. Isolamento da Egreja da Inglaterra; cortadas todas as relações com o papado; sem communicação alguma com as Egrejas Reformadas. 1547.—Sob o governo de Somerset, Lord Protector: Pedro Martyr Vermigli (nasc. em 1500, em Florença; 1542, em Strasburgo; fall. em 1562, em Zurich) e Bernardo Ochino (nasc. em 1487) levado para Oxford; Martinho Bucer e Paulo Fagio, para Cambridge. O Livro das Homilias. 1548.—O Livro da Oração Commum; revisto em 1552. _A Escocia_ 1558.—Os Lords da Congregação; o Evangelho Puro, o Livro de Oração Commum do Rei Eduardo. 1560.—Assembléa dos Estados em Edinburgo; _A Confissão Escoceza_; o Primeiro Livro de Disciplina; é approvado o governo presbyteriano pelas Assembléas Geraes, pelos Synodos e pelas Sessões das egrejas; Superintendentes. _João Knox_: nasc. em 1505, em Haddington; desde 1546, prégador em St.º André; 1547-49, nas galés; 1553-59, em Frankfort e Genebra; 1559 a 1572 (data do fallecimento) em Edinburgo. 1572.—Convenção de Leith; Bispos privados de exercerem as funcções episcopaes: os Tulchanos. 1576.—Os inspectores nomeados pela Assembléa. 1578.—Segundo Livro de Disciplina. 1580.—A instituição dos presbyterios. A Egreja Catholica Romana 11 de Março de 1513 a 1 de Dez. de 1521.—Leão X. 1517.—O Concilio de Latrão concede ao papa os dizimos de todos os bens ecclesiasticos. Indulgencia (a quinta entre 1500 e 1517) para a construcção de S. Pedro, e para as despezas particulares do papa. São concedidas á Allemanha tres commissões de indulgencias, uma d’ellas arrendada ao arcebispo de Mayença (canonisado em 1514) sendo seu agente o dominicano João Tetzel (fallecido em 1519). Thomaz Vio de Gaeta (Cardeal Caetano): «A Egreja Catholica é a escrava do papa»; assevera a infallibilidade papal no mais amplo sentido. 1519.—As côrtes de Aragão pedem tres Breves a Leão X (que nunca lhe foram enviadas) para restringir a Inquisição. Pedidos similhantes, tambem infructiferos, feitos pelos estados de Aragão, Castella e Catalunha, a Carlos V em 1516. _Os theologos romanistas no primeiro periodo da Reforma._ João Eck, professor de theologia em Ingolstadt desde 1510; nasc. em 1486, na aldeia de Eck; fall. em 1543. Jeronymo Emser, prégador palaciano do duque Jorge da Saxonia, fall. em 1527. João Cochlæus (Dobeneck), deão de Francfort sobre o Maine, Canonicus em Mayença e Breslau; fall. em 1552; _Commentaria de actis et scriptis M. Lutheri_ (1517-46), 1549, _Historiæ Hussitarum_. João Faber, 1518, Vigario Geral em Constancia (Costnitz); 1529, Preboste de Ofen; 1530, Bispo de Vienna, fall. em 1561; 1523, _Malleus hæreticorum_. 1521.—Henrique VIII de Inglaterra: _Assertatio VII. Sacramentorum contra Lutherum_ (Defensor da Fé.) 15 de Abril, Decreto da Sorbonne, condemnando as doutrinas de Luthero. 8 de Maio, Edito de Carlos V. (fundado no edito de Worms) contra a propaganda das doutrinas reformadas nos Paizes Baixos. (1522, é encerrado, sobre o fundamento de heresia, o convento dos Agostinhos de Antuerpia). 1522-23.—14 de Set. O papa Adriano VI (tutor de Carlos V, bispo de Utrecht) instruido na sciencia antiga; aspiração por uma reforma do clero mediante a hierarquia. Em Hespanha, desde 1520 circulação dos escriptos de Luthero, em traducções hespanholas feitas em Antuerpia. 1523.—João de Avila o «apostolo de Andaluzia», é perseguido por ter adoptado as doutrinas lutheranas. 1523-34.—26 de Set. O papa Clemente VII (Julio Medici) filho natural de Julião de Medico. 1524.—O cardeal Campeggio, legado do papa na Dieta de Nürnberg. Liga, em Regensburgo, dos Estados Catholicos Romanos do Sul da Allemanha (Fernando de Austria, os duques da Baviera e os bispos do sul da Allemanha) Condições: Uma reforma ecclesiastica dentro de certo limites, e uma alliança com o poder civil; não se permitindo, porém, que continuem a ser prégadas as novas doutrinas. 1524.—Pedro Caraffa, bispo de Theate (Papa Paulo IV) institue a Ordem dos Theatini para impedir o avanço da Reforma. 1526.—Maio 29: Liga em Cognac contra Carlos V (o papa, Francisco I, Veneza e Milão). 1527.—Processo da Sorbonne contra Jacques le Fêvre (fall. em 1537, durante uma viagem para Strasburgo), sob a protecção de Margarida de Navarra. 1527.—Maio 6, Carlos de Bourbon ataca Roma; o papa encerrado em St. Angelo até 6 de Junho. Carlos V, senhor de quasi todos os Estados da Egreja, propõe o limitar-se o poder temporal do papa. O papa appella para Inglaterra e para França; um exercito francez equipado á custa da Inglaterra, marcha em seu auxilio. 1528.—Jun. 29: Paz entre o Imperador e o papa em Barcelona; o papa recupera os Estados da Egreja e Florença; exterminio da heresia. 1530.—Congregações reformadas em _Hespanha_. Em Sevilha: Rodrigo de Valero, Joh. Egidio, Ponce de la Fuente. Em Valladolid, 1555, Agostinho Cazalla. Francisco Enzinas traduz o Novo Testamento; em 1556, nova traducção por João Perez. Filippe II e a Inquisição condemnam essas obras. _Italia._—A Reforma allemã desperta a vida religiosa e a theologia agostinha; Contarini, Reginaldo Pole, Joh. de Merone, (arcebispo de Modena). _Pedro Paulo Vergerius_ (abraçou a Reforma em 1548; fall. em 1565). Reforma em Ferrara (Renée casa em 1527, com Hercules II); em Veneza; em Napoles (João Valdez, fall. em 1540; e Bernardo Ochino); em Lucca (Pedro Martyr). 1534-49.—O papa Paulo III (Farnese); Vergerius, seu legado na Allemanha. 1536.—Paulo III manda reunir em Mantua o Concilio havia longo tempo promettido; 1537, addiado; mandado reunir em Vicenza; novamente addiado. 1542.—Antonio Paleario (queimado em 1570), _Del beneficio di Gesu Christo crocifisso verso i Christiani_. 1540.—27 de Set., COMPANHIA DE JESUS constituida por Paulo III; _D. Ignacio de Loyola_ nasc. em 1491, no castello de Loyola, situado na provincia de Vasconça; ferido em 1521, em Pamplona; lendas de santos; estudos em Barcelona; desde 1528 em Paris. Em 1534, com seis companheiros (Francisco Xavier, Jacques Lainez, Pedro Lefebre, etc.), fez os votos monasticos, accrescentando um outro, o de absoluta obediencia ao papa. Loyola fall. em 1556; Lainez em 1561. «Para zelar os interesses da hierarquia catholica romana contra o protestantismo tanto dentro como fóra da Egreja.» A obra missionaria de Francisco Xavier no Oriente da Asia. A moral da Sociedade; casuistica. Os seus dogmas: a superstição systematica. 1542.—O cardeal Caraffa aconselha o restabelecimento da Inquisição para acabar com o protestantismo na Italia. 1545.—Abertura do _Concilio de Trento_; Primeiro periodo, 11 de mar. de 1547, em Trento; 21 de abr. de 1547 a 13 de set. de 1549, em Bolonha. Segundo periodo, 1 de maio de 1551 a 28 de abr. de 1552, em Trento. Terceiro periodo, 13 de jan. de 1562 a 4 de dez. de 1563 (25 sessões). Doutrinas romanistas consolidadas mediante esse concilio. 1564.—_Professio Fidei Tridentinae_: 1566, _Catechismus Romanus_ (Leonardo Marini, Egidio Foscarari, Muzio Calini). 1548.—Filippe Nery funda o Oratorio. 1550-64.—Julio III (del Monte). 1551.—Fundação do Collegium Romanum Jesuita. 1552.—Fundação do Collegium Germanicum. 1555-59.—Paulo IV (Caraffa) protesta contra a Paz de Augsburgo; Inquisição. 1559-65.—Pio IV (Medici) deixa-se guiar por seu sobrinho, o cardeal Carlos Borromeu, arcebispo de Milão, fall. em 1584. 1564.—_Index librorum prohibitorum._ 1566-72.—Pio V, zeloso dominicano. 1567.—Bulla de excommunhão contra 79 proposições agostinianas de Miguel Baius (fall. em 1589). Chanceller da Universidade de Louvain. 1568.—_Breviarium._ 1570.—_Misssale Romanum._ 1572-85.—Gregorio XIII; carta congratulatoria a Carlos IX, ácerca do massacre de S. Bartholomeu; _Te Deum_ em Roma, em honra do acontecimento. 1582.—Reforma do Calendario. 1582-1610.—Missões jesuitas na China. 1585-90.—Sixto V: Bibliotheca do Vaticano. 1588.—Annales Eccl., de Baronio. 1590.—Edição infallivel da Vulgata. 1592-1605.—Clemente VII. 1592.—Nova edição da vulgata (a chamada edição de Sixto V). _Os Paizes Baixos_ 1559.—Margarida de Parma; Granvella, bispo de Arras. São creadas 14 novas dioceses. Inquisição. 1562.—_Confessio Belgica_; Guido de Brès, Adriano de Savaria, H. Modetus, G. Wingen; revista por Francisco Junio, em 1571. 1566.—Compromisso em favor dos protestantes. Tumultos por causa da imagens e das reliquias. 1568-78.—O duque de Alba. Concilio de Sangue; Perseguição de protestantes; são mortos 18:000; Egmont e Horn em 1568. 1572.—Tomada de Brill pelos mendigos do mar; Guilherme de Orange. 1576.—8 de Nov., Tratado de Ghent. 1579.—23 de jan., União de Utrecht, firmada pelas provincias do norte. 26 de julho, Declaração de independencia. 1584.—10 de julho, Assassinio de Guilherme de Orange; succede-lhe Mauricio de Orange. Fundação de Universidades—Leyden, em 1575; Franecker, em 1585; Gröningen, em 1612; Utrecht, em 1638; Harderwyk, em 1648. Theologia Protestante FILIPPE MELANCHTHON (nasc. em 16 de Fev. de 1497, em Bretten); 1509-12, em Heidelberg; 1512-14, em Tübingen; 1514, mestre de artes; 1514-18, lecciona em Tübingen; 1518, professor de grego em Wittenberg; 29 de Ago. Conferencia introductora, _De corrigendis adolescentiæ studiis_; 19 de Set. de 1519. Bacharel em Theologia; fall. em 19 de Abr. de 1560. =Loci communes rerum Theologicarum, seu hypotyposes Theologicæ=, 1521; tres edições em 1521; a edição de 1525 modifica a predestinação absoluta; a edição de 1535 reconstrue a sua theologia; edição de 1543, Synergismo. ZWINGLIO: _Commentarius de vera et falsa religione_, 1525; _Fidei ratio ad Carolun Imperatorem_, 3 de Jul. de 1530; _Sermonis de providentia Dei Anamnemo_; 1530; _Christianæ Fidei expositio_, 1531. (a) _Theologos Lutheranos_ Jorge Spalatim: nasc. em 1484, em Spalt, na diocese de Eichstädt; 1514, capellão de Frederico, o Sabio; 1525, superintendente em Altenburgo; fall. em 1545. Justo Jonas: nasc. em 1493, em Nordhausen; 1521, Preboste e professor em Wittenberg; 1544-46, em Halle; 1551, superintendente em Eisfeld; fall, em 1555. Nicolau de Amsdorf: nasc. em 1483; desde 1502, em Wittenberg; 1524, em Magdeburgo; 1528, em Goslar; 1542-46, bispo de Naumburgo; depois de 1550, em Eisenach; fall. em 1565. João Bugenhagen: nasc. em 1485; desde 1521, em Wittenberg; 1523, pastor, 1536, superintendente geral. Gaspar Cruciger: 1528-48, fallecendo, em professor, em Wittenberg. Frederico Myconius, franciscano em Annaberg, e depois pastor em Weimar; 1524, prégador da côrte em Gotha; fall. em 1546. Paulo Speratus: 1521, em Vienna, depois em Iglau; 1523, em Wittenberg (1524, «Chegou-nos a Salvação»): 1524, em Königsberg; 1529-51, bispo da Pomerania, em Marienwerder. João Brenz, nasc. em 1499: 1520, prégador romanista em Heidelberg, 1522-46, prégador lutherano em Hall, na Suabia; desde 1553, preboste em Stuttgart; fall. em 11 de Setem. de 1570. (_b_) _Os Theologos Zwinglianos_ João Œcolampadius, nasc. em 1488; 1515, pastor em Basiléa; 1519, em Augsburgo; 1522 professor e prégador em Basiléa; fall. em 24 de Nov. de 1531. Leão Judæus: 1523, cura de S. Pedro, em Zurich; nasc. em 1482; fall. em 1542. Oswaldo Myconius (Geisshüsler) nasc. em 1483, em Lucerna; fall. em 1532; 14 de Out. de 1552, os Antistites em Basiléa. Conrado Pellican (Kürsner): nasc. em 1478; 1493, franciscano; desde 1502, Lector no convento dos Franciscanos de Basiléa; 1527, em Zurich, como professor de hebreu; fall. em 1556. (c) _Theologos intermediarios_ Urbano Rhegius: nasc. em 1496, em Argau sobre o Bodensee; 1512, professor em Ingolstadt; 1519, padre em Constança; 1520-22, prégador em Augsburgo; desde 1530, reformador em Brunswick, ao serviço do duque Ernesto; fall. em Celle, em 23 de Maio de 1541. Ambrosio Blaurer: nasc. em 1492, em Constança; 1534-38, reformador em Würtemberg; até 1548, em Constança; em 1564, fall. em Winterthum (1534, _Concordata de Stuttgart_.) Martinho Bucer: nasc. em Sehlettstadt, em 1491; 1505, dominicano; desde 1524, pastor em Strasburgo; 1549, sob Eduardo VI, em Inglaterra e professor em Cambridge; fall. em 28 de Fev. de 1551. Wolfango Fabricio Capito: nasc. em 1478; 1515, em Basiléa; 1520, em Mayença; 1523-1541, preboste de S. Thomaz, Strasburgo, fall. em 1541. (d) _Confissões Zwinglianas_ 1523.—Jan. 29, os 67 Artigos de Zwinglio. Nov. 17, Instrucções ao Concilio de Zurich. 1530.—Julho 9, _Fidei Ratio ad Carolum V_. (de Zwinglio com o assentimento de Œcolampadius e outros reformadores suissos). 1530.—_Confessio Tetrapolitana_ (Strasburgo, Constança, Lindau, Memmingem): Bucer, Capito, Hedio; durante as sessões da Dieta de Augsburgo. 1534.—_Confessio Basiliensio_ (Myconius) acceite por Mühlhausen em 1537, e chamada Conf. Mühlhusiana. 1536.—_Confessio Helvetica Prior_ (Basil II) redigida em Basiléa por delegados dos cantões evangelicos, (Jan. a Março) e pelos seus theologos Bullinger, Myconius, Grynæus, Leão Judæus, etc. (e) _Confissões Lutheranas_ 1529.—_O Catecismo maior e mais pequeno_, de Luthero, em allemão; appareceram simultaneamente. 1530.—=Confessio Augustana=, ou Confissão de Augsburgo. Constituida por—(1) os 15 Artigos de Marburgo; (2) os 17 Artigos de Schwabach, redigidos por Luthero; (3) os Artigos de Torgau, compilados por Luthero, Melanchthon, Justo Jonas, Bugenhagen, e apresentada ao Eleitor, em Torgem, em março de 1530. Obra de Melanchthon com a assistencia doe theologos evangelicos reunidos em Augsburgo, e revista por Luthero. Exposição da Doutrina Evangelica, «In que cerni potest, nihil inesse, quod discrepet a Scripturis vel ab ecclesia catholica vel ab ecclesia Romana, quatenus ex scriptoribus nota est.... Sed dissenus est de quibusdam abusibus, qui sine certa auotoritate in ecclesiam irrepserunt.» Philippe de Hesse aasignou-a, protestando, porém, contra o Artigo X, que trata da Ceia do Senhor. É impossivel averiguar com exactidão o texto, quer das edições allemãs quer das latinas; a primeira edição impressa de Melanchthon; Wittenberg, 1530, em 4.º _A Variata_ (variantes, especialmente no Artigo X) desde 1540. _Apologia em favor da Confissão de Augsburgo._—_A prima delineatio apologiæ_ por Melanchthon, em Set. de 1630, em Augsburgo; prompta a imprimir em abril de 1531; a primeira edição em Abril de 1531; a edição allemã de Justo Jonas, em Out. de 1531. _Os artigos de Schmalkald_, por Luthero, para a Convenção Protestante de Schmalkald, 1557, e com referencia ao proposto Concilio Geral em Mantua (Estrictamente lutherano). _Controversias na Egreja Lutherana_ 1548-55.—_Adiaphoristicos_: Flacius, Wigand, Amsdorf, contra o Interim de Leipsic. 1549-66.—_Osiander_: André Osiander (em Nürnberg, 1522-48; em Königsberg, 1549, fall. em 1552); 1550, _De Justificatione_; 1551, _De Unico Mediatore Jesu Christi_. Justificação é uma participação da justiça de Christo: _cujus natura divina homini quasi infunditur_. Em opposição; Francisco Stancarus de Mantua (1551-52 em Königsberg, depois em Siebenbürgen, e na Polonia; fall. em 1574); 1562, _De Trinitate et Mediatore_, «Christo nossa justiça sómente pelo que respeita á Sua natureza humana.» 1551-62.—Majorista: Jorge Major (fall. em 1574, quando professor em Wittenberg); _bona opera necessaria esse ad salutem_. Refutado por Amsdorf; _bona opera perniciosa esse ad salutem_. 1556-60.—Synergista: Pfeffinger, em 1555, _Propos. de libero arbitrio_ (conforme o synergismo de Melanchthon): contra elle, Amsdorf (1558) _Confutalio_; e Flacio. 1560.—Discussão em Weimar, entre Flacio e Strigel. Flacio: o peccado original não podia deixar de ser commettido pelo homem. A doutrina lutherana é que prevalece. Heshusius: de _servo arbitrio_. 1527-40.—_Antinomiano_: João Agricola, nasc. em 1492, em Eisleben; fall. em 1562, sendo prégador na casa imperial, em Berlim; 1527, contra Melanchthon; e 1537, contra Luthero. A contriccão não vem declarada na lei, mas no Evangelho. Retracta-se em 1540. Desde 1556, controversia sobre _Tertius usus legis_. 1567.—_Crypto-Calvinista_: Melanchthon admitte as doutrinas calvinistas da Ceia do Senhor. Christologia e Predestinação. D’estas controversias conclue-se a necessidade de haver perfeita harmonia na Egreja Lutherana; e proveem de ahi varias fórmas do concordia com as quaes se constituiu a _Formula Concordia_. (1) A concordia Swabia de Jac. Andræ (desde 1562 professor em Tübingen, fall. em 1590) em 1574; 1575, a concordata de Martinho Chemnitz. 1576, Formula de Lucas Osiander. (2) Convenção de Torgau; o _Livro de Torgau_. _Os principaes theologos lutheranos_ _Martinho Chemnitz_; 1554; fall. em 1586, Superintendente em Brunswich; _Examen Concilii Trid._; 1565-73, _Loci Theologici_. _Matheus Flacio_: nasc. em 1520, em Albona, na Illyria; 1545, em Wittenberg; 1549 em Magdeburgo; 1557-61, em Jena; fall. em Frankfort sobre o Maine, 11 de Mar. 1575. _Catalogus Testium Veritatis_, 1556; _Ecclesi. Hist. per aliquot ... studiosos et pios viros in urbe Magdeburgica_ (os seculos de Magdeburgo), 13 volum., 1560-74; _Clavis Script. Sac._, 1567; _Glossa Compendaria in N. T._, 1570, etc. _João Gerhard_: nasc em 1582, em Quedlinburgo; 1606, superintendente em Heldburgo; 1615, Superintendente Geral em Coburgo; 1616 a 1637, professor em Jena. _Loci Theologici_, 1610 a 1625; _Medit. Sac._, etc. _Leonardo Hutter_: 1596 a 1616, professor em Wittenberg; _Compendium Loc. Theol._, 1610; _Loci Commun. Theolog._, 1619. _As Confissões de Fé da Egreja Reformada são universalmente reconhecidas._ _Cathechismus ecclesiæ. Genevensis_; 1541, Francez; 1545, Latino; Calvino. Consensio in re sacramentaria ministrarum Tigur.; Eccles. et Joh. Calvini. =O Catecismo de Heideiberg=: 1563, escripto sob a suggestão de Frederico III do Palatinado, por Zacarias Ursinus (desde 1561 professor em Heidelberg, fall. em 1583) e Gaspar Olevianus (professor em Heidelberg; fall. em 1587). _Confessio Helvetica Posterior_: 1566, enviado por Bullinger a Frederico III do Palatinado. _Os Decretos do Synodo de Dort_: 1619, reconhecidos nos Paizes Baixos, na Suissa, no Palatinado, em 1620 na França; não foram universalmente reconhecidos. JOÃO CALVINO: =Institutio Religionis Christianæ=, 1535-36. Tres edições, constituindo cada uma d’ellas uma ampliação, 1535, 1539 e 1559; _Commentarios ao Velho e Novo Testamentos_, 1539; _De æterna Dei predestinatione_, 1552; _Defensio orthodoxæ fidei de S. Trinitate_, 1554, contra Servetus. _Henrique Bullinger_, successor de Zwinglio em Zurich, nasc. em 1504, em Bremgarten, fall. em 17 de set. de 1578; Commentarios ao Novo Testamento, 1554; _Compendium relig. Christianæ; Histoire des persecutions de l’Eglise_. _Theodoro Beza_: nasc. em 1519; 1549, em Lausanna; 1558, professor e pastor em Genebra; fall. em 1605. Traducção do Novo Testamento, com annotações, 1565; _Histoire Eccles. des réformateurs au royaume de France_, 1580. _Rodolpho Hospinian_, pastor em Zurich; fall. em 1629; _De origine et progres. controv. sacramentariæ_, etc. _J. H. Hottinger_, professor em Heidelberg e Zurich; fall. em 1667; _Hist. Eccl._ N. T. _Gaspar Suicer_, professor em Saumur, fall. em 1684; _Thesaurus Ecclesiasticus_. _F. Dallæus_, professor em Saumur, fall. em Paris, em 1670; _Traité de l’emploi des S. Péres_, 1632. INDICE Absolvição clerical, 233. Agostinho, 208. Alba (Duque de), 105, 121, 125, 165. Allemanha (Situação politica da), 15. Amboise (Morticinio de), 99. Amboise, Edicto, 105. America (Descoberta da), 205. Anabaptistas (Os) em Genebra, 76. Anabaptistas (Os) em Zurich, 63. Anabaptistas (Os) nos Paizes Baixos, 115. Andersen (Lourenço), 52. Annatas (Os), 13, 60, 166. Anna Boleyn, 167, 184, 189. Anselmo, 210. Anstruweel, 121. Antuerpia, 121. _Apologeticus_, de Zwinglio, 62. Apostolos (Credo dos), 72, 223. _Appellações_, _Estatuto para a repressão das_, 167. Aristoteles, 214. Armada (a) hespanhola, 196. Artigos (Os Doze) dos camponezes allemães, 25. Artigos (Os dez), 171. Artigos (Os Seis), 173, 177. Artigos, (Os Quarenta e dois), 178. Artigos, (Os Trinta e Nove), 179, 192. Artigos, (Os Onze), 192. Augsburgo (Confissão de), 38. Augsburgo (Dieta de), 36. Augsburgo (Paz de), 47. Augsburgo (Interim de), 43. Babington (Conspiração de), 196. Ballanden (Ricardo), 150. Barlaymont, 120. Bartholomeu (Matança de S.), 107, 140, 149, 195. Basiléa, 64, 75. Beaton (Cardeal), 140. Bernardo de Clairvaux, 210. Berne, 59, 76. Berne (A Reforma em), 64. Beza, 83, 91. Beza em Poissy, 102. Biblia, Versão de Luthero, 19. Biblia, Franceza, 93. Biblia, Hollandeza, 116. Biblia (Doutrina da), 232. Bispados (os) nos Paizes Baixos, 118. Bispos (O livro dos), 172. Bispos (Os) na Escocia, 151. Boleyn (Anna), 167, 184, 189. Bonner (Bispo), 146. Borgonha (Carlos e Maria de), 114. Bourbon (Antonio de), 100. Bourbon (Condestavel de), 31. Bourbon (O principe), 96, 100. Bourg (Anne de), 98, 145. Bourges (Sancção Pragmatica de), 89. Brantôme, 107. Brederode (O Conde), 120. Brés (Guido), 134. Briçonnet, bispo de Meaux, 88. Brill (Tomada de), 126. Bruxellas, 115. Bucer, 71, 178, 187. Bugenhagen, 51. Bulla papal contra Luthero, 12. Bulla papal em favor da inquisição, 117. Bundschuh (Liga de), 24. Caetano (Cardeal), 10. Calderwood, 138, 142. Calvino (Mocidade de), 69. Calvino, (_Institutos da Religião_ de), 71, 78. Calvino em Genebra, 73. Calvino (Expulsão de), 75. Calvino (Morte de), 82. Calvino (Ordenanças ecclesiasticas de), 77. Cambridge, 178, 187, 194. Capito, 64. Cappel, (Paz de), 65. Caraffa (Cardeal), 117. Carew (Sir Peter), 184. Carlos V, imperador, 14, 164, 181, 184. Carlos V tenta subjugar a Reforma, 28, 32, 37. Carlos V (A politica de) nos Paizes Baixos, 114. Carlos IX de França, 106. Carlstadt, 11, 20. Cartwright (Thomaz), 194. Casamento (O), 216. Catharina de Aragão, 162, 169, 181, 183. Catharina de Medicis, 93, 100, 107. Catholicidade dos Reformadores, 222. Cecil (Sir William), 194, 196. Celtica (Egreja), 137. Chandieu (Antonio), 97. Chateaubriand (Edicto de), 94. Christiano II da Dinamarca, 50. Clemente VII, 29. Colet (Deão), 160, 162. Coligny (Almirante), 96, 100, 101, 104, 106. Commissão (Tribunal da Alta), 193, 199. Concilio (Reclama-se um), 21, 43. Concilio (o) de Trento, 44. Concordata (A) de 1516, 89, 164. Condé (Luiz de), 100, 102, 104, 105. Condé (Henrique de), 105. Confissão de Augsburgo, 38, 50. Confissão de Zurich, 84. Confissão Franceza, 97. Confissão Hollandeza, 134. Confissão Escoceza, 143. Congregação (Lords da), 142. _Consistorial_ (_Systema_), 30. Consistorio (O), 78, 98. Constança (Concilio de), 11. Cotta (Frau), 8. Convenção (A) Nacional, 142. Coverdale, 187. Cranach (Lucas), 16. Cranmer (Arcebispo), 171, 176, 184, 186. Craw (Paulo), 138. Crespin, 107. Cromwell (Thomaz), 163, 170. Dante, 218. Diana de Poitiers, 93. Dickson (David), 152. Dieta (A) allemã, 15. Dieta (A) de Worms, 16. Dieta (A) de Nürnberg, 20. Dieta (A) de Spira, 28. Dieta (A) de Augsburgo, 36, 47. Disciplina da Egreja, 30. Disciplina de Calvino, 77. Disciplina da Egreja franceza, 98. Disciplina (Livro da), 147, 152. Dissidencia (A), 194. Disturbios (O Conselho dos), 123. Dizimos (Os grandes e pequenos), 23, 215. Dordrecht, 135. Dorner, 225. Douay, 196. Douglas, 144. Drake (Sir Francis), 196. Dreux (Batalha de), 104. Dubois (Pedro), 138, 158. Eck (João), 9, 11, 17. Edictos de Tolerancia, em França, 103, 105, 110. Edinburgo, 143. Educação (A) na Escocia, 137, 148. Eduardo III, 218. Eduardo VI, 141, 157, 175, 181. Egmont (Conde), 117, 119, 120, 121, 122. Egreja (Disciplina da), 30, 98, 133, 134. Egreja (Riqueza da), 12. Egreja (A) em relação com a vida social, 215. Ehrenberg (Castello de), 46. Eidgenossen, 68. Einsiedeln, 61. Eisenach, 8. Eisleben, 7. Eleitores (Os) allemães, 15. Erasmo, 64, 170, 177. Erskine de Dun, 142, 151. Escocia (A Reforma na), 137-154. Esch (João), 115. Escriptura (A), 227. Eucaristia (A), 33. Fagius (Paulo), 178. Farel em Basiléa, 64. Farel em Genebra, 68. Farel em França, 88. Fé (A), 213, 230. Fernando de Aragão, 14, 162. Fernando de Austria, 37. Field, o puritano, 194. Fisher (Bispo), 170. Florestaes (cantões), 64. França (A Reforma em ), 87-111. Francisco de Assis, 210, 211. Francisco I de França, 28, 71, 89, 91, 164. Francfort sobre o Maine, 141. Frederico da Saxonia, 8, 28. Froben, 64. Frunsberg (General), 17, 31. Galle (Dr.), 52. Gallicanismo (O), 218. Gardiner (Bispo), 177, 182. Gemblours, 132. Genebra, 67, 77, 94. Ghent, 131. Ghent (Pacificação de), 131. Glarus, 60. Glencairn (Conde de), 142, 143. Goch (João), 114. Granvella (Cardeal), 117, 119, 123. Gregorio VII (Papa), 208, 212. Grey (Lady Jane), 182, 183. Grindal (Arcebispo), 198, 198. Guise (A familia), 93, 98, 100, 103-106, 140, 145. Gustavo Vasa, 51. Hagenau, 40. Hamilton (Patricio), 140. Held (Vice Chancellor), 40. Henrique VIII de Inglaterra, 157, 161, 163, 184, 190, 218. Henrique II de França, 93. Henrique III de França, 106, 109. Henrique IV de França, 105, 110. Henriques (Guerra dos tres), 109. Hesse (Organização da Egreja de), 29. Hildebrando, 208. Hogstraten, 9. _Homilias_ (_Livro de_), 177. Hooper (Bispo), 180, 186. Horn (Almirante), 120, 122. Huss (João), 11, 138. Hymnos Medievaes, 6, 214. Iconoclastas (Os), 103. _Imitação de Christo_, 210, 211. Imperador (O), 14, 28, 31, 32, 37, 38. Imperio (O) medieval, 14, 209, 217, 221. Indulgencias (As) em Zurich, 61. Indulgencias (As) na Allemanha, 1-2. Ingleza, (A Reforma) seu caracter, 159. Inquisição (A), 117, 186. Interdicção (A) papal, 226, 233. Interim (O) de Augsburgo, 43. Interim (O) de Leipzic, 43. Isabel (A rainha), 125, 133, 157, 189, 192, 194-201. Jansen, 50. Jarnac, 105. Jesuitas (Os), 45, 195. Jewel (Bispo), 192, 200. João da Saxonia, 37, 38. Jorge da Saxonia (Duque), 17, 42, 47. _Justificação_ (_A_), 233, 234. Jüterbogk, 4. Kempis (Thomaz á), 114. Knox (João), 141, 143, 144, 146, 148, 152, 178, 180, 191. Kyle (Os lollardos de), 138. La Ferriére, 95. Lainez, 45. Lambert (Martinho), 29. Lei (A) agraria entre os romanos, 24. Lefèvre, 88. Leipzic (Controversia de), 10. Leipzic (Interim de), 43. Leith (Convenção de), 151. Leyden (Cerco de), 129. Liesfeld (Jacob), 116. Liga Allemã (catholica), 40. Liga de Schmalkald, 39. Liga de França, 109, 196. Linacre, 196. Lindsay (Lord), 145. Lindsay (Sir David), 139. Lithurgia (A) de Knox, 141. Lollardismo (O), 138, 158. Longjumeaux, 105. Loyola (Ignacio), 45. Luthero e Tetzel, 4. Luthero (Mocidade de), 7. Luthero em Leipzic, 11. Luthero em Worms, 16. Luthero traduz a Biblia, 19. Luthero contra os camponezes, 27. Luthero não sympathiza com a Liga Protestante, 32. Luthero (Quietismo de), 32. Luthero (Mais ácerca de), 212, 214, 222. Madrid (Confederação de), 28. Madrid (Egmont em), 119. Maitland de Lethington, 144. Marburgo (Conferencia de), 33. Marcello de Padua, 138, 158, 218. Margarida de Navarra, 89. Margarida de Parma, 117. Margarida de Saboya, 115. Maria de Guise, 140. Maria, rainha de Inglaterra, 181, 184. Maria, rainha dos escocezes, 144, 145, 182, 189, 195. Martyr (Pedro), 178, 187, 192. Massacre de Amboise, 99. Massacre de S. Bartholomeu, 107, 140, 195. Massacre de Toulouse, 103. Massacre de Vassy, 103. Mauricio da Saxonia, 42, 46. Melanchthon, 19, 37, 39. Melville (André), 152. Melville (James), 149. Mendicantes (Os), 120, 123. Mendigos (Os) do mar, 124, 128, 129, 130. _Mérindol_ (_Arrêt de_), 93. Mill (Walter), 140. Miltitz (Cardeal), 10. Missa (A Doutrina da), 33, 39. Monasticos (Votos), 212. Montauban, 107. Montgomery, bispo de Glasgow, 151. Montmorency, 93, 105, 145. Mooker Haide, 129. Moray (Conde de), 146, 150, 195. More (Sir Thomaz), 161, 162, 168, 172. Morgarten, 59. Mosteiros (Suppressão dos) em Inglaterra, 170, 176, 186. Münzer (Thomaz), 20, 24, 63. Mystico (Sentido) da Escriptura, 230. Mysticos (Os) medievaes, 8, 32, 211, 218. Nantes (Edicto de), 110. Niceno (O credo), 222. Nicolau de Basiléa, 212. Nobres (Revolta dos) na Allemanha, 21. Norfolk (Duque de), 195. Noyon, 69. Nürnberg (Dieta de), 20. Ochino (Bernardo), 178. Ockham (Guilherme de), 8, 138. Œcolampadius, 33. Olivetan (Roberto), 93. Oppressões soffridas pelos camponezes, 16, 23, 24. Oração Commum (Livro de), 177, 184, 100, 209. Orange (Guilherme de), 117, 120, 121, 124, 126, 131, 132. Orange (Mauricio de), 123. Oradores (Camaras de), 144. Ordenanças Ecclesiasticas, 77, 79, 81. Orleans, 104. Oxford, 178, 187. Pamphletos anti-prelaticios, 198. Paizes Baixos (Os), 113. Paramentos (Os) na Egreja de Inglaterra, 179, 192. Parker (Arcebispo), 192, 194. Parma (Margarida de), 117. Parma (Alexandre de), 132, 197. Passau (Tratado de), 47, 183. Pavia (Batalha de), 28, 91. Perdão (O) do peccado, 4, 213. Perseguições em França, 91, 94. Perseguições nos Paizes Baixos, 123. Perseguições na Escocia, 140. Perseguições em Inglaterra, 168, 186. Perth (Tumultos em), 143. Petersen (Os irmãos), 52. Philippe de Hesse, 32, 33, 37, 42, 43. Philippe II de Hespanha, 107, 115, 121, 184, 186, 189, 195. Poissy (Conferencia de), 102. Pole (Cardeal), 46, 185. Polyhistor, 64. _Proemunire_, 161, 167, 217. _Presbyterianismo_, 72, 95, 98, 134, 147. Prierias (Silvestre), 9. _Prophecias_ (_As_), 197. Propriedade (As Leis da) e a Reforma, 215. Puritanos (Os), 179, 193. Randolpho, 145. Ratisbonna, 22. Reforma (Os principios da), 1, 225. Reforma (Antecipações da), 213. Reforma (A) e a vida social, 215. Reforma, (A) uma revivificação de religião, 205. Reforma (A) e a necessidade do perdão, 212. Regensburgo (Conferencia de), 40. Regensburgo (Convenção de), 22. Religião (A) espiritual, 209. Renan ácerca de Calvino, 83. Renaudie, 99. _Renuncia_ (_A_), 211. Requescens, 128. Revivificação (A Reforma, uma), 205. Revivificação (A) medieval, 210. Revolta (A) dos camponezes, 23. Revolta (A) dos nobres, 21. Ridley (Bispo), 180, 184, 186. Ritualistas (Os) na Igreja Ingleza, 199. Rochelle (La), 105, 107, 108. Romana (A Lei), 24. Roper (Margarida), 170. Row (João), 139, 144, 153. Sacerdocio (O) dos crentes, 179, 226. Saboya (Duque de), 67. Sacramentos (Os), 34. Sacramentos (A administração dos), 207. Sacramentos (Theoria dos), 236. Samson, traficante de Indulgencias, 61. Sancerre (Capitulação de), 107. Sandilands (Sir James), 145. Schmalkald (Liga de), 32, 39. Schmalkald (Guerra de), 42. _Separação do mundo_, 208. Sickingen (Frank von), 22. Smeaton, 149. Sobrepeliz (A), 193. Social (A vida) e a Reforma, 216. Somerset (Lord Protector), 175. Spalatin, 10, 16. Spira (Edicto de), 29. Staupitz, 8, 9. Stirling, 143. Stockolmo (Massacre de), 51. Storch, 20, 24. Sturm, 100. _Submissão do Clero_, 165. Sully (Duque de), 107. _Superintendentes_ (_Os_), 147. Supremacia (A) real em Inglaterra, 166, 176, 185, 190. Suecia (Reforma na), 51. Suissa (A Reforma), 57-66. Syndicancia aos mosteiros, 170. Syndicancia ás Egrejas, 176. Synodo da Egreja Franceza, 97. Synodo da Egreja Hollandeza, 134. Tauler (João), 9, 32, 212. Tetzel (João), 3, 4. Theses (As) de Luthero, 3, 5, 6. Theses (As) de Zwinglio, 62. Tindal traduz a Biblia, 187. Toggenburgo, 60. Torpichen (Lord), 142. Toulouse (Massacre de), 103. _Transubstanciação_ (_A_), 34, 36. Trento (O concilio de), 45. _Tulchanos_ (_Os bispos_), 150. Ubiquidade (Doutrina da), 36. Udal (Nicolau), 198. Upsala, 52. _Utopia_ (_A_) de Sir T. More, 161, 169. Utrecht, 113. Utrecht (Tratado de), 132. Valdenses (Os), 92. Valence (Bispo de), 100. Vassy (Massacre de), 103. Vienne (Arcebispo de), 100. Voes (Henrique), 115. Wardlaw, 138. Wartburgo, 18. Warwick (Conde de), 177. Wedderburn (Balladas Sacras de), 139. Wessel (João), 144. Westeräs, 52. Wied (Hermann von), 41. Wilcox, 194. Wildhaus, 66. Willock, 114. Wimpina (Conrado), 9. Winram, 144. Wishart (Jorge), 140, 141. Wittenberg (Os fanaticos de), 20. Wolsey (Cardeal), 162, 168. Worms (Conferencia de), 40. Worms (Dieta de), 16, 22, 24. Wyatt (Sir T.), 184. Wycliffe, 8, 11, 138, 158. Wyttenbach (Thomaz), 60, 64. Xavier (Francisco), 45. Zurich, 59, 62, 76. Zwinglio, 33, 35, 60, 66. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A REFORMA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. 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Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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