The Project Gutenberg eBook of Comedia do Campo volume III (Scenas do Minho) This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Comedia do Campo volume III (Scenas do Minho) Author: Bento Moreno Release date: August 24, 2020 [eBook #63034] Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK COMEDIA DO CAMPO VOLUME III (SCENAS DO MINHO) *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) COMEDIA DO CAMPO TEIXEIRA DE QUEIROZ (BENTO MORENO) COMEDIA DO CAMPO (SCENAS DO MINHO) La plupart des drames sont dans les idées que nous nous formons des choses. Les événements qui nous paraissent dramatiques ne sont que les sujets que notre âme convertit en tragédie ou en comédie, au gré de notre caractère. H. DE BALZAC.—_Modeste Mignon._ VOLUME III Antonio Fogueira.—Morte negra.—Enterro de um cão.—O embarcadiço.—O rei absoluto. [Illustration] LISBOA DAVID CORAZZI—EDITOR EMPREZA HORAS ROMANTICAS Premiada com medalha de ouro na exposição do Rio de Janeiro 40—Rua da Atalaya—52 1882 ANTONIO FOGUEIRA I N’uma excellente manhã de um maio risonho e feliz, duas creanças, que já eram orphãs de mãe, perderam igualmente seu pae! Além da orphandade, teriam tambem a negra fome e a sombria miseria indigente, se não fôra o bom cura, o padre Clemente Carvalhosa, que as foi buscar a casa, levando uma de cada lado, pela mão, para a _residencia_! O Thomé Barbante, um tio d’essas creanças, tambem compadecido, ou, talvez, humilhado pelo caridoso procedimento do ecclesiastico, foi-lhe pedir que lhe désse uma para sua casa. O Carvalhosa cedeu-lhe a Quina, ficando com o Tone, que elle, n’um momento egoista, pensou vagamente em ir mettendo pela igreja, para de futuro ter quem lhe ajudasse á missa. Porém o Bernardo Repolho, lavrador remediado, que morava n’outra aldeia, a distancia de leguas, não lhe consentiu realisar esta ambição: sabendo da orphandade dos filhos de seu irmão André, que tanto eram seus sobrinhos como do Barbante, condoeu-se e, consultando a sua auctoritaria Engracia, resolveram _adoptarem_ Tone, visto Deus não os ter favorecido com _um rapaz_, que tanto haviam desejado!... Para a mulher de Bernardo, era uma consolação forçada!... Por espaço de annos presenteára generosamente todos os santos acreditados nas visinhanças, chegando a ir em romaria beber das diversas aguas milagrosas, tão apregoadas e tão efficazes, que nascem debaixo dos penedos, onde esses bemaventurados tinham apparecido!... Frequentára, tambem, com assiduidade, os banhos de mar, indo durante muitos annos, a Vianna, pelo tempo da Agonia, sempre dominada por um tamanho desespero de maternidade, que de uma vez chegou a tomar _trinta banhos_ nos tres dias da festa!... Porém, as esperanças de ter um filho íam desapparecendo, a esterilidade de Engracia affirmava-se de cada vez mais com a idade! Viveu muito tempo n’uma constante aspiração, impaciente e nervosa, chegando aos quarenta e cinco annos—ao momento dos desenganos! —sem descendencia... A sua intransigencia, o seu mau humor, contra os filhos dos outros, ía caíndo n’uma melancolia latente, quasi n’um ediotismo, quando seu marido lhe propoz o trazerem para casa o orphão de seu irmão André, que acabava de morrer pobre... Engracia abraçou, inesperadamente, com alegria, esta idéa e adoptou com benevolencia a creança desamparada! Pediu instantemente a seu marido, que fosse, mesmo n’aquelle dia, buscar o pequeno... Para a satisfazer, o Repolho não teve remedio senão pedir ao padre Beiral, a bôa egua lanzuda. O ecclesiastico cedeu-lh’a facilmente, perguntando com a sua curiosidade de homem idoso: —Então é o filho d’esse teu irmão que morava lá para os lados de Monção?... —Sim, senhor, esse mesmo—respondeu o Repolho. Era muito pobre, não deixou nada... —Pois fazes bem, fazes bem—applaudiu o sacerdote. É uma obra de caridade... Deixal-os ao desamparo, é creal-os para ladrões. Vae homem, vae, leva a egua da côrte... E, no dia seguinte de manhã, Bernardo partiu, chegando ao anoitecer a casa do Thomé Barbante, dizendo-lhe peremptoriamente, qual a sua resolução e mais a de Engracia. Foi muito gabado este procedimento. Todas as pessoas diziam, inclusivamente o Carvalhosa, que o pequeno viria a ser bem feliz; porque, estes tios que o adoptavam, eram ricos e não tinham herdeiros necessarios. Porém, quem não entendia as cousas do mesmo modo enthusiasta, era o proprio Tone. Quando lh’o fizeram comprehender, principiou a berrar desalmadamente, dizendo que não, que não... que não queria ir. E, no momento em que o punham ao collo do Bernardo, que já estava montado, prompto para a partida, principiou a estrebuxar, a morder nos punhos de seu tio que o segurava amoravelmente, a chamar alto por seu pae enterrado e porfiando por se atirar abaixo do albardão. A final, como lhe prometteram que voltaria de tarde, para brincar com sua irmã Quina, que tambem ficava a chorar em altos gritos pelo Tone, deixou-se levar. Porém, só quiz ir ao collo do tio Barbante que elle conhecia, e não ao _d’aquelle home_, que nunca tinha visto. Foi por esse motivo que o padre Carvalhosa teve de emprestar a _malhada_ para o Barbante ir montado, e lá partiram ambos, pelos caminhos ensombrados da freguezia, o Thomé com o pequeno adiante de si, escachado no albardão. D’este modo, assim illudido, é que o Tone foi e ficou. O Barbante, para não ser presentido pelo sobrinho, retirou-se ao amanhecer, quando elle ainda dormia innocentemente. Desde essa hora, as duas creanças irmãs, que sempre tinham brincado juntas, na mais simpathica convivencia, ficaram vivendo a distancia de leguas, separadas por altas montanhas, que no inverno se costumam cobrir de grossas camadas de geada! * * * * * A nova paisagem, com a qual o pequeno Tone se tinha de familiarisar, era de uma sombriedade austera, penetrada de melancolia. É verdade que em baixo, no coração do povoado, havia campos onde os ribeiros sussurravam, indo regar os prados, de um verde claro, e os milharaes alegres. Porém em volta, era uma cinta escura de altas montanhas, com plantações de pinheiros que tem uma côr energica, mas triste, e com arrogantes penedias, que ameaçavam desmoronar-se. Lá no alto, onde os penedos se accumulavam toscamente, uns postos sobre os outros, viam-se frequentemente, occupados no seu rude trabalho, sob a inclemencia dos soes e das chuvas, os quebradores de pedra! Estes homens de um aspecto rude e carregado, com a pelle pergaminhada pelos rigores de todos os tempos, perfuravam pacientemente com as suas brocas, os penedos, que depois quebravam a tiro, cujo som ululante e cavernoso echoava pelas quebradas da montanha! Na aldeia onde Tone nascera, o aspecto dos campos, a vegetação, era mais familiar e intima. Os terrenos mais suavemente accidentados, deixavam aos seus olhos vivos, mais largo espaço para ambicionar. Havia um rio largo, que no inverno engrossava arrogantemente com as chuvas copiosas. Dos silvados impenetraveis, povoados de sombras que lhe mettiam medo, costumavam saír inesperadamente, quando elle se aproximava, os melros, voando para longe, com assobios agudos e espantados. A sua memoria tenaz de creança devia possuir por muito tempo, nitidamente, o vivo quadro da sua linda igreja caiada e alegre, com uma torre alta, e os tres sinos que tocavam ao domingo! Era a igreja onde elle ia á missa com sua mãe e onde os primeiros deslumbramentos produzidos pelos opulentos dourados dos altares e pelas attitudes senhoris das imagens das santas, se lhe ergueram na imaginação! Era de um pittoresco mimoso o quadro d’essa igreja, collocada na encosta, com a sua brancura que se destacava do souto de velhos castanheiros e carvalhos que a cercavam! Áquella imaginação infantil de Tone, deviam fazer falta estas cousas amadas pelos seus olhos vivos e ingenuos! N’estes caminhos pedragosos de agora, não se podia correr doidamente como n’aquelles outros, pelos quaes andara atrás de sua irmã Quina, para a agarrar. Por isso, nos primeiros tempos, fartava-se de chorar, tinha perrices freneticas e chamava em altos gritos por seu pae, por sua tia Clara, por sua irmã e não queria comer. Mas a mulher do Bernardo Repolho affeiçoou-se-lhe imprevistamente e acarinhava-o, procurando consolal-o, promettendo-lhe dôces e santinhos, que lhe havia de trazer das romarias. E n’um dia, para mostrar a effectividade das suas promessas, fez-lhe uma dadiva surprehendente, a qual foi recebida pelo Tone com tal alvoroço, que por si só parecia capaz de lhe obscurecer todas as lembranças risonhas do seu passado mediocre! Engracia comprou-lhe um pequeno cabrito, de pello lusidio e negro, um pequenino cabrito que fazia _mé_, _mé_, com uma voz tremida e saudosa, na qual talvez quizesse exprimir a saudade de seus companheiros, que deixára na liberdade incondicional das montanhas! Todos os rapazes da visinhança, que já se davam muito com o Tone, lhe invejaram, desejando-a, a posse d’este animal, e não occultavam que, nos seus peitos infantis, se guardavam estragados sentimentos de cubiça! Acercavam-se do possuidor, dizendo-lhe em tom melifluo e condescendente, palavras agradaveis, de muita e sincera amisade, por meio das quaes desejavam captar-lhe a benevolencia. Porém, como elle resistia, afastando-se, altivo e orgulhoso, com o cabrito pelo baraço, que lhe atara ao pescoço, um dos amigos propoz-lhe de um modo astuto: —Olha, se _mo_ deixas levar a comer ali adiante, dou-te esta carapuça nova... O Tone olhou com modo avido para a carapuça offerecida, que era vermelha e, depois de calcular mentalmente as vantagens, condescendeu: —Pois sim, dá cá a carapuça! Foram os dois e muitos outros, com o cabrito em grande distincção, festejando-o com alaridos, como um triumphador romano. Quando chegaram junto de uma poça, onde encontraram um pasto verde, que julgaram appetitoso, pararam, porque entendiam que o cabrito deveria comer. Para conseguirem isto, usaram de subterfugios infantis, escolhendo-lhe meticulosamente a melhor herva, que profiavam metter-lhe na bôca... Quando o animal, com os seus dentes finos, mastigava, levantava-se da parte das creanças uma expressiva satisfação, olhando para o animal n’um silencio attencioso e meditativo; todos deante d’elle, agachados, contemplando-o com veneração!... Estes e outros factos similhantes, fizeram com que o Tone fosse esquecendo gradualmente o seu estreito passado. Como tinha os mimos de Engracia e as lisonjas cavilosas dos seus companhiros, principiou a desenvolver-se-lhe uma vontade forte, desejos impertinentes, certa irascibilidade e orgulho. D’entre os rapazes com quem brincava, só distinguia o Zé do sachristão; porque este lhe consentia o tocar o sino pequeno, _a bambom_, nas occasiões de enterro! E como o Zé na escola já _escrevia debuxado_ e o Tone, apesar de ter oito annos ainda nem sabia as _lettras_, disse-lhe o do sachristão: —Ó _coisa_, quando é que tu vaes com a gente p’ro studo? O Tone respondeu-lhe com um desdem despresador: —Eu não vou... _Isso_ de studo não presta... —Presta meu asno... Vae, e tu verás que presta. Começas logo na carreira do _A_. —O que é a carreira do _A_?!—indagou o da Engracia, com modo suspeitoso... —É a carta. Ai! tu não sabes! Olha, pede á tua mãe que te merque a carta, que é muito linda. Tem um gallo... é muito linda. Depois vae ao studo, que andam lá muitos rapazes. Quando não está o senhor mestre, a gente brinca ás escondidas, joga o talo na eira... Vae meu asno que é bonito. Influido d’este modo pediu, n’esse mesmo dia, á mãe, que o levasse á escola. Engracia, para o não ouvir chorar, lavou-lhe logo a cara e conduziu-o a casa do mestre que era o senhor Antoninho Beiral... O senhor Antoninho Beiral, um rapaz forte, espadaúdo, alentado, era tambem o melhor caçador de perdizes da redondeza! Andára em Braga a estudar para padre, com o fim de succeder na _encommendação_ a seu tio; mas não conseguira presbiterar-se, por ter _desfeitiado_ um velho conego na pessoa de uma creada massiça e de rosto oval... Depois d’isto, cortada a carreira, retirou-se definitivamente para a sua aldeia, deixando crescer grandes barbas, andando pelos montes e por entre os milhos ás perdizes e _ás moças_... De vez em quando, para se desaborrecer, dava aula de instrucção primaria, pois era o professor official!... Os seus discipulos temiam-n’o; porque elle era severo e zurzia-os, com uma vargasta pelas orelhas ou com duzias de palmatoadas bem puchadas, quando os suppunha delinquentes! Se emquanto o _senhor professor_ andava ás perdizes, elles se divertiam na eira, a jogar o talo ou ás escondidas, logo que persentiam ao longe o ladrar do podengo, arregimentavam-se pressurosamente para irem ao encontro do senhor Antoninho pedir-lhe a benção, do que elle os _dispensava_, passando de espingarda ao hombro, com um modo carregado e negativo. No dia em que Engracia lhe levou o Tone, a mulher do Repolho teve de esperar que o senhor mestre viesse; porque andava no monte... Logo que chegou, viu Engracia, humilde, com o rapasito ao lado e perguntou-lhe com indifferença: —Queria alguma cousa?... —Se me fazia a esmolinha de me deixar entrar este pequeno cá para o studo—respondeu. —Que idade tem? —Oito annos. —Traz a carta? —É isto que comprei lá em baixo na tenda, senhor? E mostrou-lhe, com o braço estendido, um pequeno folheto de capa de papel pintado. O senhor Antoninho, lançando-lhe um olhar infimo e despresador, concluiu: —É isso mesmo, sim senhora. Deixe ficar. Olha rapaz, vae p’rá acolá. E apontou-lhe a estremidade de um banco, onde o Tone, amedrontado e encolhido se foi sentar... Em seguida, o senhor mestre entregou a um discipulo a espingarda, para lh’a ir pôr na varanda, emquanto elle se foi sentar, de modo brusco e pesado, na cadeira professoral, onde se conservou silencioso, durante alguns minutos com a testa apanhada na mão esquerda!... Por fim, tirando de uma gaveta e collocando em cima da mesa, n’uma evidencia terrificante, a palmatoria disciplinar, indicou aos descipulos que n’esse dia, não passariam _sem molho_, como elle costumava dizer. * * * * * Mas o Tone da Rosaria não gostou d’aquelle _studo_: o mestre era brusco, tinha uma voz grossa, que repellia, uma cara rude, com muita barba. Na mesma tarde em que entrou para a escola, viu, com um semblante cheio de susto, que, o seu amigo, o Zé do sachristão, a unica veneração que o Tone tinha n’este mundo, foi severamente castigado com dois murros, levantando-se do chão a deitar sangue pelo nariz, só por lhe ter caido um borrão na escripta! O Zé chorou soluçando reprimidamente, desculpando-se, e ficou muito tempo no seu logar, a olhar para o _manual_, com os seus olhos vermelhos do chôro, fingindo uma penetração que não tinha. Por um movimento espontaneo e sympathico, o Tone foi ter com o seu amigo, para o consolar! Porém, o mestre, disse-lhe com uma voz estrondosa, que se fosse sentar... Elle obedeceu, encolhido de medo, como um cão escorraçado, e principiou tambem a chorar, soluçando... Quando chegou a casa disse: —Ora eu não quero mais aquelle _studo_... —Porque?—indagou sua mãe. —O mestre bate nos rapazes. O Zé da igreja verteu sangue pelo nariz e chorou muito... —Mas tu has de saber a lição e o senhor mestre ha de ser muito teu amigo... —Não quero ir mais... Elle bate-me e faz-me deitar sangue pelo nariz... E não voltou mais. Quiz antes os seus devertimentos:—ir para o campo com os filhos dos lavradores que andavam com o gado e não estavam para aprender a ler, jogar o _talo_ com elles, abrir covas á mão para enterrar pedras que fingissem de mortos, comprar _aos outros_ gaitas, com o pão que levava de casa... O Tone andava quasi sempre acompanhado do seu cabrito, que elle mandava com ama voz exigente e imperiosa... Os seus amigos, para o desgostarem, desmereciam-lhe o animal. Porém, n’um dia, em que esse cabrito appareceu puxando um carro novo, todos os invejosos se submetteram. O Zé do sachristão que lh’o viu e lhe cubiçou, carro e cabrito, disse-lhe: —Das-m’o, Tone? —Não—respondeu energicamente. —Pois tambem, quando quizeres tocar o sino pequeno, a repique nos dias de festa e a _bambom_ nos enterros, não te hei de deixar... —É o mesmo—respondeu com isenção. O Zé propoz-lhe: —Se me désses o carro e o cabrito, deixava-te tocar o sino e dava-te uma cousa muito linda que eu tenho... —O que é?—indagou com os olhos muito abertos. —É um ninho com cinco melrinhos... —Isso não presta—desdenhou o Tone, cheio de soberba. —Ai, não presta, tomaral-o tu! Os melrinhos já têem pennas, estão quasi a voar... —E onde é o ninho?—indagou o dono do cabrito e do carro. —Arreguilal-o—respondeu arregaçando a palpebra inferior do olho esquerdo. Querias saber; mas não chuchas. É n’um sitio... —Vamos lá ver? —E das-me o carro? —Dou; mas tu has de me deixar tocar o sino no dia da festa, e das-me o ninho. —Pois sim, então dá p’ra cá o carro. Amanhã não ha studo e então vamos tirar os melrinhos, que já são grandes! —Eu quero hoje o ninho...—exigiu o Tone. —Hoje vou p’ro studo, não posso!—desculpou-se o Zé, visivelmente infeliz. —Não vás hoje ao mestre. Isso de studo não presta!—aconselhou o Tone desdenhoso. —Ai, elle é o _não vás hoje_. E o meu pae? Não, que o meu pae, depois, bate-me. —Elle não sabe. Gazeia hoje Zé... E o do sachristão, para obter o carro, resolveu-se a gazear. Com elles ambos foram outros rapazes que tambem andavam na escola e outros que não andavam. Desejavam ver o ninho, que estava n’um carvalho, perto de uma poça, segundo affirmava o Zé. * * * * * Encaminharam-se por entre uns silvados. Como era no tempo das amoras, pararam muitas vezes para as colherem. Houve algumas bulhas, porque todos desejavam apanhar as que estavam mais maduras. Antes de chegarem ao sitio do ninho, passaram por umas cerejas que tiveram tentações de comer... Porém, como eram do padre Beiral, reconsideraram, com a lembrança de que o mestre, que era sobrinho do ecclesiastico, sabendo-o, os zurziria com a chibata de marmeleiro, que tinha encostada á parede, na aula. Quando chegaram ao pé do carvalho annunciado, disse o do sachristão: —Olha, Tone, o ninho é ali. —Deixas-me subir p’r’o tirar? —Não senhor, que tu és muito pequeno—respondeu com orgulho, alongando os beiços. Podes cair e depois a tua mãe vem _com aquellas_... —Deixa-me ir Zé, que eu não caio—insistiu o Tone, com voz de pedinte. O do sachristão, para conciliar todos os desejos propoz: —É melhor tu ires para cima dos penedos. Eu subo e dou-te o ninho para a mão. Queres? —Pois então vá lá—rematou o da Engracia, concordando. Mas não dás a estes, não? —Não, dou a ti... Os companheiros, offendidos com esta exclusão, disseram orgulhosamente: —Olhem, o diabo do asno! Tem medo que lhe comam a porcaria do ninho!... O Zé do sachristão principiou a subir. Primeiro abraçou-se ao carvalho, depois encolheu as pernas, em seguida fincou o lado interno dos joelhos para se segurar, e por fim, o lado interno dos pés para se impellir... Quando se ia chegando ao cimo do carvalho, elevando-se assim, prudentemente, agarrou-se a um forte galho, segurando-se com presistencia. E disse para os que, debaixo, o seguiam attentamente com os olhos: —Cá estão, os cinco melrinhos. Já tem penna. —Dá-os para cá—disse o Tone de cima de penedo, relanceando um olhar despresador para os outros rapazes, que se conservaram afastados, n’uma reserva sensata e orgulhosa... —Chega-te mais para cá—observou-lhe o Zé. —Não posso mais—respondeu desconsolado, inclinando-se do penedo para o carvalho. —Então levo-os eu para baixo. Se caem no chão morrem e depois tu não me dás o carro. E principiou a descer, tendo previamente mettido no seio, os cinco melros pequenos. Como precaução, para os não esmagar, descia afastando o corpo do velho tronco do carvalho, agarrando-se tenazmente com as mãos e fincando os pés na casca nodosa. Quando chegou a baixo, disse mostrando os cinco passaros, que ia tirando um a um, de dentro da camisa: —Toma. Agora dá cá o carro. —Dá tu primeiro os melros—observou-lhe o Tone. —Isso arreguilal-o!... Então, mão por mão, como os rapazes. Todos os companheiros cercaram o possuidor dos melros, olhando-o com olhos seccos e avidos!... Um pediu-lhe com um tom melodioso e humilde: —Dás-me este melrinho, Tone? —Não!—respondeu avaramente o da Engracia. —Tambem eu te não dou uma cousa... —O que é? —Quatro botões amarellos de duzia, muito lindos... E mostrou-lhe na palma da mão, para lhe causar inveja, quatro botões com armas reaes, que tinham sido furtados de uma antiga farda meliciana do avô. O filho da Engracia gostou muito dos botões amarellos de armas reaes, que valiam cada um, doze fôrmas! Por isso trocaram. O Tone deu-lhe um melro por todos, por isso ficou sómente com quatro, que metteu sensata e reservadamente dentro da carapuça, para os não opprimir e para lho’s não cubiçarem com os olhos. Os outros rapazes, com o fim de captarem a confiança do Tone, davam-lhe generosos conselhos: —Sabes o que deves fazer? Dá aos melrinhos sopas de vinho—dizia um. Outro offerecia: —Ó aquelle, tu queres pão para elles, que eu dout’o? Olha que hão de ter fome... E n’esta idéa caritativa, afastavam-lhes com os dedos sujos as mandibulas, introduzindo-lhes na bôca pão esfarellado, que os melros regeitavam. Um dos rapazes teve esta idéa: —Sabes o que os passarinhos querem? É beber. Passava ali um regato que em baixo ía fertilisar um campo de herva. Na superficie da corrente, iam folhas verdes e guiços. As tenras plantas que tinham nascido no logar onde corria a agua, curvavam-se obedientemente, à sua passagem. Porém, nos momentos em que a força da corrente era menor, erguiam-se com orgulho, retomando a sua posição habitual. Os rapazes, quizeram dar de beber aos melros n’este regato. Para isso mettiam-lhe o bico na agua, empregando um esforço meticuloso e cuidado. Porém elles, assim, não bebiam bem, e o Zé do sachristão, que tinha onze annos, disse com voz emphatica: —É que os melrinhos não sabem como se bebe, meus asnos? Ensinae primeiro aos animaes como se bebe!... Este alvitre foi adoptado e, para conseguirem o fim desejado, lembraram-se de imitar, o modo como presumiam que os melros velhos dariam de beber aos seus filhos. Tomavam a bôca cheia de agua e introduziam o bico de cada passarito entre os beiços. Porém, como d’este modo ainda não bebiam, abriam-lhe de novo as mandibulas á força, e com uma palha molhada na corrente, deixavam lhes cair gotas na garganta. Mas este processo era demorado, a paciencia infantil esgotou-se e o Tone, para andar mais rapidamente, metteu debaixo de agua a cabeça de um dos melros, ao qual se encarregara de dar de beber e afogou-o, principiando depois a choramingar. O Zé possuidor do carro, disse com desconfiança: —Sim, matta-os e vem cá para eu te dar o carro que has de vel-o por um canudo!... Na realidade, o filho da Engracia achava-se descontente com a troca e principiava a pedir outra vez o seu carro e o seu cabrito. O Zé respondeu lhe: —Isso é que não! Quem dá e torna a tirar ao inferno vae pagar! E ao pronunciar estas palavras cabalisticas, fez no ar uma cruz de maldição, com a mão em gume, afastando-se com o cabrito e com o carro. O sol ainda ía alto e os rapazes, para gazearem correctamente, deviam chegar a casa ás horas a que poderia ter terminado a escola. Para se entreterem mais algum tempo, lembraram-se de jogar o botão. A sorte marcou o _rei_ e o _fossa_—o primeiro e ultimo a _atirar á buraca_; porque foi _este_ o jogo preferido. Era n’uma encruzilhada de dois caminhos, onde havia um cruzeiro. O Zé do sachristão e os outros _maiores_, tiravam das saccas que traziam ao pescoço, por dentro da camisa, as _fôrmas_... O Tone conservava-se triste, a certa distancia; pois que, antes de principiarem _á buraca_, já lhe tinham ganho os botões amarellos, _á parede_. Com o fim de obter mais fôrmas para poder jogar, teve que vender ao Teixugo os melros _por duas duzias_. Porém, no momento em que estavam verdadeiramente presos n’este entretenimento ambicioso, ouviram uma voz tremenda que lhes bradou de cima do muro sobranceiro, com uma ironia terrificante: —Sim senhores, lindos meninos! Então uma gazeadella, ein?! Era o senhor Antoninho, que ali apparecera casualmente, andando á caça! Quando o mestre suppunha que _aquelles_ discipulos o estavam esperando na eira como de costume, vae-os encontrar ali a jogar o botão!... Os rapazes ao verem-n’o, olharam-se repassados de um terror estupidificante, ficando n’uma coacção espasmodica! Os musculos faciaes permaneceram n’uma regidez tetanica, e os olhos, muito abertos, fixaram-se, com uma insensibilidade apparente, no _senhor professor_! Porém, quando este se dispunha a descer o muro para os punir a murro, elles seguiram o instincto salvador!... Fugiram, deixando o carro, o cabrito, os melros, as fôrmas e... tudo! O sobrinho do padre Beiral ainda lhes gritou de longe, iracundo: —Andae meus grandes marotos, que ámanhã vos ensinarei. Assim é que se vae á escola?! Ella vos saberá ao alho, a gazeadella! A pelle das vossas mãos é que o ha de pagar! Depois de mais os não ver, pegou nos melros, estorcegou-lhes o pescoço, metteu-os no bolso, e disse para si, com mais reflexão: —Sempre servem para um arroz!... E foi indolentemente, pelo caminho adiante, assobiando, com a espingarda ao hombro. II Alguns annos depois, o Antonio da Engracia era tido como o rapaz mais turbulento d’aquelles sitios:—attribuiam-lhe, a elle e aos seus companheiros, todos os casos bulhentos que por ali se davam. De todos os seus amigos da infancia, faltava um, o Zé do sachristão, que tinha ido para o Brazil, e já escrevera muitas cartas. Na ultima fallava palavrosamente, com muitas repetições emphaticas, de largos projectos de fortuna! Affirmava estar muito contente, e promettia, se Deus o ajudasse, vir d’ahi a annos, fazer o orgulho de seu pae. Um longo periodo d’essa carta desvirgulada, era destinado especialmente a recommendar muito o pequeno cão, que deixara na aldeia no dia da partida... Tinha-o em grande estimação, lembrava-se todos os dias do _Rabicho_, desejava encontral-o quando voltasse... Esse animal, magro, aleijado, rijo e bom, representava, para aquelle rapaz, um affecto incondicional, uma dedicação cheia de provas... Obtivera-as na paciencia com que lhe soffrera as travessuras infantis. Se lhe batia, em vez de fugir ou de ladrar, rojava-se-lhe aos pés, com o ventre para o ar, os olhos humidos e resignados, ganindo humildemente, n’uma obediencia absoluta... Na manhã de julho, na qual José partira, quando elle, com os olhos rasos de lagrimas, se despedia das mulheres da visinhança, que lhe atacavam os bolsos de fructa; quando, pela ultima vez para muitos annos, olhava para aquellas paredes negras e musgosas da sua aldeia, para os penedos que estavam no alto do monte, para os pinhaes sombrios... espalhando sobre essas cousas inanimadas uma vista de saudade; quando se despedia dos seus amigos que ficavam... o seu cão, aquelle mesmo que recommendava em todas as cartas, acompanhara-o, indo na frente, a vinte passos, com uma perna no ar, correndo alegremente, bebendo nos regatos do caminho, voltando atrás para festejar seu dono, com movimentos expressivos de cauda, e saltava-lhe ao peito! Fôra com o sachristão e seu filho até meia legua fóra da freguezia; porém, o _velho_, julgando inconveniente esta companhia, escorraçou-o para casa, fazendo-lhe gestos de uma fingida colera theatral, atirando-lhe pedras, e dizia: «_Passa fóra, Rabicho_». O cão, com a sua perspicacia quasi humana, conhecendo que era importuno, incommodo, que não devia proseguir, subiu a um muro, e ali permaneceu de pescoço firme, com o focinho para diante, as orelhas tesas, os olhos fixos, n’uma attitude observadora, até que elles desappareceram!... Este rapaz de quatorze annos deixava a sua aldeia e as suas queridas affeições. Ia muito longe, procurar uma fortuna incerta!... Poderia, no contacto do mundo indifferente, perder muitas das intimas recordações da sua terra. Porém, o que elle nunca esqueceria, era o dia em que partiu, as mulheres que lhe davam a fructa chorando, os rapazes que ficavam sentados nas pedras do caminho e a firmeza esperta do seu cão em cima d’aquelle muro! Em todos os quadros da sua vida infantil, que muitas vezes reproduziria de memoria, para contentar a saudade natural, appareceria decerto aquelle cão, em cima d’aquelle muro, n’uma posição intelligente e nervosa, com sol a illuminal-o fortemente de um lado!... N’esta ultima carta, ainda se lembrava nitidamente de toda a visinhança, designando cada um com o seu nome por extenso e acrescentando-lhe _o alcunho_. _Á senhora_ Engracia do Repolho, por exemplo, aconselhava a que mandasse o seu Antonio para _aquella_, affirmando-lhe de um modo cathegorico «que ali é que se ganhava dinheiro e _se fazia a gente homem_». O sachristão, tendo soletrado meditadamente, por tres vezes, toda essa extensa carta, saíu de casa para a levar ao padre Beiral, o mais circumspecto dos ecclesiasticos visinhos!... Era um homem pacato, com algumas impaciencias veniaes, com muitas impertinencias de achaques, lembrando-se, sempre que lhe perguntavam pela saude, que vinha a morrer da bexiga, pelo que batia com dois dedos no baixo ventre exclamando: —Ah! vem a ser d’aqui... D’aqui é que hei de ir para os anjinhos como o João Thomaz!... O João Thomaz era um seu antigo condiscipulo, que morrera parochiando na freguezia limitrophe!... Na sua comprida varanda telhada e soalheira, é que o Beiral reproduzia as suas queixas, cumprindo, já se entende, regularmente com as suas resas!... Interrompia-se sómente para deitar _um milhinho_ ás gallinhas, que esgravatavam no quinteiro e que logo ao verem-n’o passear de lado para lado, faziam cácárácá... Mas, todos os seus peccados, vinham de que os porcos, impacientes e gulosos, afugentavam as aves com grunhidos, com impulsos de focinho, o que, para elle, era mesmo uma damnação... Por isso o ecclesiastico, com pequenos gestos de frenesi, quando isto succedia, voltava á cesta do milho, tomava novamente a mão cheia, e espalhava-o habilidosamente no quinteiro, com um largo gesto de orador que abrange um auditorio. As gallinhas, já conhecedoras d’esta artimanha, logo que sentiam o crepitar do grão sobre as pedras do quinteiro, corriam precipitadamente de todos os lados, com as azas abertas, os pescoços alongados, as mandibulas promptas, e principiavam a comer soffregamente, antes que chegassem de novo os porcos. No momento em que entrou na varanda o sachristão, remoía, o padre Beiral, as ultimas palavras da sua resa. O pae do _brazileiro_ disse-lhe do fundo da escada de pedra, mostrando-lhe um papel azul, com um bom riso de contentamento: —Cá a temos, senhor!... O ecclesiastico abriu-se tambem, n’um riso expontaneo e exclamou: —Não t’o disse eu?! O rapaz não se esquecia... Lá por não teres na ultima barca, não é que se não lembrasse. —Vae muito bem, com a ajuda de Deus que tudo manda, vae muito bem! —Está bom, homem. Entra cá para cima. E n’uma voz mais baixa: —Que diabos de porcos aquelles! São o vivo demonio. Ó Maria—chamava. Anda cá rapariga! Do lado do quintal respondeu uma voz sadia, n’um tom malcreado e agudo: —Que é, senhor? —Aquelles porcos que rompem o lençol... Deixa lá Manuel... Vem cá p’ra cima que a rapariga arranjará isso. Com que então o teu Zé escreveu e dá bôas noticias!... Muito bem, muito bem... —Aqui lh’a trago...—certificava com rosto satisfeito, apresentando uma carta de papel azul, pautado, muito fino, que lhe rangia entre os dedos. Trazia-a cuidadosamente dobrada, tendo rasgado unicamente a parte collada pela obreia vermelha e quadrangular. Mostrava com orgulho o talho da letra commercial do sobrescripto, os carimbos de tinta atijolada, os dois sellos azues, representando a dôce efigie do imperador, com a sua fina barba-toda. Depois, para que o ecclesiastico visse o que o seu Zé dizia, abriu melindrosamente a carta, e entregou-lha affirmando em seguida: —Leia, senhor, leia que _está-the_ mesmo um _home_. Falla com uma cabeça!... E, ao pronunciar estas simples palavras, tinha lagrimas orgulhosas, por ter um filho que _não merecia a Deus Nosso Senhor_. O Beiral disse-lhe: —Confesso-t’o agora Manuel. Nunca pensei que fosse para lá fazer boas cousas. É bem certo o dictado: «Quem bom é, em toda a parte se salva.» E, com a inflexão do homem que conhece muito o mundo, acrescentou com uma reserva premeditada: —Olha que as más companhias por esse universo fóra são muitas. Digo-t’o eu, Manuel, que são muitas. Depois, com os seus bons oculos de aço, que primeiro limpou ao forro da batina, tomou a carta aberta, pol-a á distancia do comprimento do braço, e, com signal approvativo de cabeça, disse com voz cantada: —Apre! Bonita letra! Meu sobrinho sempre disse que para cousas de escripta era um dos que tinha mais geito. Do que elle não gostava, era que o teu filho andasse por esses montes aos ninhos. Lá com isso damnava-se. Todos os caçadores são assim... Que lhes matem a criação nos ninhos, não gostam nada!... E ria de um modo secco e breve. —Saiu-me um rapaz que não mereço ao Altissimo. Leia essa carta, senhor!—considerou o pae do _brazileiro_, com uma pronuncia sensibilisada e lacrimosa. O clerigo continuou: —Está bom, o rapaz sabe da cortezia. «Meu presadissimo pae.» Meu sobrinho puxou-te bem por elle. —Estou-lhe obrigadissimo. Isso ainda que ponha a cara onde elle põe os pés... —Não lhe pagas não, pódes dizer—concluiu convencido. E continuou a lêr n’um tom pausado, cheio de cadencia, pronunciando com inflexão approvativa de elogio... —«Desejo ir, muito brevemente a _essa_, para dar alegria a meu pae.» Não tem duvida, é bom filho. Ha quantos annos foi? —Faz seis lá passante o S. João que vem. E o ecclesiastico, como recordando-se, confirmou: —É verdade. Agora me lembro. Quando me veiu dizer adeus, dei-lhe peras das que tenho d’esse tempo. O sachristão acrescentou melancolicamente. —Parece que foi honte, senhor!... —E queres vêr o que elle diz aqui abaixo?! «Diga á tia Engracia do Repolho que mande o Tone para _esta_.» —Logo lá hei de ir—affirmou com simplicidade o sachristão. O Beiral interrompeu com energia: —É malhar em ferro frio! Um grande brejeiro, é que elle é. Não sae ao teu, que por andar com elle tambem cheguei a pensar que ficasse por ahi um... E remoeu longamente a lingua na bôca, para concluir com os beiços alongados e as proeminencias malares vermelhas: —... um _meliante_. O sachristão atalhou com serenidade orgulhosa: —Elle tinha um pae! Vossa Senhoria bem sabe, que não punha nada em lhe atirar os braços a terra, em lhe pôr os ossos n’um feixe!... O Beiral respondeu: —Deste-lhe a criação. Elle não era dos mais quietos (e sorriu bondosamente), valha a verdade que não era dos mais quietos; mas soubeste ser pae. Nunca foi como esse brejeiro, esse grande tratante, que me escangalhou uma videira o anno passado (enthusiasmava-se gradualmente), e me roubou as uvas que eu tinha ali para uma necessidade, para uma doença! Sabes? aquella videira lá do outro lado, ao pé da porta de baixo, e que seccou depois!... O sachristão respondeu intrigado, coçando a cabeça: —Valha-nos a Santa Igreja!... Aquillo vae mal, senhor. O rapaz tem feito muitas; mas ha de encontrar o seu _home_. —O que?—diz o clerigo afogueado. O seu homem hei de ser eu! Uma farda ás costas! Uma farda, entendes tu?! Não descanço emquanto lh’o não fizer. Tenho muito amigo, _nesse_ Vianna! Olha que lh’a arranjo. E ficou com um aspecto apopletico:—concentrava-se-lhe gradualmente o sangue nas faces, os olhos tomavam uma vivacidade tigrina e a voz era tremula e humida. Contra o _adoptivo_ de Engracia ainda disse muitas cousas:—elle é que lhe tinha aleijado um carneiro, attribuia-lhe o desmoronamento de uma parede que apparecera no chão em certa manhã de inverno, e affirmava que não fôra a ventania mas sim o Antonio que lhe destelhara um canastro, com o fim malefico de se lhe estragarem as espigas com toda a chuva de uma tempestuosa e terrivel noite de inverno. E concluiu assim: —Pódes dar graças a Deus que o teu saiu-te um rapaz chibante. Mas este de cá!... Este grandissimo maroto que me aleijou o carneiro! Bem se vê que falta um homem n’aquella casa! O Bernardo é um... um _cebola_. Já disse á Engracia que mandasse aquelle (não sei como lhe chame, Deus me não castigue!) para a terra!... Mas qual manda ou qual carapuça! É uma babosa pelo garotaço, e quer deixar-lhe tudo. Emprega-o bem! O sachristão, que era homem de rosto moderado, cheio de conveniencias, depois de ter escutado respeitosamente as invectivas do sacerdote, cortou-lhe assim a conversa: —Pois sim senhor... Então vou lá ao senhor mestre mostrar-lhe a carta do _meu_. _Tamem_ lhe manda muitas recommendações e eu quero que elle veja. —Talvez o não encontres—disse o Beiral mudando de tom.—Aquillo, a estas horas, anda lá para o monte á caça. Mas chega lá sempre, a ver se o vês, que os professores gostam muito d’essas novidades e d’essas attenções. E quando o pae do _brazileiro_ já ía no caminho, o padre tornou a chamal-o de cima, debruçando-se na varanda, para lhe dizer: —Mostra tambem a carta á Engracia do Repolho, não te esqueças, para vêr se manda esse _licante_ por uma barra fóra!... —Não tem duvida, senhor. Não me esqueço, logo lá vou. E o ecclesiastico recolhendo-se, concluiu para si, com um bondoso gesto de impaciencia: —Mas que diabo ha de ir fazer ao Brazil, aquelle desgraçado, se nem sequer aprendeu a escrever o seu nome!... Por isso o Beiral ficou triste, remoendo intimamente as suas idéas singelas e sem caracter. Sentindo o cacarejar espantadiço de uma gallinha, que fugia precipitadamente diante do focinho impetuoso de um cevado, tomou da cesta a mão direita cheia de milho e espalhou-o na largura do quinteiro, dizendo: _ó diabo!_ Depois, com o seu olhar fixo, de pouca penetração, seguiu os movimentos dos porcos e das aves, pensando nas cousas insignificantes da sua vida baralhada! O sachristão, no caminho para casa do senhor Antoninho, levava na mão esquerda, a carta cuidadosamente dobrada. Todos a viam—era de fino papel azul, que rangia entre os dedos, um papel bem conhecido. As pessoas que o encontravam e que haviam recebido noticias dos filhos que tinham no Brazil, contavam-lhas miudamente. Aquelles a quem faltava carta, havia muitos annos, mostravam-se tristes, desconsolados, impertinentes na conversa, quasi invejosos, querendo duvidar das felicidades que se deprehendiam d’aquelle venturoso papel! O Manuel, como não encontrou na aula o senhor professor, desceu a um caminho para ir a casa da Engracia, com a intensão reservada de lhe ler a carta, acrescentando-lhe os commentarios favoraveis do padre Beiral. Porém a mulher do Repolho não estava para o aturar e disse-lhe, com modo desabrido, que não queria receber conselhos e que «quem lhe encommendára o sermão que lh’o pagasse». Não admirava este azedume a quem soubesse que lhe tinha morrido, n’esse dia, um touro que valia oito moedas! A perda irritara-a, o modo furtuito como acontecera _essa desgraça_ indispozera-a para ouvir o sachristão, que, offendido pelas respostas aggressivas de Engracia, respondeu, tambem melindrado: —Ó santinha, eu tenho lá nada com as suas cousas, com os seus touros!... —Pois tambem eu não me importo com as suas riquezas! O seu filho, se tem muito, que se levante de noite da cama, para o comer! E, com um estrepito insolente, bateu-lhe com a porta na cara. O pae do _brazileiro_, que era um homem moderado e bem fallante, offendeu-se com isto, perdeu a cabeça e, ao retirar-se, ainda disse, voltado para a porta que se fechára, com uma voz alta e insolente: —Ah! minha tronga! O que tu querias era um bom fueiro n’esse costado! Fosses minha mulher, que te não havia de faltar! Engracia, que percebeu este alanzoado, ainda veio fóra para lhe responder, e disse: —Olhe, dê lá _retolicas_ na sua casa! Alguem cá o chamou?! Ora o diabo do camello! O Manuel, na volta para casa do Beiral, repetiu o que se passára com a mulher do Repolho, acrescentando: —Se Vossa Senhoria lhe arranja uma farda para o meliante, ganha o céu! Era uma bem pregada! Elle anda por ahi a fazel-as gordas; mas ha de encontrar o _seu homem_! O sacerdote, novamente indignado, certificou-lhe: —Oh! se encontra! E hei de ser eu, já te disse! Isso, a farda, tem-n’a elle tão certa como dois e dois serem quatro... E depois de um silencio reflectivo, o Beiral concluiu: —Que a Engracia não é má mulher; mas anda com a cabeça perdida com o brejeiro! Lá essas arenegações d’ella, não faças tu caso. Olha que perder, não faz bom cabello. A gente, quando lhe succede uma desgraça, não sabe o que diz. A proposito, o Beiral narrou pelo miudo o _caso do touro_; porque o sabia. Tinha-lh’o contado a Feliciana, que presenceara tudo, que vira caír o demo do bicho da ribanceira abaixo, espapando-se no caminho. Andava o animal, com outro gado, no campo a pastar. Parecia que trazia o mafarrico no corpo; porque todo o santo dia o viram n’uma constante brincadeira, a escornar os outros, a dar corridas em vez de comer socegado! Parecia mesmo doido, a fugir pelos campos com a cabeça estendida para diante, o rabo levantado em fórma de pau de bandeira, e a extremidade felpuda ondeando, como um pennacho! Depois, quando chegava a uma beira alta, estacava de repente a olhar para o longe muito tempo e, raspando no chão com um pé, continuava a comer muito de vagar, como se nada tivesse sido com elle! Passado algum tempo vinham-lhe novos caprichos, nova maluquice e corria para os bois a escornal-os, a provocal-os á lucta, á corrida, ao salto... O pastor bem lhe fallava, bem lhe berrava, mas era o mesmo que nada! Por fim determinou não fazer caso d’elle e deixal-o lá, chegando mesmo em certos momentos a tomar interesse, a sorrir-se inconscientemente, quando o touro atravessava vistosamente, dando pulos, por entre as arvores. O pastor era um rapasito de doze annos, com a cara manchada de nodoas de terra, o olho vivaz, vestido com uma camisa de tomentos muito suja, e umas calças remendadas. Estava a olhar risonho e irreflectidamente para o animal, quando elle passou de uma vez com mais furia, com as pernas muito abertas, o dorso arqueado, a cauda horisontal, a cabeça baixa, dando saltos cheios de capricho... Ia na direcção da estrada, para o lado onde havia um muro alto! Corria n’uma vertigem, com um impeto louco e, o rapazito, esperava vel-o parar rapidamente, antes de chegar á extremidade! Porém não succedeu assim! D’esta feita venceu mais que a largura do campo, saltou o muro e caiu em baixo, no fundo caminho pedregoso, dando um forte berro, ao mesmo tempo estridente e lamentoso, que foi echoar nas cavidades dos montes proximos. Ficou instantaneamente morto e a Engracia teve de o vender aos marchantes da villa proxima que, no dia seguinte, poderam dar carne a pataco o arratel! Ora, foi por causa d’esta perda de moedas, que Engracia estava azuada e respondeu mal ao sachristão, que ía lá para lhe dar conselhos, sem lh’os pedirem!... O Beiral terminou conceituosamente: —Isto de perder não faz bom cabello... Coitada! Tu bem sabes que não faz bom cabello... Coitada! III Quando o Antonio chegou aos vinte annos feitos, já tinha esquecido completamente a aldeia risonha onde nascera e o rosto bom de sua irmã Quina que, por seu lado, se o encontrasse, tambem não seria capaz de reconhecer o seu amigo de infancia, n’este homem barbado, com modos bruscos de feirante, com gestos insolentes e desordeiros de troquilha!... E tanto se habituou a ter vida vagabunda, que nos ultimos tempos, não dormia em casa de seus paes adoptivos, metade dos dias de cada semana!... Andava pelas tabernas, de feira em feira, n’uma vida accidentada e bulhenta, sempre em companhia de outros _feirantes_, e da Marianna Ripa, sua amasia!... Esta Marianna Ripa era uma mocetona alta, bem proporcionada, com certa vivacidade vaidosa e impudica!—uma creatura demoniaca, cheia de tentações malditas, infelismente appetecidas pelos fracos da carne, pelos numerosos peccadores de todos os tempos!... Nos seios altos e avolumados, nos quadris largos, a que ella dava geitos lubricos, quando andava, para fazer assim ondular as saias de côres vivas e excitantes... residiam as tentações infinitas das lendarias Magdalenas, antes do santo dia do venturoso arrependimento!... As feições rasgadas e energicas accentuavam-lhe o caracter dominador, que melhor se lhe reconhecia no olhar cheio de impudencia e lubricidade! A sua vida passava-se pelas feiras, entre troquilhas, com os quaes se entendia nos ajustes de gados, bebendo como elles por copos de meia canada, interessando-se nas suas vendas e trocas! O predominio que Marianna exercia sobre o Fogueira, depois que era sua amasia, todos os companheiros d’elle, o Rio-Tinto, o Fanfarra... o sabiam. Era ella que muitas vezes o impedia de ir a casa, dando-lhe conselhos malditos, indusindo-o a que abusasse da affeição que Engracia e Bernardo lhe tinham, para lhes _pilhar tudo em vida_!... —Porque—insinuava-lhe a moça—pode-te acontecer, como lá a um rapaz da minha freguezia... Ateve-se ao que a madrinha lhe havia de deixar por morte, não se segurou nas cousas a tempo e, vae a bebeda da velha, roeu-lhe a corda e lá se foi tudo!... Em vez de lhe testar a elle os campos, como tinha promettido, metteu-se com a coruja, um tratante de um padreca, que lhe principiou a contar tantas lonas, que a coira vae deixar tudo lá a uma confraria e o asno ficou a chuchar no dedo! Estas idéas allucinavam o cerebro do adoptivo da Engracia, que depois de escutar Marianna, ficava mais estonteado do que tivesse bebido, de uma assenada, uma canada do rascante!... No entanto a verdade é que esta vida mundana de feirante, na companhia da Marianna e dos seus amigos, quadrava-lhe, era sympathica áquella organisação impetuosa!... Os seus modos estouvados, os seus arremeços selvagens e doidos pelos quaes era notado entre troquilhas, é que já lhe tinham garantido o alcunho de «_Fogueira_». Alem d’isso, como era franco, generoso—um mãos rotas—os que o cercavam, a Ripa principalmente, entendia que se o seu amante viesse a obter qualquer cousa da herança da mãe, era certo que alguma parte lhe caberia!... Por isso o aconselhava d’aquelle modo, e todos o lisongeavam com blandicias intencionaes. Foi por este tempo, e n’uma das occasiões em que o Antonio andava por fóra, que succedeu _a desgraça_ de que morreu o Bernardo Repolho: Era um dia chuvoso; via-se a cumiada dos montes coberta por densas nevoas designativas de chuva prolongada! Soprava um vento forte, que produzia na amplitude dos campos uma ondulação uniforme nos arvoredos. Como se estava verdadeiramente no coração do inverno, no mez de fevereiro, os campos e os montes sem flores e sem folhas, tinham um aspecto duro de severidade! As chuvas, em grossas bategas, acompanhadas de fortes saraivadas, batiam rijamente nos telhados com uma crepitação ruidosa e aspera, que se continuava, durante horas! N’um d’estes dias de invernia teimosa e tristonha é que o Bernardo Repolho teve necessidade de ir buscar uma carrada de barro, do qual muito precisava para arranjar o seu forno!... Por isso, na primeira aberta illusoria, mandou o Chico tirar os bois da côrte, cangou-os, pol-os ao carro e partiram... A barreira era na encosta de um monte alto e muito ingreme. Bernardo e o Chico, quando íam pelo caminho, já descortinavam ao longe, essa excavação de um alaranjado irritante, que sobresaía no terreno circumjacente, melhor do que a mancha clara de uma eira. Como o barranco estava logo por cima da estrada de carro e, para chegar lá, bastava subir um estreito carreiro em declive, Bernardo disse ao rapasito que ficasse á sôga dos bois, que eram novos e muito espantadiços, emquanto elle ía cavar o barro e acarretal-o. Porém, quando chegou acima e viu no fundo da barreira uma tamanha accumulação de agua da chuva que, para a atravessar, tinha de se arregaçar, sentiu uma impressão desfavoravel, e inconsideradamente disse: —Diabo! Que mar!... Na realidade a chuva, durante a noite, tinha sido mais copiosa do que elle pensára! Escorrera em grandes enxurradas pelo monte abaixo e infiltrara-se, abrindo fundas guellas no terreno, vindo accumular-se no fundo, formando uma especie de larga poça. O Bernardo reconheceu perfeitamente, que para tirar o barro, só o podia fazer do logar onde as fendas estavam ameaçadoras e escancaradas, como guellas de lobo uivando! Porém, com a ajuda de Deus, o Repolho aventurou-se e, puxando as calças até ao joelho, metteu-se á agua com o fim de passar... O perigo a que se foi submetter era evidente, a barreira suprajacente parecia estar quasi a esboroar-se... porém o marido da Engracia foi para diante, sem preoccupação nem receio, principiando a dar sacholadas bem puchadas, para aproveitar aquella _aberta_! N’esse momento é que passava pelo lado de cima um visinho que lhe disse: —Oh! diabo. Com este tempo ao barro, é por força sangria desatada! Bernardo, voltando-se para elle, respondeu com a sua cara de bom homem: —Ah! Es tu Joaquim? É que tenho lá o forno a caír, precisa a patroa de coser o pão e, vae por isso, vim buscar esta carrada... O outro observou-lhe com penetração: —Mas tu ahi não estás bem, home! Esta terra pode-te caír em cima. Bernardo considerou despreoccupado: —Ora, logo havia de caír, n’um migalhito que eu aqui me demoro! Não cae. —Não cae!—insistiu Joaquim. Não era o filho de minha mãe, que se ía metter ahi. Se se esbarronda, ficas ahi espapado, como um sapo. P’ros filhos que tens!... Olha, tu lembras-te d’aquelles dois homes, que ficaram enterrados na barreira lá em baixo?! Foi uma cousa assim, por causa da chuva. Bernardo recordou o facto dizendo: —Ah! bem sei. Isso foi n’um domingo. Se te parece, trabalhar ao domingo!... Foi um castigo. —Home, não é domingo, nem meio domingo. A barreira caíu-lhes em cima e matou-os. Tu ahi não estás bem. Eu cá mandava a cosedura do pão p’rás profundas do inferno e vinha outro dia buscar o barro! Vê lá no que te mettes. O diabo arma-as. —Á sorte de Deus—rematou Bernardo com resignação. E continuou a cavar, com pressa, aproveitando o bocanho, que não durou muito. Uma chuva pesada e forte, principiou a caír sobre os arvoredos, produzindo o fremito de muitos enxames de zangões! A atmosphera, densa e opaca, de uma côr uniforme entre o cinzento e o azul, a côr da agua _pulverisada_, obscurecia os objectos distantes. O vento impetuoso impellia a chuva, produzindo no ar ondulações extensas e regulares. Os ramos delgados das cerdeiras, dobravam-se passivamente. O rapasito, que ficara no caminho, guardando os bois, aconchegava-se, tiritando, ao velho corucho de palha, que o cobria. Os seus pés vermelhos, lavados pela chuva, estavam sobre a lama. As mãos escondia-as nos sovacos para as aquecer. Com o fim de se abrigar do vento que passava zumbindo, mettia-se por detrás dos bois, conservando a aguilhada encostada a si. Os seus cabellos castanhos, de um comprimento desleixado e desigual, empastavam-se-lhe na testa. O olhar era mortificado e de paciencia; porque a tia Engracia, nos seus pessimos momentos de genio irrascivel, batia-lhe; e o Antonio dava-lhe pontapés immerecidos. Por isto, e porque era engeitado, é que o Bernardo Repolho, um homem compadecido, mais se lhe affeiçoara... Porém esta amisade, nunca obstou a que sua mulher o esmurrasse desalmadamente e a que, seu filho adoptivo, lhe désse pontapés que o atiravam de focinhos!... Como a chuva engrossava de cada vez mais, o Repolho chamou o Chico, para se recolher na cova onde elle se abrigára da chuva, recommendando-lhe, ao mesmo tempo, que calçasse o carro para os bois não fugirem. Então o rapaz, pegou n’uma grande pedra, supezando-a contra o peito e foi-a atravessar diante das rodas do carro. Depois, unindo-se muito ao seu corucho, para se agasalhar, subiu a ladeira, saltou o portello e, inclinando instinctivamente o tronco, correu pelo monte acima, entrando no barranco por um carreiro. Elle e seu amo ficaram ambos abrigados sob aquella mesma abobada de terra que, na opinião do Joaquim Moita, quanda fallára a Bernardo, podia esbarrondar-se e matal-os n’um prompto—n’um abrir e fechar de olhos. Mas elles achavam-se ali bem, n’um silencio meditativo, diante das montanhas, cuja corpulencia se confundia no esfumado da chuva copiosa. Como o vento soprava do sul, não os incommodava. Bernardo estava em pé, com a sachola encostada ao hombro e o Chico agachado junto d’elle. Conservaram-se algum tempo calados, olhando distraidamente para o ar, que tinha impulsos ondulatarios como o das vagas, para os campos subjacentes de um verde esmorecido, para as arvores proximas que se vergavam á força da ventania. O Repolho entreteve-se alguns minutos a considerar como as gotas da chuva tornavam aspera e irregular a superficie da agua barrenta, que se accumulára no fundo da barreira!... O rapasito, sentado sobre os calcanhares, olhava para os montes distantes, contando mentalmente o numero de cabeços, nunca acertando com quantos eram!... Porém a chuva carregava de cada vez, com mais impeto, e o velho disse com tristeza: —Santo nome de Maria, que tempo este! O Chico observou: —Parece que hoje não podemos carregar, tio Bernardo... —Estou-t’e a ver que sim, home! E isso é que é uma da breca! —Então vamos já para o lume—aconselhou o rapaz. Estou com um frio, que nem sinto. Bernardo respondeu com voz reprehensiva, mas benevolamente: —És maluco! E tua ama? Se apparecemos lá sem o barro para compor o forno, faz ahi uma pregação de seiscentas pipas! Isso, ainda que se esteja até á noite, havemos de o levar! Calaram-se, conservando-se ambos n’uma taciturnidade ingenua e triste! Um travesso pardal, dando pios seccos e asperos, saltava nos ramos de um carvalho proximo, alegremente despreocupado. A chuva caía de cada vez em maior abundancia! O som gemebundo do vento estendia-se amplamente pelas quebradas, com o seu ulular maguado, de uma longa plangencia funeraria! As enxurradas cresciam, descendo com impeto pelos montes. Este sussurro aspero e saliente lançava uma discordancia rebelde no assobiar espaçado do vento na amplidão! O Bernardo Repolho e o Chico escutavam, com semblantes dependentes d’este ruido das aguas que se aproximavam! O barulho vinha crescendo para elles, precipitando-se de barranco em barranco! Ambos calculavam mentalmente, prevenindo-o, sem o menor susto, sem a menor idéa de perigo, que os enxurros d’aquelle monte, tendo de se vir reunir nos pontos mais baixos, juntariam as suas aguas áquellas que ali estavam no fundo da barreira, diante dos seus olhos indifferentes... Na realidade, pouco depois as largas fendas abertas na terra ao lado d’elles, principiaram a vomitar as aguas que vinham do alto monte!... O seu volume crescia de uma maneira incongruente e precipitada!... A principio tinha-se ouvido sómente um sussurrar brando, um _ou-ou_ de mar distante... Em seguida esse barulho foi-se engrossando, foi enrouquecendo de um modo cada vez mais antipathico e aproximava-se rapidamente, como a voz stertorosa de um trovão, que viesse do lado das montanhas... Por fim, quasi inesperadamente, sentiu-se um estampido rapido, juntou-se-lhe um estrondo abafado e terrificador, que pareceu surgir das profundas entranhas da terra! Durou apenas alguns segundos!... Porém, tanto Bernardo como o seu pequeno creado, não tiveram tempo de comprehender o que seria!... A enorme barreira, sob a qual se abrigavam da chuva e do vento tempestuoso, caíu sobre elles, com a brutalidade inconsciente de um grande penedo que se tivesse desprendido de um alto pincaro e sepultou-os de um modo fulminante!... Assim morreram estas duas creaturas, indifferentemente, por esta fórma singela e e pallida! O visinho, que predissera ao Bernardo Repolho a desgraça que lhe podia acontecer, estava a certa distancia, abrigado da chuva sob um velho carvalho ramudo, e presenciou a catastrophe! Foi elle que a descreveu nas suas mais insignificantes particularidades, fallando e gesticulando animadamente, como quem se tinha encontrado, mais ou menos envolvido n’este acontecimento obscuro da morte de um homem e de um pobre engeitado, verificado em circumstancias de um tão vigoroso effeito theatral! E por que os seus conterraneos, que o escutavam com os olhos abertos e muito pasmados, tiveram a simploria idéa de attribuirem o successo a artimanhas infernaes, dizendo: «o demonio arma-as», o Joaquim exclamou com certa intimativa volteriana e vivamente resentido para com o morto Bernardo Repolho, que despresára os sensatos conselhos que elle lhe dera: —Qual demonio nem meio demonio! Foi a cabeça d’elle que não regulou, é o que foi! Eu bem lh’o disse: «Home, tu ahi não estás bem». Mas elle que era muito teimoso, respondeu-me assim com a sua cara de lorpa e de _bom serás_: «Ora, não ha de ter duvida, se Deus quizer...» Não tinha duvida, não tinha duvida, mas foi morrendo, espapado! Ficou mesmo como um pato, sem dar um pio! Assim é que elles se ensinam!... O _não tem duvida_ foi o que se viu!—rematou com modo triumphante, quasi de uma vingança satisfeita! Uma rapariga nova, uma engeitada de cara sardenta, com os cabellos mal penteados, e que escutara attentamente a narrativa, tomou a deixa de Joaquim da Moita e interferiu com esta observação: —Ai! não tem duvida não tem duvida! Por causa do não tem duvida, é que pariu minha mãe! Toda esta gente, depois que a chuva passou, se dirigiu ao logar onde o caso succedera. Pelo caminho íam, conversando, em magotes. Algumas mulheres, relembravam com voz emphatica, como de quem dá um esclarecimento, que tinham visto n’esse mesmo dia Bernardo, caminhar para a morte, de pé, em cima do seu carro, com a aguilhada encostada ao hombro, na despreoccupação serena de um predistinado! O rapasito que tambem morrera debaixo da terra, o Chico, ía á soga, todo encolhido, coberto com o seu corucho, berrando aos touros, que puchavam mal, encostando-se com teimosia um ao outro... Certas pessoas referiam insignificancias da vida do Repolho dando-lhe certo valor, fazendo-as sobresaír, e recordavam as ultimas palavras que lhe tinham ouvido, ainda mesmo n’aquelle dia, horas antes, quando passára em frente da porta da Anna Benta!... Bernardo tinha dito, com aquelle seu bom modo triste «que estava um inverno de se pedir misericordia a Deus Nosso Senhor!...» e a Rosa Viuva, queria fazer acreditar a todas as pessoas presentes, que taes palavras significavam que o homem de Engracia tivera uma voz de dentro do coração, que lhe predissera a morte!... E como alguns homens incredulos lhe retorquiram: «Isso póde lá ser!» ella recordou tambem outra phrase saliente, que tinha ouvido ao mesmo Bernardo, no domingo precedente, ao saír da missa: «Isto não está tempo cá para os velhos, mulher!... Com esta invernia caímos ahi como tordos!...» E assim tinha succedido, não chegou a durar oito dias!... Por isso, todos vieram a concordar, que o pobre homem adivinhara o seu fim, o triste fim que havia de ter de baixo de uma barreira!... Ao logar do sinistro, onde já estava muito povo reunido, chegaram as auctoridades, para se desenterrarem os cadaveres. Vinha o cirurgião, o José Pandega,—um rapaz de bigode e pêra como os soldados, que, farto de andar a estudar latim em Braga durante nove annos, arranjou depois um emprego no telegrapho, onde tambem se não deu bem, tomando por fim a resolução de ir receitar cosimentos e mesinhas aos seus conterraneos, pelos mesmos livros de veterenaria por onde, um velho frade, seu tio, medicamentára, durante muitos annos, as populações doentes d’aquellas freguezias!... Este ecclesiastico, a quem ninguem negou as faculdades do maior philosopho das redondezas, tinha, entre muitos, um notavel aphorismo, que eu aqui divulgo á sciencia absorta e que o sobrinho acceitava pelo achar frizante e consolador: «Os burros são do mesmo modo que a gente, para a medicina, por consequencia—rematava voltando-se para os seus doentes—paparoca e beberoca, sedênhos para a frente, esfregações de agua forte, algumas cataplasmas e deixa-te andar que, se morreres, é só uma vez». Com o Pandega vinha o senhor Agostinho Manco, juiz eleito, um homem magro que fôra da _bicha_. Logo em seguida appareceu o regedor, conhecido pela alcunha do Antonio Cápatrás, um individuo vermelho, muito estupido, que só sabia emborrachar-se, como diziam os visinhos. Depois d’estes personagens chegarem é que se principiou a desenterrar os cadaveres! Com esse fim, quatro jornaleiros começaram a dar sacholadas auxiliados pelo Joaquim da Moita que vira morrer o Bernardo, e que limitou o trabalho, indicando-lhes o sitio provavel, onde poderiam estar os defuntos. Todas as pessoas presentes, principalmente as mulheres e creanças, tomadas de uma curiosidade invejosa, empurravam-se reciprocamente, procurando com avidez os sitios que julgavam melhores, para presenciarem tudo que se passasse. Para isso iam collocar-se nos pontos mais eminentes, e algumas em logares perigosos!... O cirurgião Pandega, reconhecendo com a sua prespicacia illustrada, que a filha da Rosa Trinta não estava bem, disse-lhe de longe, com voz de auctoridade: —Ó diabo de rapariga, sae d’ahi que te póde acontecer o mesmo! Se se esbarronda essa terra ficas espapada!... E acrescentou, com um modo ligeiro e superior, repuchando a sua comprida pêra: —Isto de gente estupida não se póde aturar de modo algum!... A rapariga obedeceu sem retorquir e mudou-se para cima de um muro, d’onde reconheceu que tambem podia ver tudo... Porém, pelo lado de baixo estava o meliante do José Teixugo, espreitando-lhe as pernas com olhadellas peccaminosas!... A Rosa Trinta, percebendo a immoralidade, advirtiu de longe sua filha: —Ó Tonia, não vês esse maroto do Teixugo a olhar-te p’ras pernas! Tira-te d’ahi, anda. A rapariga, verificando a verdade da asseveração de sua mãe, ficou irritada e disse offendida, arremettendo com uma pedra ao rapaz: —Olhem o diabo do cara de foinha! Vae espreitar as da tua irmã! Não tens vergonha malandro? Ahhh...—rematou voltando-se para elle com a bôca escancarada. O Teixugo, rindo com um riso trocista, respondeu-lhe: —Olha que minha irmã talvez as não tenha tão borradas como as tuas! Vergonha deves ter tu, minha gata pellada, por andares com as pernas tão sujas. No entretanto o regedor, Antonio Cápatrás, e o Agostinho Manco, juiz eleito, revestidos da sua auctoridade assistiam ao acto solemne, em mangas de camisa!... O José Pandega recommendava aos que desenterravam os defuntos, que andassem de vagar, para lhe não darem alguma sacholada. Um d’elles disse ao cirurgião: —Sabe o que a gente precisava, seu Zé? Uma boa infusa de vinho, para este suor se não recolher p’ra dentro. Você que sabe d’essa cousa de sedênhos e medicinas, bem o entende, seu Zé. Por um acaso feliz chegaram n’esse momento duas canecas do bom rascante que a Engracia, viuva recente do Repolho, mandava para os trabalhadores que lhe desenterravam o marido. Todas as pessoas lhe applaudiram a lembrança inesperada e a mulher que trouxera o vinho, affirmou com modo persuasivo, que fôra a propria tia Engracia que o fôra tirar do tonel do canto, que era _do bô_ que tinham. Os homens, quando acabaram de beber, tiveram um _ahhh_... prolongado e satisfeito, confessando um d’elles: —É a melhor pinga que ha pelos arredores. O Bernardo queria-o vender lá para a villa, e já lhe davam dez moedas. O regedor considerou: —Foi bem tolo em o não beber. Se o levasse nas tripas, fazia melhor do que estar o poupal-o para quem cá fica... Depois de escorripicharem as duas canecas, os jornaleiros continuaram a cavar com mais cautela, para não tocarem com as sacholas nos cadaveres, como os prevenira o cirurgião. A primeira cousa que se descubriu foi o chapéu do Bernardo, humedecido e barrento. Todos reconheceram que era esse mesmo chapéu, esbeiçado e já roto, que elle costumava usar. O José Pandega, affirmou com certa intimativa: —Na cabeça d’elle é que vós o não tornaes a ver! Todas as pessoas confirmaram esta opinião sensata. Era verdade! Na cabeça do defunto, que estava debaixo d’aquelle barro, elles nunca mais veriam aquelle chapéu esbeiçado e roto! Pouco depois, com mais algumas enchadadas, appareceram os defuntos. A ultima camada de barro, foi tirada cuidadosamente com as mãos. Os dois cadaveres estavam de bruços, ambos inteiriçados, rigidos. Ao de Bernardo, que era mais pesado, metteram-lhe uma tábua por baixo do tronco e levantaram-n’o ao ar, ficando o corpo aprumado, severo, com um aspecto de phantasma! O cadaver do rapasito do gado, como no momento em que a barreira se esboroou estava agachado sobre os calcanhares, encontraram-no dobrado sobre si mesmo, com a cabeça debaixo do corpo e a cara encostada ao peito, quebrado pela espinha. Ambos estavam inteiramente desfigurados, por causa da camada de terra adherente, empastando-lhe os cabellos, tapando-lhe os olhos e a bôca. Todas as pessoas presentes vieram agrupar-se em volta das duas tábuas, sobre as quaes, os mortos, permaneciam deitados de costas. O Chico, para o conservarem bem estendido, tiveram de o atar pelo tronco e pelos pés ao seu esquife provisorio com uma corda; porque, em virtude da rigidez cadaverica, tendia a dobrar-se sobre o ventre. Ali, diante dos corpos exanimes, o juiz, o regedor e o cirurgião, fallaram em dar parte d’este acontecimento tragico, n’um officio, ao senhor administrador, affirmando-lhe que a culpa d’elles morrerem, tinha sido d’elles mesmos, que se tinham ido metter na bôca da morte. Depois concluiram, que o que era necessario fazer-se-lhe já, era amortalhal-os, para se proceder aos _officios_ e enterral-os, quanto antes, para não principiarem a cheirar!... Depois d’isto, o Pandega, lembrou-se de tirar o barro dos rostos sujos, e para isso foi buscar uma pouca de palha de uma moreia proxima, e fel-o. Porém, como depois d’esta grosseira limpeza reconheceu que os cadaveres tinham nodoas arrouxadas nas faces e na testa, affirmou peremptoriamente, com modo decisivo: —Devem-se enterrar quanto antes... Ámanhã principiam elles a feder, que nem mil demonios! Não se ha de poder estar com o nariz ao pé!... As mulheres presentes fizeram uma momice de enjoadas e, cuspinhando para o lado, disseram «cachicha». Os homens, que tinham desenterrado os mortos, preparavam-se para pegar ás tábuas, onde os tinham estendido, com o fim de os transportarem a casa, quando a Caetana, uma velha beata, lhes observou n’uma voz de um ligeiro timbre choroso: —Esperae rapazes, esperae... Não os leveis assim, que ainda estão muito borrados. Deixae, que eu lhes lavo a cara... E para o conseguir foi buscar _manadas de agua_, que verteu sobre os rostos dos cadaveres. Depois limpando-os caridosamente com o seu velho avental de riscas concluiu: —Agora podeis ir. _Bão_ mais bonitos. Por fim, os quatro jornaleiros, deitando um olhar saudoso ás canecas vasias, levaram os corpos para casa da Engracia. Ahi é que foram decentemente lavados e amortalhados para os depositarem na varanda, onde veio muita gente da freguezia deitar-lhes agua benta sobre as mortalhas e recommendal-os para a eternidade, com as suas resas distraídas!... Na varanda, o esquife de Bernardo ficou ao fundo, e o do Chico logo ao pé da porta... O sol entrava francamente, incidindo sobre os rostos dos defuntos, tornando-os da pallidez indecisa da cera, com o tom roxo das ecchymoses enfraquecido. Ambos elles tinham uma expressão rigida e concentrada, propria das mortes afflictivas, o que se lhes conhecia nas rugas da testa, no apanhado dos beiços, nas palpebras fechadas com energia! As mãos grossas e plebeias, cruzadas sobre o peito, amparando um crucifixo, por effeito da humidade do terreno debaixo do qual estiveram horas, haviam adquirido uma molesa aristocratica—uma coloração branca de mãos estimadas. Bernardo, com a sua barba feita e com o cabello cortado rente, tinha, para as mulheres da sua freguezia que lhe cercavam o esquife, uma apparencia de mordomo de festa. Por isso recordavam a ultima vez em que elle fizera a da Senhora do Carmo, e, tinham bem presente diante dos olhos, a sua figura magra e insignificante, no primeiro logar da bancada, com as mãos erguidas em face do padre Beiral, quando este o incensou as tres vezes do rito, fazendo-lhe uma cortezia ao retirar-se, o que todos julgavam de uma polidez e de uma distincção invejaveis. A mortalha do marido da Engracia era mais rica do que a do Chico, a qual, sendo elle engeitado, lhe tinham esmollado perante a confraria das almas! Porém notavam que não differiam muito; porque ambas eram de forte panno violeta muito engommado, com cercaduras relusentes de galões metallicos, que scintillavam sob a viva luz do sol. As pessoas que contemplavam estes cadaveres serenamente deitados, ainda recordaram muitas vezes, relatando-o com minuciosidade, o triste modo por que tinham morrido, e a beata Caetana, como julgamento, concluiu d’este modo a narrativa que acabava de ouvir pela sexta vez ao Joaquim da Moita: —Foram elles bem asnos em se irem metter n’aquelle perigo! Este Bernardo sempre foi um pascacio. Para deixar _a um_ que nem é filho d’elle!... E trouxeram a pello a vida desregrada do Antonio, que andava sempre de feira em feira, sem parança em casa, vivendo no meio de jogadores e de troquilhas borrachos! N’esse mesmo dia tinha apparecido na porta da igreja a lista dos rapazes para soldados. O nome d’elle lá estava, entre o de outros. Havia quem affirmasse, que já havia ordem na villa para o prenderem, como _reflatario_. Certas mulheres que se queriam inculcar como ao corrente do que se passava, affirmavam que fôra o senhor padre Beiral, quem lhe arranjára _aquella farda_. E a este proposito recordaram as queixas que o ecclesiastico devia ter do filho da Engracia, que lhe roubara de uma vez todas as uvas douradas que elle tinha na sua latada, e as melhores peras do natal, furtadas, mesmo nas barbas do sacerdote, da pereira do pé da casa!... Por isso, e porque estavam indignados contra o rapaz, como tornando-o em parte responsavel d’esta morte do Bernardo, applaudiam a resolução, havia tempos manifestada, pelo Beiral de _pôr uma farda ás costas ao meliante_!... IV N’essa mesma tarde foram as confrarias buscar os defuntos. Era uma consideração pelo nome de Bernardo que era _irmão remido_! Adiante de todas vinha a do _Santissimo Sacramento_, de opas vermelhas e a cruz de prata alçada, relusindo ao sol. Em seguida desfilava a de _Nossa Senhora do Carmo_, de opas brancas com murças azues, da côr do céu desbotado de agosto. Na bandeira que a destinguia estava pintada a Virgem, com a sua ridente face menineira, tendo pendente de uma das mãos um rosario, e da outra uns bentinhos! Por fim seguia-se a confraria das _Almas_, com a sua bandeira dolorosa na frente! Era ali representado o quadro terrificante do purgatorio:—um rei de corôa poderosa e de longas barbas patriarchaes, apoiava a sua mão sobre o hombro de um bispo mitrado, coberto de uma rica capa de ouro, o qual estava mais no fundo das chammas, soffrendo, talvez sem bastante resignação, que o monarcha chegasse primeiro á bemaventurança! Ao lado d’este augusto personagem, uma peccadora, com as longas madeixas de Magdalena, dando a mão a um homem lubricamente calvo e de bigode e pera, trepavam por entre linguas de fogo, de uma iracundia terrivel, em ôca e vermelhão! Todos estes condemnados, e ainda outros _sem distincção_, erguiam olhos supplicantes e estendiam as mãos abertas a um anjo, que estava no alto, pesando serenamente as culpas e os soffrimentos de cada um, para lhes outorgar a remissão promettida!... Da confraria da Senhora do Carmo, destacaram-se quatro irmãos para tomarem conta do cadaver de Bernardo Repolho, e outros quatro da confraria das Almas que, por caridade, se encarregaram de conduzir o do engeitado... E, quando tinham tomado sobre os seus hombros valentes os dois esquifes, partiram pelo caminho adiante, para a igreja, condusindo os defuntos. Atraz, na casa da viuva, ficou o chôro alarmante de Engracia, e das visinhas que a acompanhavam, misturando-se, na larga amplidão ao triste dobre dos sinos que echoavam de quebrada em quebrada, com a sua nota plangente e de uma harmonia rebelde! No instante em que o funebre acompanhamento subia pela encosta da igreja, o Antonio Fogueira entrava na freguezia! Havia mais de oito dias que andava por fóra, na sua vida vagabunda de torquilha... D’esta vez trazia uma egua nova, muito fugideira, que lhe vendera o Rio Tinto. O toque funerario dos sinos e o acompanhamento que elle viu logo de longe, surprehendeu-o, fazendo-o parar, e teve um baque no coração! O primeiro esclarecimento ácerca do occorrido, foi-lhe dado por uma mulher velha que vinha pelo caminho para o lado d’elle, vergada sob o peso de um grande molho de herva e que, antes de ser interrogada, lhe disse encostando-se com o feixe a um muro para descançar: —Aquelle agora, meu rico, do que precisa, é de muita fartura de missa, por aquella alma!—observou-lhe depois de um «ah!» de estafada a velha Vicencia. —Mas quem foi que morreu?—indagou o Fogueira. —Ah! sim, tu não sabes!—completou a velha depois de expellir o seu cançaço asmatico! Andas sempre lá pelas feiras, não admira. Pois toca-te pela vestia... Foi teu pae Bernardo, de uma grande desgraça! O adoptivo do Repolho impallideceu rapidamente, deixando cair as redeas no pescoço da egua! Vicencia concluiu: —... Uma grande desgraça, sim senhor, é como te digo. Caiu-lhe honte em cima da cabeça, a elle e ao vosso rapaz, o Chico, o monte da Cham, quando lá foram ao barro! Se tu não andasses sempre por essas feiras, em jogatina, talvez que o pobre home não fosse lá, com esse tempo! E depois, voltando-se salientemente para o Fogueira, exclamou de um modo reprehensivo: —Ora tu não mudarás de rumo! Vê se te confessas, que andas n’uma vida de home perdido. Tem vergonha n’essa cara! Faz uma confissão _jaral_, que vem ahi os missionarios, grande maroto! O Fogueira, que era naturalmente irritavel, sentiu subir por elle acima uma forte ira contra a velha Vicencia. Porém, refreando-se, respondeu-lhe com uma indignação latente: —Você que lhe importa o que eu faço, seu diabo de coruja! Vou-lhe lá pedir alguma cousa?! Se não fosse, não sei porque, se não fosse por causa d’aquelle que acolá vae (alludia ao enterro que subia a encosta), eu lh’o diria, seu grande diabo!... Uma colera viva apoderou-se rapidamente da velha, que deixando cair o feixe da herva no chão, principiou a gesticular, sem encontrar no momento as verdadeiras palavras indignadas, com que desejava aggredir o Fogueira! Como é que um homem, tão culpado como este maroto, que só andava pelas feiras em jogatina e com más mulheres, se atrevia a ter arrogancias diante dos que o reprehendiam?! Por isso ella, com uma voz gritada e com os punhos ameaçadores, o increpou, com uma pedra na mão: —Ah! grandissimo ladrão, o que tu precisavas era de uma cadeia. Talvez me queiras bater, excomungado! Ora vem p’ra cá, que te prego com esta na testa! Cuidas que eu tenho medo, stafermo?! Um ladrão, que não faz senão gastar o que aquelle bruto (alludia tambem ao morto que ia no esquife) andou por ahi a ganhar no trabalho. Foi elle bem tolo em mourejar p’ra ti! Mas deixa, meu condemnado do inferno, que o senhor regedor e o senhor padre Beiral te ensinarão! Já está prompta a farda que has de ter ás costas!... Eu vou dizer já ao tio Antonio Capatrás, que te vá prender. Porém esta indignação palavrosa de Vicencia, perdeu-se no ar. O Fogueira só lhe percebeu que ia ser preso; mas a este tempo já tinha picado a egua pelo atalho acima, para entrar em casa, pela matta, com o fim de ninguem o ver. E quando se viu só no caminho, a distancia da velha, cuja voz ainda lhe chegava aos ouvidos n’uma gritaria de furia, o filho adoptivo do Bernardo Repolho considerou com a reflexão propria dos momentos responsaveis: —Mas para que diabo foi elle buscar o barro, com um dia como esteve honte? Para que se foi aquelle maluco metter ao perigo?!—exclamava sem comprehender, voltado mentalmente para si mesmo! E, considerando n’isto alguns segundos, parado, a olhar fixamente para um muro musgoso, concluiu: —É uma de mil diabos! Que grande bucha! Dispunha-se a dirigir-se á cancella da matta, quando o susteve a voz conhecida do João do Rego, que lhe appareceu de cima do muro do caminho: —Espera ahi, ó Tone! Ó rapaz, espera! E aproximando-se acrescentou: —Então teu pae lá ficou arrebentado debaixo do barro e o rapaz tamem! —O rapaz tamem...—repetiu o Fogueira absorvido, mas sem commoção. —Tamem. Pois tu não sabes nada? —Sei, disse-me ali em baixo a Vicencia, aquelle diabo que me metteu cá umas cousas por dentro, que...! Valha-a mil demonios! O do Rego continuou esclarecendo: —Isso não faz monta. Ella é tola, tu bem sabes. Mas honte foi ahi na freguezia o dia de juizo! Juntou-se povo, que povo!—o Capatrás, o Manco, o çurgião... o poder do mundo! Desenterraram-n’os; porque elles ficaram debaixo de um monte de barro, da altura d’este muro. Depois, quando os trouxeram para casa em charola, em cima de duas tabuas, lá a tua velha fez ahi uma berraria de deitar a casa abaixo. Fazes lá idéa! Era muita gente a querer agarrar n’ella; mas principiou a estrabuchar e a morder, por não a deixarem _ir abraçar o seu home_!... Ora tu bem sabes que a gente não a devia deixar, e mesmo o senhor padre Beiral e o Pandega disseram que não deixassem; porque lhe podia dar algum stupor! Hoje tem custado a ter mão n’ella, quer-se ir deitar a afogar; mas a minha mãe, que lá está, e outra gente não deixam. Quando a seguram, principia a chorar aos gritos, como se tivesse o diabo e chama muito por ti! Já dizem que a alma de teu pae lhe entrou por algum sitio... Se é verdade, temos que rir; porque ha de custar a por-lha fóra! Isso de entrar uma alma no corpo da gente é peior que maleitas. Safa! O Fogueira ficou mais triste, mais acabrunhado com estas revelações. Principiou a apoderar-se d’elle um terror, um medo...—o medo de que a alma de seu pae adoptivo tivesse realmente entrado no corpo de sua mãe Engracia! E com um ar scismatico, de homem abatido, puchava pela longa barba, arrepelando-a, e considerando-se infeliz! O João do Rego, no mesmo tom de confidencia, rematou: —É o diabo! Trazes tu por ahi cigarros? Como vens da villa has de trazer. Agora foi a feira dos nove. Vens de lá? Trazes uma burra chibante! O Antonio, passando-lhe automaticamente o cigarro disse: «estive... comprei...». Depois perguntou-lhe: —Mas diz que me querem prender?! —Qual prender! Deixa fallar! Está um papel na porta da igreja; mas é p’ra gente ir a Vianna, por causa d’essa cousa da tropa! Meu pae arranjou cartas de fidalgos da villa p’ra me livrarem, cá a mim, em Vianna; porque _botou_ com elles no deputado! Eu vou e mais elle, domingo, por ahi abaixo, á _speção_. Vem co’a gente, que faremos pandega!? O Capatrás disse que tu tamem has de ir. Ainda honte fallou no adro, que se tua mãe não vender um campo p’ra te livrar, tens de andar com a muchila ás costas. E concluiu n’um tom de voz convidativo: —Mas a tua velha que venda o campo. Ella pr’a que o quer senão p’ra ti?! Diz-lhe que venda e vamos todos lá a _essa_ Vianna! Despediram-se. O Fogueira picou a egua, explicando ao do Rego, que queria entrar pelo lado da matta, para se não encontrar com o enterro que ia no caminho. Depois, quando chegou á cancella, a egua transpol-a, mas entrou desconfiada, reparando em tudo, olhando de travez para os objectos!... O Antonio forçou-a a caminhar dizendo-lhe: «Chó diabo, anda p’ra diante!» E assentando-lhe duas lambadas nas ancas, esporeou-a com força!... Porém, logo adiante, o animal estacou com mais teimosia, encarando excentricamente com um velho carvalho nodoso. O Fogueira, como a egua era nova e como o momento não era proprio para lhe tirar as teimas, desceu cordatamente, pensando em a levar á redea. Para isso principiou a puchal-a, com brandura, de um modo carinhoso, condescendente, fallando-lhe com moderação. Porém ella fincou-se nas mãos, levantou a cabeça, encostou-se á retranca e principiou a recuar resfolgando estrondosamente pelas ventas dilatadas, olhando esgazeada e com uma tremura nervosa nos beiços! O Antonio, conhecendo que á força a não faria transpor a matta povoada de carvalhos, que produziam sombras amedrontadoras, pensou em redobrar de carinhos e attenções, desejou familiarisal-a com a velha arvore nodosa que a espantára!... Para isso amimava-a, fallando-lhe n’uma voz de cada vez mais convidativa, puchando-a moderadamente pelas redeas, para a aproximar do objecto suspeito... Porém ella, entendeu que devia recuar ainda mais e, n’um momento, principiou a levantar as mãos, a agitar mais freneticamente a cabeça, a espetar com mais desconfiança as orelhas, a curvetear... e terminou por atirar duas valentes e corajosas parelhas de couces á cancella, partindo-a. O filho da Engracia teve n’este momento uma enorme colera e veiu-lhe rapidamente a idéa de tirar a sua comprida navalha e abrir a barriga da egua, como em outra occasião fizera a um cavallo! Porém, a reflexão aconselhou-o a não deixar apparecer as suas violencias naturaes... O momento não era opportuno—reconhecia-o elle perfeitamente!... Ouvia d’ali mesmo sua mãe, gritar com desespero, acompanhada pelo chôro cantado de todas as visinhas, que lhe faziam companhia n’este momento doloroso. Toda a sua idéa era metter, sem ser presentido, a egua na côrte do gado, e depois, quando em casa tudo estivesse mais tranquillo e a choradeira acabada, entraria pela porta dentro, inesperadamente e de supito!... «A final de contas—considerava—isto tem de ser e tem!» Por isso, para não augmentar mais a desordem que havia um quarto de hora se apoderara do seu espirito, a desordem que o cercava por todos os lados, optou por amansar a egua em vez de a matar, e para isso principiou a cofiar-lhe as crinas, passando-lhe pela anca tremula a mão benevolente e prodiga de afagos, com a brandura insuspeita da mão de um amigo! Conseguiu d’este modo acalmal-a, mostrar-lhe de perto o velho carvalho, chegar-lhe ás ventas, ainda tremulas, a casca gretada, que exhalava um forte cheiro de humidade e de bolor. Conseguiu o que desejava; mas a egua atravessou o caminho da matta, sempre desconfiada, olhando de soslaio, resfolgando e levantando a cabeça ao menor ruido. O Antonio chegou a mettel-a na côrte do gado, prendendo-a calculadamente a distancia dos toiros, que permaneceram a olhar vagamente, com os seus olhos redondos, como bogalhos e relusentes como vidro! Pelo barulho que tudo isto produziu, Engracia que já estava calada, ficou advertida da presença de seu filho!... Por isso, tanto ella como as visinhas que a acompanhavam, tornaram a desatar a sua dôr recente, em altos gritos cheios de mortificação e que se estendiam pelos campos! Quando, instantes depois, o Antonio entrou na cosinha, a viuva do Bernardo agarrou-se-lhe ao pescoço, dizendo muitas vezes: «Meu rico home do meu coração, que te não torno mais a ver! Perdi o meu rico home! Um santo como elle era! Uma desgraça assim!» Esta paixão intensa e desgrenhada era communicante, e por isso o Antonio saiu dos braços de sua mãe, para se deitar de barriga sobre a caixa da brôa, com o rosto escondido entre as mãos, dando soluços affrontosos e dilacerantes!... As mulheres, que acompanhavam Engracia principiaram a dizer que elle era muito bom rapaz, muito amigo de Bernardo, tão amigo como se fôra filho verdadeiro! Gabavam muito este choro afflictivo de Antonio e, acercando-se d’elle, com as mãos escondidas nos aventaes, consolavam-n’o, lembrando-lhe que a _desgraça_ acontecera por vontade de Deus Nosso Senhor, e confirmavam que todas ellas, que ali estavam a chorar pelo Bernardo, tambem haviam de morrer e talvez bem cedo!... E depois d’estas palavras sensatas aconselhavam-n’o a fazer uma confissão geral com os missionarios; porque era muito bom a gente andar sempre preparada para ir á presença do Senhor Todo Poderoso! Antonio parece que não gostou d’esta advertencia, em que presumia uma censura á sua vida desregrada, e disse-lhes com certo desabrimento, com modo brusco e mal creado, sempre deitado de barriga sobre a caixão da brôa: —Calem-se! Deixem-me cá. Ponham-se agora ahi com lôas e aquellas!... E desde este momento, o seu choro, foi-se abrandando gradualmente, e um silencio, de vez em quando interrompido por um «ai Jesus!», restabeleceu-se na cosinha. Engracia, com os olhos enxutos, mas evidentemente abatida e mortificada, foi, como um cão reprehendido, sentar-se ao canto da lareira, onde havia uma fogueira crepitante e viva, procurando o ponto mais escuro e modesto, d’onde atiçava o lume, continuando a dar ais lastimosos e suspiros. Passados alguns minutos, quando as brazas estavam bem vivas, bem mordentes, disse ella mesma, com uma voz serena e apasiguada, para Genoveva, a mãe do João do Rego: —Ó mulher, vê se lhe deitas aqui n’este lume uma posta de bacalhau. Esse moço ha de vir com fome. E, como o Antonio ainda de bruços sobre a caixa do pão se remexeu, expellindo o ultimo suspiro da sua angustia, ella exclamou n’uma voz mais secca, mais sincera: —Meu rico home que o não torno mais a ver até ao dia de juizo! Tomára eu que o dia de juizo fosse já hoje, só para tornar a vêr o meu rico home, que foi morrer de uma desgraça!... Uma cousa assim!... Porém as outras pessoas ficaram caladas... Não tendo já mais lagrimas para chorar, as mulheres visinhas principiaram a contar ao Antonio, como tudo se tinha passado, como acontecera aquillo! Elle, impellido por uma curiosidade inconsciente e com o fim de as escutar com mais attenção voltou-se de ilharga e olhava... Depois, como a narrativa, vivamente colorida pelos commentarios e pela gesticulação, o interessava, sentou-se e escutou até ao fim, com as mãos apertadas entre os joelhos. A Genoveva, mãe do João do Rego, era quem o certificava de todo o acontecido, e apesar de ser muito difusa e de entremetter observações sem valor e rodeios pueris, o Antonio ouvia-a: O Bernardo era um homem sem esperteza nenhuma, um molanqueiro, um deixa-te ir... Muito bom homem, muito honrado, muito temente a Deus, de muito boas contas... isso sim, senhor. Verdade, verdade... não se contava outro na freguesia! Mas prestimo não tinha muito, não tinha mesmo nenhum. Todo o mundo o levava para onde queria, um grande cebolla é que era! Esta desgraça que lhe succedera tinha sido prevista pelo Joaquim da Moita, que lhe disse ao vel-o encostado á barreira, que tinha umas bôcas escancaradas, que mettiam medo: «Home, tu ahi não estás seguro! Vê lá no que te mettes, Bernardo». Elle não quiz fazer caso e respondeu: «Ora não ha de ter duvida...». O pago foi o que se viu, ficar esborrachado. O Fogueira, ouvia tudo isto com uma seriedade inconsciente e bronca. Que diabo de toleima, a de seu pae, de se ir metter debaixo da barreira que caíu! Realmente sempre era um banasola, que não tinha prestimo para nada!... E deixando-se n’esta corrente de pensamentos vagos, impulsionado pela palavra quente da tia Genoveva, e, como já lhe haviam posto o bacalhau sobre a caixa, principiou a comer de vagar, com uma apparente inappetencia... Tinha o olhar vagaroso e a mastigação demorada, apesar de ter fome. De vez em quando, Engracia, exclamava pelo «seu rico home», que não tornaria mais a ver, até ao dia de juizo!... Genoveva, que durante a narrativa se enchera de espirito hostil contra o fallecido Bernardo, disse reprehensivamente, para a viuva: —Cala-te mulher! Tamem já é de mais! Já aborreces com tanto «meu rico home!» (E fez um esgar de troça.) Que se não fosse lá metter! Que não fosse pascacio! Depois concluiu voltada para o Antonio: —Olha, elle se morreu é porque quiz! era um bô home, um bô serás; mas teimoso até ali! Deus o tenha no céu, que todo o mal foi d’elle; mas verdade, verdade, para onde lhe désse o toutiço, era para lá, como um casmurro. Agora que está na outra vida, Deus o tenha em bô logar. Um Padre Nosso por sua alma é que devemos resar... Do que Bernardo precisa é de muito rosario e de muitas missas, que quantas mais, melhor. «Padre Nosso que estaes no céu, santificado seja o vosso nome, etc...» Todos a acompanhavam n’uma voz ciciada, e com as palpebras meio cerradas. N’este momento ouviu-se o dobre funerario e lamentoso dos sinos. Era o signal de que os officios tinham acabado e de que o corpo ía ser dado á sepultura! Uma das amigas de Engracia observou: —Elle lá vae pr’a cova, coitado! Olhem que ninguem sabe onde as tem armadas!... Ainda honte, ía em cima do carro, muito socegado, e já hoje dorme na greja pr’a toda a vida! Ah! morte negra, morte negra que assim os vaes levando a um e um! Engracia tornou a chorar alto e o Antonio atirou-se novamente de bruços sobre a caixa do pão, conservando-se muito tempo sem se mexer... N’aquella posição adormeceu de fatigado pela jornada! V Porém, a viuva do Repolho, o que não queria por fórma nenhuma, era que o seu Antonio fosse para a tropa. —Soldado nem de barro!—exclamava. Isso não o ha de elle ser, ainda que eu tenha de vender a camisa do corpo! Todos esses invejosos, que lhe querem mal, hão de cegar!... Mas a final—porque é que lhe tinham esta raiva de morte ao rapaz?! Engracia bem o sabia: O Antonio não era um _cebola_, não era nenhum _maricas_ que se deixasse levar pelo beiço. Tinha tido muitas occasiões de amolgar as costas dos visinhos com o seu rijo pau de carvalho, e essa era a rasão por que lhe tinham tanta birra. Em qualquer ralhação, que a Engracia tivesse na aldeia, atiravam-lhe logo á cara, com a vida de homem perdido e sem religião, que o seu filho levava pelas feiras... N’essas occasiões, com uma intimativa raivosa de vingança, ameaçavam-lh’o com a farda, com a _tal farda_ que o senhor padre Beiral lhe havia de arranjar... «Pois não houvestes de arranjar uma farda!» respondia-lhes Engracia indignada. Graças a Deus, ainda tinha algumas terras que vender e, acabadas as terras, ainda tinha cordões de ouro e a propria casa em que morava, que tambem valiam um bom par de moedas! Quem perdia com estas cousas eram os santos da igreja—Nossa Senhora do Carmo e Santo Antonio milagroso a quem promettera os dois campos da ribeira se o rapaz se livrasse. Assim, arranjando-lhe o padre Beiral a farda, venderia esses campos para pagar a um _sustituto_. E por causa d’isto, tambem pensava em lhe doar todos os bens, e deixar-lhe, mesmo em vida, gastar tudo, só para ter o regalo de ver a visinhança com uma cara de palmo e meio! Ao menos desenganava de uma vez todos os que lhe queriam mal ao moço! Elles desejavam que Engracia lhe não deixasse nada, por não ser seu filho; mas ella, que se tinha na conta de teimosa como uma burra, de cada vez estava mais resolvida a dar-lhe em vida quanto possuia! E realmente, n’um dia em que a Vicencia lhe disse de cara, «que ella estava no inferno vestida e calçada, que talvez não encontrasse um padre que lhe deitasse a absolvição, por querer desherdar Nossa Senhora e os santos em beneficio do grande meliante e pelo não o mandar para a terra de onde tinha vindo» a viuva do Repolho, cheia de colera, partiu para a villa, onde lhe fez a doação premeditada e onde, ao mesmo tempo, vendeu os campos da ribeira ao brazileiro do Tenrozo, entregando todo o dinheiro ao Antonio, para elle se ir livrar a Vianna e para continuar no negocio de burras, em que se via envolvido. Porém, as pessoas que andavam ao corrente da vida do Fogueira, que conheciam as suas relações com a Marianna Ripa,—uma chupadeira!—com o Rio-Tinto e com o Fanfarra,—dois ladrões!—quando souberam da doação incondicional que a Engracia lhe fizera, affirmavam com riso de despeito e de consolação ao mesmo tempo: —Agora é que vae ser o bô e o bonito. Verão como elle espatifa tudo emquanto o diabo esfrega um olho. Ai minha tola de Engracia! Cuidas que déstes na dos outros, mas déstes na tua cabeça! Os campos que tanto custaram áquelle burro do Bernardo, estão ahi estão engolidos n’um prompto! Na realidade, nas feiras que o Fogueira frequentava, principiou elle a apparecer mais chibante e cheio de arrogancia, sempre na companhia de Marianna Ripa, que tambem andava n’um luxo e n’um estadão de _arreguilar_ o olho! Ella tudo eram lenços de seda de furta-côres, tudo roupinhas do melhor panno azul, chinelas com biqueiras de verniz pispontadas a retrós verde... o diabo, um inferno! O Fogueira, sempre com o cinto recheado de soberanos que mostrava todo basofia, pedia nas estalagens com voz arrogante e desdenhosa, postas de carne assada e copos do rascante, com que enchia os coldres á Marianna, ao Rio Tinto, primo d’ella, ao Fanfarra e ainda a outros troquilhas. O Rio Tinto encontrou meio de lhe impingir uma egua com seis moedas de ganho, quer dizer, por vinte moedas, que na opinião de entendidos, não valia dez; porque, pelas quatorze, já tinha sido uma encaravilhadella para o primeiro comprador! Era um animal vistoso, de pello luzidiu e fino, as orelhas espertas, as ventas resfolgantes, o olhar vivo e de uma inquietação nervosa...; mas era uma egua com pancada! Tinha um travado meudo, muito igual e firme; a cabeça, quando ía vertiginosamente na carreira, apresentava-a com altivez soberana; porém, diziam que tinha grande doze de lua. Algumas pessoas chegavam a affirmar que era uma egua redondissimamente maluca!... O Rio Tinto quasi desenganou o Fogueira dizendo-lhe: —Eu gostei do demonio da burra. Se a queres leva-a; mas o que ella precisa é de bons quartos em cima! Olha que eu não sei se tu terás perna para a montar! O Fogueira, mesmo por causa d’esta declaração, como era muito vaidoso, comprou-lh’a. Tinha-se na conta de um dos melhores montadores das feiras minhotas e não podia levar á paciencia, que houvesse animal, por mais bravo, que elle não podesse amansar. Nunca encontrára, nem entre os marchantes, nem entre os troquilhas, homem a quem temesse n’um desafio de carreira. Portanto, apesar de lhe dizerem _que era brava_, o Fogueira quil-a e, o Rio Tinto, recebeu logo em bons soberanos as vinte moedas... Muitos feirantes que lh’a viram levar ficaram dizendo com um riso velhaco, alludindo á maneira impensada como o Antonio gastava o dinheiro: —Aquillo é que é derreter arame! É como cebo ao lume. Parece um morgado. O Domingos Bicudo, o taberneiro á porta do qual foi feita esta observação, defendeu o Fogueira n’estes termos: —E a vós que vos importa?! É do vosso dinheiro que elle gasta? Deixae o rapaz com as suas aquellas. Depois d’isto, oito dias antes de esgotado o praso determinado no papel que estava na porta da igreja, o Antonio foi á administração do concelho buscar _a guia_ e partiu para Vianna, á _speção_. A Marianna Ripa foi com elle. Era pelo tempo da feira da Senhora da Agonia. A rapariga ía toda secia, toda preparada, n’um espavento de arromba! Ella, como ouvira fallar _da braveza_ da egua, receiou ir a cavallo, e disse ao seu amante, que não queria. Porém, o Fogueira, intimou-a terminantemente a montar, observando-lhe que indo elle ao pé, não tinha que temer. Por isso ella subiu para o albardão. Sentou-se commodamente, espalhando as saias para ambos os lados. Por baixo, de entre as dobras do saiote vermelho do panno mais fino e de entre os folhos brancos das saias, saíam os seus pés calçados em chinellas de biqueiras de verniz pispontadas, e as suas pernas grossas, bem feitas, calçadas com meias de linha fina, viam-se-lhe impudicamente até acima do tornozello. Marianna tinha um riso vaidoso e triumphante, quando olhava para as pessoas que a viam passar! O Fogueira ía a pé, de vestia ao hombro, com a larga facha vermelha apertada sobre o estomago, e armado com o seu pau argolado, proprio de homem de feiras!... Acompanhava a cavalgadura, a largas passadas de arrieíro, examinando frequentemente a cilha, para que a moça lhe não fosse dar um trambolhão... E, com a expansibilidade natural do seu temperamento sanguineo e da sua cabeça estouvada, ía fallando á egua, para a familiarisar com a sua voz, e dava-lhe fortes palmadas na anca, que a faziam estremecer e levantar a cabeça de um modo inquieto, continuando depois com passadas mais ligeiras e, ás vezes, com chouto, do que Marianna se queixava, por se lhe remexerem as tripas todas lá por dentro... Como estava um dia de grande calor, logo na primeira taberna, fizeram uma paragem para provar do rascante. A Ripa, apesar de desembaraçada e resolvida, tinha medo da egua, e por isso não se arriscou a descer, sem a ajuda do Fogueira, que para a pôr no chão, a agarrou valentemente e com vaidade, apanhando-a por baixo dos quadriz: —Ó diabo! És uma franga. Não pesas nada! Tudo saias. São tudo saias. E deu duas reviravoltas com ella suspensa, mostrando-lhe que era muito leve. Marianna ria-se mostrando os seus dentes brancos, fortes e iguaes. O Fogueira, depois de a pôr no chão, ficou mudo, rangendo os dentes, a sorrir para ella, n’uma sensualidade bruta, motivada pelo calor das saias, pela excitação animal que lhe produzira o proximo contacto da carne da Marianna!... Por isso, n’uma incontinencia inconsiderada, correu atrás d’ella pela taberna dentro, perseguindo-a até ao fim da loja, onde a agarrou, a teve por momentos na sua posse, dando-lhe palmadas nos hombros roliços, roçando-lhe a sua forte barba pelo pescoço, pela cara, por onde podia... Depois, impellindo-a de si, com a soberania orgulhosa de um possuidor, rematou n’uma respiração desafogada: —Diabo de moça! É o vivo demonio! Ó tia Zefa, deite lá um de meia canada. Beberam de vagar, sentados n’um banco de pedra, á porta da venda, abrigados pela fresca sombra de um antigo carvalho. Em seguida, tendo descançado sufficientemente, a Marianna tornou a montar ajudada pelo Fogueira e continuaram o caminho. * * * * * A estrada nova, ainda não estava concluida. As diligencias não podiam ir até Vianna. Dizia-se «que para a outra Senhora da Agonia talvez já fossem». Logo adiante da venda, onde tinham parado para beber, andava muita gente nos trabalhos. Uma longa fita de cascalho, bem espalhado, apresentava uma superficie aspera e eriçada, sobre a qual rolava pesadamente um enorme cylindro de pedra. Duas juntas de possantes bois barrosãos, vagarosos, firmes e iguaes, puchavam o cylindro. Adiante dos bois, á soga, com o corpo muito inclinado, ía um rapaz pequeno, de carapuça, com a aguilhada ao hombro, fallando distraídamente ao seu gado. Logo depois, um homem novo, cara de militar da reserva, tendo uma ponta de cigarro meticulosamente escondida detrás da orelha, arrastando com perguiça os tamancos, assobiava distraído, dizendo imperiosamente ao da soga: —É diabo, rapaz, não durmas, falla-me a esse gado. Por isso o rapasito, aguilhou com mais força os bois, que estenderam para diante as suas pesadas cabeças, contraindo fortemente os musculos, puchando com mais força. Logo em seguida, um pouco ao lado do leito da estrada, viam-se os britadores, quebrando o seixo a martelladas repetidas, para fazerem o cascalho. N’este officio rude, que exige um exagerado esforço dos braços e de todos os musculos do tronco, empregavam-se alguns homens aleijados das pernas. Porém, alem d’estes, havia mulheres que tinham um aspecto grosseiro e masculino, fortes seios entumecidos, e que trabalhando por empreitada, podiam ir dar de mamar aos seus filhos, que choravam deitados em canastras, á sombra benefica e fresca dos salgueiros, que marginavam a estrada antiga. Tanto estas mulheres como os homens aleijados, trabalhavam sentados no chão, cobertos com chapéus de palha baratos, que tinham comprado aos presos na cadeia da villa. O sol peninsular de agosto abrasava-os, obrigando-os a beber frequentemente tigelas de agua, que iam buscar a um ribeiro proximo. As suas conversas grosseiras, eram tocadas de palavras obscenas e sem pudor. Tinham um modo insolente de se exprimir, porque se julgavam mais livres do que os outros, que trabalhavam a jornal. O seu aspecto, pela continuação de se conservarem durante horas sentados no chão, com movimentos esforçados dos musculos dos braços e do tronco, era carecteristico e singular:—no peito havia uma forte depressão correspondente ao abaúlamento da columna vertebral; as linhas faciaes tinham uma contracção permanente de soffrimento, originada nos esforços potentosos; as narinas eram dilatadas em virtude dos movimentos respiratorios entrecortados e pelas largas expirações de compensação; o tronco e os braços tinham um desenvolvimento desharmonico em relação ás pernas; o semblante, pelo habito de olharem continuadamente para o chão, era triste e carregado, como deve ser o dos _casseurs de pierre_ de Courbet. Mais para diante, a estrada, era incompletamente aberta—andava-se n’um desaterro. As raparigas que transportavam terra aos cestos para o rio, íam e vinham formando um cordão movediço, como o das formigas no caminho de celleiro. As suas canções, umas vezes mundanas e que haviam aprendido com os cegos que passavam, outras vezes religiosas, ao Santissimo e ao Coração de Maria, que tinham aprendido com os missionarios, íam morrer n’uma toada monotona e ondeante nas quebradas da encosta fronteira. Quasi todas estas raparigas novas tinham, mais ou menos, um aspecto esfomeado e miseravel, a pelle grossa e avermelhada dos tempos diversos e inclementes que supportavam, os seus pés e os calcanhares gretados, as pernas estavam sujas de nodoas de terra, o olhar de algumas era tibio e doente, a côr de outras citrina e amenerrhoica, as mucosas dos beiços esfoliados e sem lhes transparecer a viva côr do sangue! Havia, porém, um certo numero d’ellas mais lavadas, que trabalhavam com mais alegria—eram as que passavam por namoros do senhor Alberto—o _apontador_, aquelle que as vigiava que as podia despedir, que exercia sobre todas ellas um absolutismo tyrannico! Era um rapaz forte, de uma boa corpulencia, a pelle tostada, as mãos plebeias, um farto bigode presumpçoso, uma cabelleira de terror, os dentes negros e os dedos queimados do fumo. Tinha andado a estudar em Braga muitos annos, com o fim de ser padre. Depois assentou praça no regimento de infanteria oito, para chegar a alferes. D’ali fugiu com a sobrinha de um marchante, com quem desejava casar, o que não concluiu, porque a perfida o abandonou para se amancebar com um clerigo. Por fim, Alberto, vendo-se desilludido e infeliz, ludibriado no seu amor, sem dinheiro, appareceu uma noite em casa de seu tio cirurgião, pedindo, como o filho prodigo da lenda, o esquecimento para os seus desregramentos desgraçados!... O tio cirurgião estava a cear a posta do bacalhau empurrada pelo cangeirão do berde. Era um homem sanguineo, e tomou-se de uma colera subita vendo o sobrinho, com quem gastara em Braga mais de cem moedas, de chapéu desabado e casaco roto, n’uma apparencia de malandro maltrapilho! Quil-o desancar com o estadulho das suas valentias que tinha ao canto da cosinha, onde ceava, e só depois da intervenção da Clementina, sua creada e amante de quarenta annos, a qual tambem ralhou muito com Alberto, é que o tio se tranquillisou, mandando-lhe dar uma posta de bacalhau. Mas, antes d’esta pacificação, levantando-se da lareira bebado, chegou-se ao pé de Alberto e berrou-lhe sobre o nariz, com voz temerosa e avinhada: —Seu burro e seu ladrão! Eu aqui a ganhal-o, a apanhar molhadellas de lobo por esses montes, e você nas pandegas de Braga! Pr’o Brazil é que ha de ir. Arre, _bá_ ganhal-o que eu tambem faço o mesmo. Mal aprendi a ler, e para arranjar esses campitos que tenho e que te hei de deixar a ti Clementina, puchei muito por este toutiço! Vá ganhal-o seu jumento, que eu ando ha quarenta annos a puchar pela cachimonia, se quero! E bateu formidavelmente na testa, significando que só d’ali tinham saído todas as idéas, com que medicamentava os conterraneos. Affirmava ter muita gabança em não haver estudado, nem no Porto, nem em Coimbra, como _os collegas_ que estavam na villa. Porém, passada esta colera do primeiro momento em que viu o sobrinho, veio a pensar mais rasoavelmente, e determinou conserval-o antes por ali. Como era influente eleitoral, arranjou-lhe facilmente aquelle logar na estrada «que sempre deixava um crusado por dia, sem fazer nada!» Ficou, portanto, Alberto, na situação de indicar ao director das obras, um nigligente e aborrecido que passava os dias a jogar as damas n’um botequim da villa, os homens e as raparigas que deviam ser admittidos ou despedidos dos trabalhos na estrada! Isto dava-lhe um incontestavel predominio, e por isso eram apontadas com uma intenção reservada _as moças_, de que elle mais parecia gostar. Alem d’isto, Alberto, adquiria diante dos seus sobordinados que estava incumbido vigiar, a attitude de um personagem saliente. Os aborrecimentos da aldeia, tornavam-n’o triste e fatal! A sua existencia estava vasia da convivencia dos amigos, que adquirira nas batotas de Braga! Passeava a largas pernadas meditativas e não fallava aos rapazes lavradores, que tinham andado com elle no mestre de primeiras letras! Em vez de se suicidar, atirando-se ao fundo de um poço, lançou-se na leitura perigosa de romances de sensação, que os mais celebres fabulistas nacionaes e estrangeiros tinham escripto, expressamente para lhe fecundar a imaginação irrequieta e sorumbatica! Assim vivia n’um mundo incomprehensivel de emboscadas, loucuras, amores de redempção, paixões nobres e lagrimijantes, homens que se recolhiam ao desespero do sacerdocio, mulheres que fugiam aos maridos para seguirem acorbatas, santos eremitas que tinham sido famosos salteadores!... Esta illustração inoculou-lhe certas vaidades litterarias, que elle revelou no _Bracarense_, timidamente, sobre a epigraphe de _Inspirações do Lima_!... N’essas paginas, aquellas verdes e ramorosas paisagens minhotas, eram apresentadas cheias de cavernas onde se escondiam donzellas vestidas de branco, fugidas dos castellos de seus paes nobres, com amantes desconhecidos e mysteriosos. Porém, como nem tudo n’esta vida póde ser ideal, Alberto saía por vezes de entre os frescos salgueiros, onde se recolhia hostilmente a ler os seus romances, e n’uma excitação aphrodisiaca, ía espreguiçar-se entre as raparigas que trabalhavam, apalpando impudicamente os braços carnudos e os seios volumosos d’aquellas de quem gostava mais!... Os trabalhadores, que observavam de longe estes desfastios do senhor Alberto, disseram uns para os outros, descançando encostados ás enchadas, applaudindo-o, cheios de inveja. —Isso, é levado de seiscentos diabos p’ras moças! * * * * * Foi ao chegar ao pé dos homens que faziam esta observação, que a egua do Fogueira, na qual ía montada a Marianna Ripa, parou subitamente, de um modo inesperado, n’uma posição desconfiada—a cabeça alta, as orelhas tezas e o olhar fixo! Depois estendeu o pescoço, inclinou para diante os pavilhões auriculares para reunir proveitosamente todos os ruidos e, dilatando-se-lhe demasiadamente as pupilas, conservou-se alguns segundos olhando firmemente para uma bandeirola que fluctuava... Todas as pessoas que presenciaram esta paragem repentina se tomaram mais ou menos de uma certa irresolução!...—os jornaleiros conservaram attitudes indicisas e indagadoras parando de trabalhar; as raparigas, que acarretavam cestos de terra, ficaram a distancia um tanto receosas; o Fogueira recuou dois passos e berrou «diabo de burra!»; Marianna, apesar de rapariga corajosa, lembrou-se que lhe tinham dito que a egua era amalucada e deu instinctivamente um grito!... O amante da Ripa, temendo que o animal lhe tomasse alguma manha, dirigiu-se-lhe de mão aberta com o fim de _lhe fallar_, mais familiarmente... Porém, n’este momento se não lhe furta instinctivamente o corpo, ía apanhando, sobre o ventre, uma valente parelha de couces! A esta parelha seguiram-se muitas outras em todas as direcções, dadas com desembaraço vertiginoso. A Marianna, agarrava-se tenazmente ao albardão para não caír. Os trabalhadores, com o fim louvavel de suster a egua, levantaram as enchadas e as picaretas, pondo-se diante d’ella, fazendo algazarra. Porém, este procedimento deu em resultado o multiplicarem-se prodigiosamente os pinotes e os couces. A Marianna Ripa caíu do albardão, de bruços sobre a terra, com as pernas á mostra, e a egua, de cada vez mais doida, tomou-se de uma raiva aggressiva contra os que estavam diante d’ella, e arremetteu com ousadia para elles, que lhe abriram condescendentemente caminho! E, enfurecida, enthusiasta, com o dorso arqueado, a barriga baixa, o pescoço estendido, as ancas salientes, as pernas abertas, principiou a fugir pelos campos fóra, para os lados do rio! O Fogueira permaneceu livido, pasmado, sem desembaraço, a olhar, vendo-a saltar paredes, saltar vallados, sebes e barrancos! A sua amante já se tinha levantado promptamente, toda vermelha, com medo que os homens lhe tivessem visto as pernas! Não se tinha maguado, pois caíra sobre a terra molle! Todas as pessoas que presencearam este facto, surprehendidas pela rapidez com que elle se passara, estavam sómente interessadas no galopar da egua, que viam correr, dando upas vistosas, com a cabeça alta e o rabo espalhado ao vento!... Antes d’ella desapparecer, calculou um jornaleiro com modo reflectivo: —Aquillo foi o dianho da mosca!... Os que ouviram esta opinião admittiram-n’a em silencio, continuando a olhar para a egua que fugia resolutamente, sem hesitações, sem duvidas, dominada por uma idéa infernal!... Lá no fim dos campos, estava o rio, a grande profundidade, revolvendo-se as suas aguas, com um fervor de corrente que se precipita por entre penedos! Tinha chovido muito nos dias precedentes e, por isso, o rio levava uma bravura excepcional!... A egua corria sempre, perdida, com os olhos esgazeados, as crinas ao vento, o corpo arqueado e foi precipitar-se do alto muro, caíndo estrondosamente na agua e fez _cachap_, levantando enorme poeira de espuma na amplitude do ar! Um lavrador, que andava na outra margem trabalhando pacificamente no seu campo, vendo isto, exclamou surprehendido: —Oh! com mil diabos, que lá se _spapou_! E logo que o Fogueira chegou esbaforido disse-lhe este individuo, gritando: —Ó hominho. Essa burra que caíu ao rio era sua? Ella era maluca por força! O Antonio Fogueira respondeu-lhe de um modo abstracto, com uma navalha aberta na mão: —É o demonio que a leve!... Se a pilhasse, abria-lhe a barriga de cima a baixo, com esta! Depois, lançando um olhar indagador para os dois lados do rio, perguntou: —Mas vocemecê viu-a? Onde diabo caíu ella? —Olhe!...—apontou para os rochedos que estavam mais abaixo. O Fogueira aproximou-se vagarosamente do logar designado. Uns lavradores e umas raparigas, que, ali perto, andavam no trabalho, perguntaram-lhe igualmente: —Você é dono da burra que ahi caíu? E à affirmativa do troquilha esclareceram: —Pois o diabo, parecia que trazia o demo no corpo. Atirou-se sobre esses penedos como um raio! Depois, o rio levou-a para baixo. Um dos trabalhadores acrescentou: —Aquillo era maluca, por força! O Fogueira repetiu, com rancor, mostrando novamente a navalha. —Tres mil demonios a arrastem pr’as profundas dos infernos! Se se não tivesse _spapado_, punha-lhe as tripas ao sol. Outro dos jornaleiros ainda esclareceu, apontando com a foicinha: —Isso é ahi um pôço que nem seiscentas pipas! Você faz lá idéa!... Um terceiro acrescentou: —Nunca ninguem lhe viu o fundo. Muita gente antiga, diz que o não tem; mas isso parece-me mentira. Um rapaz esclareceu: —Ha ahi cobras que é um inferno! O tio Domingos Briteira viu uma de mais de vinte varas. Vinte varas! que digo eu! De mais de quarenta. Ora! Se ella tinha o rabo de lá do rio e a cabeça de cá, quando elle a viu. Talvez essa cobra se enrodilhasse ás pernas da burra! O Antonio Fogueira despediu-se de um modo triste: —Com bem passem! Deixal-a ir. Deus os ajude. E na volta, quando chegou ao pé da Marianna Ripa, que o esperava, disse: —Então que tal?! O Rio Tinto prega-me uma burra maluca! A rapariga defendeu o primo: —Ora! Talvez elle não soubesse!... —Não sabia o diabo que o leve! Elle m’as pagará! VI Em Vianna, o Fogueira e o Rio Tinto, encontraram-se hospedados na mesma estalagem. Por causa do negocio da _burra_, invectivaram-se reciprocamente com injurias e, se não fosse o Fanfarra e a Marianna Ripa, que se interposeram, elles chegariam de certo ás do cabo! Por fim, o Rio Tinto, com uma viva colera no olhar, tirou da sua sacca de linho os soberanos que tinha ganho ao Fogueira e, atirando-os com despreso sobre a mesa, disse com altivez: —Ahi tens e não tornes a dizer que te roubei. _Bê_ lá como fallas p’rá outra _bês_. Põe n’esse raio de cara dois _carbões_ accesos, para saberes o que compras!... E ficaram, sem se fallar, olhando-se como dois homens que se odeiam! Á noite tiveram occasião de se encontrar, um em frente do outro, a uma mesa de _monte_, arranjada ao fundo da taberna, atraz de um tabique, por dois braguezes de longas barbas suspeitas e chapéus desabados... Estes homens, para attraírem os feirantes que por ali estavam, tinham-se abancado de um modo natural e simples, principiando a jogar entre si o _trinta e um_. Batiam insolentemente o dinheiro nas mesas, com o fim de se tornarem vistos, fallando alto e grosseiramente. Um almocreve, contractador de peixe para Traz-os-Montes, estava ali perto, e foi naturalmente attraído! Como ceára e se sentia na amplitude beatifica de um homem bem avinhado, foi-se aproximando, sorrateiramente, com certo desdem!... Carregando o chapéu para os olhos, sentou-se junto dos jogadores, tomando _n’aquillo_ um interesse puramente mental!... A este curioso, juntaram-se outros, attraídos por iguaes motivos, chegando-se todos á formiga, n’um desleixo simulado, sem apparencia de proposito difinido, com as mãos nos bolsos e o cigarro ao canto da bôca... E, quando a roda era já bastante compacta, um dos jogadores, sem dizer palavra e fundando-se de certo n’uma convenção anterior, atravessou o baralho no meio da mesa e, tirando mais dinheiro do bolso, contou nove corôas em prata! Depois, com outras cartas que tinha n’um bolso interno da sua jaqueta de alamares, principiou a baralhar demoradamente, lançando em volta um olhar firme e carregado! O companheiro, sem lhe dizer palavra, abriu um cinto que trazia afivelado sobre o estomago, mostrando-o cheio de libras, e tirou tres, que ajuntou ao dinheiro já contado, e disse com um modo esbanjador, n’uma voz imperiosa e rouca: —São quatro _sovranos_ de monte! Os indiferentes, ao verem isto, sentaram-se logo nos bancos de pau, acotovelaram-se contra a mesa, olhando avidamente para as cartas e para o dinheiro! Ao longo de todos elles passou o calefrio das sensações poderosas e commoventes! O jogador, que se preparava para fazer as pagas, collocou sobre o baralho, atravessado na mesa, as tres libras em ouro, espalhou a prata diante de si, misturando-a com certo despreso e, carregando mais para os olhos o seu chapéu de abas largas disse de um modo vago: —Eram precisas ahi quatro croaças em _covre_... Então, um rapaz novo, sem barba, muito magro e amarello, com o tronco osseo apertado no seu fraque velho muito coçado nos cotovelos e lusidio nas costas, pegou nas quatro corôas, que o jogador lhe deu por cima do hombro. Com passo ligeiro e leve, dirigiu-se ao taberneiro, que estava medindo quartilhos, e pediu-lhe n’uma voz urgente, perturbada, com inflexões nervosas: —Tio Domingos... Estas croaças em _covre_!... Collocou-lh’as sobre o mostrador humido de vinho. O tio Domingos, com o seu ar de borrachão pantagruelico, perguntou-lhe usurariamente interessado: —Então elles hoje... ein Marquinhos?! Marcos, amanuense do governo civil, respondeu com muita pressa, contente, encolhendo-se em si mesmo, passando n’um frenesi, o seu dinheiro de uma mão para a outra, n’um estado de impaciencia quasi sensual: —Sim, senhor, _vão fazer_... São aquelles dois de Braga, o Barroso e o outro que eu não sei como dianho se chama... —Timotheo... O Timotheo da Carcova... Quem diabo não conhece o Timotheo?! —Sim, senhor, um nome assim arrevezado, o Timotheo... Mas ande depressa, tio Domingos!—pediu com insistencia, com a sua voz aflautada, de um timbre choroso.—De-me esse troco que estão á espera! O Barroso não _se volta_, emquanto lhe não levarem _covre_! O taberneiro disse: —Olha, vae-te Marquinhos, que eu levo já. Diz-lhe que eu levo já. E depois de ter contado meticulosamente o dinheiro, escolhendo o mais falso, foi elle mesmo pôl-o sobre a mesa do jogo. As suas mãos plebeias e sujas íam cheias de patacos esverdeados, de uma côr venenosa, levando ao mesmo tempo, de baixo do braço direito, um pequeno mialheiro, que collocou em cima da mesa, dizendo n’uma voz chorosa e comica que fez rir: —_Aqui pr’ás bemditas almas!..._ Esta pequena caixa de folha com uma fenda na tampa superior, era onde os jogadores teriam de deitar os baratos! Só depois d’isto, quando em volta da mesa estavam muitos individuos com um olhar desvairado e o dinheiro apertado freneticamente na mão, á espera do momento de jogar, é que o Barroso tirou quatro cartas do baralho, collocando-as nos respectivos vertices dos angulos de um quadrilatero que traçara mentalmente... Em seguida, accendeu um cigarro, piscando os olhos com as fumaças e disse: —Agora, meus homes, é metter-lh’o sem medo!... Chegára o tetrico momento dos primeiros palpites! A expressão de todos os semblantes era mais viva e as respirações abrandaram-se momentaneamente. Duas vélas de cebo, em duas bogias de folha, espirravam sobre a mesa, alumiando, com fraca luz, aquelles rostos sugados! O fumo espesso e azul, o cheiro nauseabundo do peixe que se estava frigindo, envolviam o grupo dos jogadores, que se entendiam por uma linguagem breve. Os cigarros accesos, collocavam n’aquellas pelles escuras e nas barbas pretas, pontos incandescentes! E cá fóra, na loja humida da taberna, o _ou-ou_ prolongado das vozes dos feirantes pedindo mais vinho e praguejando, continuava-se n’um unisono monotono e ondeante, de momento a momento cortado pela voz do banqueiro, o Timotheo da Corcova, que dizia com arrogancia, «jógo.» Era quasi manhã, quando _isto_ acabou. O Fogueira _apontou_ durante toda a noite, de um modo accintoso, contra o Rio Tinto, e esteve sempre com uma sorte de burro! Fartou-se de ganhar dinheiro, os montes de corôas iam crescendo diante d’elle e já lhe atulhavam os bolsos. Todos os outros _pontos_, embirrados com isto, seguiam o partido do Rio Tinto, que estava sem sorte nenhuma, e perdiam com elle! Em virtude d’isto, quando eram cinco horas da manhã, estavam _á lisa_, achando-se o dinheiro no cinto do Fogueira que os _tinha alimpado a todos_! Antes da meia noite, a taberna ficara vasia de gente, que tinha saído para a romaria, com fim de ver o fogo! Na rua passavam continuadamente descantes á viola. Os que perdiam ao jogo, o Rio Tinto, o Fanfarra e todos se indignavam pronunciando insultos e obscenidades contra os das esturdias... O Fogueira bem comprehendia que eram injurias contra elle, por lhes ganhar o dinheiro, e ria-se ás gargalhadas, fazendo chacota e guardando com escarneo os soberanos que os outros perdiam. Por fim, quando amanheceu, o Barroso e o Timotheo da Carcova, _encontrando-se pela primeira vez, no seu dinheiro_, depois de uma noite inteira de jogo, durante a qual houve um momento em que a banca perdia mais de vinte moedas, disseram com certo desafogo: —Contra esta sorte não ha que fazer! Estamos desforros... E levantaram a banca sendo já dia alto. O Fogueira ganhava um bom par de moedas! Impiedoso e triumpante, principiou a contar ostentosamente o dinheiro diante de toda a gente. Batia as libras sobre a mesa, fingindo por troça, que desconfiava que ellas fossem falsas. Voltando-se para alguns dos que as tinham perdido perguntou com modo achincalhador: —Os sobranos são bôs, ó rapazes? Vocês viriam para a feira com dinheiro falso?! Não vinham; porque haviam de ter medo ao _demenistrador_. O que alguns são é bem bonitos, de cavallinho. Hei de os guardar para lembrança d’esta noite. Os que tinham perdido, conservavam-se n’uma indifferença fingida, mas hostil... Deitados por cima dos bancos, como dormindo, olhavam por baixo dos chapéus desabados. O Rio Tinto e o Fanfarra tinham uma expressão amarga e vingativa, affastados do Fogueira, fumando cigarros e olhando para elle com um rancor intrinseco! Nos seus rostos severos e contraídos reconhecia-se-lhes mais ferocidade do que tristeza! No dia seguinte, o Antonio da Engracia, percorreu com a sua amante todo o campo da Agonia, onde era a feira. Sempre que estavam perto d’elle o Rio Tinto e o Fanfarra, que o olhavam de travez, com modo ameaçador e reservado, puchava por dinheiro com escarneo! N’esse dia satisfez á Marianna muito mais do que as suas exigencias de mulher vaidosa pediam! Comprou-lhe uns brincos caros e um par de argolas de cabacinhas, na barraca do Ferreira, um ourives do Porto. Nos mercadores mandou cortar um saiote vermelho do melhor panno e umas roupinhas chibantes. Comprou-lhe lenços de seda de furta-côres e chinellas de verniz! Quando pagava, affectava sempre gestos esbanjadores, que feriam os que o viam!... Porém, esta intenção mostrou-se com verdadeira dureza na feira do gado, onde principiou a examinar detidamente _a melhor_ egua, para a comprar! Era um animal vistoso, pelo qual um gordo ecclesiastico minhoto pedia vinte e cinco moedas! O Fogueira chegou-se á egua, assentou-lhe duas palmadas na anca azevichada e fel-a estremecer. Puchou lhe, em seguida, pelo rabo, obrigando-a a estacar firmemente... Examinou-a nas mãos e nos pés até aos cascos, para ver se estava _puchada_. Observou-a na dentadura, levantando-lhe a cabeça e affastando-lhe os beiços polposos com o fim de lhe calcular a idade... Passou-lhe os dedos diante dos olhos, para lhe experimentar a vista... Finalmente, quiz-se mostrar um troquilha experimentado, para que o não enganassem _outra vez_!... O ecclesiastico, dono da egua, seguia discretamente, com um sorriso gabosola e um olhar entendedor, o exame do Fogueira, fungando estrondosamente a sua pitada de _meio grosso_. O amante da Marianna Ripa, com a faixa vermelha apertada no ventre e o chapéu de abas largas inclinado para a nuca, perguntou-lhe em voz alta e com pronuncia insolente; pois sabia que era ouvido pelo Rio Tinto que o cocava de perto: —Ó senhor padre! Ella é maluca? O sacerdote, João Pitança, á pergunta inesperada, e cuja intensão e alcance não podia comprehender, respondeu com uma gargalhada sonoramente timbrada: —Ah! ah! ah!... Maluca! Home essa! Ah! ah! ah!... Como diabo ha de ser maluca a melhor egua da feira?! Ah! ah! ah!... Só essa pergunta me faria chorar de riso! Se foi por chalaça que o dissestes, fizeste-me rir. Ah! Ah! Ah!... Affastando-se da sobrinha—uma rica moça de bons seios e boas ancas!—que se conservou a distancia com o guarda sol pendente das mãos crusadas sobre o ventre, aproximou-se do animal, bateu-lhe confiadamente na anca e chibatou-a com a sua varinha de marmelleiro para ella dar reviravoltas... —Ora maluca!—continuou. Que demonio de lembrança a tua! Leva-a a contento meu rapaz! Pagas-ma p’ra outra feira se quizeres! O Fogueira respondeu-lhe n’um tom de chacota, sempre com o fim de offender o Rio Tinto, que o continuava a escutar n’uma desattenção simulada: —Não, que ha por ahi muito quem queira enganar a gente vendendo burras malucas... Ha muito ladrão com cara de gente! O senhor abbade não faz idéa! —Abbade, não—emendou o ecclesiastico. Um simples padre, meu rapaz, um simples padre. Mas quanto á egua pódel-a levar, que é trigo limpo. Não tem um argueiro, pódes ver á vontade—concluiu o sacerdote, com o seu ar de homem bem comido e bem bebido, assoando-se fortemente ao lenço de panninho que desdobrára completamente ao ar! Mas o melhor era montal-a—observou. Montando-se acabavam todas as duvidas. Se o Fogueira queria ver, _corria-a_ elle mesmo, padre João Pitança, ali n’aquelle campo da Agonia, que era bom para isso. Não pensasse o comprador que tinha n’isso a menor duvida. Ou então, se antes queria, o Fogueira que arranjasse um picador da sua confiança, e veria como a egua se vispava por ali fóra, que nem um corisco! O amante da Marianna Ripa gostou d’aquelle desembaraço do ecclesiastico, e com ar galhofeiro e atrevido de homem que tem o bolso bem cheio de soberanos, disse-lhe: —Então monte lá v. s.ª primeiro. Tamem quero ver a sua perna. O padre João não hesitou um momento. Apertou melhor a cilha á egua e as correias das suas esporas. Com a mão esquerda nas redeas, repuxou-as de certo modo, para o animal enfeitar a cabeça. Alisou-lhe as crinas, passou-lhe a mão direita na anca, metteu o pé esquerdo no estribo de pau e com um balanço de homem acostumado, caíu no selim de um modo firme e airoso, como um lanceiro! Em seguida, com o seu riso aberto, de camponez vaidoso, disse para os troquilhas que o observavam com interesse: —Isto é fino meus homes!... E esporeou com habilidade a egua, para a obrigar a algumas reviravoltas, que abriram um largo circulo no povo circumjacente. Depois deu a primeira envestida na carreira, só para obrigar o animal a parar de repente; mas voltou ao logar d’onde partira, dizendo para o Fogueira: —É cousa boa, meu rapaz! Cá não se engana ninguem! Não sou d’essa gente, nem a quero na minha companhia—pronunciou com vaidade. As abas do seu comprido casaco sacerdotal, caíam dos lados. Com as pernas firmes, calculadamente encostadas ao ventre da egua, conservava-a n’uma vaidosa impaciencia de partir. Carregou o seu chapéu de abas largas para lhe não voar com o vento e foi-se chegando a passo, para o sitio onde se devia correr. A cabeça do animal, firme e altiva denotava certa magestade e orgulho!... O padre João Pitança retesava-lhe com intelligencia as redeas, para a egua se enfeitar, e esperava o momento opportuno de estar bem desempedida a _carreira_... Depois, quando esse momento chegou, partiu n’um travado meudo e veloz, diante de centenares de espectadores, que o viram sumir-se por entre uma atmosphera de poeira dourada pelo sol poente, o que lhe dava, tanto a elle como á egua, um volume indiciso e esfumado! D’ali a poucos minutos voltou, a galope rasgado, e estacou firme e de repente, no mesmo ponto d’onde tinha partido! O Fogueira confessou accenando com a cabeça: —Sim, senhor! Uma boa perna, senhor padre! Outro feirante disse: —E rica mão de redea! O ecclesiastico surriu-se com satisfação. O troquilha montou tambem o animal e correu-o. Por fim concordaram no preço de vinte e tres moedas, que o Fogueira pagou logo. * * * * * Todas as circumstancias impelliam os maus figados do Rio Tinto para um rancoroso procedimento de vingança! A pisporrencia do Fogueira ao gastar dinheiro, a sorte de burro que tivera ao jogo, as suas provocações com palavras e com gargalhadas de chacota, faziam-lhe remoer as entranhas lá por dentro, dando-lhe certa gana de o abrir de meio a meio! Principiou a conhecer que lhe entrava na organisação um appetite infernal de se vingar do amante da Ripa! Conhecia, por uma reflexão interior, que a cabeça se lhe estava enchendo de idéas perversas!... O Fanfarra, logo que elle lhe disse que tinha vontade de ter uma _aquella_ com o Fogueira, tomou abertamente o mesmo partido, e n’uma intimidade infame, urdiram um plano para se vingarem das desfeitas que tinham recebido durante o dia! Poderiam sair-lhe ao encontro, dar-lhe uma grande coça, a ponto de o deixarem estendido sem sentidos no meio da estrada, e roubar-lhe o dinheiro que levasse, que ainda havia de ser um bom par de moedas. Podiam porque eram dois homens destimidos, não tinham escrupulos e, talvez, já não fosse a primeira que faziam!... Mas o peor era a Marianna Ripa, que de certo acompanharia o seu amante!... Era preciso desembaraçarem-se d’ella por qualquer fórma!... O Rio Tinto conhecia bem _sua prima_... Era uma rapariga desembaraçada, que tinha tanta coragem e resolução, como qualquer d’elles... Dizia-se que envenenara um padre, com quem estivera amancebada dois annos! O primo troquilha tanto não acreditava n’este boato, que tinha sido a melhor testemunha de defeza da rapariga, o que muito concorreu para a livrar da cadeia onde esteve oito mezes, por causa d’este negocio!... —Já tu _bês_ que a conheço muito bem, e que até ella tamem póde _entrar na cousa_—concluiu com pronuncia intelligente... Por isto o Rio Tinto mesmo é que fallou á Marianna, que teve alguma difficuldade, alguns escrupulos em atraiçoar o seu amante. Mas elle e o Fanfarra logo lhe rebateram todas essas asneiras dizendo: —Não sejas tola... Que tens a ganhar com isso!?... Elle deixa-te por ahi qualquer dia e ficas a chupar no dedo!... Depois de batalharem algum tempo com ella, convenceram-n’a... Que diabo!... O Fanfarra e o Rio Tinto, a final de contas tinham rasão. Isto _de amigos_, quando menos se pensa, arrumam para o canto uma pobre rapariga, como se faz aos sócos velhos que não prestam. Ella bem tinha visto o que acontecera com _outras_... Homens... trazem ás vezes muitos trabalhos. Aquelles oito mezes de cadeia, por causa da morte do padre João de Pinho, tinham-lhe aberto muito os olhos. Estivera para ir por uma barra fóra e, em boa verdade, sem ter tido grande culpa... O resalgar que deitára na malga de caldo com que o padre tristemente se envenenára, não era para o matar a elle, que até era um raio de home de quem gostava; mas para dar cabo da Tonia Salgada, um pedaço de coira, por quem o _ladrão_ andava baboso, esquecendo-a ingratamente a ella, que tanta borracheira lhe aturara, durante dois annos! Não tinha peso nenhum na consciencia por esta morte!... O ecclesiastico é que tinha pegado, por sua livre vontade, na malga destinada á Tonia... Marianna teria ido degredada, se não fosse seu primo, que jurou diante do senhor _demenistrador_, primeiro, e, depois, diante do senhor juiz, na casa d’este e no dia da audiencia «que na occasião da tal morte, a Marianna, estivera em casa d’elle a sedar linho até de noite e lá comera e dormira». Tambem o podia jurar sem receio; porque ninguem a tinha visto em todo esse dia, que passára escondida no palheiro do padre... á espera. A Antonia Salgada já vivia de portas a dentro com _o seu amigo_, já lhe fazia a comida, chegando ao desaforo e á pouca vergonha de jantarem á mesma mesa, como dois casados!—distincção que a Ripa nunca recebera, nem nos seus melhores dias, da parte d’aquelle excommungado, que devia, por força, estar a arder no inferno! Marianna soube isto; porque os espreitára. N’esse instante desesperado, veio-lhe uma impulsiva idéa de vingança!—o coração deu-lhe um baque de justiça, um salto dentro do peito, como quem diz «dá cabo d’aquelle diabo de lesma!...» Pelo muito particular conhecimento que tinha da casa do ecclesiastico, sabia que, embrulhado n’um papel azul, entre livros guardados n’uma caixa de pinho, estava um pouco de veneno de ratos, que o sacerdote comprára na villa. Entrou um dia lá na casa, quando todos estavam para o campo, e tirou o papel azul... Depois estabeleceu o seu plano de desforra, que poz em pratica d’esta maneira: Escondeu-se, uma manhã cedo, antes do dia romper, no palheiro do padre João, que era paredes meias com a cosinha. Levou um naco de brôa e uma racha de bacalhau; porque contava passar lá o dia inteiro. Durante toda a manhã, divertiu-se, a observar a tronga da Antonia, andando no preparo do jantar, para o que até matou a melhor gallinha! Uma cousa assim!... era de morrer de riso! Se a quizessem ver, como se rebolava por aquella cosinha! Parecia a dona da casa, cantarolando o _bemdito_, as _modas do Coração de Maria_ ensinadas pelos ultimos missionarios, e o _Afasta janota, arreda_... moda dos cegos que tinham estado na ultima romaria do _Soccorro_. Ai que raiva se lhe apoderou do coração! Não sabe como se conteve, que se lhe não atirou ali mesmo ao gasganete, fazendo-lhe deitar uma lingua de palmo!... Por fim, quando no relogio da igreja deram as onze, a bebeda tirou da caixa uma toalha lavada, estendeu-a na mesa, sempre cantando com voz esganiçada. Depois encheu duas malgas de caldo, poz a gallinha e o presunto n’uma torteira de barro e saíu para chamar _senhor padre João_ o seu—rico senhor padre João!—que andava na horta, a regar... Foi durante os minutos d’esta ausencia que Marianna saíu do seu esconderijo e deitou todo a resalgar na malga que presumia ser a da sua rival! Pouco depois chegou o sacerdote, de tamancos, correndo atraz da moça pela cosinha dentro, com muito estrondo! Ella, a delambida, a fingir que fugia cheia de medo!... Seguiu-se um momento soturno, em que gosou, no meio de uma angustia ciumenta, a sua proxima, cruel e decisiva vingança! Pois aquelle alma de damnado, ali mesmo nas suas barbas, não se vae pôr a andar atraz da moça, não a agarra pela cintura, dando-lhe beijos e abraços, não atira com ella ao chão, com relinchos de cavallo! N’este momento, Marianna, achou mais repugnante o padre do que a tronga! Emquanto durou esta expansibilidade animal do ecclesiastico, ella soffreu os finos acicates do ciume, morderam-n’a até ás entranhas. Sentia-se espoliada n’um beneficio que lhe pertencia! Em vez de ser a ella que o malvado dava todas aquellas provas de amor, via-se reduzida a espreitar por uma frincha da porta e a presenciar enertemente tudo aquillo, Santo Nome de Maria! Teve tentações de entrar na cosinha, pegar n’um machado que estava ao pé da lareira e dar com elle na cabeça de ambos! Um ladrão e uma desvergonhada d’aquellas! A Ripa sentia-se com animo de os abrir, a um e a outro, e de lhes trincar o coração!... Mas uma voz interior de contentamento e de saciedade, apregoava-lhe o seu proximo triumpho e aconselhava-a a conservar-se escondida, como estava!... Aquella molengona, que lhe roubava a felicidade, dentro em pouco sentiria horriveis dôres nas entranhas e havia de estorcer-se n’aquelle chão terreo da cosinha, como um demonio escorraçado pela agua benta!... Depois, o padre e Antonia, foram para a mesa e o maldito troca de proposito as malgas só para dar a melhor,—a de pó de pedra, a que era d’elle e que nem ás visitas offerecia!—á lambisgoia, que a acceitou toda derretida! N’este momento caíu-lhe a alma aos pés! Teve um movimento expontaneo de amor, de generosidade ou de compaixão, e chegou a pôr a mão na caravelha, para lhe ir arrancar da mão o veneno! Todo o seu corpo estremeceu, desde as unhas dos pés até á raiz dos cabellos, quando o padre João disse para a Antonia com ar interrogativo e saboreando o caldo com estalidos gulosos de lingua. —Ó moça, tu deitaste assucar no caldo!... Ao que ella respondeu, toda chieira: —É porque ó senhor, parece-lhe dôce tudo que eu façe. Marianna perdeu parte da consciencia e da vontade, ficando aniquilada, entorpecida, desorientada, entre a idéa feroz de uma vingança justa e o remorso, ou receio, de um crime que seria descoberto e punido! Não teve resolução, nem desembaraço para nada! O ecclesiastico bebeu a malga quasi de uma assentada, depois de ter comido a gallinha, com duas enfusas de vinho rascante. A Ripa deixou-se caír desfallecida no chão terreo! O sacerdote, acabado o jantar, saíu para ir levar _o Senhor_ a uma moribunda. A amasia, tambem foi acompanhar Nosso Pae!... Ficou ella, só, dentro d’aquella casa, entregue ao proprio cerebro! Um silencio tenebroso cercou-a n’este terrivel momento!... N’uma especie de spasmo e de embrutecimento cheio de medo, foi-se metter debaixo da palha, tapando os ouvidos para nada escutar! Que medonhas horas ali passou, sob a impressão accusadora de todos os factos que n’esse dia a interessaram. Horas depois, d’ali mesmo, ella ouviu o alarido da freguezia, correndo em gritos a casa do ecclesiastico, quando, quatro homens de béca, o traziam pelos caminhos n’uma padiola, com a batina e o roquete todo rasgado! Tinha tido os primeiros engulhos do envenenamento, quando ministrava á moribunda a Extrema Uncção, cercado do respeito submisso dos fieis ajoelhados em volta! Depois, principiou a sentir-se mais afflicto, sentou-se sobre uma caixa com os santos oleos na mão, e, como as afflicções cresciam assustadoramente, suspendeu com intelligencia a applicação do sacramento! Nem escalda-pés, nem mesinhas receitadas pelo cirurgião Manco, poderam produzir o beneficio desejado e, mesmo assim vestido sacerdotalmente, os homens que tinham acompanhado o _Santissimo_ o trouxeram n’uma padiola para casa e o poseram, sobre a cama, já sem falla! Os soluços, as ancias, os vomitos, os gritos de dor que elle ainda teve, até ao momento de morrer, eram uma eterna condemnação, para a negra alma peccadora de Marianna Ripa, que os ouvia, escondida debaixo da palha! Se tivesse comsigo uma navalha, durante aquelles instantes infernaes, tinha-a enterrado bem funda no proprio coração, para se punir! Tamanho era o seu arrependimento e a sua contricção, n’este momento unico, que desejou morrer ali mesmo de uma morte repentina, bem medonha e horrenda! Mas depois, alta noite, desapavorou-se mais, escutando as conversas vulgares do sachristão com os outros homens, que ficaram a vigiar o morto e conversavam, riam e escarravam alto, já muito bebados! Então saltou para os campos pelo postigo do palheiro e fugiu, indo refugiar-se em casa do Rio Tinto, a quem contou tudo, para se accusar. O primo serenou-a dizendo-lhe: —Mas elles não te viram, não, rapariga? —Não viram. Ninguem sabe que fui eu—respondeu soffocada. —Então bem, não tenhas medo. Mas a justiça sempre a prendeu, por simples desconfianças, fundadas em que foi encontrado no chão da cosinha do padre, um tamanco que lhe pertencia. Porém, como fôra creada na casa, facil foi explicar este achado... O Rio Tinto, com o seu sangue frio é que a livrou da justiça, jurando a pé junto, como um cavallo, que Marianna Ripa estivera todo o dia em casa d’elle a sedar linho! Nunca poderia esquecer este grande serviço que o primo lhe fizera! Sentia-se-lhe presa pela gratidão, e quando elle lhe pediu para não ir com o Fogueira prometteu-lh’o, promptificando-se ao mesmo tempo a saber ao certo o caminho que o troquilha seguiria de Vianna para casa. Mas ainda assim, deve dizer-se: impoz como condição, pediu muito ao Fanfarra e ao Rio Tinto, que o não matassem, que não fizessem mal ao rapaz. Disculpava-o: era um estouvado, um espanta lobos por acaso, mas tinha um bom coração—rapaz de franquezas, nada era d’elle, tudo dava! O Rio Tinto serenou-a: não o queria matar—sómente desejavam alivial-o da chelpa que lhe havia de fazer peso no cinto. Para que queria elle, um rapaz solteiro e sem filhos, tanto dinheiro, como o que lhe dera a mãe, da venda dos campos, e como o que lhes ganhára ao _monte_?! De mais a mais era um burro tão feliz, que até arranjára o _sustituto p’rá tropa_, por quinze moedas, quando, todo mundo, gente mais pobre, tinha dado vinte. É bem certo dizer-se que a agua corre sempre para o mar e que, quando se é feliz, é-se feliz a valer! Aquillo estava mesmo a pedir uma alma de Deus que lhe tirasse a _chelpa_!... A rapariga concordou. Receberia tanto como elles, pelos esclarecimentos que obtivesse. Porém, insistiu, ainda uma vez, com afinco e honestidade, em que não o matariam, em que o haviam de deixar ir em paz, depois de lhe tirarem _o que levasse no cinto_!... O Fanfarra, porém com um rosto ingenuo e sério, observou: —Isso lá, tamem... que não tire elle pela gente!... Quando lhe pedirem _o milho_ que o ponha e que não bufe... Se assim quizer que vá com seiscentos diabos, que ninguem lhe quer a pelle para tambor. O Rio Tinto observou sensatamente: —Ah! elle vendo que são dois resolvidos, não se ha de ir pôr com _aquellas_... Olhem que isto de estar assim de noite, no meio de um caminho só, onde nem todos os santos lhe podem valer se quizer pimponices... faz respeito. E convieram em que, se elle se quizesse fazer fino, lhe iriam aos untos, sem mais _aquellanças_. O melhor era elle deixar-se de asneiras; porque lhe tinham uma sêde... lá do fundo. O Rio Tinto confessou ao Fanfarra, quando não estava presente a Marianna Ripa, que com o Fogueira ainda desejava ajustar _umas contas velhas_ e que talvez fosse esta a occasião... E com um sorriso medonho, de copo em punho, observou: —Isso lá, se não dá os sobranos depressa, leva uma tapona real. —Melamos-lhe aquelle coiro!—acrescentou o outro com intimativa. Chegaram a combinar mais detalhadamente no modo como procederiam. Não ignoravam que o Fogueira era têso, mas tambem não lhe tinham medo. Eram dois. Bem armados, com as choupas dos seus páus argolados e com navalhas de ponta e mola, que sempre usaram trazer no bolso interior da jaqueta de briche, julgavam-se temiveis. No entanto, para não serem conhecidos, cobririam as caras barbadas com lenços esboracados no sitio dos olhos e da bôca e fallariam na voz tôrva dos salteadores das lendas! O caminho, depois dos esclarecimentos da Ripa, era mesmo a calhar, e o Rio Tinto conhecia-o perfeitamente. Por isso elle mesmo é que determinou o sitio em que poderiam esperar o Fogueira. Era uma encruzilhada, onde havia uns carvalhos que, nas noites sem luar, tinham o volume incomensuravel das sombras phantasticas e pavorosas! O amante da Marianna passaria ali pela meia noite, pouco menos... A escuridade, o sitio e a hora, concorriam para o effeito d’esta scena de romance theatral. Só faltava a capa, o _sombréro_ e o bacamarte para ser um quadro de Goya!... Os salteadores ensaiavam-se com antecedencia: sairiam de repente de entre os velhos troncos nodosos e, mandando fazer alto, diriam imponentemente com voz soturna: «Seu amigo, ponha ahi o que leva!» Se o desse por bem e logo, deixavam-n’o com os demonios; se quizesse fanfar tirar-lhe-íam o dinheiro á força e moer-lhe-íam o canastro. Disse-o claramente o Rio Tinto com o seu rancor de mau homem: —Se bufa paga-mas todas juntas. Á gana que lhe tenho, ponho-o molle como uma bosteira de gado! O bocado maior, não se ha de ver! VII O Antonio Fogueira saíu, ao escurecer, de Vianna, com idéa de chegar, na manhã seguinte, á sua freguezia, fazendo, assim, todo o caminho de noite. Não havia luar e as estrellas, quasi tão vivas como nas limpidas noites de inverno, diffundiam na amplidão luz sufficiente para, a pequena distancia, se poder apreciar o vulto das pessoas, a grandeza das arvores e dos penedos proximos. Quando elle saíu de Vianna, com muita gente conhecida, dispediu-se da Marianna Ripa até á proxima feira dos nove. Pelo caminho, os seus companheiros, foram dirivando para outros destinos e, quando era pela volta da meia noite, o Fogueira caminhava só, destacando-se, no silencio ambiente, como uma côr viva se destaca n’um fundo escuro, o saliente resfolgar da sua egua, que trotava n’um passo moderado e cadente, batendo com as ferraduras nas pedras avulsas do caminho. A estrada que seguia era estreita, orlada de arvores copadas, o que augmentava a escuridão... O Fogueira, apesar de não ser medroso, sentia, em volta de si, um certo vasio que lhe dava uma sensação de desamparo... de abandono!... Inconscientemente principiou a pensar n’um mau encontro, a lembrar-se que lhe podiam vir ao caminho alguns ladrões, se por acaso soubessem que o seu cinto ía tão bem recheado de soberanos! Quando se surprehendeu dominado por estas idéas extravagantes, sorriu incredulamente... Bem sabia não haver por ali ladrões, e que sómente, uma ou outra vez, se roubava uma poçada de agua, para valer a algum campo de milho, que se mirrava de secura. Mas dado mesmo o caso que lhe apparecesse um ou dois ladrões!? Não era elle um dos melhores jogadores de pau das feiras minhotas?! O seu lodam não tinha uma choupa de romper um peito?! A sua egua não era bastante impetuosa, para abrir caminho por entre um regimento de soldados, e bastante fugideira, para não ser pilhada pelo melhor cavallo a toda-a-brida?!... Porém, como lhe veio esta idéa esquisita de se lembrar de ladrões?! Como diabo lhe deu a caturrice para ali?! Não sabia, mas a verdade é que lhe desagradou o encontrar-se a pensar em _taes amigos_, quando era certo, que tinha o cinto atulhado de dinheiro... No momento em que elle se sorria destas asneiras, chegava a um pequeno largo, onde havia uns carvalhos antigos, cuja ramagem copada lhe deu facilmente uma impressão amedrontadora, como a de uma igreja, ou de um cemiterio que, n’uma estrada rural, se encontra desprevenidamente! O silencio aqui era simplesmente interrompido pelo som metallico de uma pequena fonte, que pingava junto de um muro. O Fogueira sentiu-se n’este momento mais isolado, e, talvez, em virtude da impressão desagradavel que este sentimento de desamparo lhe causou, attendeu com mais intelligencia a tudo que o cercava. Um tremor incaracteristico, mas energico, irradiou-lhe em todo o corpo; porque dois homens, dando largas passadas de tragedia, de paus argolados levantados ao ar, se lhe opposeram com arrogancia, dizendo com voz soturna: —Faça lá alto, ó seu amigo! A egua susteve-se logo, desconfiada, com um olhar inquieto, a cabeça levantada, as orelhas espertas! O Fogueira estremeceu involuntariamente, um formigueiro rabiou-lhe ao longo da espinha, ficando n’uma especie de spasmo, depois de ouvir aquella voz rouca, avinhada, uma voz de timbre seu conhecido, mas que, n’este momento, não podia dizer de quem era... Toda esta scena rapida e inesperada, deu-lhe uma idéa pavorosa de cousa sinistra, da intervenção do demonio nos successos da sua vida, de acontecimento só explicavel em historias de bruxas!... Porém, recuperando a serenidade, reconheceu que eram realmente dois homens mascarados, que se lhe oppunham no caminho e que deveria por força ser, para o roubarem... Seguindo o proprio instincto, tirou o seu pau ferrado de entre a perna e o albardão, levantou-o para elles com arrogancia e dizendo «qual alto, nem meio alto!» esporeou energicamente a egua, para romper com velocidade por entre os dois mascarados. O animal, que era fino e sensivel, deu um corcovo, indo esbarrar-se contra uma corda que estava intensionalmente atravessada no caminho e, o Fogueira, ficou desmontado; mas com tanta felicidade que, quando os aggressores íam a caír sobre elle, encontraram-n’o de pé, fazendo-lhes face, com o páu em guarda, emquanto que, a distancia, se ouviam as ferraduras da sua egua batendo nas lages da calçada. Este momento de silencio foi tenebroso! Havia dois homens contra um, na escuridade indicisa de um caminho orlado de arvores, que se definiam no ar com os seus enfolhamentos volumosos e espessos! O Fogueira esperava um ataque simultaneo da parte dos salteadores, e já calculava defender-se, de costas contra o muro, sustentando-se assim até poder _bimbar_ o primeiro, para depois se encontrar com o segundo que accommetteria com força. Mas um dos mascarados, baixando o páu com desdem, disse n’uma voz trocista de compaixão, para lhe mostrar que o tinha comprehendido: —Home, não te faças fino, que te enganas. Deita ahi a marmelada que levas no cinto e vae-te c’os demonios, se não póde-te saír a cousa torta! Esta intimação ironica e despresadora offendeu, mais do que tudo, o Fogueira, insufflando-lhe uma energia raivosa contra os dois aggressores. Não o conheceriam elles?! Não saberiam que era o melhor jogador do pau das feiras minhotas?!—disse comsigo este sanguineo estouvado! Pois estavam em momento de o experimentarem!—pensou n’um silencio rancoroso e indomavel. E logo depois, n’um impeto leonino e sem tatica, cresceu aggressivamente para ambos, tomado de um frenesi tão diabolico, que os fez recuar alguns passos n’este primeiro ataque. O Rio Tinto disse-lhe com uma voz já menos disfarçada, aparando-lhe as pauladas: —Ah! queres á valentona?!... Vamos então lá a ver!... Houve um instante de hesitação, um momento instinctivo de pausa, em que de parte a parte se pensou rapidamente em accommetter com a maior energia. O Fogueira era bastante conhecido, como jogador temivel. O Rio Tinto e o Fanfarra sabiam-n’o melhor do que ninguem; porque muitas vezes se tinham encontrado emparceirados em desordens e, talvez n’este momento, se lembrassem que, um d’elles, devia á presteza e generosidade d’este valente rapaz, não ter ficado morto _no S. Sebastião de Villa Nova_!... Porém, apesar d’isto, no momento actual, elles eram dois contra um! A enorme sêde de vingança, e a natural maldade e valentia incontestada dos dois salteadores, davam-lhes reconhecidas vantagens. O Fogueira, ainda que fóra de si, já tinha conhecido _pela guarda_ dos adversarios que elles _sabiam do negocio_:—reconheceu que eram _jogadores_. Mas o seu natural impetuoso e imprevidente levou-o a saír da defeza, com o fim de os atacar, e com a idéa de fazer a um d’elles, a sua _finta_ predilecta á bôcado estomago; empregando, ainda assim, _muito olho_ para não perder a protecção do muro, que lhe guardava as costas. Na soturnidade da noite, profunda e cava, por entre os espessos troncos de carvalhos folhosos, no meio do silencio imponente das montanhas visinhas que se levantavam na amplidão, ouviam-se os estalidos seccos e breves dos paus, batendo uns nos outros, por entre as respirações de cançaço cortadas de palavras injuriosas e cheias do rancor dos combatentes! No escuro, a que elles já tinham habituado os olhos, os seus corpos furtavam-se habilmente _aos golpes_, saltando de lado para lado, sempre n’uma incerteza de posição! O Fogueira, como era só, precisava empregar maior esforço e tal raiva que, no fim de cinco minutos, fez saltar o pau do Rio Tinto, para lhe atirar a pontuada ao estomago! Este porém, como lhe conhecia bem o jogo, deu um largo salto de recuo e, em vez de ir buscar outra vez a sua arma, metteu rapidamente a mão ao bolso interior da vestia, tirando a sua comprida navalha que abriu de prompto e disse na voz natural: —Agora ha de ser com esta. Ataca com força rapaz!—gritou ao companheiro. Principiou um d’esses momentos terrivelmente sinistros, em que entre dois homens se estabelece esta negra idéa—de se matarem um ao outro! O Fogueira conheceu immediatamente o perigo, quando viu faiscar a lamina da navalha, que mesmo á luz tibia das estrellas brilhára aos seus olhos, como um relampago! N’esta lucta obscura, que se passava no silencio de uma noite de primavera e na tranquillidade de um caminho rural, havia muita ferocidade condensada! O Antonio Fogueira tinha, até ali, sustentado os ataques dos adversarios; mas, agora, para se furtar á navalha de um assassino, só o poderia conseguir inutilisando o Fanfarra, que o ensarilhava de cada vez mais, fazendo-lhe um jogo de mil demonios! Por isso, com a ligeireza de um cabrito montez, saltava para a direita, para a esquerda, para a frente, para traz... evitando os dois inimigos que o procuravam com pertinacia... com furia! O Rio Tinto praguejava, ameaçava-o com voz rouca... quasi natural... O Fogueira tel-o-ía conhecido em outras circumstancias; mas, em momento tão apertado, nem reflexão tinha para isso... As forças eram desiguaes... o filho da Engracia enfraquecia-se visivelmente, e a elle, que era corajoso, veio-lhe a idéa de um soccorro providencial... Sentia-se já extenuado e aggredido de cada vez com mais tenecidade, com mais rancor, com maior impeto! Aquelle que o procurava por todos os modos, para o anavalhar, pronunciou com voz clara, já sem pretensões de disfarce: —Agora Fanfarra, deixa-me c’o elle!... E logo em seguida, o Fogueira, sentiu-se abraçado pelo seu inimigo, a quem desmascarou no instante em que a comprida navalha lhe entrava no coração, rasgando-lh’o com tal força, que só teve tempo de dizer n’um suspiro final: —Ah! ladrão de Rio Tinto, que me matastes! Foi este o ultimo grito de angustia e as ultimas palavras que proferiu!... O seu corpo deixou-se caír no chão, desfallecido, com os braços pendentes e o sangue a golfar-lhe pela ferida e pela bôca! Ainda teve alguns movimentos convulsivos, acompanhados de um rouco respirar stertoroso, com borbulhões de espuma sanguinea pelo nariz! A sua energia ainda manifestou um instante de louca rehabilitação, pertendendo, aquelle corpo moribundo, levantar-se sobre os joelhos! Mas a final caíu brutamente, ficando exanime, insensivel, de bruços sobre a terra!... * * * * * O Rio Tinto e o Fanfarra conservaram-se, durante um longo minuto, a olhar para o cadaver, silenciosos, estupidos, n’uma impotencia inexplicavel, quasi sem poderem fugir! Sentiam-se agora mais covardes, mais irresolutos, depois de consummado o crime! Não tendo uma precisa comprehensão das circumstancias, esperavam, um tanto passivamente, qualquer castigo que viria do alto, de uma implacavel região de justiça, para os punir!... Alguem que, por casualidade, os tivesse visto, poderia aproximar-se sem que elles se escondessem; pois que, durante este minuto sinistro, conservavam-se sisudos, calados, a olhar um para o outro, com os braços pendentes!... Mas, logo depois, o Rio Tinto, que era mais preverso e malvado, recuperando com certa promptidão a sua podre consciencia, disse, em voz insultante, para o cadaver: —Ora ahi tens!... É assim que se ensinam os pimpões!... E permanecendo algum tempo com o ouvido á escuta, para que alguem se não aproximasse inesperadamente, observou em seguida ao Fanfarra que, dominado por um terror supersticioso, escutava o som metallico da agua da fonte: —Não tenhas medo... Não é ninguem... É ali a pingar... Porém, como o Fanfarra, ainda se conservava n’esta insensibilidade estupida e incomprehensivel, o Rio Tinto dispertou-o dizendo-lhe, com um acêno imperativo de cabeça: —Então?! O outro troquilha encolheu os hombros, com certo desleixo, indicando que fizesse elle o que quizesse, que estava prompto para tudo... O assassino do Fogueira, dando movimentos desengonçados ao tronco e á cabeça, proferiu com certa ironia feroz e temivel, condemnando aquelle estado de arrependimento: —Ora põe-te com _aquellas_. Talvez ainda lhe tenhas medo. Olha que já se não mexe...—concluiu impellindo o cadaver com um pontapé. E, logo, curvando-se sobre o corpo ainda quente, desafivelou-lhe o cinto que suspendeu no ar, tilintando escarnecedoramente com o dinheiro, e rematou n’uma voz de contentamento miseravel: —Ouvel-os? Cá cantam?! Fazem um certo arranjo. O sangue ensopava a terra, jorrando em borbotões ruidosos pela bôca do cadaver e pela ferida! O Rio Tinto, tendo guardado o roubo, observou com modo mais familiar, pondo a mão no hombro do companheiro, que permanecia na mesma apparente insensibilidade: —Agora... pernas para que vos queremos. Toca a andar, que póde vir por ahi algum patrão!... * * * * * Retrocederam pelo mesmo caminho, primeiro n’um passo rapido, depois a fugir, o Fanfarra atraz do Rio Tinto. Tomaram á esquerda, por um atalho pouco frequentado, que os devia levar, atravez de uns montes, a outra estrada... O Fanfarra, quando já estava mais seguro de si, parou subitamente, para considerar: —Olha lá... Ficaria elle bem morto?! O Rio Tinto certificou-lh’o do seguinte modo: —Deus te dê mais vida do que elle tem! Mas o Fanfarra, visivelmente preoccupado com esta idéa, como estavam muito perto disse: —Home... ainda é escuro... Voltemos a espreitar se elle se mexe! E voltaram n’um passo rapido, melhor seguros de si, com a alma mais desanuviada e perversa. Ficaram a pequena distancia, de traz do muro, escutando... O silencio prolongava-se preguiçosamente na profundidade do valle. Sómente o pingar monotono da fonte proxima perturbava este alvorecer indiciso, que os passaros já principiavam a alegrar. Os assassinos, para se certificarem positivamente da morte do Fogueira, e como a escuridade ainda os protegia, saíram do logar onde se tinham prudentemente escondido e aproximaram-se do cadaver, com certa ousadia e confiança. O corpo continuava a jazer exanime, de bruços sobre a terra! Não tinha o menor signal de vida—nem sequer perturbava o silencio da noite, com a respiração tenue do moribundo! O Rio Tinto, empurrando outra vez o cadaver despresivelmente com o pé, pronunciou com um sorriso cynico: —Estás bem morto! Pagastel-as todas. Já não comes mais brôa. O Fanfarra, que era menos animoso, observou-lhe com certo modo urgente: —Home, deixa-o lá, coitado! Fujamos nós, que já se vae vendo!... Pode vir por ahi algum demonio... O Rio Tinto concluiu com uma intonação trocista: —Aposto que tens pena d’elle!... Ou é medo?!... Não tenhas medo; nem elle, nem os que podem vir te prendem. Se algum pimpão ahi apparecesse agora, fazia-se-lhe o mesmo e eram dois que ficavam estendidos. Depois afastaram-se do cadaver e do caminho que tinham trazido de Vianna, por atalhos seus conhecidos. D’ali a poucos minutos, transpunham o cabeço sobranceiro á estrada. O Rio Tinto concluiu com serenidade: —Agora é que é bom dar á perna, que _ella_ vae-se mostrando... * * * * * Referiam-se á manhã que rompia, com uma claridade roxa. Era o alvorocer de um formoso dia de sol. As cumiadas dos montes circumvisinhos ainda se esfumavam indicisamente no azul; porém, o tremulusir das estrellas que fôra, durante a noite, vivo e inconstante, como o dos brilhantes nos bailes da opulencia mundana, principiava a extinguir-se. O ar sadio e oxigenado dos campos, dava ao corpo dos madrugadores a sensação macia de uma ligeira humidade refrigerante. Dos pinheiraes e das mattas de carvalhos, já saíam os gaios ralhadores, com o seu vôo largo, annunciando, por cima das penedias, o dia que chegava. Os braços enfolhados das arvores nascidas nas eminencias, recortavam-se no céu, tenuemente anillado, manchando-lhe a pureza. A modo que o dia se ía illuminando melhor, as arvores e as massas de penedos destacavam-se, com mais precisão. Da côr roxa primitiva, o céu, foi insensivelmente passando para a côr de rosa, depois para o azul plumbeo, por fim colorindo-se todo por igual, quando as estrellas já se não percebiam, adquiriu o verdadeiro tom de azul ferrete, uma côr humida e energica, propria das manhãs de primavera no clima do Minho. O nevoeiro tenue, como um gaze lançado sobre os montes e os campos, foi se pouco a pouco condensando no fundo do valle. A vida laboriosa dos trabalhadores ía manifestar-se nos caminhos e nas encostas. Seria um dia alegre como todos os dias,—os milhos continuariam a crescer, e as poucas cearas de centeio pintar-se-iam com o amarello da ganga... Porém, n’este pequeno largo plantado de velhos carvalhos annosos e onde uma pobre veia de agua pingava continuadamente, estava disposta uma surpreza desagradavel, para o primeiro madrugador da aldeia. Era o cadaver de um rapaz de vinte e tantos annos, assassinado com uma facada, que lhe entrára no coração! O seu corpo estava de bruços, no supremo abandono da morte! O sangue saído da ferida, molhava a terra e manchava-lhe a cara. E, a vivificante luz da manhã, o orvalho que refrigéra, as côres da paizagem que enebriam pela complexidade de tons... essa força omnipotente que vem da natureza, pairava sobre o morto, com um scepticismo ironico e dominador!... A MORTE NEGRA A ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO A MORTE NEGRA O terceiro marido de Isabel morreu de uma prolongada _queixa de peito_. A viuva, que era uma rapariga de vinte e seis annos—saudavel, tentadora, appetitosa—de uma forte carnação campesina, com a intensa vitalidade das naturezas creadas em liberdade, poderia definhar-se em virtude de tão successivas desillusões! Porque ella, que passára os ultimos tempos em despezas de casamentos e de enterros, estremecendo com afinco e tenacidade, cada marido recente, tinha de o prantear logo depois, com um tal apparato de palavras inconsolaveis, que sensibilisava todas as pessoas que a ouviam, obrigando-as a tomar parte na sua enorme dôr! Quando acabou de expirar este ultimo, o José Chibante, Isabel principiou a choral-o, com um desespero tão desgrenhado, que até a propria natureza austera e muda—as altas arvores, os altos montes e os negros penedos—pareciam compungidos! Estava-se na primavera, mas durante muitos dias caíra um aguaceiro copioso e subtil, que dava, ao socego das cousas naturaes, um caracter funerario e lugubre! As densas paizagens, envolvidas d’um nevoeiro espesso, não se viam cortadas, ao longe, pelas alegres claridades das habitações. A linha irregular do horisonte não se riscava no azul das tardes serenas e desejadas. O grosso volume das penedias occultava-se nas densas nuvens, que se rasgavam, transpondo montes, transpondo valles, correndo sempre, com uma impassibilidade gigantesca, como de valentes cavallos de posta. Ora Isabel, viuva pela terceira vez, sentira durante a noite o som ululante do trovão, e presenciara os ultimos momentos angustiosos de seu marido agonisante, encostado ao catre da cama!... Ella, que era uma rapariga forte e com as seducções da belleza e da juventude, sentia-se aniquilada! Exprimia-o com gritos angustiosos, com gestos vehementes, com palavras de desespero, de amor, de saudade!... As suas boas lagrimas, abundantes, sinceras e quentes, tinham attraído, logo de manhã, a caridade de algumas visinhas, que lhe trouxeram as melhores consolações, excellentes palavras, attenções urgentes... n’aquelle momento doloroso. Eram amigas e companheiras nos trabalhos ordinarios da lavoura, e que tinham igualmente assistido, ao caminhar implacavel da _consumpção_, em que haviam morrido os outros dois maridos de Isabel!... Por isso conheciam muito bem o que se passava, e, quando ouviram os primeiros gritos alarmantes, fecharam as portas, e pelo caminho para casa da viuva, consideravam cheias de tristeza: —Então sempre se foi o Chibante?... —Parece que sim, mulher! Ha pouco mais de um anno que se casaram! Quem o havia de dizer... um rapagão como um castello!... Uma disse com um modo indagador: —Eu não sei o que isto é... mas tanto elle como os outros, passante o primeiro mez de viverem com ella, logo arranjaram taes caras de bruxaria que mettiam medo!... Lindoria, com aspecto compadecido, teve esta opinião: —Olhae que eu _tamem_ tenho pena da rapariga! Digam o que disserem, ha de lhe custar... Tão nova, e já com tres mortes... —Ora!...—duvidou uma terceira, encolhendo os hombros. A culpa de quem é?!.. É minha?! Lindoria, que andava sempre por casa de Isabel, interferiu para não deixar concluir: —Deixae-vos de asneiras... Eu bem sei o que lhe vae lá pelo coração. Ella é uma apegada aos homens!... —Pois sim—disse uma das companheiras; mas isso é o que não devia ser!... E caminhando juntas, uma rematou esta conversa dizendo com naturalidade: —Isto assim não tem geito. Isabel não deve casar mais vez nenhuma. Entraram na casa da viuva do Chibante, que estava sentada na lareira, com a cabeça energicamente apertada entre as mãos, chorando com desespero. As suas amigas, para a socegarem, disseram-lhe com os olhos enxutos «que não se affligisse mais, que aquillo foi vontade do Senhor que tudo manda». E acrescentavam com fé e confiança na Infinita Misericordia: —Olha que elle ha de estar em bom logar!... —Deus vos ouça, Deus vos ouça... Ao menos que Nossa Senhora o tenha no reino dos céus!...—repetia muitas vezes Isabel. As outras certificavam-lhe: —Ha de ter, ha de, rapariga. Ao que elle penou n’este mundo... —Não que eu lhe desse má vida! Como vós sabeis trazia-o sempre nas palminhas!... Lindoria concluiu, sorvendo uma pitada: —Aquem tu o vens dizer, mulher! Era um Santo Antoninho onde te porei. * * * * * Depois de conversarem algum tempo familiarmente, foram á cama ver o defunto! Estava escondido por um lençol; mas ellas descobriram-n’o com certa naturalidade, talvez mesmo com irreverencia... Viram-n’o bem, miraram-n’o por todos os lados: o José Chibante, já composto, de costas sobre a cama, tinha os punhos atados sobre o peito, e um lenço _amarrando-lhe_ as maxillas, para se conservarem n’uma posição decente. Essa alvura do panno que lhe enquadrava o rosto augmentava-lhe a lividez; as palpebras, cuidadosamente cerradas e presas por um pingo de cêra, accentuavam o ar sereno e grave do cadaver, que todas viam n’uma posição reflectida, com as pernas estendidas e os pés levantados no fundo da cama. —Eu não sei como pódes fazer isto... Eu cá se me morresse o _home_ é que o não vestia—disse uma para a Isabel. Ella respondeu com voz commum, interrompendo momentaneamente o chôro: —Pois então?! Ninguem faz estas cousas melhor que a gente. Nós é que sabemos, como elles gostavam de se arranjar... Porque a camisa de altos collarinhos lavados e as calças de panno azul, tinham sido vestidas ao marido, por sua propria mulher, que lhe quiz fazer este ultimo asseio, o asseio da eternidade! O defunto estava quasi prompto, para a sua festa de enterro. Uma das amigas de Isabel exclamou sinceramente: —Mas vae bonito e asseiado! Olha que te parece mesme vivo!... Ella esclareceu, com a sua voz usual, limpando as ultimas lagrimas: —Leva para a cova a roupa da bôda. Já aos outros dois homes, que Deus Nosso Senhor teve na Sua Divina Vontade tirar-me, fiz o mesmo. Tenho muita _aquella_ em que elles vão sempre para o outro mundo como uns cravos! E concluiu, dizendo que o seu José seria vestido de _terceiro_, porque era _irmão d’esta ordem_, e ficava-lhe muito bem o habito, com a sua côr parda e o cordão novo em volta da cintura, caíndo-lhe as borlas sobre os pés... Lembrava-se muito bem, de quando elle caminhava na ultima procissão de Passos, alinhado cuidadosamente com os outros companheiros, levando uma tocha na mão, muito sério, já com a sua cara magra e doente, amparada nos altos collarinhos da camisa, que agora lhe vestira para o enterro. E, indo á caixa grande buscar o _habito de terceiro_, estendeu-o para o verem bem, e disse que o defunto estimava muito aquelle rico traste, que quando era vivo, muitas vezes dissera, ter desejos de o levar para a cova. Por isso Isabel rematou com intimativa: —Ha de ir á vontade d’elle. Quero-lh’a fazer até á ultima, porque elle tambem sempre foi muito bô para mim. —Fazes tu muito bem—incitavam fortemente as companheiras. A gente, quando o seu home é bô, deve-lhe sempre andar ao geito. * * * * * Uma das amigas da mulher do Chibante foi procurar o Coruja para vir arranjar o habito ao defunto, por que a viuva, attendendo a que sempre era uma cousa benzida, n’esse particular mantinha os seus escrupulos... O coveiro chegou resmungando, e disse palavras desgostosas e insolentes, quando viu o morto quasi prompto. Depois, assobiando canto-chão, e bebendo de uma infuza de vinho, acabou de o arranjar ageitando-o dentro do esquife cuidadosamente, com esmero, compondo-lhe o lençol _rebicado_, e endireitando-lhe a cabeça n’uma posição natural. Logo que isto foi concluido, Isabel e as suas amigas, principiaram a gritar mais alto, com um chôro ganido e espantado, andando em volta do esquife!... O vesgo e cambado Coruja, com os seus arremessos grutescos e irregulares, depois de se ter rido ás gargalhadas, disse de um modo brusco e malcreado, fazendo carantonhas, com a lingua de fóra: —Por um olho azeite, por outro vinagre, minha corja de mandrongas!... Quem vos não conhecer que vos compre! E, referindo-se especialmente a Isabel, acrescentou: —Já trazes outro de olho?... As mulheres, offendidas, responderam indignadamente: —Cala-te, bebedo!... —Olhem o grandissimo borracho!—acrescentou com accento desprezivel a beata Lindoria. Depois, como o chôro de Isabel se continuava de um modo intenso, e, as suas amigas, pelo que tinham visto das outras vezes, sabiam que lhe fazia mal, produzindo-lhe ataques em que parecia possuida do demonio, uma d’ellas principiou a amesquinhar-lhe o acontecimento, a apresentar-lh’o como um successo natural e simples... —Olha que não ficamos cá. Cuidas que alguma de nós fica n’este valle-de-lagrimas?!... Estás muito enganada. Tu has de morrer, eu hei de morrer... todas nós havemos de morrer... Um dia toca o sino para esta... outro dia para aquella... é o mundo! E Lindoria, com um aspecto vulgar e pouco sensibilisador, para mudar de conversa, opinou chegando-se para o esquife, a sorrir: —Mas o que elle te vae é muito lindo! Pódes ter essa gavança, mulher! Faz gosto olhar para elle. Ninguem ahi põe um defunto na igreja, tão bem arranjado, como tu. Isabel respondeu: —Lá isso, hei de fazer sempre assim, emquanto Deus me der vida e saude... Passado certo tempo, quando todas as idéas tristes pareciam distantes, á Lindoria, que tinha confiança na casa, veio-lhe a lembrança sensatissima, de que Isabel precisaria de comer... Por isso lembrou-lhe: —Tu has de estar por força fraca e esse chorar faz-te mal... póde-te caír no coração. A viuva recusou-se teimosamente, dizendo que não lhe entraria nem uma bucha de pão na boca... parecia-lhe que tinha comido o seu ultimo bocado... e, fallando em morrer, o seu desespero era enorme e as palavras afflictivas!... Porém, Lindoria, muito prudente, dizia reprehensiva e com auctoridade: —Estás tola, rapariga! Não querer comer!!... São lá cousas que se digam! Olha que até offendes ao Senhor, que te creou!... A gente deve fazer bem ao seu corpo, para poder louvar a Deus, e engrandecer a Sua Infinita Misericordia... E acrescentou, depois de se assoar com estrondo: —... Ouvi estas verdades da bôca d’aquelle santo missionario que ali esteve em Refuinho, e que teve artes de levar para o reino da gloria a Rosaria do Thomaz do Monte... Sabeis que _ella_ já vos faz tantos milagres que, aos domingos, é uma romaria n’aquella igreja?!.. Com esta auctoridade e saber, sem mesmo consultar a viuva, Lindoria combinou com as outras mulheres, para arranjarem _alguma cousa_ que Isabel podesse comer—alguma cousa que chegasse para ellas tambem, porque se sentiam com bastante fraqueira. Como era no tempo da matança dos porcos, uma, que morava mais visinha da viuva, foi-lhe arranjar uns rojões e trouxe-os, acompanhados de uma boa infuza de vinho... N’uma voz convidativa e discreta, pronunciou estas bôas palavras, logo ao entrar da porta: —Vamos a elles, emquanto estão quentes e não vem por ahi alguem á agua benta... —Tens rasão, tens—confirmou a prudente Lindoria, com aspecto guloso. Isabel, nos primeiros momentos, absteve-se, dizendo com a mão apertada na garganta: —Esta (a morte do Chibante) não me passa d’aqui. Agora é que fico para toda a vida... O que eu tenho passado em sete annos!... Era o tempo que lhe tinham durado os tres maridos. Uma das mulheres, prudentes e sensatas, que a cercavam, disse-lhe: —É isso verdade rapariga. Rasão tens tu. Mas se é vontade de Deus, que lhe has de fazer?!...—interrogou de cara alta. Sem comer é que não somos nada n’este mundo, e, como te disse aquella (referia-se a Lindoria), até offendes a Deus com essas palavras desagradecidas!... A _beata_, confirmou mais uma vez, esta sua opinião, repetindo: —Ah! isso offendes e muito! Eu que t’o digo é porque o sei. Mas—rematou—vamos aos rojões, antes que arrefeçam. Frios não prestam. E para incitarem a viuva do Chibante, para lhe quebrarem os ultimos melindres, principiaram ellas a comer com a mão, e a beber todas pela mesma infuza. * * * * * O morto estava deitado no esquife, vestido com o seu habito de _terceiro_. A côr escura do seu rosto e o pardo da mortalha sobresaía... destacava-se da brancura do lençol de panno engommado, que tinha nas ourelas recortes vistosos. As pernas do defunto estavam alinhadas, e as mãos, sobre o peito, agarravam um ramo de oliveira; e no rosto, pallido e soffredor, a dolorosa expressão dos que têem sentido dolorosamente fugir-lhe o ultimo alento de vida!... Á cabeceira do esquife, sobre uma velha caixa de pinho coberta por uma toalha, estava um crucifixo, com duas vélas dos lados; aos pés, a caldeira da agua benta, esperava os amigos do finado, que tinham de vir espargil-o com o tosco hyssope, depois de lhe terem resado pela alma, que n’aquelle momento já devia pairar nas regiões incomprehensiveis!... N’aquelle cadaver livido, todo podridão e um proximo repasto de vermes insaciaveis, havia a suprema serenidade da morte—impassivel, austera e absorvente!... Isabel, depois dos reiterados convites das suas amigas, principiou a comer com moderação e, ao parecer, com pouco appetite. —Isto é para vos fazer a vontade; porque não me passa d’aqui—dizia, indicando a parte superior do esophago. Lindoria, com um bom humor descrente, incitava-a: —Entra-lhe mulher, anda-lhe... Tu não te has de deixar ir assim para a cova... _como elle_. Se Deus, na sua infinita misericordia t’o roubou, não é rasão para que vás pelo mesmo caminho. Por isso, come-lhe e bebe-lhe que é o melhor que tens a fazer. E, olhando sagazmente para os lados do caminho, acrescentou com voz familiar e sem imposturas desnecessarias: —Por ora não vem ninguem... Pódes engulir o teu bocado sem medo. Mas, pouco depois, quando mastigavam, silenciosas, resignadas e com vontade, sentiram passos de alguem que se aproximava!... Todas deglutiram rapidamente o que tinham na bôca!... Uma d’ellas, com mais sangue frio, metteu no forno, com precipitação, o prato dos rojões, mas deixou, imprevidentemente, a porta aberta. Lindoria, por seu lado, escondeu com sagacidade, a infuza do vinho debaixo de um banco, sentando-se logo por cima d’ella, para a ter melhor escondida com as saias espalhadas. Por fim, como se tivesse havido qualquer convenio anterior, compozeram os semblantes n’uma expressão de tristeza, tomaram attitudes chorosas, e, fingindo a continuação de uma conversa, fallavam com lagrimas no caso presente, lamentando as amigas de Isabel, esta perda do _seu homme_, procurando dar-lhe as melhores consolações que em taes momentos se podem desejar!... Os passos que se tinham sentido, eram os do velho Agrella, que vinha resar pelo morto. O alfaiate entrou com face respeitosa e compungida! Resou cordatamente, com sinceridade, e, em seguida, entrou no circulo das creaturas que ensinavam Isabel a resignar-se, trazendo-lhe, elle tambem, as suas palavras de coragem... A mulher do José Chibante ouvia tudo n’um recolhimento sensato, com intermittencias de sentimentalidade:—umas vezes chorava alto lamentando-se do só que ficava, achando-se enormemente infeliz e desgraçada; outras, entrava socegadamente em detalhes, em referencias, em particularidades do modo como vivera com José, rememorando as circumstancias em que lhe fizera, a ella, as vontades mais exigentes e caprichosas... Era doloroso e sympathico ouvil-a exprimir-se d’este modo, ácerca do terceiro marido que lhe morria!... * * * * * No entretanto, um gato preto da visinhança, entrava pela porta dentro sem ser persentido e principiou a observar minuciosamente toda a casa, revolvendo com lentidão os seus olhos redondos e luminosos. Parecia attraído por algum motivo; porque, n’aquella serenidade do seu olhar sagacissimo, conhecia-se-lhe um proposito, um fim... Primeiro attendeu minuciosamente para o esquife, andando duas vezes em volta para se certificar. Depois, aproximou-se das mulheres que choravam, aproveitou do chão uns restos de comida e sentou-se para lamber socegadamente um osso despresado. Por fim, sempre devagar e cauteloso, dirigiu-se, com a imperceptibilidade de uma sombra, para junto do forno... Levantou com mansidão a cabeça e averiguou olfativamente. Sem duvida que foi depois de ter chegado a uma conclusão do seu demorado raciocinio, que o gato se firmou nas patas trazeiras, arqueou o corpo, estendeu-o, retesou-se, e, fazendo um salto, entrou pela porta aberta do forno... onde tinha sido escondido o prato da comida. Pouco depois voltou, saltou para o chão, trazendo um rojão que pousou socegadamente junto do esquife e ali principiou a comel-o, com o sofrego appetite de um golutão... O Agrella começou por observar este facto com serenidade. O gato preto, logo que acabava de comer um rojão, levantava-se lambendo os beiços, e, sorrateiramente, ía buscar mais, que vinha mastigar junto da caldeira da agua benta. O alfaiate, por este signal, percebeu immediatamente tudo quanto se teria passado, antes da sua chegada desagradavel e inconveniente!... A infuza que depois lobrigou debaixo do banco, apesar de Lindoria procurar escondel-a á sua sagacidade, espalhando as saias, completou-lhe o quadro. Porém, o seu rosto foi impenetravel, e, como se nada tivesse visto, continuou a seguir a linha das lamentações, fallando das qualidades excellentes do homem de Isabel, recordando casos que com elle lhe tinham succedido, avivando memorias de tempos passados... E de tal modo e com tal compuncção o fazia, que a propria Lindoria—a raposa sagaz da aldeia—sentiu-se dominada pelo tom plangente do Agrella... A velha beata, compungida e lacrimosa, era quem mais salientemente reclamava as boas palavras, os elegios e as lagrimas para a memoria do defunto, que ali estava, serenamente deitado n’aquelle esquife. Ao mesmo tempo que lamentava os incalculaveis estragos da morte, ía reparando... percebendo... apopletica de raiva, que o malvado do gato preto entrava no forno repetidas vezes, trazendo sempre rojões, que vinha comer, impunemente, mesmo junto do esquife. N’um momento, já impaciente e nervosa, não lhe soffrendo o animo consentir que o animal vivesse momentos tão felizes n’uma impunidade odiosa, lançando olhares furtivos ao _ladrão_, pronunciou com voz lamentosa uma d’essas phrases equivocas da linguagem popular, por meio da qual desejava denunciar ás companheiras imprevidentes, aquelle roubo inqualificavel: —_Ah! morte negra, morte negra! que assim os vaes levando um e um!_ Queria decerto que o Agrella entendesse que se referia aos homens fallecidos; porém o velho, alfaiate, ouvindo isto, levantou-se sereno e talvez indignado!... Baixou-se sobre o banco, pegou na infuza de vinho escondida, e estendendo-a a Lindoria, disse-lhe n’uma voz compungida e de um comico ardente: —Pega lá mulher... _Aquelles defuntos_ do que precisam é d’esta agua benta. Benze-os com esta agua benta, ó Lindoria!... E dirigindo-se para a porta, disse do limiar com um desdem rancoroso: —Corja de bebedas! Boa tranca, por essas costas! E saíu socegado para o caminho. Lindoria veio até á soleira, com o fim de o amansar, de o adquirir para o convivio das suas amigas. Por isso chamou-o com uma voz convidativa, attraente e cheia de confiança, piscando-lhe um olho: —Ó Agrella!... Agrella!... Anda cá pedaço de tratante... Andá cá maroto... comer alguma cousa... E, como o velho alfaiate se voltou para lhe responder, ella, julgando-o dominado, repetiu, mostrando-lhe a infuza: —Olha que é do da tenda. Boa pinga, verás... Porém elle, ao riso conciliador e ás boas palavras de Lindoria, respondeu simplesmente com _um gesto_ dizendo: —Olha... E distanciou-se com passo natural. O ENTERRO DE UM CÃO A MACEDO PAPANÇA O ENTERRO DE UM CÃO I O velho Coruja, o coveiro, _o bom amigo dos mortos_, tinha pelo seu pequeno cão, uma affeição pura e desinteressada. O _Coisa_ acompanhava-o em toda a parte, com uma fidelidade insistente: nos enterros apparecia cansado, reflexivo e de cabeça baixa; no palheiro, onde ambos dormiam, deitava-se junto d’elle, corpo a corpo, como um companheiro familiar; nas diversas cosinhas das casas ricas da visinhança, onde o coveiro apparecia ao meio dia, sempre se mostrou submisso, quieto, esperando pacientemente que lhe dessem a sua brôa e as rapaduras do pote do caldo de farinha. O Coruja olhava para elle com ternura, dava-lhe do seu comer, interrogava-o com naturalidade, affagava-o dizendo-lhe palavras boas, repassadas de carinho e de benevolencia...; porque partia da hypothese sensata, de ser comprehendido. O Coisa, pequeno, magro, de pello faminto, com as barbas de guloso sempre sujas, escutava-o attenciosamente, sem pestanejar e deitando-lhe a cabeça nos quartos, ficava como adormecido muito tempo. O Coveiro comprehendia estas finas delicadezas do seu companheiro... Por isso fallava-lhe com polidez, com cuidado, escolhendo as palavras, estudando um timbre de voz meigo e delicado. Que dois corações unisonos e isochronos! As unicas desavenças que se tinham dado entre elles, eram por causa das creanças pobres... O cão perseguia-as insistentemente, se as encontrava agglomeradas, a pedir esmola, junto dos portaes ricos! N’este ponto era formalmente desobediente á palavra austera de seu amo!... O Coruja que, quando tinha vontade d’isso, sabia ser iracundo, figurava então uma voz aspera, severa e reprehensiva, ameaçando-o arrogantemente: —Pedaço de bregeiro! Tenho-te dito muitas vezes que me deixes os rapazes. Fizeram-te algum mal? Diz lá: fizeram? Não entendes isto, maroto?!... E se depois o cão se lhe ía enroscar aos pés, humilde e submisso, concluia com energia: —... Pois devias entender. Elles são como nós ambos e como os outros desgraçados—andam na sua vida... Se são pobres, quem lhes ha de dar o pão, se não forem os ricos?! Vel-os acolá?—indicava incautamente os rapasitos. Andam ás esmolas, como tu e como eu!... O Coisa olhava fixamente para o seu amigo, escutando-o sem pestanejar, e como vira que as ultimas palavras haviam sido acompanhadas de um gesto em que eram apontados os pequenos pedintes, que, amedrontados, tinham fugido para longe, interpetrando-as mal, arremettia de novo contra as creanças, perseguindo-as com mais raiva pelos caminhos. O Coveiro mostrava-se estupido e confundido... Não comprehendia!... ficava scismando, para ver se encontrava o motivo que o animal teria, para odiar com tão afincado accinte, as creanças pobres, que via encostadas aos portaes ricos!... Não o podia perceber, elle que ignorava inteiramente a biographia do Coisa... * * * * * Encontrára-o n’uma tarde de chuva, perto de um ribeiro, onde, no dia seguinte, appareceu afogado um velho pedinte, de longa barba esqualida. O pobre animal tiritava de frio, recolhido humildemente dentro do tronco carcomido de uma cerdeira desfolhada. O Coruja, vendo-o assim, teve um ar compacido e lastimou-o com um sorriso triste. Lembrou-se que levava n’um bolso restos de pão do jantar, e, com um ar de bondade, atirou-lhe um pedaço, dizendo: —Talvez tenhas fome... Pega lá, come. O cão, saindo do esconderijo, abocou com rapidez e mastigou sofregamente, auxiliando a deglutição com movimentos rapidos e impulsivos de cabeça. O coveiro observando este facto, disse sorrindo: —Home... tinhas larica. Toma lá mais um naco!... E, tirando mais brôa do bolso das calças, deu-lh’a. O animal, enguliu com rapidez o pão e aproximou-se do coveiro com obediencia—arqueava a espinha dorsal arrastando a barriga na terra, tinha movimentos lateraes e cadenciados de cauda, levantava a cabeça para lhe cheirar a mão benefica e ouviram-se-lhe latidos de agradecimento. O Coruja, olhou reflexivo para elle e, cofiando-lhe a cabeça, observou com sorriso: —Diabo! sempre és muito feio, ladrão! Depois atirou para o hombro a enxada de abrir as covas e foi pelo caminho adiante... Ia para um atterro. O cão ficou quieto, humilde, a olhar para o seu bemfeitor. O coveiro, olhando para traz, viu-o n’esta posição quasi supplicante e gritou-lhe de longe: —Tó Coisa. O animal veio para elle depressa, contente, feliz, dando pulos de alegria, movendo festivamente a cauda, lambendo os pés do Coruja, que o affagava. E para mostrar logo, áquelle seu amigo fortuito, um bom fundo de cão agradecido, arrastava o ventre pela terra, gania amoravelmente, roçava-se-lhe pelas pernas, e por fim, conservou-se alguns momentos n’um aspecto captivante, deitado no chão, olhando para o coveiro, com a cabeça firme, a mostrar os dentes e a piscar os olhos... Foi assim que se tomaram por companheiros inseparaveis!... O coveiro não indagou quem era o Coisa, mas eu que o sei, posso dizer que era o cão do pedinte, que no dia seguinte appareceu morto na levada do ribeiro! Tinha sido amestrado para ladrar ás creanças, para escorraçar os pequenos, magros e sujos, que podesse encontrar pedindo esmola junto dos portaes ricos. Os perseguidos fugiam assustados e chorosos, gritando muito, apertando na mão os saquinhos vasios... e ficavam de longe, a ver quando o pobre da barba esqualida saíria de ali com o maldito cão, para elles voltarem a implorar a esmola, com as suas vozes finas e plangentes. Porém, o velho pedinte era experimentado e sceptico. Se alguem, casualmente, observava a perseguição injusta que o animal fazia aos rapazitos, elle, que fingia de aleijado, chamava-o com modos de homem irritado, ralhava-lhe muito, chegava mesmo a bater-lhe. Com este procedimento conseguia, muitas vezes, captar a benevolencia de quem o observava e obtinha alguma esmola que agradecia, dizendo: —... Pelas bemditas almas... Por mais que me mate, não posso ensinar este ladrão. Um dia como-lhe os figados. Apesar do amor que lhe tenho, sou home p’ra isso! E, com o fim de se mostrar digno de admiração, erguia para o companheiro o pau da justiça, tremente de cóleras! O bemfeitor, compadecido, entrevinha caridosamente a favor do animal, aconselhando: —Deixa lá. São brutos, não sabem o que fazem. Se elles não têem alma!... —É tamem do que me tenho lembrado, meu rico pae da caridade! Se elle tivesse uma alma, eu era capaz de lh’a metter n’um inferno, só pelo que elle é de mau para as creancinhas... coitadas! Mas o animal não era responsavel. Tendo sido educado, por seu amo, no proposito de perseguir os concorrentes ás esmolas, obedecia-lhe. Mesmo quando o velho pedinte lhe ralhava, apontando as creanças que fugiam espavoridas e elle continuava a preseguil-as, é porque sabia ser este um signal para as escorraçar com mais impeto! Tinham-lhe ensinado que, todas as admoestações lhe impunham dever de ladrar com maior energia e vivacidade, por isso assim procedia!... O pobre da barba, depois de obtida a esmola, premio da reprehensão infligida ao maleficente, dizia vagamente, de modo a ser ouvido pelo bemfeitor que se distanciava: —Diabo do cão é tolo! Não sei que mal lhe fizeram os rapazinhos!... E voltando-se para elle, outra vez, com o pau no ar, concluia: —És mesmo ruim, como as cobras! Mas, logo que ficavam sós, cofiava amoravelmente a barriga do rafeiro, chamando-lhe seu rico cachorrinho, ganindo como elle para o reconciliar comsigo, e dando-lhe fartamente brôa da sacola, com o fim de o excitar ao crime. Incomprehensivel preversidade!... * * * * * Eis aqui estão os motivos, em virtude dos quaes, o coveiro, nunca poderia fazer comprehender ao Coisa, que a sua benevolencia era sincera e não mentirosa, como a do velho pedinte, que primeiro o educára. O modo compassivo como o Coruja entendia deverem ser olhadas as creanças pobres, que aos sabbados encontrava junto dos portaes ricos, o cão não o podia comprehender facilmente e até o interpretava ao inverso, princialmente quando lhe apontavam os rapazitos que se conservavam agrupados e cheios de susto a olharem de longe. Mas, apesar d’esta divergencia, viveram muitos annos em concordante familiaridade, dormindo promiscuamente nos mesmos palheiros e comendo da mesma ração. Como o Coruja era um bebedo declarado, entendeu que devia habituar o Coisa a gostar de vinho, exactamente como elle, e dava-lh’o. O cão principiou pelo provar, com evidente repugnancia. Nos dias de fome, que o seu antigo amo lhe fizera passar, quando as esmolas não corriam para o sacco, tomára habitos de sobriedade. Vinho! Tal guloseima nunca provára! O pedinte de barba esqualida era extremamente egoista... emborrachava-se só. Mas, passado algum tempo, depois de ter sido preciso abrirem-lhe a bôca á força para lhe emburcar o liquido nas guelas, o Coisa gostou, e por fim já escorripichava a tijella, por onde o coveiro bebia a meia canada habitual... Tão fino bebado se mostrou depois, que andava sempre lambendo, com cuidado e esmero, até as deixar enxutas, não só a tigella do amo, mas todas as cuncas da sopa de bestas que encontrava ás portas das estalagens e tendas minhotas. Então dizia-lhe o seu amigo, rindo abertamente, com effusão, piscando os olhos, já muito _torto_: —Anda grandissimo borrachão, que me pareces um padre! Esta phrase usual, sincera e inoffensiva, que tantas vezes dissera impune, preferiu-a incautamente, uma vez, diante de um ecclesiastico que, julgando-se offendido, o reprehendeu severamente, levantando a bengala com uma intenção aggressiva! O coveiro que, pelo habito de viver entre batinas, não as respeitava, e, considerando mesmo que os padres eram homens como os outros e igualmente peccadores, lembrando-se até de que elle já tinha enterrado um bom par d’elles, respondeu com desdem e indignado: —Olhe, talvez o seu coração não seja tão bô como o d’elle!... O padre ficou auctoritario e colerico, e o coveiro retirou-se cheio de justiça, por ter pugnado pelo seu camarada. * * * * * Ás vezes, nos dias de muita chuva, o Coruja não podia saír do palheiro onde dormia, por causa das malditas dôres que lhe vinham á perna doente. O Coisa, n’essas occasiões, parecendo-lhe que devia prover as necessidades communs, saía a procurar comida. N’esses dias não respeitava nenhuma casa, fosse ella de quem fosse! Previdente e sagaz, obedecendo á sua primeira educação na vida mendicante, ía por ahi fóra... Porta que encontrasse aberta e d’onde saísse bom cheiro, entrava com ousadia e abocava desceremoniosamente qualquer posta de bacalhau ou qualquer salpicão que encontrasse. Mas, em vez de comer o producto da ladroagem, como faria qualquer cão vulgar e sem sentimentos, vinha depositar a comida intacta nas mãos do seu companheiro, para elle a repartir. O coveiro, no proposito de se dar seriedade, reprehendia-o com brandura, sorrindo com os seus olhos vesgos: —Ah! grande ladrão! Home, isso não se faz!... Ir roubar o que não é da gente!... Muito mal feito, seu patife!... Come tu, anda, que eu não tenho grande fome. No entanto, para não ser descortez e mal agradecido, acceitava o alimento que repartia com rectidão e igualdade, dando muitas vezes ao Coisa, qualquer bocado, que julgava mais appetitoso. II Um dia, porém, o Coisa appareceu morto na beira de um caminho, no velho sulco cavado pelas rodas dos carros, que ali tinham passado durante muitos annos! Era em janeiro, o coração do inverno, no alto Minho. Fazia um frio de lobo, mas a noite era de uma limpidez phantastica. Um luar claro dava aos objectos um destaque energico. O ruido das montanhas espalhava-se sussurrante nas profundezas dos valles cobertos de uma herva miseravel, mirrada pelo frio intenso e prolongado, pelas geadas successivas que os soes, quasi primaveraes, não conseguiam descoalhar. Os montes altos, cobertos de neve, levantavam as suas enormes carcundas de gigantes, ha seculos ali adormecidos!... O dia amanhecera com um sol rutilante, que produzia vivos reflexos nos brincos de gelo, pendentes dos braços nús das arvores, dos beiraes dos telhados, e das vertentes das fontes. Os pequenos passaros, saltando nos galhos das oliveiras, pareciam mais volumosos, porque tinham as pennas irriçadas. Os tordos, com os pios ingenuos e os melros com os assobios agudos e petulantes, denunciavam-se aos caçadores, que os perseguiam, aproximando-se encobertos com os troncos das arvores, com os muros e com os penedos, para fazerem certeiramente a pontaria. A paisagem animára-se com o levantar do sol. Principiava a vida dos campos—os bois íam soltos para as reles pastagens, ou, cangados, puchavam aos toscos carros de duas rodas; as eguas lanzudas e famelicas, avistando-se de encosta para encosta, relinchavam; os rapazes, as mulheres e os homens trabalhavam nas hortas, na apanha de lenha para o lume e nas podas, cantando sempre, para não sentirem o frio. Passavam nos caminhos alguns pedintes de capas remendadas e de sacolas a tiracolo, cheias de brôa. Tinham o bom ar, alegre e folgasão, dos felizes despreoccupados, para quem, o dia de amanhã, será bom como o dia de hoje. Iam conversando animadamente em accidentes da sua vida vagabunda e caminhavam n’um passo largo, assobiando, cantarolando, batendo nos cães vadios com os páus a que se costumavam encostar quando pediam esmola. Foram elles os primeiros que encontraram o Coisa morto na estrada, tristemente abandonado n’um sulco de carro, como um cão desprezivel que não tivesse inspirado um affecto na vida! Junto d’este morto anonymo, os pedintes alegres, fizeram uma paragem, dizendo um d’elles, com ar trocista e de chacota: —Olhem este asno onde se foi deitar!... Acrescentando outro: —É que tinha calor e não quiz dormir na palha! Um terceiro, ainda observou, com um compadecimento fingido: —Coitado!... Já não come mais brôa! E por ultimo, um mocetão robusto, desertor do tres de Vianna, para dispertar a hilaridade na companhia, levantou pelo rabo o magro corpo do Coisa, e pronunciou, conservando-o suspenso: —Eh! diabo! Está teso como minha avó torta!... Riram-se unisonamente com as bôcas escancaradas, d’este dito excentrico, continuando depois o caminhar divertido. * * * * * Porém, o cão não estava ali esquecido, como se poderia suppor:—o Coruja tinha-o procurado durante a noite. Andou n’isso muitas horas, apprehensivo e triste, repassado de maus prenuncios. Chamou-o alto nas encruzilhadas, assobiou por elle de cima dos muros dos caminhos, teve momentos silenciosos de uma tristeza indefinida!... E, como via o Coisa não lhe apparecer, disse com a testa avincada e com uma expressão de quem suspeitava um crime: —Que diabo! por ahi algum maroto... Suspendeu bruscamente a phrase, concluindo-a depois, mostrando um punho cerrado: —Pois se sei quem foi que o matou, abro-lhe a cabeça com o olho da enxada! Ainda que trezentos diabos me levem, p’ras profundas dos infernos! Dirigiu-se para o seu palheiro, tiritando de frio, dando suspiros e com lagrimas nos olhos. N’essa triste noite estava só. Não sentia o seu companheiro de tantos annos, introduzir-se com o fochinho entre a palha, para adormecer mais quente. Apesar dos latidos vagabundos dos outros cães da visinhança, o Coisa não se levantava esperto para ir responder ao postigo! Em vez d’este, agora era o Coruja, que, ouvindo ladrar, levantava a sua cabeça para ver se aquella era a voz do seu amigo... Debalde esperou. A noite prolongava-se por seculos, e o coveiro, dando voltas entre o colmo, sentia um calor abafante, suspirava com afflicções e não podia dormir! Logo muito cedo, ainda a manhã apontava, saíu do palheiro para continuar as suas averiguações. Junto da igreja encontrou umas creanças da freguezia visinha, que vinham para a escola, e uma das quaes lhe disse expontaneamente: —Ó tio Cruja, já viu o seu Coisa? O coveiro respondeu suffocado: —Não! Onde está?! —Olhe, tio Cruja, a gente viu-o morto ali no caminho. —Morto!—pronunciou o velho com aspecto rijo, inteiro e com voz commovida. —Sim, senhor, lá em baixo, ao pé da cancella—certificaram os rapasitos, fallando todos juntos, com a intimativa ingenua das suas vozes finas, apontando para longe, no fundo do valle!... * * * * * O coveiro foi ver. No andar tinha os movimentos rapidos e incongruentes de um côxo desvairado!... No rosto transparecia-lhe a expressão amarga e deprimente de uma intensa dôr, sentida com verdade! Os olhares eram impetuosos, lampejantes e vingativos; porque continuava a predominar no seu cerebro a idéa de que algum malvado lhe tinha morto o Coisa!... Chegou ao pé da cancella. O pequeno goso estava deitado, immovel, composto como se estivesse a dormir. Depois que o pedinte faceto o suspendera pelo rabo, tornára a caír casualmente no sulco de carro, onde o seu pequeno corpo se ageitára, no ultimo momento da vida. Com o pello faminto, irriçado pela geada que caíra durante a noite, reconhecia-se ser aquelle mesmo o rafeiro que, nas manhãs de frio costumava correr, doido e despreoccupado, adiante do Coruja, quando elle ía para os enterros. A rigidez cadaverica, apoderando-se do seu corpo magro, com a fatalidade de um acontecimento necessario, dava-lhe uma expressão de insensibilidade absoluta, expressão de indifferença pelas preoccupações da vida terrestre!... O coveiro ajoelhou na attitude piedosa de um crente. Tocou, quasi instinctivamente, com a mão, aquelle corpo inerte, para ter a indubitavel certeza da morte do seu unico amigo! Fel-o com a profunda veneração de uma alma rude; mas, n’este contacto do corpo de um cão morto, sentiu um longo calefrio de terror!...—elle que tantas vezes experimentára despreoccupado, o frio marmoreo dos cadaveres, que os costumava lavar e vestir, para depois os metter na cova e cobrir de terra! O Coruja levantando-se hirto, subjugado, com as feições transtornadas e com as lagrimas nos olhos, e disse resignadamente: —Isto... havia de ser o diabo do frio... Um pouco depois, como se respondesse a uma pergunta, que fizera a si mesmo mentalmente, acrescentou: —...Fome!? tamem seria fome... Honte não comemos nada!... Passados momentos ainda considerou: —Este raio da neve!... Pois elle, com um frio de mil demonios!... A gente sempre anda agasalhada; mas os animaes—coitados!—nem uma vestia, nem uns sócos!... A final, tendo estado muito tempo sentado n’uma pedra a contemplar o corpo inanimado do Coisa, levantou-se com um impulso generoso e disse: —Pois tu não és menos que os outros. Tamem has de ter o teu enterro com officio. Dominado por esta idéa generosa, foi d’ali á igreja, buscar a sua enxada de coveiro, que costumava ter guardada por detraz do altar-mór! Era para abrir a cova ao Coisa. Na sachristia, revestia-se, para dizer missa, o padre José Pitança. Ao sentir pela igreja acima as pancadas sonóras e de uma intensidade desigual, de uns sócos, sobre o pavimento da igreja, observou ligeiramente para o sachristão: —É o Cruja. Já vem por ahi com alguma carraspana. Eh!... Eh!... Eh!... Quando o coveiro saía, atravessando a sachristia de enxada ao hombro, o ecclesiastico, com as mãos sobre o rins, atando as fitas do amicto, suspendeu o murmurar de resa e perguntou em voz alta: —Quem diabo morreu, ó Cruja? —O meu cão—respondeu com brevidade. —E para que levas tu a enxada? —Para lhe fazer um enterro. O sacerdote teve uma gargalhada bulhenta de caçador. O coveiro offendido, respondeu-lhe com orgulho: —Olhe que nem eu, nem você somos melhores que elle. Merece-o mais que muitos fidalgos. E saiu bruscamente, coxeando. * * * * * O Coruja, com o fim de realisar a idéa generosa de fazer um enterro excepcional ao seu cão, procurou primeiro um caixão que lhe podesse conter o corpo. Para isso encontrou uma tábua comprida, sobre a qual o estendeu, alinhando-o cuidadosamente, para ficar bem composto, n’uma posição sensata e natural. Subiu a uma oliveira, da qual cortou uns ramos para cobrir o cadaver, para o enfeitar, dizendo n’uma voz socegada e de respeito: «esta é a tua mortalha». Depois, no proposito de organisar um acompanhamento e dar a isto uma apparencia de cortejo funebre, conseguiu que, a troco de uma promessa de pequena recompensa, quatro rapazitos que andavam n’um monte á garavalha, _pegassem ao caixão_. O caixão era a tábua com o cadaver em cima coberto pelos ramos de oliveira, posta em seguida sobre dois fueiros, tirados, pelo Coruja, de um carro que estava no caminho!... A cada extremidade de fueiro pegou um dos convidados. Depois, quando tudo estava em boa ordem, o coveiro, com a sua voz rouca e falhada, no tom faceto de uma alegria mentirosa, disse: —Toca a andar rapasiada. Levemos este nosso irmão para o _descanço eterno_! As creanças obedeceram com sinceridade infantil, caladas e respeitosas. O sahimento foi por um estreito caminho, com direcção a um alto pincaro, onde o Coruja determinou abrir a sepultura do seu velho amigo. Atraz do feretro ía elle, com a enxada ao hombro, a cabeça descoberta, um aspecto de contentamento triste, entoando o _canto-chão_, n’uma voz roufenha, pausada e distraída, imitando o phrasear dos sacerdotes nos officios: Béu, béu, béu, Vae p’r’ó céu. Ao que os rapazes, que conduziam o corpo, respondiam, fingindo vozes profundas e graves, espaçando as syllabas: Engola, engola, Vae p’r’a cova. Depois, todos juntos, communicando uns aos outros certa alegria sorumbatica e nervosa, cantavam em côro, n’um tom mais cadenciado, largo e solemne: Quem ’stiver no inferno Saia cá p’ra fóra! As creanças achavam isto divertido, apesar de procurarem adquirir semblantes sérios e respeitosos, fingindo attitudes de homens, endireitando o tronco, e esforçando-se por acertar o passo. Porém, como não sabiam coordenar bem os movimentos, em certo instante, pucharam em differentes sentidos e quasi deixaram caír desastradamente o cadaver do Coisa!... O coveiro sentiu rasgar-se-lhe o coração e deu um grito instinctivo e dilacerante! Os rapazes pararam rapidamente, ficando quietos e silenciosos diante d’aquella manifestação inexperada de uma dôr humanamente sentida! Continuaram depois o seu caminho, n’um silencio meditado e mais triste!... Quando subiam a encosta do monte, o rosto do Coruja cobriu-se de certa melancolia, caminhando devagar, com o corpo inclinado para diante, absorvido na idéa da sua perda! Chegando ao cimo, parou junto de uma agglomeração de penedos. Esteve alguns segundos meditativo encostado á enxada... Mas depois, dando á cabeça um movimento impulsivo e retomando o seu tom comico anterior, disse com o chapéu levantado ao ar: —Alto ahi!... oh! rapaziada! Os pequenos pararam, pousando no chão o feretro. O coveiro principiou a abrir ali mesmo a sepultura. O som baço e profundo da enxada, batendo cadentemente na terra, dilatava-se, reproduzindo-se nos angulos da montanha. No exercicio da sua triste profissão, o Coruja tinha, n’este momento unico, um aspecto maguado... Todo curvo sobre a cova que ía abrindo, com uma expressão facial de rigida tristeza, impunha-se austero, digno, respeitavel!... As creanças, graves, silenciosas, olhando absorvidas para elle, obedeciam a um sentimento que não saberiam explicar!... Tomavam parte no sentimento do coveiro e, d’este modo, com a sensibilidade ingenua e infantil, acabavam a tonalidade dolorosa d’este quadro triste! Em frente das montanhas imponentes e do amplo horisonte, a respiração era facil, regular, socegada. Todos sentiam a tranquillidade, o socego, a paz silenciosa dos logares ermos! O Coruja, para acabar o seu trabalho, desceu ao fundo da sepultura e principiou a cavar com esmero dos lados. Desejava que o corpo ficasse cuidadosamente ageitado, como n’um berço!... Por fim, disse aos seus companheiros n’uma voz natural: —Chegae-me para cá esse caixão. E tirando cuidadosamente os ramos de cima do corpo, sopezou a tábua, para a collocar no fundo com o cuidado e com o amor com que collocaria o corpo de uma creança morta! Um dos assistentes confessou com naturalidade: —Parece... como os anjinhos. O Coruja devolveu a esta expressão singela e amoravel: —Tens rasão. Olha que tinha uma alma como elles. E passou a mão na cabeça d’esta creança, que lhe penetrára o pensamento, com a amisade com que o poderia fazer a um seu filho... Acrescentou depois, com voz comprimida pela dôr, mas esforçando-se por ser alegre: —Vamos lá a cantar os officios, para ajudar a entrar esta alma no céu da bemaventurança!... Recomeçaram de um modo mais calmo, penetrados de comica circumspecção, o funebre _canto-chão_. Dizia o Coruja de um lado: Béu, béu, béu, Vae p’r’ó céu. Respondiam as creanças do outro: Engola, engola, Vae p’r’a cova. Depois entoavam todos em côro: Quem ’stiver no inferno Saia cá p’ra fóra! Repetindo isto muitas vezes, andavam em volta da sepultura. As creanças seguiam o coveiro, como acolytos. O Coruja, com um ramo de oliveira na mão, significava espargir o morto, com agua benta hypothetica! Por fim cobriu-se de terra o defunto. Espetaram-se sobre a cova os ramos de oliveira, e todo o mundo se retirou. Os rapazes íam adiante do coveiro, contentes e felizes, atirando pedras que rolavam pelo monte abaixo. Um d’elles, vendo-lhe lagrimas nos olhos, perguntou a um companheiro: —Porque é que o tio Cruja chora? Ao que o interrogado respondeu intelligentemente: —Ora... era amigo do Coisa. * * * * * Nos tempos subsequentes ainda viram, algumas vezes, o Coruja subir aos penedos sobranceiros á sepultura! Demorava-se ali horas, olhando para o largo horisonte, cantarolando sempre, como era seu costume nos momentos tristes! N’um dia em que o barbeiro Zé Maximo, com o seu ar importante de banalidade, lhe perguntou indiscretamente, sorrindo-se com modos de troça, «Ó Cruja, tu, diz que fizestes um grande enterro ao teu Coisa!», elle respondeu com azedume: —É verdade, meu grandissimo jumento! Merecia-o melhor que tu. O EMBARCADIÇO O EMBARCADIÇO Miguel Timão era um homem corpulento, de feições energicas e leaes. Em linhas pontilhadas, de um azul indelevel, tinha no braço direito um navio com o seu velame e no esquerdo um signo-samão. Partira da sua aldeia descalço, por uma crua manhã de geada, com toda a roupa n’uma pequena trouxa, enfiada n’um pau!... Seu pae, a este tempo, era um cego que vivia da caridade... Na aldeia não havia ganhos... Foi por isto que elle, na companhia de outros emigrantes, foi pelo mundo fóra, procurar fortuna... Ah! como a sua alma boa e generosa estremecia alegremente com a idéa consoladora de ganhar dinheiro para sua irmã Catharina, e para seu velho pae cego!... Andou por lá muitos annos sem dar noticias... Na terra chegaram a esquecel-o, suppunham-n’o morto... O padre Beiral, que lia as gazetas, vira, entre as victimas de um naufragio, o nome de um Miguel... Não podia ser outro. Catharina chorou um dia inteiro e deitou lenço preto... Porém, este convencimento foi precipitado; porque, o rapaz, não morrêra, apesar de ter passado muitos annos n’uma vida trabalhosa, cheia de incertezas e de perigos, no meio dos quaes nunca poude esquecer a sua pequena aldeia, risonha e distante. Durante largo espaço de tempo, correu uma boa parte do mundo e foi todas as cousas que um homem rude pôde ser:—acompanhou um inglez no Egypto e na India; foi soldado nas republicas hespanholas da America, entrando em muitas conspirações; foi carroceiro no Brazil; e, durante os ultimos vinte e cinco annos, andou embarcado, percorrendo grande numero de portos do mundo, ouvindo todas as linguas e conhecendo homens de todas as côres... Á sua organisação temeraria convinham as incertezas de amplo mar, mysterioso e amigo... Uma vida accidentada, com alegrias e desesperos, mas sempre com dinheiro no bolso, quando saltava em terra, eralhe sympathica! Tambem agora, depois de velho, n’estas noites chuvosas da sua aldeia, Miguel tinha sempre que contar aos seus conterraneos, que o escutavam absortos e pasmados. No entanto, de tanta aventura extraordinaria, aquella que mais os impressionava era a de o maritimo ter comida _carne de gente_! Apesar da circumstancia attenuante da fome a bordo e da morte irremediavel para todos, as velhas beatas da aldeia acreditavam firmemente que, o filho do cego, não poderia ter na outra vida um destino bemaventurado... O que mais os horrorisava era, de certo, a serenidade com que o irmão de Catharina descrevia este enorme momento de desespero, tirando longas fumaças do seu cachimbo requeimado!... Fôra no alto mar, na soberba amplidão infinita, com o céu misericordioso e azul sobre a cabeça... O navio, depois de uma tormentosa viagem e quasi sem mantimentos, teve uma calmaria no mar das Indias, boiando, monotonamente, como um cetaceo morto, durante semanas... Por baixo o mar immenso, sem ondulações providenciaes, liso como a superficie de uma poça, guardando, no seu amplo ventre poderosos animaes, que poderiam sustentar durante tempos a população da Terra... De noite, alguns d’esses peixes vinham á superficie da agua, attraídos pelo brilho das estrellas, pelo pharol de bordo e pela frescura relativa do ar. Gasta a ultima ração de arroz e de bolacha, todos os marinheiros tiveram a heroica firmeza de não comer em tres dias, esperando um soccorro fortuito! Em vão clamaram pela Infinita Misericordia! Em vão tiveram dedicação e coragem!... A Fome Implacavel, como um demonio sinistro, já os fazia estorcerem-se no convez com dôres cruciantes nas entranhas! Sentenciaram-se dois, á sorte, para alimentarem os restantes! Que valentes e bravos companheiros, esses rapazes de trinta annos! Nunca a coragem tomou uma fórma mais sublime e sympathica! Nunca a resignação na morte foi mais austera e imponente! Foram elles mesmos que, risonhos e conformados, abriram as proprias veias, para morrerem! Só quatro dias depois d’este acontecimento horripilante é que, os sobreviventes, avistaram um vapor que vinha da China e os rebocou para Madagascar!... Outro navio, dos muitos em que embarcára, naufragou no golpho do Mexico! Era de um contrabandista andaluz, que fazia o seu commercio no mar das Antilhas. O dono da embarcação ía a bordo, e vendo diante dos olhos as guelas medonhas do mar, promettia a quem lhe salvasse a embarcação, casal-o com sua unica filha, uma rica herdeira sevilhana!... Porém, o mar estava picado que nem um inferno, e tudo se perdeu _morrendo todos_ n’aquella escuridão tormentosa!... E um rapaz de aldeia, que escutava a narrativa, tranzido de susto, observou com voz timida: —Mas o tio Miguel não morreu... —Morri, sim, senhor, seu palerma! Quem te disse que não morri!?... E ficou a olhar para todos que ouviam, com uma viveza estupefaciente! Por fim, depois de uma vida cheia de aventuras perigosas, teve uma prolongada doença, que o deteve por dois mezes n’um hospital americano. Foi em S. Francisco, na cidade maravilhosa e quasi phantastica, celebre pelas suas ricas minas de metaes preciosos, d’onde, provavelmente, foi colhido o ouro com que se fabricou essa gargantilha com que vossa excellencia adorna o seu formoso pescoço, minha bella senhora! Aos seus quatro districtos aurificos—o da California—a lendaria California!—o de Idaho, o da Nevada, e o de Varhoe—concorrem todas as extravagantes ambições do mundo moderno, principalmente os ricos judeus e os miseraveis chinezes que ali vão trabalhar! S. Francisco, que domina estas regiões do sonho, é uma das mais modernas, de entre todas as grandes cidades americanas, pois que principiou a povoar-se em 1848, quando appareceu aquelle bocado de ouro, no moinho do capitão Sulter. Tem hoje mais de duzentos mil habitantes e os seus famosos ladrões, e os incendios criminosos que ali houve ainda ha pouco espantaram o mundo inteiro! S. Francisco é uma população cosmopolita, que falla inglez e vive n’uma cidade com nome hespanhol, tão maravilhosa e incomprehensivel para um pacato europeu, que, quando foi da guerra da _Independencia_, o celebre doutor Belows, presidente do conselho de saude, convocando um _meeting_ a favor dos feridos, fez um discurso e vendeu os apertos de mão a dollar, sendo tantos os dollars que lhe caíram para dentro do chapéu que, o philantropo medico, teve o braço esquecido por oito dias! É uma cidade que não tem nem os pobres immundos e obscenos das ruas de Lisboa, nem os garotos vivos e espertos que se encontram em New-York e Londres!... O seu luxo é de tal ordem que, a vida ali, é dez vezes mais cara do que em Paris! Miguel Timão, minhoto e sagaz, conservava d’esta cidade nova, levantada pelo enorme poder do ouro, uma impressão energica! Depois de ter percorrido a maioria das cidades maritimas do mundo, em nenhuma vira tanta sumptuosidade e opulencia! Aqui, as vaidades materialistas da civilisação moderna, impõem-se com uma soberba que deslumbra! Talvez, pelo estonteamento que produzira n’este homem obscuro um mundo tão febricitante, elle teve um dia como a reclamação subita de um sentimento perdido, e na sua mente appareceu o quadro pacifico da sua pequenina aldeia, tão sympathica e inundada de luz. Foi n’esse tempo que, uma das febres endemicas n’aquellas regiões irregularmente humidas, o accommetteu de subito, com um longo calefrio, que o prostou n’um estado comatoso!... Recolheram-n’o ao hospital e, até terminar a convalescença, passaram-se aproximadamente dois mezes!... Durante este periodo de inactividade forçada, a sua memoria principiou a resuscitar-lhe o passado!... Era a primeira vez que estava doente! Alquebrado e enfraquecido que poderia fazer!? Com os elementos dispersos, que o seu pensamento lhe ía trazendo, pouco a pouco formava os quadros da sua vida infantil. As figuras dos homens que então conhecera, as raparigas com quem brincára, appareciam-lhe com um sorriso feliz e benefico, acompanhando-o n’estas distancias... Via-os como os deixára, porém, considerava que deviam estar mais velhos... que muitos teriam morrido... Não fôra elle tambem novo e forte, e não estava agora coberto de cabellos brancos e com rugas serpeando-lhe no rosto?! O tempo não corre debalde, e muitas das pessoas em quem pensava, estariam enterradas n’aquella pequena igreja caiada, que se lhe representava na imaginação!... Tudo isto lhe condensou no espirito o firme desejo de voltar á sua terra... Tinha algum dinheiro e, logo que se encontrou restabelecido, pensou em tomar o primeiro navio que viesse para as costas de Portugal ou de Hespanha. Assim o fez, embarcando com a saudade insoffrida de um rapaz de vinte annos!... Era um domingo de primavera o dia em que entrou na sua aldeia... O céu azul, a pureza do ar, a alegria dos campos em flor... lançavam-lhe na alma enthusiasta vibrações de uma harmonia complexa e guerreira. Do intimo da terra saíam musicas genesiacas no aspecto da paisagem enebriante. As flores roxas e brancas das macieiras e das cerdeiras abriam-se em leques multiplicados sobre os campos verdes d’onde sobresaia o branco virginal dos malmequeres, a côr serena das violas, o vermelho sanguineo das papoulas bravas... Os trigaes viçosos palpitavam com o seu crescimento gradual, entre as largas manchas escuras das recentes searas de milho. As raparigas cantavam nos campos, atraz dos seus bois de cornos retorcidos que pastavam, fiando as estrigas da tarefa. A temperatura de um tepido parasidiaco e sensual enlanguescia, produzindo sensações dominadoras, fazendo comprehender os movimentos fecundantes da seiva universal!... Era um estonteamento de vinho forte o que subia á cabeça rija do velho maritimo, que caminhava lento e absorvido, reconhecendo todos aquelles logares queridos da sua infancia! Os olhos humedeciam-se-lhe de lagrimas, e o contentamento e a felicidade que lhe percorria ao longo dos nervos, entorpeciam-n’o... Os homens e as raparigas que passavam, interrogavam este desconhecido com olhares insistentes... Quem será este homem, que caminha dando sacudidellas aos hombros e que tem o andar de um borracho!?...—pensavam. Então elle parava para lhes perguntar numa entonação estrangeirada: —Conheceis a Cathrina, filha do cego da rocha? Conheciam perfeitamente; mas não era nenhuma rapariga. Muito pelo contrario, a mulher que tinha esse nome mostrava-se já muito velha, corcovada e doente... A sua vida era esmolar pelas aldeias e dormia por caridade n’um palheiro do padre Beiral. Mas espantavam-se que o desconhecido principiasse a chorar com estes esclarecimentos e perguntavam-lhe compadecidos: —Quem é você, hominho? Para que quer saber da Cathrina, e chora? Mas o homem da barba branca, que andava como um desengonçado, não lhes respondia e continuava a caminhar para a _residencia_ que se via d’ali, na encosta, ao pé da igreja. Levava ao hombro, enfiado n’um pau, uma mala de couro e umas botas de canos... Este modo de andar aos solavancos impressionava os que o viam... Não podiam saber quem fosse e ficavam a olhar uns para os outros!... Mas quem o reconheceu, mesmo antes d’elle fallar, foi Catharina, que se lhe agarrou ao pescoço, chorando e repetindo muitas vezes: —Meu rico irmão, como estás velho! E Miguel, o valente marinheiro temerario, deixou caír ao chão a mala e as botas, dizendo por entre soluços: —E tu como estás acabada, mulher! Como te venho encontrar! Mas depois, como Miguel trazia algum dinheiro, que juntára cuidadosamente para esta eventualidade de voltar á sua aldeia, resolveu-se a comprar a mesma casa onde nascera, a qual seu pae tinha vendido por causa da longa cegueira em que viveu. O padre Beiral ajudou-o. A casa era velha e pequena; mas o campo adjunto era largo e magnifico terreno... O espirito do maritimo principiou a sentir um renascimento, a remoçar-se, a ter os alegres impetos da mocidade. Era aquella a mesma paisagem que sempre vira até aos vinte annos. Havia o mesmo musgo nas mesmas paredes; a mesma hera segurando as pedras dos muros esbarrigados; os mesmos penedos no alto do monte sobranceiro á igreja, manchavam o azul intenso das tardes primaveraes; as sebes de silvas, cobertas de folhas perpetuas e de amoras, embeiravam os campos e caminhos; e, finalmente, na frontaria da igreja ainda estava quebrado o mesmo vidro, como no dia em que elle partira! O que encontrava de differente no longo espaço de trinta annos? Muito pouco: o cypreste do adro tinha crescido e até envelhecêra; a carvalheira do pé da fonte, que tres homens com as mãos agarradas não podiam abraçar, estava carcomida, porque fôra queimada por um raio; as tres casas novas, caiadas, que se distinguiam de longe com as suas claridades vivas, e cujas vidraças scintillavam com o sol poente, tinham sido levantadas por uns brazileiros ricos, um dos quaes tambem presenteára a Nossa Senhora da igreja, com uma lampada de prata, que causára inveja ás outras _Nossas Senhoras_ da visinhança. Mas, de todos os factos que permaneciam, e que Miguel tanto estimava, aquelle que o chocou de um modo energico, aquelle que o penetrou em todo o seu ser com uma força omnipotente, foi o toque do sino grande da igreja, que ainda era falhado como d’antes!... Quando agora o ouviu pela primeira vez, depois de tantos annos, eram trindades e estava comendo uma posta de bacalhau á lareira do Beiral. Deixou caír o garfo de ferro, ficou a olhar com um modo estupido, e as lagrimas corriam-lhe pelo rosto enrugado! Oh! era aquelle o mesmo som, que o accordava nos domingos despreoccupados da sua vida passada!... Por todos estes motivos, o embarcadiço resolveu morrer na sua aldeia!... Estava velho, ainda que robusto; as fadigas e os trabalhos por esse mundo fóra tinham-no gasto muito. O mar... o mar para elle já não podia ser senão uma sepultura!... Uma grande sepultura decerto; mas, sepultura por sepultura, tinha ali uma na igreja que era mais perto, ainda que mais humilde. Ficava ao pé dos ossos de sua mãe que não conhecera, e de seu pae que não tornára a ver!... Resolvido isto de um modo terminante, principiou a interessar-se pela historia local, pela monotonia da conversa dos visinhos, a quem elle espantava com os successos da sua vida curiosa. Vieram-lhe tambem os desejos de grandes emprehendimentos agricolas—quiz cultivar o seu campo. Plantava hortaliças que mandava vender á villa, semeava batatas, colhia quasi um carro de milho, uma meia pipa de vinho e tinha muita fructa. Os seus melões e melancias davam-lhe orgulho—mandava-os vender ás romarias, onde já tinham nomeada e eram preferidos aos dos outros cultivadores! Tambem não admira, pois que lhes dedicava muito tempo e amor—regava a tempo, mondava-os com sagacidade, regulava-lhes o sol de um modo conveniente... O padre Beiral disse-lhe um dia, que não se fallava nas gazetas de que houvesse, em qualquer parte do mundo, outros melões como os d’elle. O Timão, orgulhoso e confundido, respondeu: —Isso, senhor, é da semente e da Senhora da _Bôa-Viage_ a quem os encommendo sempre!... * * * * * Mas havia na aldeia uma malta de rapazes, que tinham por brazão não deixar segura qualquer fructa boa, no quintal de quem a tivesse. Estes meliantes, n’esse anno em que o sacerdote gabou os melões, projectaram ir _proval-os_ de noite. O Timão já andava com a pedra no sapato e, para os prevenir, disse um domingo no adro, ao saír da missa, fallando bem alto para ser ouvido, «que se alguem lhe fosse ao meloal _o racharia de meio a meio_!» O Tone da Engracia incitou-se com esta ameaça e propoz um assalto á fazenda do embarcadiço... Poderiam ir n’uma noite escura, com cautelas premeditadas, para não serem presentidos... Desceriam do muro de vagar, por uma corda presa a certo carvalho, para não fazerem baque no chão... O meloal era muito perto da casa, n’um recanto soalheiro, onde podiam á vontade ser meticulosamente vigiados... O Miguel Timão tratava-os com tantos cuidados, que até para lhes tirar a sombra baixára uma videira antiga, dirigindo-a para uma latada, junto ao muro... De manhã cedo, ainda o sol vinha em casa de Deus, já elle, em mangas de camisa, andava contando as boas melancias rajadas, que deixára na vespera, e os optimos melões apimentados assentes sobre folhas, para não apodrecerem com a humidade da terra. Alegrava o espirito, consolava, vêl-o assim de barba branca, este velho robusto e musculoso, trabalhar com amor, assiduamente, no seu campo, incluindo n’esta preoccupação toda a sua alma e todo o seu tempo... Oh! os rapazes que pensavam em roubar-lhe os melões, decerto se arriscavam muito! O velho Timão levado por mal seria um demonio, em convulsões de desespero!... Mas o da Engracia, o Teixugo, o Cambado e o Telhas, não se preoccupavam com medos e sómente commentavam com antecipação, a grande risota que se produziria em toda a gente, quando soubessem que aquelle papa-gente tivera, ao seu tão gabado meloal, um inesperado assalto! A não ser o Telhas, os outros, não pensavam em qualquer risco. Sendo alta a noite e bem escura, o embarcadiço estaria a dormir profundamente! Se, ainda tivesse um cão, podia haver receio; mas, o imprevidente velho, dizia muitas vezes _que um bom cão era elle_! Quando chegou a noite do sabbado combinado, o Telhas, que era cagarola, ainda disse... assim com um modo engulhado: —Home, e se elle nos pilha?! Esta phrase denunciava quanta impressão, diante da mente espavorida d’este rapaz, produzira o quadro terrificante do Timão, n’um canibalismo infimo, mastigando os seus companheiros de infortunio, na desesperada fome que soffrera no mar das Indias! O Tone irritou-se com esta covardia despresivel, chamou fracalhão ao Telhas, que lhe respondeu com um modo prophetico e despresador: —Olhem o valente! Tamem quero ver, quando te vier um balasio pelos queixos, se não ficas de cara á banda!... Mas o da Engracia engulia balas—não tinha medo nenhum d’ellas! N’essa mesma noite, estavam resolvidos, foram. Mas, como não queriam ser engarampados com alguma arriosca, ao chegarem ao sitio, caminharam instinctivamente com certa prudencia... O embarcadiço era um velho rijo, que não tinha medo da morte, porque a vira muitas vezes diante de si. Não se importava de matar um ladrão, arriscando-se a ir por uma barra fóra; pois andar por lá sempre fôra sua vida. Com uma navalha de tres estalos e um bacamarte de bôca de sino, costumava fazer ameaças abstractamente, dizendo: —Aquelle que m’as fizer estiro-o. Ainda seis centos mil raios me partam! A beata Vicencia, quando lhe ouvia esta jura, recuava berrando: —Abrenuncio! Santo Nome de Maria, que nos póde vir um grande castigo por causa d’este excommungado! O Timão retorquia-lhe com olhar de piedade: —Calla-te minha papa-hostias. Bons castigos soffri eu por esse mundo. Porém, o plano de roubar o meloal estava estabelecido, os rapazes não trepidaram. O da Engracia é quem saltaria dentro, para encher o sacco. O Teixugo e o Cambado ficariam no caminho, de vigias; o Telhas em cima do muro. Á meia noite o Tone desceu do muro, cautelosamente ajudado pela corda presa ao carvalho, para não ser presentido... Quando assentou os pés na terra defendida pela navalha hespanhola e pelo bacamarte de bôca de sino, estremeceu involuntariamente!... Sentia, dentro em si mesmo, uma opposição, á qual resistiu com toda a força da sua energica vontade. Talvez desejasse retroceder; mas atraz de si, em cima do muro, estava o Telhas, a quem chamára fracalhão, e que logo que o viu um momento parado e apurando o ouvido, lhe disse com uma ironia perceptivel: —Home, não tenhas medo. O velhote dorme como um porco. O rapaz encorajou-se subitamente, levantou a cabeça com orgulho e começou a andar com certa resolução temeraria. Na profundidade da noite tranquilla, serena e sem luar, ouvia-se o cochichar subtil dos vigias, o som gemebundo e extenso de dois sapos, o ruido estival, permanente e continuado dos ralos!... Um grande morcego manchou a limpidez do ar com o seu vôo largo, produzindo um silvo. A pequena casa do Timão ainda se percebia ao fundo, por entre as arvores de fructa, como uma massa confusa. A escuridade e o silencio augmentam sempre o medo, e no cerebro do Tone da Engracia, as idéas principiavam a atropellar-se, a confundir-se, a tomar fórmas...—diante dos seus olhos, configuravam-se homens aggressivos. Por isso elle tornou a parar no meio do campo! Então sentiu-se n’um isolamento mais completo, como o do alto mar!... Por cima o céu limpido, as estrellas com movimentos crepitantes de luz, a amplidão cheia de uma sombra grandiosa...—um certo palpitar da natureza que o subjugava! A pequena distancia, em cima do muro, o Telhas, como uma reprehensão sempre viva. Qualquer manifestação de receio, de pavor, que sarcasticas censuras não encontraria?! No entretanto, n’este instante nervosamente inexplicavel, a figura do velho marujo endurecido nos trabalhos e nas difficuldades, appareceu-lhe na imaginação, com uma realidade que feria! N’este momento o Telhas tossiu ao longe! O Antonio estremeceu e teve um calefrio ao longo da espinha! Estas duas circumstancias, bem diversas, deram-lhe o impulso definitivo, e o Tone começou a caminhar ousado, direito, altivo e até insolente! Passando por entre as hervas e calcando as folhas seccas fazia um ruido imprevidente... Que lhe importava a elle que apparecesse o velho maritimo! Aquella tosse casual de um dos seus companheiros teve nos seus ouvidos uma ressonancia ironica, aguilhoara-lhe a vaidade, restituira-lhe a sua coragem e temeridade habituaes. Entrou no meloal. Principiou a agachar-se muitas vezes, para escolher o que havia de melhor. Estava apparentemente sereno, não temia ninguem. Levantava os melões para os suppezar, para os levar ao nariz pelo lado do pé com o fim de lhes apreciar o adiantamento da maturação. Affastava as folhas largas, carnosas, recortadas das melancias...—queria escolher as mais sazonadas. O que lhe ía servindo cortava rente pelo pé, e logo ía depositar, a dois passos, no carreiro junto do sacco. N’um d’estes instantes, o silencio da amplidão foi cortado por um chiar de gonzos prudentissimo... O Tone levantou a cabeça á escuta... Não percebeu mais nada: talvez fosse a passagem de algum noitibó por entre a ramagem das arvores. A escuridade não o deixou ver a cabeça do Timão, que appareceu ao postigo, escutando... O da Engracia continuou. Mas, quando tinha cortado mais um melão e que o ía levar... sentiu certa difficuldade em mover um pé! Empregou impensadamente um esforço mais energico para vencer esta opposição; porém, sem logo perceber porquê, caiu redondamente no chão, de bruços, produzindo na quéda o baque de um corpo sem vida!—tinha os pés presos n’um laço intelligente, armado pelo marinheiro, para agarrar um ladrão presumptivo. O temerario rapaz deu um grito e esforçou-se logo por se levantar, colleando como uma cobra ferida na cabeça!... Porém, soccorrel-o, era impossivel. Os companheiros, atterrados pelo som do bacamarte de bôca de sino que o embarcadiço disparou para o ar, fugiram, tendo ainda tempo de ouvir esta phrase temerosa: —Seus grandissimos ladrões, que os mato! Taes palavras e aquelle tiro disparado com um fim theatral, produziu o effeito previsto. Os companheiros do Tone, julgando-o talvez morto, abandonaram-no. O Miguel Timão, que saíra da casa com grande rompante para espantar os que estivessem, chegou-se ao que jazia no chão, e disse-lhe com ar de troça: —Então sempre caíste melrinho?! Deixa que eu t’o digo já. Ha-de-te ficar de escramenta. O da Engracia, completamente submettido, pediu: —Ó tio Miguel, não me faça mal, que eu não torno... O marinheiro não lhe fez mal. Tambem lh’o estava pedindo sua irmã, que era muito obrigada ás esmolinhas, que a tia Engracia lhe fizera em tempos precisados. Porém, apesar dos esforços de raiva e das supplicas, o velho maritimo não prescindiu de enlear bem enleado o seu preso e de o ir collocar no caminho, com o fim de ser solto pelos primeiros misericordiosos que passassem para os campos! E ao deixal-o fóra do muro, disse-lhe: —_Prá_ outra vez, se cá voltas, ha de ser peor. Entendes? Depois retirou-se, não cedendo mesmo á intervenção a favor do adoptivo da Engracia, feita por sua irmã Catharina, que lhe pediu para o desamarrar, e a quem respondeu: —Sabes que mais?! _Bae bugiar._ É uma ensinadella. O REI ABSOLUTO O REI ABSOLUTO Emilio era uma creança robusta, que tinha as pernas grossas, os braços grossos, o pescoço firme, o olho penetrante, travesso, audacioso. As suas pestanas finas, grandes, ramudas, sombreavam-lhe as pupillas negras; as sobrancelhas espessas, fortes, unidas, aproximavam-se irriçadas, nos momentos de colera infantil, como o dorso de uma hyena. Quando já tinha quatro annos e que sentia o poder intimo dos seus musculos; quando principiava a distinguir-se dos outros, a considerar-se pessoa, e que reconhecia, como uma energica qualidade que se impõe, a sua vontade potente e a sua força capaz de executar, o pequeno Emilio quebrou uma jarra de flores, atirando-lhe acintosamente com uma pera, que não queria comer, por desejar outra. A mãe, que era severissima, castigou-o. Elle que era um rapaz de brio, principiou uma berraria de mil diabos, gritando com perrice, com frenesi, deitado de barriga, batendo no chão com os pés, com os punhos, com a cara, e mordendo no bibe para o rasgar! Convencionaram calculadamente, a mãe e as creadas, não fazer caso d’elle, deixal-o chorar quanto quizesse, deixal-o espernear, gritar, morder-se, contundir-se. Queriam fatigal-o, vencel-o pelo proprio esforço que fazia, para assim lhe darem uma lição moral, para o ensinarem a conhecer que as maldades castigam por si mesmas, aquelles que as praticam. Mas, qual lição, ou qual diabo!—esta conspiração passiva enraiveceu-o ainda mais, e mordia ainda mais nas mãos, batia de cada vez mais na cara, de cada vez dava na cabeça com o punho mais cerrado e com mais força! Quando a mãe, com a sua paciencia reflectida, lhe disse, do vão da janella onde costurava, com voz moderada e firme: «deixa que tu has-de-te calar», elle, berrando com mais força, respondeu-lhe: «não hei, não hei, não e não», continuando intencionalmente o seu choro. Dava uns gritos agudos, estridentes, discordantes, como as vibrações de uma rebeca desafinada; mas depois, com o tempo, como a mãe previra, veio o cançasso, o desleixo, o esquecimento de que estava chorando, e decaíu gradualmente n’uma voz mais branda, mais enfraquecida, monotona como o som da ultima badalada de um sino, que se esgota de quebrada em quebrada. Houve até um momento em que chegou a calar-se; porque no chão, adiante da sua cara, uma _farmiga-operaria_ andava lidando na remoção de uma pedra que encontrára no caminho. O pequeno animal, estonteado, perdido das suas companheiras, que formavam um longo fio negro, junto da parede, adiantava-se para elle, afastava-se para traz, para a esquerda, para a direita, procurando com uma intelligencia tenaz, um auxilio, alguem que o ajudasse. Por fim vieram mais duas, e então principiou uma lucta obscura, mas profiada e imponente, em que tres formigas removiam, com um nobre esforço cheio de paciencia, uma pedra mais pesada do que todas ellas juntas. Emilio principiou a interessar-se nos movimentos apparentemente caprichosos dos pequenos insectos. Os seus olhos vivos e animados seguiam com cuidado, com esmero, aquelle trabalho das formigas-obreiras, que tombavam a pedra, levando-a na direcção desejada. Calado, de bruços, com o pequeno queixo sobre o punho, observava attenciosamente todos os movimentos, tendo as linhas faciaes n’uma contencção rigida, nervosa, reveladora de um esforço intimo. A mãe, apreciando incompletamente este silencio de seu filho, disse-lhe com ligeiro ar de triumpho: —Mas sempre te calaste... Ao que elle respondeu promptamente: —Mas vou gritar mais. E retomou o seu choro com nova energia, com mais vigor. Porém, como viu que a mãe se rira escarnecendo-o, reconheceu-se vencido, mediocre, e cheio de vergonha pela sua imprevidencia, pela falta de tenacidade, fugiu d’ali chorando alto com asperos gritos de raiva. Foi pelo corredor adiante para a varanda, que dava sobre os campos. Era uma larga paisagem com o horisonte recortado pelas alturas das arvores desiguaes. Os altos castanheiros com as suas folhas lenhosas, rijas e de um verde claro, distinguiam-se dos pequenos carvalhos fortes, atarracados, folhudos e das cerdeiras vistosas, de ramagem espalhada, e de um verde mais suave. O pequeno Emilio observou, com a serenidade dos seus grandes olhos negros, todo este conjuncto. A sua physionomia era meia contemplativa, meia raciocinadora. Media, com despeito, a enorme superioridade d’aquellas arvores, pela ostentosa corpulencia com que se destacavam ao longe. Mas depois, por um movimento natural, com uma reacção instinctiva, fez este juizo simples e claro, dando ás suas palavras um tom imperativo, com os beiços alongados: —Tambem eu sou capaz de subir a cima d’ellas, como o Manuel! E com o seu pequeno rosto de uma auctoridade expressiva, ficou a olhar para os campos, fixando soberbamente as arvores, ás quaes se reconheceu superior. Sentia-se forte como o Manuel, o creado da lavoura. Nos seus musculos havia uma energia latente, a sua vontade era uma voz de commando, intima, secreta, mas absoluta. Elle podia-se mover, andar, ir buscar uma cadeira, arrastal-a até á varanda para subir, para ver as arvores que estavam nas orlas dos campos, quietas, n’uma immobilidade permanente!... Ao longe viu duas vaccas que pastavam, com a cabeça baixa e o pescoço estendido para a herva. De vez em quando moviam com lentidão, os seus corpos volumosos, dando passadas de vagar, mas pousando com segurança os seus pés. Outras vezes levantavam a cabeça, espalhando mansamente o seu olhar sereno pelas encostas, e, se viam outras vaccas, mugiam com uma voz ululante, vaga, de uma expressão triste. Um pequeno rapaz de dez annos, forte, sujo e travesso, vigiava as vaccas. Em certos momentos, quando ellas se aproximavam das vinhas, era elle que as enxutava, picando-as cruelmente com a aguilhada, berrando-lhes alto, com energia, obrigando-as a tomarem a direcção que desejava. O pequeno Emilio apreciou, da sua varanda, estes factos com um olhar meditativo, profundo, e conheceu-se intimamente capaz de mandar n’aquellas vaccas, de andar n’aquella liberdade dos campos, correndo, saltando, subindo ás arvores, dando quédas, dando gritos, picando as vaccas... N’este momento todo o seu ser estava possuido de uma forte necessidade de posse, de commando. Desejava ser livre como aquelle rapaz que via ao longe, no meio do campo, com um imperio indiscutivel e tyrannico sobre a vontade d’aquelles animaes possantes, que obedeciam resignadamente á sua aguilhada. Emilio sentia-se tomado de uma grande ambição, de um sentimento de energia que o tornava audacioso... Desejava possuir todo aquelle mundo que via—as vaccas, os campos, as arvores, as casas, as poças de agua, os pombos que passavam no ar com o seu vôo rapido, as proprias nuvens que estavam suspensas, como ephemeros frocos de espuma. Mas queria possuir _tudo_, mandar em _tudo_ de um modo absoluto, incondicional! —Se morresse toda _essa_ gente... era tudo meu!—raciocinou atrevidamente. _Essa gente_ eram os outros, os que possuiam aquellas cousas todas, que no momento elle ambicionava!... E com as palpebras immoveis, as pupillas fixas n’um ponto indeterminado, as sobrancelhas severamente contraídas, os beiços alongados como os de um macaco colerico, o queixo apoiado na mão esquerda, contemplou a grandeza _do mundo que via da varanda_! Por fim, absorvido _na sua idéa de poderio, de auctoridade_, desceu da cadeira e, calado, altivo, arrogante, foi por um corredor escuro que se abria na sala. * * * * * Entrando, observou com intrepidez, com supremacia indiscutivel, os retratos e as gravuras que estavam pendentes das paredes. Sustentou um olhar de soberba, com a estatueta de porcelana, que representava Christovão Colombo com o mundo na mão esquerda. Reparou com desdem altivo n’outra de um velho general _do primeiro imperio_, que faiscava coleras marciaes dos olhos coruscantes, tendo o seu chapéu napoleonico de travez, na direcção dos fartos bigodes, e apoiava a mão esquerda nos punhos da sua espada invencivel. O pequeno Emilio, vendo casualmente no espelho da parede, que o seu pequeno rosto tinha bastante séveridade, encarou de novo o general, ainda com mais intelligencia e sobrecenho, conservando-se firme, auctoritario e dominador! Passados momentos, o semblante coloriu-se-lhe com uma expressão mais suave, quando contemplou a cadeira de braços, onde _seu papá_, depois de jantar, costumava ler o jornal e adormecia recostado. Tinha-o visto n’esta posição muitas vezes:—o seu grave aspecto paternal apresentava uma curvatura desleixada, tendo a cabeça caída para o seio, resonando com gravidade e com estrondo. Este quadro simples e familiar impressionara-o sempre, deixando-lhe o desejo de ler o jornal, recostado na cadeira com abandono, como seu pae. O momento era opportuno, estava sósinho na sala, ninguem o poderia impedir... Fechou a porta do corredor com todas as cautelas de um malvado, de um pequeno facinora consciente, para d’esta maneira poder realisar com facilidade esta ambição temeraria, de fingir que sabia ler o jornal recostado na cadeira paterna! N’aquelle momento ouviu tossir a _mamã_ que estava no quarto proximo e por isso suspendeu, por instantes, a realisação do seu audacioso plano. E, como passado pouco tempo, tudo recaíu n’um socego favoravel, Emilio dirigiu-se á cadeira. Subiu para ella, agarrando-se com esforço, lançando primeiro a perna esquerda, depois a perna direita, ficando primeiro de bruços e chegando a indireitar-se depois de se ter apoiado nos joelhos e segurado fortemente com as mãos. Quando chegou a cima e se recostou, a sua respiração era larga e profunda, signal de que estava cançado do grande esforço que fizera! Pomposamente recostado na cadeira, Emilio tinha um ar orgulhoso e via se que estava bem penetrado da sua importancia fortuita! Fingiu admiravelmente que lia o jornal, movendo levemente os beiços como fazia seu pae, revirando os olhos com intelligencia e dando á cabeça movimentos lateraes apropriados. A final, para completar o quadro, deixou cair com desleixo o papel, entrando resolutamente no periodo do somno digestivo, fingindo com propriedade, um resonar altivo e cheio de insolencia! Esteve assim algum tempo... Porém, não lhe consentindo as impaciencias naturaes o demorar-se muito, levantou-se em pé na cadeira e desceu para o chão, por um processo inverso ao que empregára para subir. A um lado, sobre uma pequena mesa, estava a bengala e o chapéu do papá. Dirigiu-se intrepidamente a estes objectos respeitados, para os possuir. Poz o chapéu na cabeça, pegou na bengala pelo castão de velho marfim defumado e desejou passear ao longo da sala com porte altivo, com importancia natural. Mas o chapéu enterrou-se-lhe até aos hombros e, quando pretendeu dar passadas de um homem encostado á sua bengala, tropeçou e caíu de bruços. Então levantou-se zangado, nervoso, vermelho de colera e retomou um aspecto imponente e auctoritario. Principiou a andar no comprimento da sala com o corpo direito, a cabeça alta e o braço esforçadamente levantado para agarrar no castão da bengala, o que, de certa maneira, lhe dava a parecença de um menino dependurado. Depois, para se rehabilitar diante de si proprio por ter caído de bruços, quiz exercer a sua auctoridade incontestada, o poderio absoluto de que se achava possuido, sobre todos os objectos que ali estavam—lembrou-se de tombar as cadeiras, quebrar os vidros, _atirar abaixo aquelles homes_. E os seus grandes olhos energicos fixaram-se com arreganho, com altivez sobranceira nas estatuetas que permaneciam em frente da janella sobre a pequena mesa. O velho militar do primeiro imperio napoleonico, com todo o seu conjuncto marcial—a espada triumphante, os bigodes magestosos, as rugas severas, acobardou-o, obrigando-o a baixar ligeiramente os olhos e a reflectir durante momentos. Porém, Christovão Colombo, com o seu rosto suave de uma bravura serena e consciente, não o intimidou, e por isso, Emilio, o fixou com mais confiança, com menos susto. E como o descobridor da America tinha na mão esquerda um globo, na qual apontava resolutamente com um ligeiro sorriso de inspirado, um ponto com o dedo, o pequeno, _para se metter com elle_, fez-lhe este pedido exigente: —Dás-me essa cousa? Christovão Colombo não teve logo uma resposta favoravel. Emilio repetiu imperiosamente: —Dás ou não dás? Olha que tu... E fez-lhe um arremeço significativo com a bengala. Porém, o silencio do possuidor da bola continuou-se, e o pequeno julgando-o um signal desprezador do seu poder, pareceu-lhe provocante. Por isso o olhou com mais intimativa, e, para o castigar, como lhe faziam a elle proprio ás vezes, repetiu a concisa e habitual phrase de seu pae: —Então vae lá para dentro. Imaginou que ía ser obedecido. Para não haver delongas, nem evasivas, conservou-se n’uma attitude ameaçadora, com a bengala paternal no ar, agarrada pelo castão. Com voz mais alta e decisiva repetiu ao possuidor da bola: —Não vaes? Arrumo-te. Christovão Colombo não obedeceu. Oppunha a resistencia passiva de um ser inanimado. O pequeno Emilio vingou-se d’aquella immobilidade insoffrivel, atirando-lhe á cabeça com a bengala irreverente. A estatueta caíu no chão quebrando-se com estrondo em mil pedaços!... A cabeça, os braços, a bola, separaram-se! O pequeno facinora ficou a olhar para aquelle destroço, com um sentimento de vingança satisfeita! Porém, sua mãe, que estava no quarto proximo, ouvindo este barulho, correu á sala para averiguar o que teria sido. Vendo a estatueta quebrada e seu filho encostado á bengala n’um aspecto arrogante, exclamou instinctivamente: —Ah! grande maroto que ahi vem o papá. Emilio respondeu sereno, impertubavel, com segurança: —Ora!... eu _tamem_ sou papá. FIM *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK COMEDIA DO CAMPO VOLUME III (SCENAS DO MINHO) *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. 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START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. 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The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.