The Project Gutenberg eBook of A cidade do vicio This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A cidade do vicio Author: Fialho de Almeida Editor: Ernesto Chardron Release date: August 30, 2020 [eBook #63080] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A CIDADE DO VICIO *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) A CIDADE DO VICIO PORTO: 1882—TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA 62, Cancella Velha, 62 FIALHO D’ALMEIDA A CIDADE DO VICIO _PORTO_ _Ernesto Chardron, Editor_ 1882 _A_ Joaquim Xavier de Figueiredo e Mello Oriol Pena _Segundo Livro_ DE CONTOS SYMPHONIA DE ABERTURA Insupportavel, em Lisboa—o thermometro subindo sem attender a supplicas, subindo e putrefazendo tudo, os despojos subterraneos e a frescura das mulheres, a carne de venda a retalho e a carne de aluguer, os artigos dos jornaes diarios e os artigos alimenticios. Em Lisboa transpira-se muito, pela pelle e pelos criados. E ás vezes, sob o influxo de uma hora de sol ou publicidade, qualquer pessoa se arrisca a ficar com a roupa alagada, e com a reputação em fanicos. No verão, similhante phenomeno exagera-se com violencias equatoriaes; nem gelados nem discrição, logram attenuar-lhe os impetos—é soffrer ou partir. Eu parti. Não imaginam que simplicidade hollandeza de _toilette_ e que frescura de linhos, expendidas em _vestons_ sem forro e pantalonas sem feitio!... Botões de madreperola do diametro de relogios, altas polainas atando na perna por correias em cruz, o cinturão de coiro com cabaça para agua, chapeu tyrolez e bordão ferrado, tendo a mochila dependurada na ponta. Sobre isto, excellente saude, pouco dinheiro, muita alegria e nenhum peso de consciencia. Magnifico ser novo e saber desprezar os tolos, pois não? N’estas digressões de andarilho só me entristece não levar alguem ao lado. Tenho amigos, mas são os peores inimigos de que dou signal—e por esses cafés, tabacarias e alamedas, dando-nos o tu da leal camaradagem, trocando charutos, rindo e enlaçando os braços, é de vêr com que risonha perfidia nos sabemos detestar reciprocamente. Esta hostilidade sagaz, enluvada e fina, que se chama ahi confraternisação litteraria, e sob cuja egide se dão jantares no Gibraltar, elogios nas gazetas, e impagaveis desandas em conclaves reconditos, não passa d’um voltarete elegante, ganho pelos que sabem rir, e sempre pago pelos que esverdeiam de coleras refreadas. Resumindo, parti só. Junho, sabem, quando empalidecem os trigos espigados e seccos, as cigarras chiam nas oliveiras, e o azul é caustico. Começam pela provincia n’esse tempo romagens aos rusticos eremiterios, e as feiras de gado chamam a turba-multa dos lavradores e maioraes. Portas fóra, as mobilias da Baixa abalavam raras ainda, caminho dos oasis burocratas, Sete-Rios, Campo Grande, Bemfica e Lumiar, em que todo o bom official de repartição, merceeiro ricaço e tisico pobre, vão tonificar-se pelo bom ar dos campos, sem deixar todavia os seus mesteres intramuros. O typho fazia já propaganda por esses bairros, nas azas do miasma evolto de toda a banda, das portarias surdas, das consciencias gangrenadas, das loterias da Misericordia, dos quarteis, dos tribunaes e dos canos. Theatros fechados, livrarias ás moscas, tudo esbaforido, e soldados parando ás esquinas a soletrar grandes cartazes, annunciando—_O Hereje_, as _Machinas de Familia_ (?), _A Orgia_, e o _Fiacre n.º 13_, que segundo me contam é revolucionario tambem—e modonho, c’os diabos!... O campo em junho, despoetisa-se no paiz cerealifero. Grandes zonas amarellecidas de seara, pastos seccos vestindo a charneca, barrancos sem poça d’agua, silvados deixando pender as amoras em cachos, e toda a legião de migradores que veem de cruzar o Estreito, rolas, cegonhas, cucos... Nos montes de rocha, murtaes irrompem d’entre penedos calvos; os alecrins dão flôres em espiguilhas esguias; ascende a vinha arvores acima, vestindo os troncos em pampanos esplendentes; estão copadas, metallicas e redondas de folhagem, as figueiras picadas dos primeiros capa-rôtas. E á margem das ribeiras, nas terras gordas e marnosas, os meloaes expandem-se em fructos de meridianos finos, traçando de antemão as bellas talhadas a partir nas melancias rubras e frescas, e n’esses ricos melões de cheiro, que em jantares de ceremonia tanta pessoa séria teem compromettido. Depois aboboras, frades, gilas, descançando em feno á borda das rigueiras, e picando a monotonia dos caules cellulosos, que rastejando vão na terra sequiosa das hortas. Todo o pomar maduro—laranjaes florindo para os fructos novos, e mostrando ainda pendentes os fructos velhos; a interminavel colonia das ameixas e abrunhos; os damascos de fallas mansas e contactos velludosos; a pera ventruda e monotona de casca; a ginja e a cereja tão pittorescas e picantes á paizagem e ao paladar. E fechando cortejo... Os pecegos!... Adorei já uma mulher que gostava d’elles, e tinha uma graça infinita a mordel-os com os seus brancos dentinhos de roedora. Se tomando-lhe a barba com as pontas dos dedos, dôcemente a forçava a vergar-se toda nas costas da cadeira, para na concha rosea da orelha lhe depôr algum segredo irritante, a sua vermelha bocca gottejante dos succos perfumados, matava-me de sêde e endoidecia-me d’amor. Pobre quinquilharia loira!... Tamanha voracidade a possuia ante esses fructos voluptuosos e quentes, que d’uma vez enguliu os caroços e partiu para o cemiterio. Na sua cova, como lição a incautos, viridente pecegueiro todos os annos carrega de fructos, brotado d’esse corpo que foi vaporoso como uma nudez de Fragonnard, e branco da inexplicavel brancura que dir-se-hia feita com primeiras _nuances_ de hortensia, pennugens ventraes de cegonhas, e corações de rosas brancas. * * * * * Como peregrino, que de logarejo em logarejo e cabana em cabana, vai seguindo em busca de alguem que lhe foge, assim de bordão e esclavina como a bella D. Auzenda, eu me aventuro por esses campos e terreolas, fazendo sésta nos moinhos, convivendo com as boiadas leaes, pernoitando nas eiras sob o olhar das estrellas, passando a vau os rios, cruzando estradas, e detendo-me a colher ás horas de sêde torrida, os medronhos bravios das espessuras. Esta existencia de cigano reconforta-me e endurece-me. Tenho a pelle tostada, crescida uma grande barba, e os musculos das pernas e braços, estriados como um aço de rija tempera. Janto o rolão corneo dos cavadores, sardinha salgada com um pichel de vinho alemtejano por cima. Não leio jornaes, o que explica a singular lucidez que em mim refloresce a espaços. Todas as manhãs, o sol me encontra de chapeu na mão e assobio de melro, nas chapadas adustas que os valles dominam, como pulpitos sobre as naves rumorosas dos templos. De redor de mim, esfarrapam-se as gazes da nevoa matinal; serranias confusas nos longes; faias, salgueiros e platanos desenham a curva sinuosa das ribeiras, onde o rebanho converge a beber manso e manso, n’um rhythmo de chocalhos distantes. E sobre laivos verdes de vegetaes rasteiros, tons pardos de olival, pedaços de seara madura, cannaviaes e hortejos, andam esparsas em pulverisações de branco, as casinholas de montes, aldeias, moinhos e conventiculos. Os gallos tocam alegremente a alvorada; vão lá baixo trabalhadores de chapeirão e alforge; tudo canta, sol, gallos, velas de moinhos, gente que passa, quem vôa nos ares, quem saltita nos ramos, quem de pedra em pedra corre no fundo dos limos verdes, quem nos fios telegraphicos vibra, e até quem chora—tão phantastica a resonancia d’esta cupula cérula, extasiada na luz do sol occidental! Na travessia emprehendida, aponto as differenças do typo, os usos, a emphase de linguagem, os vestuarios, as habitações, os processos decorativos de interior, a hospitalidade para estranhos, côr de pelle e vivacidade ingenita de cada povo e provincia. Ha contos populares, que começam devotos no Minho e acabam equivocamente no Algarve. O tom das cantigas, em que se surprehende a indole, crenças e viver intimo das gentes, decresce em alegria de norte a sul, e occidente para oriente, á medida que nos vamos afastando da agua, que a vegetação é mais secca, a terra arida, menos profusos os rios, e mais distante o oceano. Comparo a _Canninha Verde_, o _Verde-Gaio_ e as _farandoles_ das romagens do Minho e Douro, com a monotonia repassada de tristeza, vagarosa e funebre, das cantigas do Baixo-Alemtejo; e sinto através d’ellas o _paiz_ extremando-se em zonas de cultura menos e menos profusa—no Minho as risonhas veigas ensopadas de agua, inteiramente em cultura, verduras radiantes á luz de um sol claro, humidas de bruma matinal, toda a erupção da vida esparsa em fremitos por uma população enorme e fecunda, que é bella e sadia, com o instincto colorista que em vestuarios garridos, dá a essa paizagem exuberante, accessorios maravilhosos—no Alemtejo, charneca quasi sempre, arida, interminavel, retalhada a siroco, reverberando no verão ardores mortaes, n’uma luz crua que vai crestando implacavelmente as epidermes e os olhos. E aqui começam as difficuldades da vida pela inclemencia hostil do meio, faltam as pescarias que são fartura e felicidade, falta a carne, as ricas hortaliças, grande parte dos fructos. Diluida n’essa área formidavel a população rareia, deixando a agricultura sem braços. Em pontos a raça é mal cruzada pela fatalidade dos casamentos consanguineos, impostos pela distancia que medeia entre povoado e povoado, e ainda porque quasi sempre, aldeias e villas tiveram por nucleo uma familia ou duas, enfraquecendo-se a descendencia pelo mau passadio, e regressão a um mesmo typo uniforme, de certas em certas gerações. Outra vegetação implantada n’outro solo, começou porém a surgir passo a passo, um dia, não sei quando, depois de longo caminhar. Scintillava ao largo um espelho caustico, movediço e sem balisas. Veio o pinhal em massas desconformes primeiro, e após rareando em avançadas, contra a grande areia relampejante das dunas. Mudava o clima, adoçando-se de humidade salgada, dos cheiros da maresia e resinas da floresta. E sempre ante mim essa coriscação da agua sem termo, espumando nas cristas, e tendo a bocados, mosaicos de azul e ouro. Na altura em que ia detive-me então commovido, a olhar por tempo a feerica decoração assim extraordinariamente atravessada de luz. E tirei reverente o meu chapeu, para cumprimentar o Oceano. * * * * * A convivencia do mar, profunda e larga, faz o homem bom, e simples o espirito, pela contemplação d’essas superficies tranquillas e azues, imagem da pureza e da força, sobre que os olhos vogam idealmente, como medreporas em villegiatura. No mar ha um extraordinario mundo de sêres pittorescos e fecundos, cortados nas fórmas mais caprichosas, e cheios dos mais bellos cambiantes. E as povoações littoraes, risonhas na penedia e na areia, com as succursaes fluctuantes dos barcos de pesca e das rêdes, offerecem aos nervos do _touriste_, finas sensações que o desenervam d’essa vida cardiaca e brusca dos centros cultos, que faz velhos os homens de trinta annos, e cynicos os que não teem ainda barba. Porque estamos n’um periodo secco, analysta e vertiginoso, que leva á loucura os mais delicados, e a desalentos senis os mais robustos. Não contentes de disseccarmos os outros, de os desfibrarmos por uma especie de sensualidade, no intimo das suas sensações, das suas ideias, dos seus vicios e dos seus males, vamos tambem pondo a nú pelo escalpello o nosso organismo, viscera a viscera, nervo a nervo e vaso a vaso, buscando o segredo da vida nas experiencias do amphitheatro, querendo sentir pelo requinte de descrevermos a impressão, querendo soffrer para viviseccarmos as nossas dôres, n’uma crueldade consciente que fatiga e mata. Vejam as obras de arte modernas. Foi-se a idealisação translucida dos bellos corpos perfeitos e brancos, foi-se o requinte aristocratico das paixões academicas e nobres, em que as figuras ostentavam, nos quadros, nas estatuas, nos poemas e romances, attitudes gloriosas, harmonicas, reguladas e altivas. Por ellas, só o bello vivia, eram heroes os homens, a vida não se convulsionava em miserias torpes, o proprio vicio era bello e a desgraça sympathica. Agora não! Cada artista fixa na tela, no livro ou no marmore, o que vê, e ás vezes o que só consegue attingir por um illuminismo interior, posto ao serviço de resolver algebricamente o complicado problema psychologico. Deixando de consagrar-se exclusivamente aos regalados do mundo, nobres, opulentos e reis, para descer á generalidade das massas e baixas classes, a obra de arte tem, para ser util, de ser sincera—e para ser sincera, de copiar a vida laboriosa, mortificada e doentia das populações modernas, os _ateliers_, as fabricas, os bordeis, a rua, _ménages_ tristes de burocratas, e todos os enrodilhamentos da promiscuidade mendicante, coberta de vermine e de pustulas—essa vida que calleja as mãos, atrophia os membros, escava as physionomias, macera as epidermes e perturba o jogo da circulação, que faz do cerebro uma monstruosidade pathologica, pela actividade sem repouso que lhe imprime, definhando as mais visceras em proveito da sua avidez de funcção, fazendo chispar de encontro a tudo, essas centelhas que a certo ponto condensadas são o genio, de cujo exacerbamento resultam a loucura e a morte. Esta violencia de arte embota os sentidos depressa, gastando precocemente as molas intimas dos espontaneos impulsos, da dedicação, da abnegação, do amor e da coragem, tornando o homem n’um sêr artificial e mecanico, com pontos de vista scenicos nos seus movimentos e discursos, desconsoladamente egoista e cynico. Não ha força nervosa que resista a este abuso de vibração, e dias ha em que as ideias se nos varrem, uma ignorancia imbecil nos estrangula, e brumosas tristezas de carcere vem descendo aos nossos olhos e aos nossos labios, no lethargico cansaço que chega sempre, após semanas de mentalidade exagerada. Ficamos então com ar de sonambulos, olhamos sem vêr, tudo doe, um desespero surdo nos tortura. E o estomago não digere bem, o pulmão recusa-nos a sua mecanica de folle, o sangue é tumultuoso, um pulso cortado de silencios, doem as articulações, doe-nos a cabeça, doe-nos tudo—é um aniquilamento sombrio, um odio contra livros, contra deuses e contra homens! N’estas crises morbidas da alma na besta, nada como a intimidade das aguas, para reconstruir, para reconduzir, para repousar. Faz-se em nós uma limpidez provocada pela serenidade impeccavel do mar, extenso e liso como um espelho magico. Quando muito ás vezes, uma ellipsoide de espuma fervilha no dorso de alguma aspiração mais rebelde, desejo, orgulho refreado, dissabor ou paixão—como a vaga que destacando pura da granda massa, se orla de branco ao rebentar na praia. Com que quietação interior me não estendi então nas areias, coberto de poeira, coberto de azul e bemdizendo tudo! Não me lembro em que ponto da costa isto foi—mas era magnifico. Que vastidão de paizagem, que deboche de azul, que luz irradiante!... Para um lado iam agrupamentos plutonicos, penedias a prumo, esburacando em cavernas sonoras da onda que ia e vinha, chapinhando e refluindo. Promontorios irregulares sahiam da grande mole côr de ferrugem, em trombas que se alongavam para beber. Da esquerda, planuras de areia faiscavam em circo, a chicotadas de sol. Deante o mar, e a duna cortando a retirada por ultimo, onde phalanges de pinheiros socegadamente bivacavam. Sobre uma insula escalvada em pinaculo, o pharol sahia da agua, negro no ceu luminoso, e expandia-se na plataforma da lanterna em setteiras aluidas, com agudas torrelas nos cantos. Era assim um dedo de colosso, sobre cuja unha roida aos gritos, vortilhando por centenas, aves marinhas vinham pousar com tremuras de azas, goelanos, alcyons, gaivotas, andorinhas do mar... Os pescadores lançavam cantando ao largo, as suas rêdes. Vinham sobre a agua badaladas de algum sino mysterioso. Todo esse viver feliz, sem rebeldias nem artificios, me commoveu pela simpleza, pela probidade, e graça primitiva e rude. Tive uma saudade aspera, não sei de que outra existencia vivida por mim, por meu pai, ou qualquer da minha raça, em não sei que tempos historicos e esquecidos. Sentia como uma volta á patria, reconhecia as fórmas, e tornava a respirar nos ares perfumes amigos, que me extoxicavam de uma especie de innocencia e de uma especie de alegria. A minha actividade era repartida entre as companhas dos barcos de pesca, longas palestras no barracão do salva-vidas, ou a concertar rêdes á porta das cabanas. Assim eu aprendi a vêr e a recompôr esses grandes typos do mar, fulvos e crentes, com os seus olhos pequenos de pupilla inquieta, japona azul nos hombros quadrados, pernas nuas, barba rara, ageis e gigantes, com uma profunda melancolia de face. As linguas da onda vinham lambendo a praia humildemente, como um cão fiel que afaga o dono. Em bandos, os pequenos nús rolavam-se na areia, ou faziam de mergulho espadanar a agua. E eu sem saber qual mais puro e transparente, se o céo se o mar! Á noite recolhia as minhas impressões rabiscando o _carnet_, e no palôr sonambulo da lua, dormiam as cabanas acalentadas pela voz do Oceano e a lanterna girante do pharol encandeava as aves do mar, fazendo-as suppôr que era o dia a romper. Tres mezes assim. Quando uma noite despertei ao estrepito das vagas. A bruma viera, fazendo deslocações de fumarada compacta, cinza claro pelos effeitos da phosphorencia, que fazia do mar um _punch_ em flamma, que a colhér do vento fosse remexendo procellosamente. E em revolta a agua urrava, tripudiava nas cavernas, soluçava, cantava e ria. Praia fóra, despertados de chofre, os pescadores gritavam em côro, não achando os barcos na amarra. Ia começar o mau tempo. Eu tinha alinhavado este livro nos ocios da bella estação que se morria. E n’essa manhã parti. OS NOVILHOS Vespera de S. João, na aldeia. As doze pancadas do sino acabavam de dar por uma quente noite de estio, luminosa de lua e perfumada de fenos. Nada mais dôcemente calmo, que a contemplação da paizagem de vinhas e olivedos que se gozava na ladeira da aldeia, caminho da fonte. No cimo da encosta, a fachada da egreja estendia sobre o azul pallido, as agulhas brancas das torres, onde, attenta a santidade da hora e da vespera, nem as corujas soltavam pio. Conforme o uso, quando a ultima badalada tocou, as raparigas em cabello, capellas de jasmins no penteado, de que pendiam pequenas ameixas rosadas e peras de Santo Antonio, saias curtas garridamente enfeitadas de vermelho, pés ligeiros e um borboletear de cantigas que envergonhavam nos campos os rouxinoes das balseiras, puzeram ao quadril as quartas de barro, e aos pares, trocando confidencias, desceram pelo corrego até á fonte. A fonte era o monumento da aldeia, com o seu largo boccal de feição biblica, boa pedra vincada pelos fundos dos cantaros, amplos cadeirões de granito em redor para quem chegava cansado, uma dorna inclinada onde bebia o gado, e meia penumbra tremula, de chorões e pimenteiras. Vespera de S. João á meia noite, a agua das fontes é santa, santa como os remedios efficazes, como a benção nupcial que um velho padre estende aos noivos, como os vestidos e os bentinhos das imagens, como a cruz dos adros desertos, como os mentrastres das ermidas distantes e os cordeiros dados de fogaça pelas festas da paschoa. Quem a bebe, viva áquella hora, junto da fonte onde o luar se espelha, e em cujo fundo dormem suavemente os reflexos das estrellas, é feliz todo o anno, fecundo se é mulher e bom trabalhador se é homem. Bom S. João, todo risonho e nú, no seu altar da egreja, cordeirinho branco a um lado, bandeirola do outro, e a polpuda mãosinha de creança abençoando com graça innocente as cabeças que se lhe curvam deante!... As raparigas passavam em volta das quartas de Extremoz, os baraços de tirar agua, e na limpidez da fonte, sentia-se o _plhau!_ sonoro de vasos mergulhando. Tão fresca a agua, tão sapida de philtros de luar e perfumes de amor! Oh, como é bom ser novo! Toca a encher as enfusas. Algumas das moças entravam nas vinhas a colher parras para ornar de grinaldas as cintas finas, as cabeças loiras e os bojos porosos dos cantaros arabes. E aos pares, ondulando os quadris, iam subindo a encosta cheias de esperanças e radiosas de sonhos, e o rumor das cantigas fluctuava no tranquillo ar da meia noite, em cuja limpidez o S. João benevolente, estendia as suas mãos cheias de promessas. Ora a Rosaria só desceu da herdade á uma hora, a grande preguiçosa! E sósinha por entre as arvores, n’uma pallidez de audacia que lhe ficava bem! Tudo no monte ficára a dormir, o pae estiraçado na eira, a mãe resonando na alta cama de casamento, os rapazes por cima das moreas de trigo, bois deitados por baixo das azinheiras da pastagem. Dois novilhos sómente, quasi bois feitos, retouçavam nos fenos, pulando, rebolando-se, furtando-se os corpos vigorosos, n’uma alegria de titans em bacchanal. E todos brancos, mansissimos e perfumados, dir-se-hiam principes encantados, esquecidos dos seus palacios de oiro, n’aquella metamorphose exigida por alguma velha fada rabugenta. Rosaria ainda esteve um bocado a miral-os. Era o novilho da vacca _Mourisca_, mais a novilha do visinho Pedro, pastor da herdade proxima. —Diacho, disse ella a rir para comsigo, cantaro ao quadril, tão novitos ainda, e já namorados. E a cantar desceu a ladeira. Que luar que fazia, que silencio se alastrava!... Nem um ai de rouxinol noctivago, nem um echo de cantigas esmorecendo nas quebradas. Um pouco além, no cabeço do outeiro, o portal formidavel de um dolmen negro, desenhando como um branco de olho malicioso, rebolado em fervores de lascivia. E atravessando n’um feixe esse portal, a poeirada fina da lua, vinha em aureola cercar de uma vaporisação phantastica, esse perfil de zagala israelita. Quando chegou á fonte viu a clareira coberta de ovelhas, que empurrando-se em silencio, furando, cahindo e mordendo o pó que levantavam, tinham pressa em chegar á grande pia de pedra, para beber. Em pé sobre as lages da fonte, o pastor tirava agua com um grande balde de cobre, enchendo a pia, que logo tornava a ficar sem gotta. Rosaria ergueu a voz: —Eh lé, visinho Pedro.—O pastor parára de chapinhar na agua. Gritou-lhe: —Eh lê, Rosaria! E ambos immoveis, sem querer avançar, ficaram a olhar-se no turbilhão do rebanho. —Bonita noite, disse um. —É verdade, fez o outro.—E um grande silencio. —Então vens á de S. João? —Tal e qual! —Pois isto é tarde por aqui, juntou vagarosamente o pastor. Rosaria teve um sobresalto, o monte ficava longe, não andava viv’alma, e tão fóra de horas!... Então olhando para si, reparou que estava em collete, braços nús, pernas núas, as primeiras redondezas do seio em evidencia. N’isto, os novilhos brancos romperam na clareira, ás cambalhotas. —Tambem!... disse o pastor. E sobre o lagedo da fonte, ficára immovel, bebendo o largo, narinas frementes, circulação de novilho nas fórmas athleticas que tinham á lua, soberbos detalhes de musculatura. * * * * * As ultimas ovelhas tinham já bebido, e ainda por duas vezes, o Pedro mergulhou na agua santa o grande balde de cobre, para encher o cantaro de Rosaria. Tremula e muda, a pobre achegava-se sem ousar fital-o, receando a primeira palavra, qualquer ousadia permittida pelo abandono do sitio. Eram quasi da mesma edade, tinham brincado creanças, esfarrapados e trigueiros, rolando-se nas relvas com essa alegria selvagem dos que convivem longo tempo com o gado, e sem saber o imitam nas suas cabriolas. Sem o menor resaibo de amargura, a voz do Pedro disse-lhe: —Hontem estavas a fallar com o boieiro do Monte-de-Trigo. Diz que não? —Estava, sim. A irmã tem andado doente. E como é rapariga da minha aquella... —Olha cá, para que vieste só, a esta hora? Diz, anda. —Estava a dormir. E vai, fez-se tarde. —Sabes, moça? Se encontrasse ahi algum, não o deixava comer mais pão. Não me salve! —Não ha medo, homem. É procurar! Á medida que através as interpellações bruscas do Pedro, ella lhe sondava os receios, adivinhando o culto em que era tida, ia recuperando socego. Sentindo-o vencido então, a deixar vêr nas ameaças surdas o receio que o esmagava, era Rosaria quem fallava alto agora, pujante da sua felicidade e orgulhosa de dominar. Assim estiveram encostados no boccal da fonte, immoveis, olhando sem scintillas um para o outro, como se já tivessem dormido. Em roda, as ovelhas ajoujavam-se aqui e além, fartas do repasto da noite e cansadas de cabriolar nas encostas. Vigilantes, nos longes do arraial, os dois rafeiros iam e vinham, encalmados e tropegos, fazendo tilintar enormes colleiras erriçadas de gumes, e farejando os mattos, de orelha fita, á procura. —Já fallei c’o teu pai outra vez, disse o Pedro. —O anno vai mau, aventurou a rapariga, sabendo o que elle ia dizer. —E a gente fica assim toda a vida? —Ai, não! Mas quem faz casa, necessita que lhe metter dentro. Tu bem sabes, Pedro. Inda que uma creatura, sim, seja pobre, ninguem casa sem arranjos. Cá da minha banda, pouco falta. E ia dizendo, uma por uma, as peças do enxoval—lençoes de estopa, duas fronhas de renda, coberta encarnada, seis toalhas, dois vestidos, e camisas, uma arca nova... O Pedro não ia tão bem, não! Todo o anno a velha estivera de cama, algumas seis cabras mortas, a damnada inverna sem largar a sementeira, o favalito cheio de alforra. Quem nasce para burro, com licença, nunca chega a cavallo. E os dous suspiravam. Mas cada vez mais perto, os novilhos se perseguiam e acariciavam, n’uma febre de primeiro amor, espicaçado pela resistencia da femea, que de patas estendidas se punha á espera que o macho formasse salto. E sentindo-lhe o focinho nas ancas, furtava de repente o corpo para deante, fazendo-o cahir nos pastos. Aquillo succedia-se por dezenas de vezes. Cansado então, o novilho parava afastando as pernas, resfolegar sibilante, a baba correndo em grandes fios da focinheira, que um laivo rosa sombreava em tons de carne sadia. E de cabeça alta quedava-se a fital-a, mugidos surdos, repassados de uma ternura physica que parecia deleitar a femea, cuja cauda voluvel açoutava de manso, a bella anca roliça. Nada era mais lascivo, ondulante e gracioso, que a anatomia agil da vaquinha branca, orelha e narina moveis, esboçando attitudes de uma graça infinita, saltos de pequena fera, bruscas contracções de pannos musculares, espreguiçamentos de desafio e vagas ternuras de esperança. E essa scena de tentação, que primeiro passára desapercebida ao pastor, ia-lhe agora despertando attenções minuciosas e complicadas ideias. De olhos avidos elle seguia o jogo teimoso da novilha, que se difficultava á medida que a raiva do macho ia crescendo, crescendo. E um alvoroço interior acudia-lhe em remoinho, fazendo-lhe bater as fontes e pondo lhe a saliva espessa. Não era bem Rosaria, a imagem com que elle, mentalmente, reproduzia a scena que estava vendo. Deante da rapariga, as suas audacias de homem quebravam-se, e as suas raivas de novilho mordiam o freio de uma virgindade montanheza e feroz, que os tinha defendido a ambos da culpa. Era sim, uma femea meio mulher meio vacca, constructura toda animal, harmonica com o seu instincto brutal de pastor, capaz de sentir e incapaz de pensar, vida rudimentar em corpo de redondezas duras e contactos bovinos, imposta pelas fatalidades da procreação. Rosaria que se contrahia sob a descarga das fulvas scentelhas, que saltavam dos olhos d’elle, dilatados em colera sob sobrancelhas frementes, teve um medo algido a invadil-a toda. E ao mesmo tempo, do fundo do seu sêr e do coração das mais pequeninas regiões do seu corpo, um esbrazeamento, uma angustia, uma incoherencia de gozos innatos, subiam-lhe á epiderme, alargando-se, chispando, occultando as suas vibrações fulminantes sob a mascara da tranquilla postura que tomára. Pedro chegára-se mais contra ella. Os novilhos tinham-se enlaçado afinal e rolavam nos fenos, mugindo no exhuberante prazer de uma força esbanjada. Então Rosaria que o encarou de face, viu-lhe bem a rijeza das fórmas negras, o tronco arquejante, que pinhas de musculos disformes enfloravam, a redondeza núa dos deltoides cinzelando-lhe magnificamente os hombros de titan, bicipedes formidaveis contrahidos sob a tortura de um desejo esmagado, e na rude face de fundibulario celta, uma rigidez que apenas de longe em longe, o fulvo corisco das pupillas conseguia desmentir. Ella não pôde mais, e na meia nudez em que viera, atirou-se-lhe contra o peito, beijando dôcemente esse bronze latejante, mesmo sobre o coração. As mãos de Pedro apanharam-na pelas espádoas e cingiram-na pelos rins, hesitantes n’um delirio que o fazia cambalear como um touro ferido entre os cornos, e não sabendo se cingil-a até lhe fazer estalar os ossos, se arrojal-a lá para o largo, onde a não visse mais n’aquelle abandono desleixado. Aquillo durou um instante, no final do qual os braços do hercules tinham novamente cahido, a iris ficára tranquilla e toda essa torre cessára de tremer. —Adeus, disse-lhe elle um pouco triste. E baixo, n’um segredo de infinita ternura, em que chorava a rude voz, transfigurada pelos ardores da juventude: —Quando formos casados, sim? Agarrou no balde, esteve a enrolar a corda á cintura por um bocado, metteu dois dedos na bocca para assobiar aos rafeiros. E voltando as costas á fonte, poz-se a arrebanhar as ovelhas, enxotando-as com o grande cajado, pelas pastagens acima. E mais além a sua voz de montanhez cantava já, n’uma toada dolente, em que transparecia a tenacidade de um mesmo amor, idealisado por uma vida inteira de esperanças e sonhos castos. Rosaria inda ficou a vêl-o, ladeiras acima, de manta ao hombro, desolada pela recusa e quasi cheia de desprezo por similhante honestidade. E caminho do monte ia furiosa, com ganas de se dar ao novilho branco da _Mourisca_. Ao passar na eira, entre duas moreas, o boieiro do Monte-de-Trigo, que estava de guarda aos calcadouros ergueu a cabeça. E alli mesmo, esfaimada como uma bacora, Rosaria se entregou. NOITE NO RIO Tinha-se afogado de todo no poente a ultima tinta paludosa da tarde, e uma sombra egual, atravessada de scintillas de estrellas e palpitações de atomos, cahia de cima dissolvendo os contornos das coisas, e escorregando na agua do rio, que se fizera densa e viva como uma carne de annelideo, gelatinoso e murmuro. A guiga em que nos mettemos, leve como uma penna, toda esguia ondulando á menor arfagem da onda, dir-se-hia um pequenino tumulo branco e ouro, em que seria delicioso partir coroado de lichens e algas, para os reinos do coral, no fundo d’esses paizes submarinos, em que as cidades são feitas de galeões submersos, as cupulas de conchas côr de saphira, e as columnatas de phantasiosas incrustações de molluscoides. Emquanto Lia se punha ao leme, n’um _deshabillée_ de noite em crepe da China, a alta golilha afogada acolchetando no pescoço por alamares de contas e rasgando _fenetre_ no seio, uma nudez de braços polida, cinzelada na brancura das carnes hystericas, e abrindo alabastros luminosos entre a dragona a contas do corpete e canhão rugoso das luvas de ponto, ia eu de remos em punho, aventurando o barco bem para lá do caes, áquella hora adormecido. O meu vestuario não era bem o d’um barqueiro, nem era bem o d’um banhista. A camisola escarlate sem mangas, deixava-me os braços livres e nús; tinha o chapeu de palha, com abas reviradas, cahido á banda, e descoberta uma pouca de espadua fulva, onde pannos musculares contrahidos, avincavam por vezes a sua estriada dentadura, de luctador glorioso. O homem é vaidoso da sua força, se dos olhos da mulher que adora, desce uma especie de radiação voluptuosa, como a vestir-lhe a nudez. Lia, que era ardente pelo sangue da sua raça, tinha pela fórma mascula o culto altivo das zagalas biblicas, que nos velhos tempos atravessavam sósinhas desertos e tribus hostis, para vir desposar o sonhado do seu coração, pastor como ellas, herculeo e timido, olhos obliquos e dôces, onde n’um fulgor amoroso se rimava todo o poema do paiz das palmas, dos figueiraes e dos lagos. Fôra a sua agulha que espalhára na flanella que me cobria o peito e o ventre, esses relevos exoticos de flôres vivas, n’um labyrintho de grinaldas, que se enroscavam em torno de ninhos, symbolisando dizia ella, a tenacidade do seu amor e a aspiração infinita da sua alma, que era ser mãe. E era ella quem, na ferocidade da sua ternura, se entregava comigo ás ondas por aquella noite calida, na leve guiga branca, que os meus remos faziam voar. Não imaginam talvez, que orgulho eu tinha d’aquelles ciumes de leôa fecunda, em cujos dedos a certas horas, sentia crispações de garras, e em cujos olhos inexprimiveis, de tão singular expressão, que n’elles podia lêr a emoção mais vaga, desde a que se traduz na voz pelo grito, pela palavra ou pela phrase, até á que a linguagem articulada não póde dar, e quando muito se crystallisa dos labios pelo sorriso, dando uma perola ou uma estrophe—em cujos olhos, dizia eu, ás mesmas horas vibrava n’um galvanismo instantaneo, a intima dolora de uma alma perlada de juventude e paixão. Sabia bem quantos ficavam para sempre feridos no rastro da sua belleza e quantos desejariam apunhalar-me n’um antro, dizendo-me criminoso, porque era feliz. Lia não tinha nada da esculptura antiga, linhas consagradas de modelo napolitano, seios altos, tinta baça, nariz grego, cabeça de Juno, onde torvelinhassem cabellos de noite. Era uma rapariga tão fresca como uma creança e tão branca como uma camelia. As linhas do seu corpo instrumentavam uma symphonia purissima, sem relevos superabundantes ou energias lubricas. Musical, toda essa organisação de que um tepido perfume de morbideza excentrica, se escapava em risos, sobresaltos e canções! Sob a coloração da sua pelle luminosa, tão fina que me dava calafrios ao contacto, e sob a fragilidade etrusca da sua cinta tenra e dos seus punhos magnificamente moldados, ninguem podia sonhar sequer a tenacidade altiva, a rija vontade e teimosia d’esse espirito jactitante, todo incoherente de pequenos requintes e anckilosado dos mais estranhos prejuizos. De feito, era necessario vir de uma raça atormentada e tenaz, grandiosa na sua miseria e filtrando por seculos sem numero, através dos cataclysmos da terra e das maldições do Deus irado, hoje errante nas asperezas do captiveiro, depois prosperando sob os reinos da edade gothica, após azorragada para o exilio, logo entregue ao carrasco e á fogueira, roubada, espesinhada e maldita, para assim engastar como joia rara, no fragil involucro de um corpo adolescente, esse genio caprichoso, que parecia tecido dos vôos da andorinha, do angelus de Massenet, de gottas de luar, e do travor bravio dos fructos silvestres, genio que era bom e mau ao mesmo tempo, luminoso e negro, leve, rhythmico, vivo até á doidice, mas que por vezes, vinha bater a aza de uma melancolia negra—talvez a hereditaria saudade d’essa patria ideal, perdida na bruma dos longiquos continentes, onde contemplativas repousam as ruinas dos templos, sobre cujos capiteis destroncados eternamente dorme a sombra do Sinay! Pela agua irritada de fremitos, a guiga corria em silencio, fóra do quadro aduaneiro. Lia tivera a ideia de uma pescaria nocturna, que nos furtasse n’aquella noite de Casino, á convivencia de banhistas pretenciosos e mulheres fatigadas. A noite estagnava n’uma quietação abafadiça, sem brisas e toda uniforme no seu lucto. Da cidade, o gaz traçava na sombra como um plano de edificio monstruoso, pontuações vermelhas que se alongavam em formidavel escala, desde a Torre de Belem cravada na ponta de uma linha arenosa e curva, até á outra balisa, que o accumulado das casas de Alfama parecia occultar. E de tamanha fabrica, vinha um fervor de respiração convulsa, que á flôr da agua se afinava com subtilezas acusticas, estremando cada ruido na sua gradação, e decompondo por espaços através dos sons, toda a vida complicada da cidade, desde o hausto de uma valvula de fabrica, até ao grito indistincto de um vendedor de jornaes. Olhada assim de longe, d’aquelle fundo de sombra salgada, Lisboa tinha o ar de uma grande cidade entregue á nevrose tragica do vicio, pois que se apagavam na noite as frontarias dos edificios burguezes, as architecturas hybridas dos palacios e dos templos, a uniformidade das ruas geometricamente alinhadas, e no tremeluzir dos lampeões se podia evocar alguma d’essas necropoles torvas, onde as festas resumiam a vida, as carnes das mulheres se cobriam de lhamas de ouro em purpuras radiantes, a musica embalava a embriaguez dos soldados e capitães, e do homem nada vivia senão a besta, tripudiando em concupiscencias phenomenaes. Em meio do rio e nos torvos concavos na nevoa gordurosa, esgarça aqui e além pelos caprichos do ar e da noite, os barcos ganhavam dimensões temerosas, e de vela frouxa sobre as varas curvas dos mastros, faziam pensar em azas mortas de albatrozes escorregando na agua negra, que se ia somnolentamente contra o mar. Á força de prescrutar as sombras, a retina falseava as imagens alargando-as, enchendo com ellas os ares, fazendo-as mover entre crepes n’um rhythmo funebre, e esboçando assim carvões rembranescos, d’uma energia desconforme. N’esse pavor do negro, perdia-se ao leme o perfil de Lia, n’um fugitivo albor, immobilisado em singular recolhimento. Ás vezes as suas mãos mexiam distrahidamente no regaço, havia o resoar das contas agitadas—e se o froco descahia um pouco, o marmore dos braços abria claridades eburneas no lucto do _deshabillée_. Em espiralitas claras, cortados muito curtos, os cabellos faziam-lhe _capoul_ á banda, sobre a testa baixa, d’onde o nariz serio e sem proeminencias, um pouco obliquo de azas, nascia dôcemente, como n’uma mascara de sphinge. Em volta, no drama errante das sombras, as arestas tocavam-se ás vezes de uma luz, filetes tenues de phosphorencia rolando no dorso da onda, reticulos argenteos espelhados das estrellas, gottas perola vogando como algas de luz nos palpos da maré, alguma coisa de fogos-fatuos ou pyrilampos d’agua, esvoaçando n’uma vida abrazada e inquieta, de vertice em vertice e foco em foco, para subtilmente bordarem como inconstantes melodias, por todo esse claro-escuro. No entanto o ceu tinha formigueiros de estrellas, retalhados com os regatos de tinta das nuvens lançadas por camadinhas obliquas. E a cada passo ella dizia uma palavra guttural, vestindo n’essa estranha musica a fugitiva ideia que lhe pipiára na mente. O estranho dialecto, sifflante, torvelinhando, cheio de breves, do aspirados em _ah_, e _eth_, vibrava na voz de Lia com expressão metallica, fina, viril, cheia de paixão. Era a lingua em que ella me insultava nos seus periodos de orgulho judeu, de ardencia, de desejo, de embriaguez e de amor. Cahida do meu pescoço pelos seus braços em collar, quasi núa e cingida a mim, os pés rojando, crespos cabellos em nimbo na pureza impeccavel da testa, narinas debatendo-se d’ancia, e a bocca em momo escaldando n’esse terrivel escarlate dos sangues orientaes, muitas manhãs eu lhe ouvira palavras d’aquellas, primeiro ciciando divinos segredos, e a cabecita escondia-se na minha, cahindo-me no hombro desnudado. Depois a respiração subia n’um começo de cyclone, estrangulava-lhe a voz, e o seu dizer era offegante e frenetico. E d’alli para cima, que coleras fuzilavam por ella! Cada molecula da sua pelle era um centro de sensação tumescido em fluidos de amor e rebentando por descargas de gozo, sob a fecundação de cada beijo. Essa radiação de mulher adolescente transfigurada ao calor de um homem, ganhava de subito energias do deserto, reminiscencias de estado barbaro, sensualidades tigrinas, cujo ardor a agua do baptismo parece ter resfriado nas christãs. E como faisca espadanando no embate violento das fragas, aquella linguagem mesclada, indefinivel, obscena talvez, e encantadora, fazia-me lavas no sangue como um ultimo requinte de voluptuosidade! E a guiga vogando manso, como n’um pedaço de lenda rhenana, sem ruido, tendo a mulher de negro ao leme... Evitavamos os navios ancorados, como conspiradores em perigo; uma vez ou outra porém, tinhamos de contornar alguns d’esses cetaceos immoveis, que affrontados pela prôa pareciam crescer desmedidamente nos ares, multiplicando a confusão de vergas, escadas e cordagens, e accendendo pelos oculos das camaras, fulgores sanguinolentos de olhos estoirados, sem movimento e sem palpebra. —E a pesca? disse Lia, em voz baixa. Aproximámo-nos da outra margem. Cahiam de cima as arestas dos montes, fazendo trevas na sombra. A maré descia vagarosamente, embalando no dorso das ondas alastramentos de algas verde-negras. Accendi á pôpa um archote, e fizemos alto. Em volta, a chamma abria uma photosphera geometrica, raios que se quebravam na agua, torvelinhando em rêdes de sangue, e na penumbra da noite se amorteciam, á medida que se alongavam. Immovel no seu banco, Lia tinha a cabeça distrahida, envolta n’um froco atado por baixo da barba, a narina quieta, e uma serenidade de face a cada passo desmentida pela caustica dos seus olhos de hebrêa. —E a pesca?—foi em toda a noite o unico portuguez que disse, n’um fluido de abstracção monotona, sem sentido e sem alma, com voz que era antes um echo. Nem um instante porém, esses olhos me largaram, spasmos n’um deslumbramento de luz, a principio tranquilla e dôce, depois tenaz, depois feroz, e inquietadora por fim. Não sei explicar, nem ha coisa alguma que o explique, por que vibrações infinitesimas iam passando as fibrilhas d’essa iris, que dentro de mim illustrava com illuminuras divinas todo o fulvo poema de uma paixão selvatica. Parecia-me, na incoherencia em que oscillava, o seu amor uma serpente que se enroscava frenetica a mim, inoculando peçonhas no meu sangue e loucura no meu cerebro, invertendo a polarisação dos meus instinctos e contaminando a nobreza dos meus ideaes, tornando-me feroz, grosseiro e cobarde, e deixando pela algidez da minha vida, um rastro de maldição e estupor! E por mais esforços que fizesse, a contemplação d’esse typo de Herodiade, embaraçava-me, cançava-me, fundia-me! Em pleno rio e longe do bulicio, a sua figura transfigurava-se de immovel, e através d’ella eu via irem desfilando em procissão phantastica, tunicas de linho ao vento, cabellos ornados de sequins, e olhos de terrivel belleza, todos os estranhos typos da judia lendaria, desde Maria, a suprema innocencia, até Thamar, a suprema culpa! —E a pesca? hão de os senhores perguntar. Bom Deus, nem me recordo!... Nem sei inda agora explicar, porque o archote se apagou sem nós sentirmos, e o primeiro sol nos veio surprehender abraçados no fundo da guiga! Oh! a deliciosa pescaria!... ABANDONO DO POMBAL O Domingo tinha sido uma loucura para Maria de Jesus. Houvera festa em Santo Antonio, branco oratorio que de cima do outeiro sorria de ingenuo, aos arvoredos e aos cevadaes. E Maria de Jesus que era buliçosa e sadia, no pleno desabrochar de uns dezoito annos magnificos, tinha ido mais as primas, gozar no adro sonoro de bailados e cantigas, da estranha harmonia perfumada e larga, d’aquella tarde primaveral. Em março, o cahir do sol deixa nos campos ainda, reminiscencias humidas do longo inverno, tão enfadonho de passar nas herdades e aldeias; o chão está esponjoso ainda pela infiltração da agua; relvas perladas afogam os pés em frescuras doentias; passa um friosito cortante nas ramadas nuas das figueiras e sobreiraes, e o mesmo luar de pallor indefinivel, tem o quer que seja de um gelo de sudario estendido sobre o cadaver da terra, e todo pregado com alfinetes de estrellas. O bando de raparigas desceu tarde do outeiro, quando já os bailaricos desmanchavam e os ceus esmaeciam de amor. No silencio da vereda, que entre piteiras e silvados, vinha entroncar na estrada da villa, as vozes timbradas de juventude e cascalhando em risinhos, tinham um acalentar gracioso, e quebrando-se, subindo, _smorzando_, saltitavam de valle em valle e corrego em corrego, tornando musica a exhalação torporosa das plantas. Maria de Jesus pouco afeita áquelles passeios do campo, deixava-se penetrar do encanto tonico d’essa frescura que lhe fazia picadas nos pulmões, dando-lhe uma embriaguez de vida sem egual. Chegaram á villa já noite, em tropel, chailes nos braços, tranças cahidas e braçados de flôres, um remoinho de palavras e risos, que não era já palestra, mas lhes vinha como resultante d’aquella avigorentação de seiva e mocidade, provocada pela travessia dos campos. Só em casa, ella reparou que molhára as botinas, tinha a garganta presa, e por vezes sentia um peso estranho de cabeça. —É fadiga do passeio! dizia a rir, contando a alegria da festa, os promenores dos bailaricos e a garridice sem exemplo do Santantoninho da ermida. Precisava porém de ouvir-se para estar bem, e a cada silencio sem saber porque, cerravam-se-lhe as palpebras, a espinha dorsal cahia-lhe dorida, e uma tristeza vaga, feita de estupor e devaneio, entorpecia-a toda, em narcotismos de banho russo. Foi agitado o dormir, essa noite. O Santo Antonio tomava-lhe no sonho dimensões colossaes, e de olhos estoirados, barretina na cabeça, corria a ameaçal-a com a cruz, bramindo com a sua rude voz de pregoeiro. Não podia estar na cama, voltava-se, sentava-se, bebia agua, e vinham-lhe oppressões teimosas, pasmos fugitivos, um tremor febril de membros. Por duas vezes cuidou que estava um vulto embuçado aos pés da cama, a encaral-a do fundo de um grande capuz negro, barba fulva, onde lagrimas corriam. E de manhãsinha, annunciou-se a tosse, a grande fadiga continuava, e um fio de sangue correu-lhe a um canto da bocca. A mãi fizera-se branca áquelle terrivel signal, que ia dizer com outro mais terrivel ainda, apparecido no dia anterior sobre o leito da pobre pequena—uma pennita de pombo, toda negra, immovel sobre o travesseiro. Queriam dissuadir a pobre velha e chamal-a ás coisas praticas, não haveria nada, tolice acreditar em signaes... Mas os olhos d’ella, fitos no pombal não viam senão esses casaes brancos ou cinza, alguns manchados de côres, alguns de pescoço irisado, dois ou tres todos negros, enormes como corvos, arrulhando altivamente nos beiraes da casa, voando contra as ventanas do pombal, ou vindo a espaços bater nas vidraças, com azas funestas, de que abalavam ao vento, pequeninas plumas agourentas. —Os pombos, os pombos!... dizia n’um fundo d’assombro a pobre, como se ante ella surgisse alguma evocação pavorosa. * * * * * Dia agreste, cheio de incertezas no alto, com alternativas de sol e contramarchas de nuvens, que muito baixas, deixando farrapos pelos cabeços, a espaços truncavam a cordilheira, embaciando a transparencia viva das verduras. Nos esqueletos das arvores punha a rajada volitações de folhas, vinha um frio doloroso dos longes; e por massas, na opacidade do ar, troncos cruzados, ramadas vibrantes na symphonia dos ventos, toda a confusão regelada dos bosques que vão rebentando a medo, davam uma sensação de amargura e d’abandono. Como iam grossas as aguas por esses barrancos e corregos, alagavam-se os terrenos baixos, exhumavam-se radiculas tortuosas côr de ferrugem, das barreiras que resistir queriam ao turbilhão, e vinha das relvas zurzidas pela enxurrada, das attitudes contrafeitas e bruscos gestos do arvoredo, uma fadiga imbecil e attonita dôr, que quasi trahiam impotencia. Terrenos fóra alastravam-se ainda calvas aridas, bocados de chão velho hirsutos de cans vegetaes, aqui e além pintalgados de germinações timidas, pallidas, finas, caminhando em filões, com o effeito de pinceladas ao acaso. Por toda a banda começava o cevar de hyena, da herva nova que se lustra, engorda e alimenta do cadaver da herva velha, e em vaidades de debochada, a vai pisando, humilhando e roendo, com uma especie de implacavel ciume. Cada pequenina folha rebentando, trazia ao mesmo tempo, herdadas lascivias secretas, como uma ancia nupcial que alongava os peciolos em pescoço para os beijos do amor frenetico, revirava os apices como linguas á descoberta d’alguma nova sensação, irritando em titillações mysteriosas sobre os reversos das folhas, as villosidades e pellos, no doido prazer esbanjado de uma kermesse. Do entresolo dos bosques vinham susurros de catadupas, azenhas trabalhando, gemidos de caules vergastados, ou ultimos idyllios de folhas outoniças que esvoaçam já mortas. N’essa transição de quadra, a natureza chorava melancolias lyricas, e se o bocejo da nevoa rasgada, deixava contemplar por momentos algum florão de ceu brunido a reverberos de sol, viam-se no azul pallido, sobre o engaste do horisonte, os dulcissimos furta-côres que teem certos nós da madreperola, tons de nacar, junquilho, turqueza e oiro, fundindo em maravilhosos reflexos. Nas setteirás da grande chaminé provinciana, larga e alta como um torreão de solar, o vento bramia em todos os tons, da raiva á supplica, querendo a todo o transe assaltar a vivenda, implorando, dizendo segredinhos, batendo pancadas humildes, e quedando-se após como salteador, na esperança que fossem abrir. De noite, uma chuva batera as vidraças e cahira sonoramente nas telhas, sob os golpes da ventania inclemente. Tempo que desalentava os trabalhadores e embebia de tristuras a alma fragil das mulheres! Pelos vidros da alcova, via-se um bocado do jardim, pimenteiras verdes fazendo oscillar ao vento o seu pranto de folhitas oblongas, eloendros sem flôr, cedros anões, pyramidaes e bojudos, canteiros de anemonas, rainunculos, goivos, rosaes e alfazemas, toda a flora chinfrim dos quintalorios de provincia. E alongando os olhos, Maria de Jesus via mesmo deitada, os queridos arbustos que os pardaes debicavam, e todas essas flôres mal abertas, que nos canteiros punham mosaicos de irregulares coloridos. A casa ficava d’alto, sobre uma ondulação dos saibros, por fórma que das janellas acima mesmo da parede do quintal, podiam dominar-se todas as perspectivas agricultadas do valle. Eram renques de castanheiros á orla do rio barrento, que a planura repartia em veigas ferteis, laranjaes, olivaes, latadas e quintarolas cingidas por sebes de piteiras e sabugueiros, cantos de courella onde pascia a indolencia fulva dos bois, jumentos e ovelhas roendo pellugens nos vallados. Mais para lá, grandes amphitheatros de outeiros, hirsutos de matto e crenelados de penhas lugubres, armavam escadarias de cyclopes contra a nevoa ondulosa dos ceus—e nitidamente cortados em brancos de caliça violentos, sem claro-escuro, fins de aldeia iam-se esbatendo nos primeiros planos, collina abaixo, casas terreas com chaminés sahindo em torrella das frontarias, esbracejos de parreiras por cima dos muros, medas de azinho e serras de palha em cathedral, carros de matto erriçados de fueiros, portões de adegas com mariolas provando o tinto, mulheres fazendo meia nos poiaes das portas, gallinhas e porcos revolvendo as estrumeiras podres, ruidos de bigorna, cantos de gallos, e no cotovêlo da estrada, já distante, dois paus em cruz historiando um assassinato. No quintal, por cima do palheiro, a um lado, havia um mirante com balaustrada de louça, a que se subia por uma escada de tijolo, orlada de craveiros e cachos de fuchsias. Entre palheiro e mirante era o pombal. A cama da doentinha ficava n’um angulo da alcova, e por entre as cortinas podia ella, mesmo deitada, alongar a vista contra a residencia das queridas aves, que em grupos na cimalha do mirante, nos angulos do telhado, ou á porta das pequeninas moradas, se agachavam tristes, pennas em tufos, cabecinhas debaixo da aza, ou bico alto, espreitando a hostilidade parda do ceu. Um ou outro pombo audacioso voava ás vezes por cima do mirante, em arrulhos timidos, saltitando nos balaustres, cauda em leque n’um gracioso movimento de subida e descida, e esse debicar de volatil ocioso, que procura distrahir-se fazendo mal. A rajada porém fazia-o volver logo ao ninho, impotente para o vôo, de cabeça baixa e azas molhadas. Mesmo tossindo, face irritada de rosetas funebres, guela secca de febre, Maria de Jesus seguia as sortidas dos seus amiguinhos, cheia de dó porque elles soffriam. Esse dia foi cruel para todos! Ás duas horas, a febre trouxera desvario, e o Santo do Outeiro, com a barretina ao lado e cruz em riste, mais o embuçado de aos pés da cama fazendo rolar pela barba fulva, grandes lagrimas silenciosas, volveram a encher de scenas tragicas a mente da pobre criança, walsando, passando, estacando, esgrimindo gestos de todas as fórmas, e descobrindo á luz uma face em que se repintavam todas as emoções e momices. Tão alto o resfolegar, que se ouvia nos quartos proximos, arquejante, estriduloso, acabando por vezes em silvo. A pelle secca, de contactos asperos, queimava como se fôra uma braza, e no peito que tomára tons amarellos, o animal feroz do coração, comprimido na jaula, batia de encontro ás paredes, pondo na carne solavancos temerosos de vêr. Ao mesmo tempo, espicaçava-lhe o tronco o cinto de causticos que lhe fôra applicado; machinalmente os seus beiços diziam—agua!—e escancarados n’um pasmo vitreo, os olhos erravam no tecto á procura de um ponto tranquillo, onde não chegasse em galope o _djerid_ de phantasmas traiçoeiros. Bateram Trindades, já os ultimos ares do dia eram absorvidos na sombra dos aguaceiros, e da alcova esclarecida a luz de lampada, nada se descortinava sobre o pombal ou sobre o jardim. Mas os vidros da janella tremeram de leve, uma grande mão de dedos esguios bateu devagarinho, bateu... Dôces e tristes, os olhos da velha mãi reconheceram na treva, a aza do pombo negro fatidica e implacavel, a que o indeciso da noite dava proporções desmesuradas. A tremer chegou-se á filha, viu-lhe um riso suavissimo, espiritualisado de angustia e todo luminoso de innocencia. Cahira o arquejar da respiração, as palpebras cerravam-se-lhe repousando, e no desenho do corpo indeciso nas penumbras do quarto, a pallidez da cara sómente, punha em redor o divino clarão de uma aureola de martyrio. —Os pombos! tornava surdamente a velha, os pombos!... E era toda a sua queixa. * * * * * Pelo dia seguinte a esperança estava perdida. Os tecidos flaccidos abandonaram-se a uma lassidão tenaz, sem resposta a estimulos de qualquer ordem. Mal se sentia a respiração da doente, e como um pendulo que faz em cada vez oscillações de menor arco, assim o impulso do coração, successivamente enfraquecia. Ao chegar de manhã o velho doutor Patricio, inda sentiu sob os dedos nodosos, o pulso vermiforme que ondulando fugia n’um fio tenuissimo. Ás dez, a onda partida do coração era menos viva já, e mal chegava abaixo do cotovêlo. Depois fez-se inda mais curta, e lembrava assim o exercito em retirada que lentamente desguarnece um acampamento. Mal lhe sentiu frias as extremidades, e n’um desvairamento de morte, pôde estudar no rosto da filha a anatomia mortificada e plumbea, que é o _toilette_ do corpo para as bodas do cemiterio, a pobre velha desatou a bradar pelas casas como doida, tropeçando nos moveis e despedaçando as roupas da sua misera viuvez. Corriam ao appello os velhos amigos da casa, e as santas mulheres que tinham visto nascer a pobre Maria. E um chôro cortado de lamentos, enchia a casa, fazendo alarme nas ruas. Alguem notára desusada actividade no pombal. Os chefes entravam pelas casinholas e picavam raivosamente as femeas no agasalho do choco, fazendo-as abalar dos ninhos; e em revoadas doidas por cima do mirante, a turba frenetica afugentava alguma coisa dos ares, parecendo perseguir um inimigo occulto, sem arrufos, sem arrulhos, mas por uma fórma incansavel. Na vertigem da debandada eram profanados os ninhos, rolavam os ovos do alto, ou vinham-se esmigalhar nos tijolos da escadaria os pobres borrachos, brutalmente investidos pelos paes. Por vezes toda a buliçosa legião pousada nos cimos do mirante, armava linha de batalha com graça marcial, em que faziam mosaico as armaduras de plumas dos peitos, e o furta côres dos pescoços levianos. O pombo negro, que dir-se-hia ter crescido pela noite, parecia commandar o veloz regimento, e no extremo da fileira, cabeça alta e olhos inquietos, estudava o horisonte tumultuoso das nuvens, que um dardo de sol ensanguentava a espaços. Ia pela abobada uma decoração dantesca, profusa em contrastes de negro e branco, com fumaradas errantes que o vento acossava de onde a onde. Por instantes condensada em cupula, ou rachando em zig-zagues de oiro sob o choque dos bulcões em peleja, uma felpa de negro electrico, pastelava ameaçadoramente a amplidão, n’um tom unido azul d’aço, felpa que era como o grosso do invencivel exercito de nuvens. Não havia ainda trovões, e o ar rarefeito transmittia sons difficilmente. Além d’isso, dava-se nos sêres e nas coisas uma suspensão de assombro, recolhimentos de plateia á escuta d’um lance tragico. Viam-se chegar galopando os ultimos esquadrões da tormenta, ao de manso, n’um pittoresco de emboscada, com as suas provisões d’agua e fogo. Aquillo galgava por cima das montanhas, ennovellando-se em musculaturas titanicas como nos despenhados de Milton, e subindo a tomar fileira na formidavel ordenação da batalha. Alguns medonhos athletas ficavam por momentos em pé sobre os morros crenelados da cordilheira, alongando os braços n’uma selvageria de fórmas. E arrojando ao largo os capacetes e escudos, pousavam de cabelleira em floresta, a provocar em volta esses anões terrenos que se agachavam de medo. Mas outros mais arrogantes, vinham logo atraz d’esses na escalada emprehendida, cavalgando-os, cingindo-os em lucta singular, e subindo ás costas dos que vinham depois. E bagagens, animaes de ataque, leões em rebanhos, jaguares e pantheras, carbonosos elephantes armados de torres, carros de guerra com panoplias de tridentes... Ante essa invasão sem barreiras, a natureza amedrontada retrahia-se em fremitos. Nem um vôo, de arvore a arvore. Nos pinheiros, castanheiros, e oliveiras de troncos rocados, havia gestos de supplica e dôr centenaria. Por baixo da sua velha ponte romana, e todo cosido com os pedregulhos e juncos do leito, desertava o rio sem rumor. Um trovão principiou em surdina do extremo horisonte, veio vindo, vindo mais retumbante, como se quizesse fender essa basilica armada em funeral. O pombo negro abria n’esse instante as azas a pairar um segundo, e no mais alto do mirante pousou-se n’um grande vaso de cactos, como n’um miradouro de fortaleza cercada. Tinha a cabeça vibrante, bico no ar, o peito rufado—e com os seus olhos castanhos observava os ceus de lado, altivamente, no seu posto. Cahiam já grossas gottas de chuva, que o ar riscavam de arames parallelos, rolando pelo terreno em espheroides vestidos de poeiras fulvas. Em magotes por essas azinhagas, enxada ao hombro, ramos de trovisco nos chapeirões, jumentos pela arreata, os trabalhadores recolhiam-se á villa, amedrontrados, recomeçando a _Magnifica_, um ar de deslumbramento estupido. E alongando os pescoços n’uma angustia, as vaccadas mugiam fundo, sob o peso da asphyxiante atmosphera. Branca de encontro á fuligem do ar, a villa resahia agora n’um minucioso desenho de casas lavadas, chaminés aggressivas, e portas carreteiras fechando por cancellões de ripa, como se um grande reverbero em meio da sombra a rembranisasse. Começavam ruidos subterraneos, vertigens bruscas de relampagos... Nuvemzinhas pallidas, gazes de tessitura fragil, punhos de _valencienne_, e plumas de leques rasgados em crispações de raiva, corriam, pousavam, debandavam, damasquinando os negrumes com phantasias niveas. E o pombo negro não descançava nunca! Viam-no voejar em ellipsoides cada vez mais largas, investir bruscamente pelas ventanas do pombal, cuspindo de dentro a palha dos ninhos com turbilhões de pennugem. A sua actividade tinha coleras e vertigens. Elle fazia debandar o batalhão dos guerreiros, ia e vinha allucinado, mais negro que nunca, reflexos de aço nas azas, e um alvoroto de pennugens na raiz do bico. As mulheres menos maguadas, que para distrahir-se vinham olhar pelos vidros as arvores do jardim e a vida do pombal, espantavam-se de similhante tumulto de aves. —Que terão os pombos? Que adivinharão os pombos? perguntavam fingindo ignorancia. Todas porém sabiam a historia da deserção. Era o agouro realisado, toda a familia de almas que ia emigrar, acompanhando ao céo a sua irmã, envolvendo-a na jornada, defendendo-a com as azas, alimentando-a com arrulhos, vestindo-a da brancura divina da sua pureza, e emittindo-lhe o esplendor da sua graça. Quando o velho doutor chegou, a face de Maria cavára-se de todo, havia na sua testa diaphaneidades de cera, e um tom verde-negro raiando-lhe das fontes, afogava-lhe as feições n’um como luzeiro phosphorente. Nas azas do nariz vincadas a ferro, pontos fulvos depunham-se em crystallisação microscopica, como o pollen de uma funerea flôr desmanchada. E os olhos abertos, gelados de humores, perdida a transparencia, davam á physionomia uma singular expressão de acabamento, angustia e suavidade idiota, deixando vêr no terrivel relance, como o animal se ia transfazendo em coisa. —Rezem, disse o velho em voz alta, pondo o chapeu para sahir, no meio dos choros renovados. Os ultimos pombos abriam as azas, abalando por sua ordem, a installar-se na enorme serpente, que se desenrolava palpitando sob a irisação de um ultimo raio de sol doentio. —Os pombos! os pombos!... dizia agora toda a gente. O ROUBO Á porta da enfermaria pousaram a maca, á espera. —Eh Ramon! gritou o enfermeiro, do fundo. Um servente já velho, olhou na direcção da voz, e de venta no ar, mangas arregaçadas, o labio estupido, farejava. O enfermeiro juntou: —Cama do canto, vá! E com o seu geito vagaroso, abria em volta de um que expirava, o biombo isolador, papel azul e verde, com ramitos de rosas e borboletas. Alta e interminavel, a enfermaria recordava ainda o claustro d’onde nascera, com as suas pilastras de cantaria bruta, a abobada caiada de que os lampeões cahiam symetricamente, e janellas d’uma banda e outra, encimadas de respiradouros circulares. Tinha talvez cem doentes a caserna desconforme, em cujo circuito se viam pequenas bancas de pinho com escarradores de folha, boletins clinicos pendendo a cada cabeceira, e na brancura amarellenta das fronhas, cabeças lividas de olhos estoirados, que se sentiam sós entre tanta gente, e mais soffriam de contemplar os males circumvisinhos. O enfermeiro era um de olhos biliosos e barba dura, cuja rude voz destillava monosyllabos roucos. O seu ventre abahulava-se em obesidades balôfas e a face livida, picada de variola, tinha uma expressão cobarde, espesinhada por esse longo mister de humilhações. Os ajudantes, gallegos velhos, não eram mais dôces de modos, e dia e noite altercando sobre qualquer coisa, batiam os sapatorros no sobrado, mostrando pelos descosidos da camisa, musculaturas de toiro sob epidermes de gallinha cozida. Era quasi noite, e estagnava á flôr das coisas, uma penumbra morna em que se multiplicavam as larvas da febre, na atroz labuta da podridão. Tinham descoberto a maca no entanto, o enfermeiro viera vêr pachorrentamente, e com um dedo mostrára aos serventes a cama do canto, já prompta a receber hospede. Cada um d’elles então, foi a seu lado da maca; o mais baixo agarrou nos varaes da frente, o mais secco nos de traz. O enfermeiro disse—upa!—e em direitura á cama, a maca atravessou a enfermaria. O doente que vinha de entrar, era um rapazito enfezado e triste, cabeça oblonga toda rapada, um geito de dizer provinciano, e essa doçura de olhar em que se estrellam todas as resignações. Devia contar treze annos, e viera aos dez de Santa Comba, recommendado ao Pinto por um lojista da terra. A vida na loja, durante os tres annos, fôra uma aspera peleja, de madrugada ás onze horas da noite, dia a dia, sem repouso. Era elle quem varria, como marçano mais novo, quem punha os taipaes, e manhãsinha abria a porta, limpava o pó e moía o café. Mettido no saguão de lagedo ou na cozinha tenebrosa da loja, onde de verão e inverno, uma baba salitrosa e gelada chorava da cantaria immunda e das paredes pulverulentas, ahi passava os dias, só com uma triste camisa coberta de nodoas, arregaçada nas mangas e rota por toda a parte, calças de cotim sobre as pernas núas, e tamancos nos pés sem meias, engordurados e torpes. Os invernos tinham sido implacaveis n’esse antro, mesmo para o montanhezito afeito aos gelos das serras beirãs. Como os portaes não tinham portas, um ventinho horrivel cortava pelo corredor, da loja ao saguão, zebrando nas carnes listrões arroxados, pondo frieiras nas mãos dos caixeiros, e tornando a cozinha inhabitavel e mortifera. O marçano não se queixava. Nunca na sua vida tivera jaleca, as calças de cotim safado, luzentes de sebo, não lhe resguardavam as pernitas esqueleticas, e cortado á escovinha, o cabello não podia resguardar-lhe a pelle do craneo. Quando chovia, peor ainda. A agua inundando o saguão, golfava na cosinha, escorrendo pela anfractuosidade das pedras, e vindo molhar os fardos do armazem. Era então preciso desarrumar aquillo tudo, carregar saccos de assucar, costaes de bacalhau, barricas de peixe secco e manteiga, caixotes de golozeimas, lavar o chão, todos os preventivos exigidos. E sempre elle, o mais fraco e pequeno de todos, carregava com esses trabalhos pesados, e aturava os ralhos. Duas ou tres vezes, o Pinto insinuado pelos caixeiros, lhe batera com uma corda molhada, porque se queimava o café, porque tinham bolor os rebuçados, e algumas vezes, porque as arganassas invadiam os caixotes da fazenda. Era o joguete das intrigas do armazem, o ponto obrigado das chacotas villãs dos caixeiros, o alvo dos ralhos e a victima dos delirios viciosos, d’esses tres ou quatro encarcerados brutaes, que só podiam deixar a loja tres horas por quinzena. Nos dias agrestes em que era forçado a residir no saguão, sentia por vezes já nos ultimos tempos, a cada lufada de vento, picadas interiores, ardencias mortaes no peito, oppressões vagas, um mau estar indefinido. E aquillo coincidia com uma sensação de fraqueza geral, dôres nas articulações, esquecimentos de membros e vertigens frequentes. O terceiro inverno foi o mais terrivel, e n’uma manhã em que a febre o calcinava e o delirio lhe fazia dizer incoherencias, quando furiosos os caixeiros o iam tirar da cama a pontapés, deram com a sua respiração arquejante, viram-lhe os olhos sem luz, e desceram com medo. E quando anoiteceu, mesmo em mangas de camisa e calças de cotim, o pobre dava entrada no hospital, na maca da esquadra proxima, e aos hombros de quatro gallegos. * * * * * Essas primeiras horas de enfermaria foram para o rapazelho um desconforto mortal. Estrangulava-o uma sensação glacial de abandono e de pavôr, a ideia de matadouro onde se morre abandonado ao som de risadas, entre agonias atrozes, sem sacramentos e sem palavras de piedade. Dos fechos da abobada penumbrosa, os lampeões quadrados cahiam com luz triste, immovel na atmosphera podre do ambito, clarões que se amorteciam nos angulos da peça, em cujas muralhas, sombras de pilares traçavam fórmas de arvores colossaes. No amontoado de leitos, e no sonho phantastico d’aquella luz amarellenta de craneiro, o marçano mal pôde no fervor da febre que o minava, reconstruir com verdade pelo que via, a vida purulenta do estabulo, para onde a cidade varria os seus tumores e as suas miserias. Pareceu-lhe que o deitavam ao pé de uma grande janella, n’algum canto de sombra luctuosa. Duas mãos enormes ergueram-lhe a cabeça para lhe metter o travesseiro, sentiu as coberturas comprimidas aos pés, e erguendo a vista, deu com uma cara gordalhuda e chata de enfermeiro, bigodes cahindo aos cantos da beiçada horrenda, e esse ar de enfado ainda peor que a raiva, que pronostica a indifferença e o embrutecimento, de corações onde todas as cordas estão partidas. Cahiu então n’um estupor profundo, e assim ficou como os outros, arquejando, a pelle secca, bocca aberta e lingua cornea, pequenos gritos afflictivos, que a espaços marcavam as visões do delirio, que ia evocando. Nunca soube dizer os dias e as noites, que assim esteve atolado em modorra sinistra, com listrões plumbeos na face, carnes flaccidas, e sempre aquella oppressão que o afogava com teimosia cruel, se abandonando os travesseiros altos, procurava estender-se um momento sobre algum lado. Ás vezes, alguem lhe chegava ao pé, faziam-no sentar bruscamente na cama, com perguntas rapidas, se estava melhor, que voltasse a cabeça, estivesse socegado, ou erguesse o braço, para lhe cortarem as bolhas que o cinto de causticos abrira, pondo vermelho e doloroso no thorax, todo um circuito de carne viva. O que o atormentava eram as percussões que sobre chagas abertas lhe faziam, de manhã e á tarde, á hora da visita clinica. Se pedia mais devagar, o enfermeiro impunha-lhe silencio, e aquelles olhos de bilioso, vitrificados como n’uma porcelana chineza, davam um calefrio ao pobre rapaz. Noites atrozes, crescia-lhe a febre, e perdido o tino, punha-se a disparatar. Todas as scenas dos tres annos de loja se desmanchavam e reproduziam n’esses desvarios escandentes—a noite em que fôra roubado o armazem, e d’uma vez que ficára a zorra da mulata portas a dentro, batuqueando co’a malta, e ainda as sovas do Pinto com uma corda molhada, por não ter apparecido o gato. Nada volvia a agitar-se com mais frenetica insistencia, n’esse pequeno cerebro atormentado pelo mal, que o roubo da loja. Os caixeiros tinham-se escapulido ao fechar da porta, e elle ficára só, em noite de S. João. Deitado na enxerga do subsolo, barriga para o ar, as roupas fóra, mãos acima da cabeça, o pobre, sósinho no armazem enorme, pensava com saudades, na fogueira que em Santa Comba, deante do casebre natal ardia a essas horas da noite, e os irmãositos saltavam alegremente em cabriola ruidosa. Pela rua fóra, tudo seriam fogueiras, colmos em montes, canavouras de favas estalando na labareda rubra, e em torno dos mastros verdes, bailaricos alegres, bichas interminaveis de rapazio, rumorejos de guitarras e explosões de pandeiretas. Sobre a villa acordada em descantes, uma corôa de luz poria nas nuvens, o oiro-rosa das alvoradas de maio. As frontarias esclarecidas seriam alegres, e o relogio da egreja iria badalando a meia noite de S. João, quando o chavelho da lua mingoante, symbolico e triste, se fosse a sumir por traz de cabeços solitarios, vestidos de pinhaes sem termo. E abandonado para alli, emquanto escamugidos da loja como larapios, os outros andavam gozando pela cidade, elle fazia por dormir, sem poder. A porta da loja ficára unida, para quando os senhores entrassem. Que triste ser pobrinho e desgraçado! Em tres annos de mourejar, apenas para comer tinha ganho. E tinha já vergonha de se vêr sebentão pelo armazem, e ao levar aos freguezes de estima no grande cabaz da loja, as mercearias encommendadas, ficava-se acabrunhado e tremulo antes de bater á porta, receoso que o expulsassem, cuspissem de nojo ao vêl-o, e o descompuzessem pelos rasgões da camisa, pelos calçotes de cotim gordurento, tão curtos que se lhe viam as canellas, vergastadas pela orla de coiro dos sapatorros montanhezes. Duas vezes ou tres, pela alta manhã, lhe quiz parecer que andava gente no armazem. Inda chegou a erguer-se da cama. Procurou os phosphoros, tinham-lhe esquecido na cozinha. E pondo o ouvido á escuta, apenas percebeu que as arganassas roiam nas cestas do macarrão, ou pelo lagedo arrastando papeis, armavam as correrias das mais noites. Demais, ia-o embebendo a modorra da madrugada. Fôra penoso o dia—moer café toda a santa tarde, arrumar garrafas que tinham vindo, limpar o bolor dos queijos... E os olhos fechavam-se-lhe no amortecimento de uma enorme fadiga, quando muito ao de manso outra vez, as taes passadinhas soaram abafando ruidos, como de alguem que fosse, encostado ás paredes, tacteando as coisas na escuridade. A vontade d’elle era gritar—quem anda ahi?—procurava os phosphoros, mas vinha uma cobardia fundil-o todo, batiam-lhe os dentes—se fossem ladrões!... E na sua mente lendas de malfeitores tomavam relevo, attitudes tragicas, em que brilhavam navalhas e corria sangue. E os seus ouvidos zumbiam no terror d’aquella espectativa, e um phosphoro raspado na parede, abria clarões tibios, a cuja luz, a figura do larapio tomava relevos de sinistra audacia, o _tic_ sagaz de um animal feroz, pescoço estendido, á escuta para dentro, e cabeça chata, de um desenho de carnivoro, a que duas grandes orelhas despegadas das temporas, davam o aspecto de um mocho, esgalgado e lugubre. _Ó Jasué! Ó Jasué!_... E a voz que assim dissera, abafava-se em segredar entrecortado, parecendo voar por todos os pontos da casa, da abobada da loja á escadinha da cava: quando da rua um silvo discreto, lá longe, na precaução de um plano estudado, fazia cahir o phosphoro e correr a sombra do larapio, aos encontrões nas trevas. O marçano fazia então para gritar esforços desesperados; levavam o dinheiro da loja e a fazenda, o Pinto matal-o-hia em sabendo... E aquella suprema ideia galvanisando-o todo, fazia-o saltar da cama com um berro rouco, braços no ar, incoherencias de possesso... O larapio porem voltava, tinha-se-lhe atirado ás guelas, sacudia-o—quatro da manhã! Era o ajudante de quarto, com o remedio n’um copinho de folha. * * * * * Afinal, abrindo olhos conscientes, ao fim de não sei quantas semanas de parvoice morbida, conseguiu dar fé com tranquillidade, dos seus companheiros de camarata, os visinhos mórmente. Era já n’uma manhã de maio, nos dias em que a humidade das ruelas profundas e o frio dos interiores desabrigados, fazem parellelo ingrato com a tepidez da luz exterior, tão benefica que pelos troncos entorpecidos na hibernagem faz subir revigoramentos de seiva, e vae brotando dos bolbos decorações patheticas de folhas, como accende nas faces rubores de saude, e nos corpos rodopios de alegria insaciavel. Essa magnificencia gradual da terra paramentada de coloridos finos, relvas mosqueadas de malmequeres, papoilas e maios, as transições infinitas do verde que ondula do amarello ao anil, bosquejando fundos de oasis ás casinholas rusticas das hortas, feria pelo contraste os habitantes da velha enfermaria, de paredes impenetraveis, pilares gigantescos, e esse calor insipido de fogões que ardem, noite e dia, com intensidade prefixa n’uma escala, amollentando corpos e favorecendo as fermentações. Alguns hospitalados que melhoravam, derreados ainda pelo assedio de longas enfermidades, iam de janella em janella e cama em cama, espreitando a agitação da cidade alastrada em baixo, na expansão irregular de um bairro pobre, predios esguios, beccos de escadinhas, quintalorios afunilados, ou a coragem dos infelizes que em crise hesitavam, entre a franca convalescença e o franco paroxismo. Um velho camponez de Chellas por exemplo, ingenuo e palreiro, era d’uma solicitude tocante. Tinha a face rude e calcinada das intemperies do campo, mãos disformes com dedos curvos, que a convivencia da enxada já não deixava endireitar, suiça amarella e raza imbecilisando o riso, e um sincero interesse pela sorte dos companheiros de doença. Curvado no capotão de briche da casa, barretinho branco atado no coronal, elle ia encostado ás camas, todas as manhãs saber dos seus doentes, ajudar os moços no serviço das rações e distribuição dos remedios, contar a sua vida aos que já iam melhor, dizer brejeirices aos que se punham á janella, alentar os que se amarguravam ou rezar pelos que já não sentiam. E uma noite em que o da cama 24 morreu, o de Chellas sentado na cama, olhos nos dois punhos, chorou umas poucas de horas, como se fosse da familia, o que fez escandalo nas gentes do serviço, o enfermeiro principalmente, que chupando o cachimbo, olho morto, lhe chamou em voz alta—_grande pantomineiro_! O marçano tinha um amor pelo bom homem, ingenuo como elle, fallando n’um tom descansado que lhe recordava as gentes de Santa Comba, e que sabia esses proverbios rudimentares, sobre estados de tempo ou saude, signaes de colheitas ou fortuna pessoal, em que o povo usa synthetisar o seu patrimonio de observações seculares e anonymas. Era o velho de Chellas a unica pessoa que lhe mostrára interesse, querendo saber d’onde era, que fazia, o nome do pai, se na loja era bem tratado, e que tal de _paparóca_... Assim, na manhã em que a melhora se esboçou lealmente no marçano, pelo espirito lucido que volvia ao cabo de um periodo agudo, em que a febre lhe vedára de todo, percepções fieis e coherentes juizos, a primeira cara que afrontou, abrindo os olhos de um somno reparador, foi a do camponez que lhe sorriu, da cama do visinho do canto, a cujos pés estava assentado. E foi elle quem, no fim de uma grande parlenda sobre a doença de ambos, com o braço estendido lhe foi apresentando a enfermaria toda, com a historia de cada doente, as respectivas manias, as gracinhas dos moços, as invasões bruscas da estudantada, que escancarava as portas do guarda-vento, para em risos e replicas se espraiar depois, em volta de cada caso clinico mais curioso. De tudo, n’essa estufa de efflorescencias morbidas, havia um typo—velhos paralyticos, doenças febris, uma collecção completa de tisicos em todos os graus, classificados por ordem, cardiacos de face terrosa e respiração intermittente, enfermidades viciosas que eram a hilaridade dos convalescentes, anemias, bocios, tumores, um museu de torpeza physica, fazendo o orgulho de uma população e o delirio de um clinico. E reproduzindo o riso, a voz e o gesto do doutor, o velho de Chellas em pé junto ao leito do marçano, arremedava aquelle, d’uma vez que mostrando a enfermaria a um collega da provincia, dizia alegremente: —Faz-se o que é possivel para haver de tudo, meu caro. Dá trabalho, não nego, mas com boa vontade... —Bento nome de Deus! fazia amedrontado o rapazito, em quanto radioso da emoção que produzia, o outro tomava folegos, n’um orgulho de contar tão bem. —Vê vossê o do numero 13, vê? dizia elle.—Esboçava o typo, detalhando devagar—aquelle gordo, todo calvo, passando o fogão... Anda por dois annos que mora cá, entrevadito de todo, e fôra do matadouro. Mau, santinho, como nunca vi! Desde que entrou, não diz senão agua!—quando tem sede. Cova!—se os colchões vão abaixo c’o peso do corpanzil, e assim. De estar para o mesmo lado, semanas e semanas, faz-se-lhe o corpo em chaga viva; e teem-lhe uma raiva na casa!... Nem admira—não arranjando recommendações, não avezando gorgeta, nem bom ar ao menos... A principio vinha a filha, domingos e quintas, com lembranças, sua fruta, e umas certas pratinhas... Eram descomposturas de morte na rapariga, que por fim mudou de bairro, entende? aborrecida do trambolho ruim. E o que fica de contente, em alguem morrendo!—Á força de viver aqui, já conhece o estado da creatura pelo fungar da respiração. Estando para haver carne fresca, avisa logo, a rir, como vingado d’alguma birra velha. Aquelle contar, dava calefrios ao marçano, cuja phantasia ensopada em toscas superstições de provincia, creava no leito 13, uma incarnação de diabo sarcastico, vivendo da tortura alheia, perto dos delirios, na allucinação das febres e no coração das dôres, batendo a therapeutica, fazendo as crenças debandar, e no crepusculo da agonia alongando sobre os corpos, azas de morcego, farpadas e verdes, faminto das almas côr de luar. Mas na sua monotonia implacavel, o velho ia para deante, verboso e contente, insistindo no caso, biographando uns e outros, referindo as rações de carne assada, as fomes tradicionaes da dieta, os grandes desalentos de quando tombava a noite na enfermaria enorme, á hora em que os accessos vem accelerados, o rhythmo das respirações se turba, uma afflição convulsa esmaga peitos e coragens, e ás janellas fumando, os lividos enfermeiros bocejam de tedio e mau humor. Cabisbaixo então, o velho pensando na sua velha e o marçano em sua mãi, sorriam um para o outro de tristes, com um desejo no bello sol dos prados, e nos tectos humildes sob que tinham dormido n’outro tempo. Quando a narrativa chegou á cama em que o de Chellas estava assentado, o marçano pôz a vista pela primeira vez no vulto do doente seu visinho, atufado em roupas até ás orelhas, e immovel como se fôra morto. Tinha entrado com facadas no lado esquerdo, ia em mez e meio, conforme o velho contou. Poucas palavras, olhos sempre fechados—quer vêr? E destapando a cara do intractavel companheiro, o de Chellas gritou-lhe: —Eh camarada, dê os bons dias á gente!... O doente virou dolorosamente a cara para o lado d’onde partia a voz. O movimento que fez, instinctivo quasi, arrancou-lhe das profundezas do peito um gemido extincto, e o marçano pôde vêr entre a dobra do lençol ensanguentado e o algodão do barrete de dormir, uma face chupada e rôxa, cujo olho parecia dormir sob a palpebra cahida, pelle de elephante com barba rara, enormes orelhas que despegadas do craneo davam a esse todo, a expressão nocturna e lugubre de um mocho derreado. Deu um repellão na cama, uma especie de grito brusco que poz em alarme a população proxima. —Alguma dôr? quiz saber o de Chellas. —Nada! nada!—e confuso, tremulo de susto, o marçano tinha desejos de reatar palestra, readquirir sangue frio, rir mesmo do que o outro contava, mas voltavam-lhe ideias negras, parecia-lhe aquillo um carcere, os homens sêres ferozes devorando-se em eternas luctas e eternas intrigas, toda a cidade um covil, e a enfermaria um monturo. E aproximando reminiscencias, comparando feições, dizia para comsigo ter já visto aquella face terrosa. Onde? Fosse lá saber! Mas ficára inquieto, peor, uma coisa parecia estrangulal-o, roubar-lhe o socego e o calor do corpo. Olhava á roda, vazio de consciencia, opprimido, as mãos errantes nas roupas. Fazia magnifico sol n’essa manhã, quinta-feira de Ascensão por signal, e era de vêr como os convalescentes, abandonando jornaes e palestras, vinham apinhar-se por traz dos vidros da enfermaria, alongando os olhos pela paizagem fronteira. Avistava-se já no arrabalde, um pouco das montanhas da Graça e do Monte, e além, no pendor do valle que se estende contra a Penha, searas a espigar, picadas de vivos pontos de flôres. Como era dia da _espiga_, pelas veredas que as terras demarcavam, os grupos da gente operaria com exercitos de pequenada, iam entre as searas, serpenteando com fatos de domingo, para colher o ramilhete de papoilas e espigas, que no dizer da lenda lhes traria ao ninho, felicidades e paz. Logo de manhã, o paralytico que na velha cadeira de rodas corria tudo, pedira ao de Chellas para lhe deslocar o vehiculo contra a janella, saudoso dos tempos em que, como aquella gentana toda, espairecia os ocios do dia santo, blusa nova, madama ao lado, e o fedelho trotando no bengalão do pae. Tambem esse foi apontado pelo de Chellas ao marçano. O rapaz olhou-o de longe, viu uma cara grave expressando saudades de venturas mortas, e estupida indifferença pelo que em volta vivia. Tempos! Tempos! E o velho abanava a cabeça todo grave, de olhos no chão. —Já tem a companheira no cemiterio, contava. O rapaz fez-se-lhe homem, e foi degredado por navalhadas. Ninguem herdaria o nome do ferreiro honrado, nem a ferramenta do officio, que por cincoenta annos, as mãos d’elle haviam puído na bella coragem de um labor sem treguas. Tudo n’esse hospital era pois triste, cheirando a tumba—miserias, desgraças, quedas!... Tremia a alma com frio. E tambem pensativo, o velho de Chellas, erguia o olhar sobre a paizagem fronteira, viva de mundo e penetrada dos fremitos da aura e do sol, que manso, mansinho, iam fazendo ondular os colmos das searas e as folhitas das oliveiras. Áquella hora, tudo abriria no seu pobre logarejo, corollas de risos matinaes, simples e sinceros como a alma dos prados verdes, exhalada no cantico dos passaros e na bruma cerula do entardecer. Iria chamando á festa o sino da egreja; gente de casaes aos ranchos, entrava talvez o velho portal de ogiva, gothico da primeira dynastia, e no arraial flautins e bombo, animariam o bailarico de cochopas com moleiros, espessos como bezerros. D’uma banda o rio espelhado, e da outra collinas verdes picadas de pomares em flôr, altas noras ronceiras, e moinhos de vento em rodopio, enquadrariam a paizagem n’uma suavidade casta, cheia de fecundos sonhos, nupcias, beijos, atomos de sol e borboletas sacudindo o iris das suas azas turbulentas. Cada corolla seria um ninho, e uma fuchsia cada insecto bicôr. Nas colmeias das hortas, abelhas iriam fazendo pacientemente, cathedraes de favo, gothicas e fulvas, com o perfume de todas as flôres e a doçura de todas as nectareas. Um deus coroado de folhas, crinas ao vento e riso de auroras, baccho pelos cachos do carcaz, meio homem, meio monstro, esculpido nas troncagens das cepas, entre tufos de parras e cannaviaes, ou nos farrapos de nevoa, á hora em que espadana o sol das cordilheiras, espargiria sobre a natureza ebria, a munificencia das suas graças sem par. E na ponta da aldeia, á porta da casinhola terrea, a velhota de roca hirta no cós das saias, faria bailar o fuso nos dedos, longe do fuso e da roca porém, tendo o pensamento no seu velho do hospital, e chorando por isso mesmo. Ah, pae do ceu! Que seria das vaccas, das leiras de repolho, do batatal e da jumenta parida!... E campo fóra, apanhando espigas, chapeu largo e cantiga prompta, elle via a gentana trepando, serpenteando, correndo, e ficava-se amuado de estar preso, de se vêr doente, espectador de tantas miserias e de tantas dôres! Assim estiveram calados, deu uma hora no cuco da enfermaria, e o marçano attento no das facadas, via-lhe a immobilidade do corpo afogado em roupa até aos cabellos, e o quebramento da postura, sempre a mesma, vazia e morta. Fazia-lhe um medo algido aquelle homem tão quieto, a que nenhum remedio arrancava melhoras, sempre na mesma, sempre na mesma, não dando palavra, não respondendo ao medico, nem ao menos deixando vêr uma pagina sequer do que fazia por fóra. —E como vae elle? perguntou o marçano, indicando ao de Chellas o vulto, de soslaio. A resposta do velho foi: —Diz que marcha.—E tão laconicamente dita, a sentença de morte deu allivio ao pequeno, que muito baixo para dentro de si, ousou dizer—ainda bem!—como se o mundo lhe ficasse aberto, por se fechar mais aquella cova. * * * * * Permittia-se áquella hora entrada na enfermaria, e em quanto com esmeros postiços, os moços alisavam a roupa aos protegidos, refazendo as dobras, achegando á cama bancas de cabeceira, e pondo a geito os escarradores,—pessoas da rua, acanhadas, passeando os olhos de cama em cama, á procura do seu doente, iam entrando receosas, as mulheres sobretudo, de tanto homem estiraçado. Os que na vida ainda tinham pessoa chegada, velhos paes ou maridos, irmãos, amigos, companheiros de predio ou de officina, levavam os olhos para o guarda-vento, á espera d’um rosto conhecido, que lhes viesse sorrir e fallar. O entrevado deixára-se ficar na eterna attitude de dois annos, indifferente ao que ia, n’um egoismo imbecil em que fuzilava rancor. E da janella mettia dó tambem, a face do paralytico, pintando uma d’essas tristezas planturosas e mudas, que até fazem pena ás creanças, e de que a gente toda a vida se lembra. Nenhum d’elles tinha quem lhe quizesse já, e as affeições dispensadas aos outros, mulheres revendo maridos, filhos beijando os paes, irmãos beijando irmãos, e amigos dizendo o que ia por fóra, escandalos de rua, casos de officina, projectos e desastres, faziam na alma dos dois como um estridor de bofetada, insulto que se não perdôa, e traz odio como reacção. Mas de repente, atraz do velho de Chellas, alguma voz atabalhoada disse:—Eh, marido!... Voltou-se elle logo áquelle timbre conhecido, braços abertos, querendo erguer-se d’onde estava sentado e sem poder. Era a sua velha saloia, de botas crúas e lenço amarello. —Eh, companheira!...—Largando o chalito de baetilha, a pobre tinha-lhe cahido em cheio no peito, chorando sem fallar, e toda alegre por vêl-o já de pé. Riam em volta d’essas ternuras de setenta annos, vivas e sãs, que tinham, tão simples, um perfume casto de bodas de oiro, ao tempo em que um moço, apontando o leito do marçano, disse para um senhor—é aqui! E inesperadamente, o pobre rapaz deu de cara com o Pinto, solemne no frack preto dos dias santos, suiça rasa e cabello á escovinha, o alto ventre liberal, d’onde medalhão e corrente escorriam, n’um pus de riqueza gorda e chinfrim. O merceeiro adeantou-se, face austera de patrão, chapeu alto pendente, e mantinha de pavões bordados. Entrou logo n’uma lenga-lenga nasal e rapida, sem deixar fallar, onde pesava a nota hostil da sua posição superior. Como estás? Como não estás? Que lhe tinham botado causticos—quantos, mesmo assim? E proseguiu—se purgavam? Era essencial, para puxar os humores. Deixa doer quem doe! Elle bem lhe recommendára na loja, tivesse resguardos. Advertir um homem casmurros, é malhar n’um ferro frio. E quasi o mandava ficar bom no dia seguinte, impacientado, embirrativo, pela falta que fazia na loja. Veio o senhor enfermeiro de mãos nos bolsos, o grande avental com chapa da casa, bonnézito á banda. E sabedor da alta posição que occupava aquella figura, o Pinto fez-lhe a reverencia, estendeu-lhe a mão com o grande riso de receber visitas, deu-lhe—_bossa senhoria_. Entraram a conversar na vida, tão trabalhosa para quem não queria andar á dependencia. E o Pinto disse o seu negocio, como tinha começado na rua dos Vinagres com a tendinha do canto, de sociedade com outro. E como subira pouco a pouco, sempre com honra, felizmente. N’um entorpecimento, o outro escutava, olhando por cima a chafra-nafra da enfermaria, tão pittoresca pelos visitantes que entravam, e pelo barulho das vozes que se embatiam. O merceeiro então, para lisonjear tão precioso donato, fallou nas doenças do tempo, na sabedoria dos enfermeiros, _tão entendidos_ que chegavam a embrulhar cirurgiões—e pela primeira vez, o funccionario teve um gesto de concordancia, e disse com magestade batendo o avental—sim, sim! —Se a doença do rapaz daria para muito ainda? —Conforme, disse o enfermeiro. E com ares profundos:—Não se póde prevêr. _Logo por conseguinte_, póde estar um mez, dois... —Dois! disse o Pinto com espanto. —Tres, ou mais. Conforme. Vae melhor, vae melhor. Mas o Pinto já não o attendia. Dois mezes! E encarava duramente o marçano, como se o estivessem roubando. O pequeno lamentava, de cabeça baixa: —Que por sua vontade não estava alli. Se o snr. Pinto cuidava que era fortuna, a vida de doente... Ah! elle não tinha culpa, por sua desgraça, não tinha culpa... Mas o merceeiro sem attender, voltava á carga, atacando, fazendo-se ouvir. E o tom secco, cerrado e baixo da sua voz, opprimia pela dureza, vinha em saraivada cortando respostas e lamurias, alquebrando mais o pequeno, e pondo-lhe nos dedos e na espinha, a frialdade cruel do medo. —Nem todos teriam esperado como elle, tres semanas assim. Era mesmo abusar! E que se a coisa dava para tarde, não teria remedio senão tomar outro. Meu rico, dizia-lhe enterrando a cabeça nos hombros, com um brusco movimento ascensional de espaduas; custa! Mas é marchar para a terra. Reprehendia-o como de costume, pela fraqueza physica, a miseria dos ossitos cambados, a carne molle que cedia prostrada ao mais leve esforço, caniculas de braços, peito para dentro, amarellidões de uma lesma. E a sua carne triumphante e rubra, que a fartura da mesa regalava e mantinha, cuspia desprezos aridos n’essa miseria de fedelho chupado, que vergava em cobardias de vime. Servia lá, nem o diabo! E vendo-lhe lagrimas, temendo que tivessem reparado, fazia a voz alta, amansando a expressão do dizer. —Cura-se, deixa. Com descanso e tempo, inda vens a dar ahi um granadeiro.—E queria rir; era hediondo a rir! Por fim tirou a bolsa, ficou-se a olhar á volta para que vissem, mexia nas meias corôas novas, fazendo-as tenir, e uma a uma, deixou-lhe cahir cinco na roupa, que telintaram chamando as attenções de toda a casa, pessoal e doentes. Os que ficavam perto, ergueram um rumor de admiração sympathica—que rico patrão, a bella pessoa, feliz de quem servia homens assim! E pediam de mão estendida, o ar exhausto, para tabaco. Ao tenir da moeda, o das facadas abrira olho, immovel nas roupas, e pelo canto via attentamente o rapaz entretido nas meias corôas generosas, e o Pinto a distribuir os meudos que tinha, fazendo alargar o côro de bençãos, oleoso de orgulho, o medalhão oscillando no seu ventre burguez. O episodio fizera esquecer o par de Chellas, velho ao pé da velha, isolados dos mais, e referindo negocios de casa, esperanças no anno e o pequeno lucro das vaccas. Tinham sido abençoadas as aguas de abril, a sementeira enchia olho, nascera um burrico, e na venda do leite, o rapazote tinha dias de seis tostões e mais. O velho impacientado, mexia a perna doente, como a infiltrar-lhe vigor. —Esta maldita que não enrija! dizia. Esta negregada sempre na mesma!—E procurava quedar-se de pé firme, por minutos, até que forçado a sentar-se rogava pragas, zangado da edade, da fraqueza e da demora. —Paciencia, volvia a velha. É já por pouco! E arregaçando o saiote azul, de estamparia pobre, tirou da enorme algibeira de retalhos um queijo fresco, as primeiras cerejas do hortejo, quatro ricas laranjas, e o pé de meia do dinheiro, para se abrir c’os enfermeiros em tendo alta. Um no outro, repousavam olhos tranquillos, na tocante amizade d’essa ligação tão longa, que a velhice despira já de erupções e arrulhos. E fallavam de tudo ao mesmo tempo, para aproveitar bem a visita—quando elle sahisse, não era verdade?... e as dôres que tinha soffrido, passeios ao sol, na cerca, por ordem do doutor, as chuvas, e das manhãs que vinham brumosas ainda, e da vida de cada qual na enfermaria... Interessada, a velha ria para os lados, a um e a outro, feliz por dar a sua piedade de mulher ao infortunio dos tristes, que sobre enfermos eram ainda por cima desamparados de affeições. Por descuido ficára entreaberto o guarda-vento, e como estivessem voltados para lá, viram passar no corredor um padre, de barrete e estola negra, e atraz, pouco depois, o sacrista que levava uma grande lanterna accesa e cruz alçada. Encararam-se brancos, adivinhando a mesma coisa funebre. O queixo da velha tremia, e na crise nervosa que viera, os seus braços apertavam a cinta do velho, como a furtal-o a perigos. Era a Uncção, a alguem que partia d’este mundo. —Adeus, disse ella tristemente. Tornou o marido—adeus! E a olhar se ficou, bestificado nos aspectos sepulcraes da catacumba, a reconstruir aos pedaços, scena por scena e grito por grito, o lugubre drama da vida hospitalar, que desgrenhadas visões alumiavam, a labaredas de horror. Essa passagem do padre no corredor, lançára um calafrio nos catres—parecia menos triste o paralytico, e da sua cama o entrevado ria alto, com um gargalhar imbecil que era diabolico, exprimindo deleites de uma vingança, sinistra de vêr. Desentoada, sem modulações, como sahindo de uma larynge sem cordas, a sua voz cascalhava a espaços, acima do borborinho geral. —Lá vae padre, lá vae padre! Carne fresca para hoje!... Já a saloia ia á porta, dizendo ao marido adeus com a sua mão nodosa, muitas vezes, e ao descer parou, esteve a olhar saudosamente ainda, e foi-se. O velho enternecido, ria já tranquillo, recolhendo de sobre a cama do esfaqueado, os presentes da companheira. Ia repartir a sua fruta mal-o queijo, com o amiguito de Santa Comba. Laranjas quatro; eram seis molhitos de cerejas; e o rico queijo sem sal, muito branco, vinha embrulhado n’uma folha de couve. Ia mettendo tudo nos grandes bolsos do capotão de briche. O ultimo molhito de cerejas era magnifico e rubro, inda humido das parras em que viera envolto; e de braço erguido, cerejas contra a luz, o de Chellas mirava-as muito—eram da cerejeira de ao pé do tanque, não se enganava. Os olhos riam-lhe de felicidade para os fructos, como para queridos filhos. Plantára elle a boa arvore, ha dez annos, n’um dia de orago, estando a mulher de parto. Tão graudas e vermelhas!... Trincava-as uma por uma, mascando vagarosamente, de olho pisco. De estalo, meu homem! Cuspia os caroços com orgulho, saboreando a sua fructa, que viera da sua horta, colhida pelo seu rapaz e trazida pela sua mulher! N’aquella embriaguez esquecera-se do pé da meia, em que o dinheiro vinha. Estendeu a mão para a cama, machinalmente, á procura. O pé de meia! O pé de meia! E não dando por elle, affirmava-se, mas não o via, o rico pé de meia das economias... Baixou-se custosamente então, a vêr debaixo da cama, e aos lados da banquinha, nas dobras da coberta, em toda a parte—nada! Os seus olhos erravam por uma banda e por outra, exprimindo um pasmo afflictivo agora, e o ar oppresso de quem quer gritar e não póde. Fez para o marçano: —Vossê viu por aqui, o pé de meia da companheira? O outro fez não, com a cabeça. Não tinha visto! Que era? O pé de meia da companheira? Por seu lado, o velho reflectia, olhando á roda. Ninguem podia ter-lh’o assim furtado, não se salvasse! Entre a cama do esfaqueado e as mais, abriam amplos intervallos—da direita era a janella, da esquerda o canto. E o amigo das facadas nem se movera!... Diabo! Surpreso, o marçano encarava-o de face, á espera, sem saber. —É que o levou por engano, tornou o velho afinal. —Levou quem? —A companheira, homem! Aquillo é que se esqueceu, a cabecinha de vento, e guardou o pé de meia. Pega cerejas. Deixal-a! * * * * * Pelo cahir da tarde, tinha-lhe voltado abruptamente o accesso de febre, trazendo comsigo o desvario. Jactitante e curta, a respiração vinha sifflante na guela, cornea de seccura. Acrescia a difficuldade de estar deitado, parecendo que uma gargalheira de bronze o afogava, pondo-lhe zumbidos no pavilhão, e deslocando-lhe as coisas aos circulos por deante dos olhos, n’uma walsa lenta, em que os contornos e as côres, se apagavam e fundiam. A espaços, despertando dos lethargos profundos em que amodorrava horas e horas, ouvia o entrevado prégando mortes, que já nas sombras da egreja velha, o riso das corujas tinha predicto noites e noites. Com seculos de intervallo batiam horas no cuco da enfermaria, alargando n’uma tortura livida, sem fim, as dôres e as insomnias, e moendo os corpos pela vida morta em que os agitava. Por vezes o enfermeiro de quarto, de varino, capuz derrubado e lanterna á cinta, sahia ao guarda-vento para gritar—Dez horas! Duas horas! Seis horas!—Seguia-se o barulho de passadas somnolentas, vozes que trocavam ordens, pontos vermelhos de cigarro scintillando na treva do corredor—eram os moços que se rendiam nos quartos, gente que batia custosamente o lagedo, e outros levando em padiolas cobertas de negro, quentes ainda, para o deposito, os miseraveis que vinham de expirar nas enfermarias. Outra noite então começava, eterna, sem guarida, sob a calma densa do ambito, que a bassa luz dos lampeões enchia de oscillações mortiças, que docemente, em franjas vagas, vinham quebrar-se na sombra tremula dos oito pilares da abobada. Aqui e além, dois ou tres sonhavam co’a vida livre dos seus mesteres, nas ruas, nos campos, nas fabricas e no lar, recompondo as scenas quotidianas, dialogos de atelier, as pequenas birras de familia—e d’alli para cima entrava um fervor afflictivo, subindo, descendo, intercalado de haustos fundos, de suspiros oppressos, spasmos de asphyxia momentanea, cansaços, impaciencias, raivas—depois era ainda a série dos que não podiam dormir, e para todos os lados rolavam n’um esbrazeamento de sêde, deitando os braços de fóra, pedindo agua, n’uma irritabilidade de sentidos que os punha fulos ao menor ruido, ao attrito mais debil, ao leve ondular de uma luz. E as respirações fundidas com esses movimentos desordenados davam um concerto informe, alguma coisa como fervores de cratera activa, ralos que em espira fugiam do rumor geral para morrer em silvo, n’uma especie de sopro apagado, por vezes n’um ronco até. —Carne fresca para esta noite! Carne para esta noite!—Que as maganas estão-se a rir... Uivo de besta-fera que alarmava de lugubre, a deshoras, zangando uns, mortificando outros. Sómente desprezando a sucia, indifferente aos gritos e aos terrores, o enfermeiro estava na cadeira de braços para o quarto da madrugada, _Rocambole_ na mesa, lanterna ao lado, cachimbo acceso para matar o somno, e certa idéa gulosa em dois dedos de carne, feminina e sadia. A sua sensação dominante, era um odio da vida negra eivada de miserias, em que amortecem affectos e bons impulsos, todas as lealdades da estima, abnegações do sangue, e os fluidos de uma sympathia que ás vezes, instantaneamente, se contrahe. Porque o tirocinio da profissão deserta de risos, constantemente em face do estertor, da allucinação e do soffrimento, o eterno espectaculo de corpos doentes, pondo a nú as podridões do temperamento e das faculdades, a crueza dos instinctos e os urros da cubiça e do odio, aluira-lhe o ideal de generosidade, estancando as fontes do bem, da pacienca e do amparo, quanto é inherente á intelligencia e se bebe de salutar na educação. Oh, a Julia, que sobrolho promettedor!... E rolava todo amoroso, n’um espreguiçamento lubrico, cabeça para traz, na molleza somnolenta que faz para assim dizer, atmosphera ao desejo. Bocca aberta, cahidos os braços, cachimbo em ala esburacando o capote, ficou a resonar espapaçado como um odre, e via-se o bigode cahido nas commissuras, pondo-lhe na cara o laivo despotico de um mandarim feroz. N’um sobresalto então, o marçano viu uma fórma núa que se debruçava para elle, de olhos estourados, os braços em arco pintados de figuras azues, ancoras, letras, cruzes, datas, e de mãos tremulas tacteava as roupas, por baixo do travesseiro, á procura. De medo, nem pio deu. Olhava a estranha cabeça, muito chata de fronte e alongada ao alto, pequenina, afocinhada, de orelhas salientes. Apenas se mexeu, a fórma recuára sem ruido, como se escorregasse, e as suas mãos buscavam sempre, com incisão subtil e fina, pelos colchões, abaixo dos lençoes, sob o travesseiro. Que é? Quem está? Que quer? A adunca fórma vinha com precauções minuciosas, parecia crescer endireitando subitamente o tronco de livida magreza, em que saltavam costellas, e a enorme ligadura passava cingindo-a desde os sovacos até aos rins, com discos de sangue secco. Trespassado de terror, o pequeno fazia tudo para gritar, em lucta com o pesadêlo das mais noites—primogenito das grandes febres, em que mesmo acordado, tresvairava. E a catalepsia era implacavel, completa, prendia-lhe os braços, prendia-lhe as pernas, gelava-lhe a lingua, estrangulava-o pela garganta. Via essa aranha de nodosos membros, amarellos, terrosos, cheios de lanugem parda, cujos ossos davam estalos, indo e vindo, palpando o leito dos pés á cabeceira, escorregando-lhe as mãos ao longo do corpo, de olhos fixos, carcomido, atroz, cheirando a raposo e a mattagal. E não partia, a gargalheira de aço que o estrangulava!... Transparente da extraordinaria magreza, o larvado sêr dir-se-hia movido por uma idéa fixa, procurando aqui e além, palpando tudo sem ruido. De cada vez que as suas mãos tocavam a carne do rapaz, sentia elle uma frialdade de reptil, pelle escamosa e aspera, que ao contacto dava irritações doridas. Cada articulação lhe fazia uma massa redonda e enorme, na linha torta dos membros. Era todo anguloso e torcido, inutilisado por uma degenerescencia trahida nos mais simples pormenores organicos, desde os musculos que mal avultavam comidos de cachexia, até ás phalanges dos dedos, filiformes, agitadiças, tendo o ar de vermes. Afinal o estado fez crise, pela condensação de uma grande força nervosa—e o pequeno deu um berro roufenho e brusco, muito curto, mas ao erguer-se sentiu a guela oppressa pela pressão de uns dedos crispados. A aranha cahira-lhe em cheio sobre o peito, tinha-se-lhe aferrado ás guelas, de pupilla accesa, calada por cima d’elle, e toda inteiriçada na sua magreza funambulesca. O pequeno debatia-se em vão; mas tinha os braços livres e atirava-lhe murros ao focinho, dando pontapés sob as roupas, e furtando o corpo a cada solavanco da guerreia. Luctaram dois segundos assim, n’um silencio lugubre em que os halitos sifflavam; e o espectro mordia nas mãos do garoto, aos pulos sobre a cama, furioso, tentando arrancar-lhe o quer que fosse, mão nas guelas, e a outra mão aggredindo sem descanso. Afinal conseguiu tirar-lhe o que era, pôz um pé no sobrado, deixára-lhe as guelas livres. A lucta porém não cessou, era o marçano quem atacava agora, aos gritos, agarrado ao pescoço do espectro. Tinham acordado em volta, no entanto, chamavam por gente, estremunhados, sem saber o que havia. De braços tisicos, o rapaz retinha a fórma núa, sem largar, arquejando, implorando—dê-me isso! dê-me isso! Mas o disforme sêr parecia de pedra, olhando de pé a creança que implorava. Tinha já ensopada em sangue a ligadura, e dobrado para a frente queria avançar um passo, dizer o quer que fosse, acenar com as mãos talvez; mas ao tempo corriam, e o enfermeiro atirou-lhe um empurrão—seu malandro! seu assassino! Tinha-se reconhecido o das facadas, o que nunca mexia do seu lugar: e como elle vinha para aggredir, o enfermeiro injuriando-o, n’um chuveiro de infamias vertiginosas—que viera do Limoeiro para alli, era um degredado por toda a vida, um assassino, um pulha e um ladrão!—descarregou-lhe a bofetada em cheio, e com uma cara hedionda viu-o cahir desamparado, todo um, vomitando sangue negro, que cheirava a pôdre. Então disse alto, contra o guarda-vento: —Eh, carreguem o canalha! Os moços agarraram n’elle, um pelos pés, outro pela cabeça, e a custo ergueram-no do chão. Ensopada, a enorme ligadura não podendo reter o sangue das facadas abertas no esforço de luctar, pelos intersticios deixava-o correr em fio, muito escuro, crepitante, espumoso, nas tabuas, e pelas roupas, alagando tudo. Esse corpo resequido, sob cuja pelle tendões sahiam retesados como varas, jogava solavancos para toda a banda, com os braços, com as pernas, dando urros de touro agonisante. A enfermaria estava agora em balburdia, e todos fallavam n’um fundo de pavor, esbracejando, commentando o caso, fallando ao mesmo tempo. Os moços vinham de atirar sobre a cama o rebelde, que a morte estorcia em repellões profundos. Viram-se essas pernas flectidas como para um salto, erguerem as rotulas juntas, contra a bocca torcida, d’onde um sangue denso golfava ao de manso. E dobrado pela cinta, todo aquelle sêr mexia, rolava, uivando, procurando apoio nos hombros, nos cotovêlos, nas nadegas, alçando a cabeça, cahindo outra vez, e erguendo-se ainda para luctar de novo, na ancia do ultimo arranco. Tinham chamado o interno de serviço, que veio ao pé da cama, e seccamente, chupando o cigarro disse—prompto!—e abalou de mãos nos bolsos. O fervor da respiração que subira mal viera a agonia, cahia lento, com o ruido d’um comboio que chega, e a mascara ficára rigida e baça, listrada de um bistre singular, ao ultimo rolar convulso dos olhos. Coincidia com o aniquilamento da face, a geral prostração dos membros—as pernas abatiam-se n’uma rigidez de pedra, mettera-se-lhe o peito para dentro como sorvido, e pendida do leito, a mão que estava fechada relaxou-se, deixando cahir no sobrado sonoramente, umas após outras, as cinco meias corôas do marçano, que condensando afinal as suas lembranças, acabava de reconhecer no morto, o ladrão do armazem. O HOMEM DA RABECA A casa para onde me mudei nada tinha de confortavel e resguardada. Sómente alta e mais clara que o primeiro andar da rua do Sol. Devia já ser velha; os tectos baixos e o soalho carunchoso tremiam em os chinellos arrastando. Pelos buracos do roda-pé, as baratas saltavam de noite aos rebanhos, em cata de alimento. Mas de manhã a coisa mudava—rompia alegremente o sol, como um companheiro folgasão, e no parapeito da varanda, as pombas do marceneiro vinham arrulhar beijando-se, com esse movimento _coquette_ de cabecinhas graciosas, em que parece viver todo um mundo de pequenos segredos de _boudoir_. Um pé de eloendro florido chamava as abelhas, abrindo-lhes as corollas roseas n’um candido aroma de beijos, e em amphitheatro, alargando-se da Baixa ao cimo das collinas de uma banda, e até ao azul do rio da outra, a casaria da cidade, liberta dos ultimos vapores da noite, expunha as suas fachadas brancas, monotonamente cortadas de janellas, sobre que os tectos cahiam em pyramides alongadas, e de que as chaminés furavam aggressivamente aqui e além, fumando na risonha luz recem-nascida. A primeira coisa que pude notar na visinhança, foi que não havia uma cara bonita. Em baixo na loja do predio fronteiro, a mulher do logar, suja e gasta, era repellente com os seus enormes sapatos de ourelo e o corpete do vestido constantemente descerrado, mostrando a carne trigueira e chuchada dos seios. No primeiro andar, engommadeiras com cara de homem, cabelludas e amarellas, vinham raro á janella para lançar olhares obliquos sobre as casas alheias. Por cima era uma mestra—ao lado um veterano eternamente á janella, de barrete azul, fumando no seu cachimbo disforme. Na rua estreita e tortuosa, todos se conheciam; creanças brincavam descalças e ranhosas, tocando latas; de manhã era uma gralhada de janella para janella sobre a carestia das coisas e as carraspanas dos maridos—e o mesmo padeiro servia as familias, demorando-se de palestra pelas escadas. Ás dez horas, em quanto fazia o almoço, sentia um rumor de passos cansados, e uma voz dizer de quando em quando—_espera, homem, vae devagarinho. Alguma vez dás comigo pela escada abaixo!_ Era o visinho do lado, o cego da rabeca, descendo com o pequeno. Iam para o giro do dia, em quanto a velhota ficava enrolada em cobertores e meio paralytica das pernas. Succedia topar com elles pelas ruas. O pae era velho, typo commum dos cegos famintos, com a saccola pendente, rabeca a tiracollo por um cordão verde e sujo, o chapeu amachucado, véstia de saragoça. O habito de cantar para as janellas havia-o deitado um pouco para traz, os olhos escancarados tinham uma serenidade vitrea, a bocca era um nada atormentada aos cantos... Em certos dias corriam a cidade inteira, beccos lobregos e ruas humidas dos antigos bairros, onde parece errar ainda agora uma legenda de facadas e a bulha de altercações vadias. Á noite, internavam-se pelos baixos cafés de operarios, Alfama, Mouraria e Bairro Alto; e alli amachucados a um canto, em quanto gemia a rabeca, o rapaz erguendo a voz dizia as desgraças dos degredados e as lamentações do Vimioso, terminando por estender o chapeu á esmola dos que bebiam. Eram os unicos tristes da rua aquelles expulsos da fortuna, a velha que ninguem via, o cego e o rapaz macilentos. Voltavam tarde, extenuados. —Vá homem, vá, parece que não tens força nas pernas! dizia o cego ao pequeno. Succedia, por vezes, Miguel recordar que não havia petroleo em casa, que as provisões estavam por pagar no João tendeiro, e não seria fiado real na manhã seguinte se não fosse de logo paga a pequena despeza. Detinham-se então na escada ou á bocca de alguma loja. O pequeno estendia a mão tenra e roxa, e n’ella o pae ia deixando cahir vagarosamente e com pena, uma a uma, n’um _tlin-tlin_ methodico, as pobres moedas recolhidas no trajecto do dia. Ás vezes era pouco, tres, quatro vintens. —Bemdicto seja Nosso Senhor! suspirava o cego, e passavam sem luz essa noite. Era nos domingos mais prospera a esmola e triplicava a receita. Dizia o cego: —Sempre é dia em que Deus Nosso Senhor descansou. Por vezes até, uma pobre senhora, compassiva ante a velhice d’aquelle homem, sem queixa mordendo as miserias do desamparo, offerecia-lhe um pouco de fato, restos de refeição. Era um prazer, que se poupava o jantar d’aquelle dia. E deante do pequeno Miguel, cujos olhos vagos e interiores pareciam absortos n’uma contemplação lunatica, o cego desenrolava carinhos doces e meigas insistencias para que trincasse os melhores bocados, perguntas repetidas sobre se tinha frio, dôres de cabeça, os pés molhados... Rareavam de inverno as esmolas; mal se podia andar na rua, que a lama cuspida dos trens enchia tudo, e eram inclementes e eternas as gotteiras dos telhados pingando sobre quem passava sem cobertura. Em tempos d’aquelles nem os garotos da rua queriam musica—as creanças dos varios andares, as melhores freguezas das pobres valsas e cantigas que o velho executava na rabeca não podiam chegar á janella; se pediam esmola, respondiam logo—Tenha paciencia! Além d’isso um horror que a policia os fisgasse em flagrante mendicidade... que seria depois, da velhota? O asylo glacial em que as cabeças estão cheias de parasitas e os estomagos vazios de alimento, seguir-se-hia enquadrado na pressão soberba e fria dos fiscaes e administradores; separal-os-hiam brutamente, o velho para a caserna com outros invalidos, como elle sem valia, a creança para a _Correcção_, em que a lividez é patibular. N’esses amargurados dias era necessario comer a rações. D’uma vez tinham feito um pataco. E a velhota, coitada, sem remedio!... A hora do jantar retardou-se n’aquelle dia. Quando era noite, o velho fallou em irem comer alguma coisa. Queixou-se de não ter vontade, e deu ao Miguel o dinheiro para que fosse comprar pão. A creança olhou-o com uma especie de surpreza ingenua; á luz do gaz d’uma loja viu lagrimas nos cilios tremulos do pae, cuja face cavada tinha uma côr terrena de angustia. E sem saber porque poz-se a soluçar á esquina, longe d’elle, para que não fosse ouvido. Ah! era bem negra aquella vida, era! MATER DOLOROSA A noite fôra surprehender o rebanho nos cabeços de Montalão, avançadas da cordilheira adusta, que fechando valle pelo norte, vinham morrer pouco a pouco em outeiros já cultivados, e mais raros á medida que em volume e redondeza decresciam. Ia um d’esses verões alemtejanos, calcinantes e sezonaticos, em que o sol arde desde o nascente ao occaso, não bole folha a cicio imperceptivel, e todos os leitos de ribeiras sugadas e corcovas de caminhos, faiscam sob a luz, em reverberações implacaveis; tempo em que se trabalha de noite, as perdizes fazem ninho, figueiras e vinhas dão fructos, e nos cantos das hortas, os ouriços se rebolam por baixo de abrunheiros e damascos, a espetarem nas puas da sua armadura a provisão de uns poucos de dias. Outeiros e courellas iam já ceifados; viam-se restolhos amarellecidos rompendo da terra esboroenta, como barbugens brancas em face de velho. De longe em longe, no _paiz_ cerealifero, uma ou outra oliveira derreada, cortava um gesto afflicto na crueldade do céo. E para a banda, em esquadrão cerrado, as azinheiras desfilavam em negrumes guerreiros e formidaveis, cobrindo o solo por leguas e abalando em silencio, como para alguma surpreza. Durante o dia inteiro o rebanho percorrera a pastagem comida e recomida de Montalão, tendo acampado de manhã nas planuras e faldas da cordilheira, subindo lento por corregos e ladeiras, e topando as cumiadas por fim. Com similhantes calmas, impossivel de dormir nos curraes; morriam ovelhas de asphyxia e morrinha, pelas inclemencias do clima e putrilagens da agua—e a penuria dos pastos trazia os gados magricellas, atrazava as crias e consumia os lavradores. Desiderio Jacintho, pastor do rebanho ia em bons annos, nunca tinha visto mortandade assim—nem que fosse coisa de Deus, para castigo dos nossos peccados! Não era o amo só que soffria os azares da calmaceira; que se as perdas d’elle eram maiores, mais alentados tambem os lucros vinham, havendo occasiões de lhe trazer pr’o monte soberanos aos saccos, das feiras onde o mandavam vender cabeças. Mas o pastor soffria por cima de todos—das onze ovelhas que no rebanho tinha de seu, tres eram já mortas de gafeira e as outras Deus sabe! Ora essa noite de restolho nos outeiros tinha sido mal dormida por elle, e quasi levada no calculo dos mezes de trabalho, que havia de cumprir para rehaver o triste dinheiro empregado nas suas ovelhas mortas. A um occaso de extraordinario escarlate, intenso, gradual e enorme, rosando arestas de fragas com fugitividades de ribalta, fórmas nuas de troncos, eremiterios e clareiras, succedera uma reviviscencia de rumores, desde a manhã interrompida—vôos de rolas e pombos, gritos de melros, codornizes, papa-figos, e o _gri-gri_ dos melharucos, vivo e musical na altura, predizendo a aura da tarde e pelo canto espaçado antecipando as Ave-Marias rusticas dos campanarios. Vagarosamente, os cimos escureceram. Foram-se as arvores fundindo em penumbras errantes, á medida que se tornava plumbea e baça a calote incendida do ceu; e por fim, tambem o ultimo riso da luz se foi, já serenamente dormia o campo, fatigado do dia torrido e a espaços resonando no borborinho doce da folhagem. O rebanho annunciára gradualmente esta transmutação de horisontes e emmurchecer de tintas, pelos tons e duração dos balidos. A cada vez que esbotava nas nuvens alguma d’essas glorias ephemeras côr de bronze tonkin, esboçadas de acaso como em fins de tela impressionista, deixando filtrar no erradio da perspectiva lentamente, uns filamentos mais noctivagos de sombra, sahia d’essas gargantas um côro funebre modulado em tremulos de pranto, absorvencias de elegia, rythmos de ballada, e todo convulso ás vezes na afflicção dos mudos, que ao expirar do amigo ou do irmão, querem blasphemar e têem a lingua impotente! Esse côro dizia a tristeza de captivos, longe da patria, erguendo braços supplices, entre vagalhões de sombra tragica e membros flagelladores de espectros. E ás vezes de mansinho, como se fosse em segredo, fazia palavras articuladas de queixa, e ia-se apagando, apagando... Correndo a vista, poder-se-hia contar por corpos, esse exercito armado de chifres e todo ruidoso dos chocalhos. Iam na frente os guias barbados, chibatos enormes de pello fulvo e andar solemne, cornos altos, os grandes chocalhos badalando. E de pescoço erguido, um ar mephistophelico de barbas, toda a lanugem fluctuante no ventre, esses grandes bodes corriam na pastagem adeante das mais cabeças, farejando, retouçando, trepando pelos troncos baixos, subindo aos penedos e fazendo para assim dizer no seu giro, o quadro graphico do acampamento a occupar. Após seguia a grande massa das ovelhas, carneiros e cabritas, toda a pacifica e fecunda legião das femeas e procreadores do rebanho, de cabeças rasteiras, a lã negra, encarriçada e fofa, e a cornadura transversalmente estriada... Tinha já soffrido tosquia a maior parte; de fórma que sob a pelle vincada de tesouradas, os ossos de cada um saltavam na magreza angulosa, ao menor solavanco dos corpos. E por entre a turba furavam os pequenos mais velhos, brincalhões e vivos, cabriolando e cahindo, apoiados nas ancas das mães, ou sugando as tetas com furia de esfomeados. Muitas ovelhas, enfraquecidas de parto, seguiam devagar, parando a dar mama ás crias novas, ou cortando gramineas n’um abatimento triste. E atraz de tudo era a pequenada de meio dia, de um dia e de dois, pequeninos informes cambaleando esmagados sobre altas pernas vestidas de pellugem fina e longa, e abanando ao vento as orelhas espalmadas, sem curvatura e sem meneios. Na vanguarda então, como a luz cahia mais, os bodes erguiam o focinho parando de comer, viam de lado os ares embaciados, e as ultimas franjas de oiro das nuvens acertadas ás tiras, sobre um ceu côr de perola, palpitando nas ultimas radiações do sol. Para baixo, nas chapadas, era uma confusão sombria de laivos que se deslocavam e fundiam, tornando a espessura lobrega. E esbatiam-se as ramadas, perdida a noção das distancias; um diluvio de treva vinha dos valles lento e sem rumor, submergindo as aldeias, as florestas e as montanhas. Vendo a noite cerrada, Desiderio Jacintho poz-se a ajuntar colmos, palhoças esquecidas, fenos que estavam hirsutos á beira de uma alverca ou outra. Depois cortou ramadas nos zambujeiros que havia, esteve a cardar nos dedos nodosos o seu pedaço de isca, chapeu de borla para a nuca, a volta do cajado apoiando o sovaco, um lenço amarello enrolado na cabeça e alforges ao hombro. Poz a isca no gume da pederneira desconforme, com o fuzil feriu fogo... Os cães percebendo, vinham mansamente para elle de olhos doces, ondulando as caudas alvadias. Desiderio Jacintho ajoelhára ao pé dos pastos em monte, que tinham por cima a lenha cortada das arvores. Metteu pacientemente a isca accesa por baixo de tudo, esteve assoprando até apparecer labareda. Restolhos fóra, o rebanho estramalhava-se a fazer cama, escolhendo para dormir os terrenos declivosos e desamparados, onde a aragem désse de chapa. E como para além do lume tudo se perdia em escuro, e a flamma da fogueira encandeava o pastor, ninguem viu uma pobre ovelha, que extraviada do rebanho conseguia alfim encontral-o, extenuada e esqueletica, trazendo de rastos com os dentes, o borreguinho parido de manhã. * * * * * No campo e de verão, rompe o dia ás tres e meia, quando a cotovia faz a primeira ascensão nos ceus, para dar do alto, aos volateis emboscados nas folhas, nas hervas seccas das barreiras, nas tocas, nos cannaviaes e nas balsas, rumor para a grande pastoral beethovnica da manhã. Accesa na pallidez do horisonte, a estrella d’alva tem fremitos de palpebra somnolenta. Vae-se rasgando a nevoa das alturas, de envolta com exhalações silvestres dos valles—e cardumes de nuvemzinhas brancas ondulam as barbatanas de renda, por toda essa piscina cerula, que é desconforme como uma ambição de rapaz. Foi quando Desiderio Jacintho, retomando os alforges e a manta, assobiou aos rafeiros e fez partir o rebanho pela encosta da montanha. Mesmo no cabeço, alastrava-se uma clareira redonda, entre pedregulhos e restos de um moinho abandonado. E deitada n’uma attitude indifferente, cabeça no chão, o focinho coberto de mucos, a pobre ovelha viu partir as companheiras e deixou-se ficar de guarda ao cadaver do pequenino borrego, das suas entranhas nascido. Prolongou-se a manhã, acordaram os arvoredos e os passaros, passaram n’um vôo pesado, bandos de perdizes a matar a sede lá baixo, nos raros pégos da ribeira... Veio o sol, abelhas zumbindo, bandos de borboletas fulvas, gafanhotos e sardonicas nervosas, tudo o que começava o seu dia alegremente, luctando, trabalhando, cantando. E o rebanho já longe, fazia no toque dos chocalhos plangente, uma poesia rustica, simples e penetrada de melancolias. Quando de repente, dois corvos pousaram nos alicerces do moinho. Eram enormes esses corvos, com pennas azuladas luzindo de cerumen, crespas e afiadas como cutelos de bom aço. E impertigavam-se um para o outro, chegando os bicos n’um quasi beijo de alliança, aos saltinhos nas pedras, firmando patas, balanceando os rabos, com olhos obliquos sobre a mãi e sobre o filho. E estendendo os bicos corneos, dentados meudamente no bordo, longos e negros, quedavam-se n’uma especie de consulta, sem grasnar, sem mexer, como planeando campanha. O maior então atreveu-se a olhar de perto os dorminhocos do rebanho, e veio marchando clareira fóra contra o borreguinho morto, com sobrecenhos de inquisidor, sinistro e fero—em quanto o outro ficava á espera, todo inquieto, voejando, consultando as visinhanças, mais cobarde talvez! A ovelha nem dera rumor. Conservava a cabeça inerte para a terra, as pernas dobrando sob o peso do corpo, orelha cahida e molle, e sem movimento a cauda, parecendo morta. Aquella postura extincta animou o carnivoro, que veio mesmo ao pé do grupo, se poz a andar deredor mansamente, assentando a pata com uma especie de precaução, geitos desdenhosos de cabeça e surdos ruidos de serra no bico poderoso. Mas nos alicerces afastados do moinho, dois corvos mais acabavam de pousar, inda maiores e mais negros. Já o sol causticava nos saibros e vinha secco um chiar de cigarras nas arvores. Attrahidos uns pelos outros agora, os malditos abatiam-se aos bandos, depois de voejar em ellipsoides muito alto, por cima da presa. E ás duzias, as cabeças funebres surgiam por traz das rochas, armando conclaves de momento, debandando como _fantoches_, vindo de novo remoinhar aos saltinhos, ondulando, subindo, descendo e quebrando circuito, como n’uma dança selvagem. O ataque parecia ordenar-se, á medida que se espessavam fileiras. Havia já um chefe, velho corvo sem cauda, ferozmente faminto e audaz, que afinal com um grande pulo, cahiu no cadaver ás bicadas. Os mais cerraram-se, apertando circulo, cingindo os dois corpos immoveis, batendo o chão compassadamente, com rythmos de marcha guerreira. E mal um d’elles grasnou não sei que ordem de batalha, grasnaram tambem os mais, n’um côro estridente e lugubre, que abria em risada, terminando em uma especie de uivo, guttural e rouco. N’esse momento, a ovelha ergueu a cabeça devagar, firmou meio corpo nas patas dianteiras, e esteve a olhar de narinas altas, sanguinolentas pela mordedura dos moscardos gangrenosos. * * * * * Aquelle movimento fez uma hesitação no exercito de grasnadores fatidicos cujo circulo se alargou, vergando em receios de castigo. Viam-se os bicos alinhados, convergindo sobre a ovelha e cria examine em ar de pontaria, e fazendo para dentro do circulo uma golilha negra de punhaes. E se ao mesmo tempo as cabeças voltavam, d’esses olhos chammejantes, inquietos e febris, fuzilava um sardonismo feroz, uma como certeza de victoria e provocações mudas, em que havia intelligencia. Quando a ovelha fitava um grupo, esse grupo immobilisava-se com attitudes marciaes, as pernas em fila, caudas em fila, e azas pendentes como abas de casaca, n’um enterro. Mas o resto convergia por detraz da mãi afflicta, de mansinho, aos encontrões, com fremitos de impaciencia já, mas preferindo cansal-a pelo cêrco, deixal-a agonisar para alli de impotencia, junto do filho coberto de moscardos verdes. E como se sentiam fortes pelo numero, longe das vistas de homem, senhores do campo e espicaçados de calma, entravam já de escaramuça, armando sortida, aos pulos no mesmo sitio, enfunando as azas como para aligeirar os corpos, e promptos ao primeiro signal. O corvo velho estava na frente, contemplando o cadaver de cabeça reflexiva, com idéas talvez na presa do leão. E muitos picavam o terreno ao acaso, como a disfarçar os intentos, em quanto a ovelha se levantava custosamente, e com o corpo mirrado, pernas oscillantes e narina afflicta, vinha cobrir os restos do seu pequeno defunto. Chovia fogo do ceu embaciado e calmo, como d’um capacete em braza. Fumos sujos de queimadas, subiam direitos d’onde a onde; e era a hora terrivel em que a paizagem não tem sombras, nem correntes o ar, e vem scintillas cruas de todos os angulos e superficies. O borreguito morto estava de olho esbugalhado, n’uma especie de extasi á luz, meios risos na bocca entreaberta, onde já havia larvas de insectos. E a ovelha guardava-o entre as patas, girando com a cabeça por um e outro lado, á medida que a petulancia dos corvos recrudescia. Os seus balidos frouxos, vindos do fundo do peito, tinham modulações de desespero mortal, e umas vezes imploravam graça debalde, vibrando em lagrimas de sangue, referindo que era aquelle o seu filho, contando a vida do rebanho, querendo abalar pela commoção: outras vezes perdida a esperança, eram uma imprecação á insensibilidade de Deus e do ceu, e rouquejavam de angustia. O corvo velho por fim saltou de vez, e com uma bicada gulosa arrancou um olho ao cadaver. Então os mais vieram em turbilhão, esbofeteando a mãi com as azas metallicas, grasnando de voluptuosidade na disputa de algum bocado. Com esforços desesperados, a ovelha resistia, marrando nos algozes com a sua fronte sem cornos,—e recuava, punha em rotação a anca e os membros posteriores, saltava bruscamente espicaçada, n’essa grande lucta desegual. Apenas, esses bicos todos lacerando a pelle do cordeiro, lhe desnudaram a vermelhidão da carne, não houve mais resistencia possivel, tamanho o impeto da investida! Agonisando então, por todo o corpo ferida e escorrendo sangue em borbotões, a ovelha já não sabia que fazer. Balava rijo, erguendo o focinho coberto de mucos rutilantes, perdera um olho na peleja—mas investindo sempre, a desgraçada! Quando era já tudo impossivel, e o borrego pelos rasgões do ventre, bolsou os intestinos n’um começo de podridão, nada póde dar ideia da alegria selvagem e pantagruelico appetite, d’essa canalha sem freio. Disputavam-se os bocados de bico para bico; e os mais atrevidos alojavam-se por baixo da ovelha, no intuito de se banquetearem melhor. N’um derradeiro balido, em que se exhalava tambem o esforço derradeiro, deixou-se a mãe cahir para cima do filho, aniquilada, resignada, sem queixa—e até á ultima convulsão defendeu o cadaver, offerecendo o triste corpo da mumia em resgate por aquelles queridos despojos. Já se não sentia ao largo o rebanho, e no silencio adusto do calvario, por todo o dia á vontade, os corvos tiveram festa. MEPHISTOPHELES E MARGARIDA Domingo de entrudo. Alguma chuva, lama, poucas mascaras nas ruas. A Clara vendera poucas flores, não por falta de canceiras, que a viram onde circulava a turba, á porta da Trindade, pelas tabacarias e pasteleiros, ao Passeio Publico, na Alta, na Baixa... Pouca sorte! Não era bonita, não era gaiata, nem tinha fatos garridos; e pobre!... Era o peor, palavra. Quem ia agora fazer caso de similhante diabo, e comprar as violetas fanadas e as tristes rosinhas murchas, dos _bouquets_ do seu açafatinho de vimes? Embalde baixou ella os preços, mettia o seu commercio ás ventas de quem passava, apregoou, gemeu, supplicou, tentando dizer as miserias da sua vida negra, dias sem comer, renda da casinhola a pagar, os filhos, frio, doença... Mas encolhiam os hombros. Antes de tudo, os importunados olhavam-lhe p’ra cara. E viam um estafermo amarellento e picado de variola, covas nas faces, olhos mortos, sem brincos nem meias, o lenço da cabeça amarrado adeante, um casibeque com remendos nos cotovêlos, a saia desbotada, e gasnete com essa côr de burel, carcomida e velha, que deixa adivinhar um corpo de arenque, chupado e ossoso. E vendendo flores tão servidas como ella, inda por cima! Um marujo que ia tocando com outros em guitarras, ferros velhos e caçarolas arrombadas, n’esse carnaval de tabernas e bairros lugubres, atirou-lhe um encontrão, dizendo: —Vossê enrica com o estabelecimento. Oh laré! E matulões em chinellos, cobertos de trapos, luzindo de papeis doirados, todos sujos de vermelhão, dançando ao som das castanholas n’uma alegria ignobil, gallegos, cabos de policia, vegetes de facalhão em riste e dedos immundos, ao passar por ella beliscavam-na, dizendo-lhe ao ouvido recados torpes, fufia, rainha das iscas e fandangueira de escada, convidando-a para dormir em hospedarias de má nota. Quanto a vender flores, nem uma! Um dia triste, esse domingo de carnaval. E passando pelos armazens de comida, mercearias, pastelarias e restaurantes, á hora em que accendiam o gaz, ella sentia um surdo desespero da sua penuria, ante esses rumores de gente que apressava, comprava e comia, dizendo—não póde ser!—aos que esmolavam na rua. Em todas as lojas ia um movimento de festa, sahia gente com embrulhos de doces, cabazes de provisões festivas. Através os vidros embaciados das casas de pasto, passavam _silhouettes_ de moços servindo as mesas, ouvia-se o tinir dos talheres e das louças, vozes dizendo: —Salta isto! salta aquillo! As montras provocavam pela ostentação das peças frias, perús de recheio, salchichas enroladas n’um leito de salsa e rodellas de limão, pinhas de fructa afogadas em flores, os camarões, lagostas de patas hirsutas, e as cabeças de vitella crúa, escanhoadas e tenras, que fazem pensar na risonha Herodiade, mostrando em prato de oiro, a cabeça livida de João Baptista. —Flores baratas, oh freguezes, aqui estão ricas flores, muito baratas!... Cahiu a noite, cada qual gosava. Iam bebedos caracollando na rua. E o ceu tinha serenidades no alto, sob o frio luar de fevereiro... Clara foi para casa doente. —Ámanhã veremos, dizia ella esperançada ainda, borrifando com agua fresca o cabazinho de ramilhetes já murchos. O filho mais novo estava em prantos no berço, grunhindo talvez de fome. Clara deu-lhe a teta, mas a creança recusou-se a pegar-lhe, sentindo o leite ruim, da febre, da caminhada, da debilidade e má alimentação. Ás quatro horas do dia seguinte é que Gabriel, o mais velho dos garotos, appareceu em casa todo empoado, amarellento da noite perdida, e com uns ares de pandego, que deixaram a pobre mãe boquiaberta. Nem uma unica cautela vendera, das cinco com que abalára de casa, um dia antes. E a situação carregou-se! Visinhas, não as havia alli tão perto. O antro em que viviam, dava de uma banda sobre quintalorios alagadios, emquanto da outra ia abrir n’um desvão de muralha aluida, entre cocheiras fétidas, onde a toda a hora moços esqualidos diziam maroteiras, ou repicavam fadinhos langorosos. Aquella solidão punha incommunicaveis com o resto do mundo, os farrapos e as fomes d’esses despreziveis. Mesmo de dia, fazia noite na caverna, e gottejava do muro um pranto deleterio, que Clara nunca conseguia estancar. Esta existencia de privação e sobresalto, subterranea, quasi proscripta, era de continuo sob a ameaça de tentações singulares, companheiras da miseria e do abandono. Mesmo estruida e esqualida, a pobre era ambicionada, espiada, accommettida. Em volta da sua toca, girava esperando o instante critico, a cambada immunda das cocheiras perto, homens sem edade, corcovados, rotos, batendo tamancos e batendo fados, n’um asco de estrume que os degenerava em ratazanas de esgoto. Essa gente cahida na ultima torpeza, serenos de noite guiando trens suspeitos, moços de estrebaria limpando o gado e as immundicias do estabulo, sabendo crimes, conhecendo os vagabundos, ladrões, assassinos e meretrizes, tinha na cara em sulcos terrosos um attestado lugubre de infamia. Dois ou tres tinham a Clara de olho, e se a viam recolher da venda, diziam-lhe maroteiras, roncando de luxuria bestial. Nem se imagina a teimosia d’essa canalha narcotisada para toda a especie de brio! Pela noite, sentindo a viella deserta, vinham bater-lhe surdamente na porta, ou cantar-lhe fados de alcouce, n’uma aravia baixa, onde esguichavam os erotismos do degredo e sardanapalicas com pretos. E d’uma vez acordando a deshoras, Clara sentiu-se abraçada pelas costas; e uma voz trescalando a podridão, dizia-lhe em jactos de ancia—volta-te! volta-te! Havia entre todos um corcunda que lhe inspirava terror. Era talvez um velho, ossudo e luzidio, com voz guttural, o vinho carniceiro, typo de impudencia que nada teme e nada respeita. Na cocheira chamavam-lhe o _Tromba_, pela montanhosa constructura do nariz leproso e uma dentuça obliqua, asquerosa de carie. Para bem dizer, era a ultima phase do homem degenerado em besta, especie de gorilla sem força nem agilidade, conservando todavia nos meneios cambados e nos traços physicos, evidente a herança do quadrumano-rei. Os outros da cocheira inda conservavam algumas regalias de homem, guiavam de noite _coupés_ fechados, podiam transportar-se uma vez ou outra na almofada dos trens á laia de trintanarios, ou dormir fóra e guardar-se de certos serviços. O _Tromba_ não. Era um pedaço da cocheira, uma dependencia do estrume em que dia e noite se atascava o empedramento do casebre, não podendo sahir mais que para dar agua ás cavalgaduras, dormindo na palha pôdre pelas bestas esfocinhada das manjadouras, sob os cheiros da urina, entre guinchos e pulos das argamassas, cuja voracidade por vezes lhe espetava dentes na pelle sarnosa das canellas. O alcool, as doenças obscenas e esse rachitismo larvado tão frequente no sopé das cordilheiras altivolas, tinham-no imbecilisado a ponto de lhe fazerem esquecer a maior parte dos termos, irracionalisando-o de um modo assustador. No fundo das suas orbitas lugubres, uns olhos aguados, mortos, cheios de uma especie de gomma de amido, jámais boliam para vêr. Fallava por gritos, imprecações e monosyllabos, a homens e a bestas, n’uma toada sorna, que apenas sifflava forte nos vortilhões de cólera. Incapaz de commoções intermedias, era terrivel e extraordinario nas tempestades interiores, que difficeis em salteal-o eram difficilimas de esvaír, convulsionando-o assim por horas, n’um fluxo e refluxo de doido furioso. Serviam-se d’elle os moços da cocheira como d’um macaco de recreio ou d’um urso habilidoso; e em circulo no pateo á hora do almoço, muitas vezes a Clara os surprehendeu embebedando o _Tromba_ para rirem depois, vendo-o cabriolar entre farrapos, com uivos de animal feroz. O _Tromba_ tinha uma paixão pela Clara, fez-lh’o entender umas poucas de vezes, explicava-o a quem queria ouvir. Essa paixão repellente e sordida permittia á risota soez dos malandrões de cavallariça, uma serie de partidas da mais original obscenidade. O subterraneo de Clara tinha fresta sobre o pateo da cocheira, abertura oblonga, estreita, sem postigo nem vidraça, onde a horrivel focinhada do _Tromba_ se collava atrozmente, nos dias vorazes de satyriase. E a pobre não era senhora de andar na casa, arregaçar as mangas, pentear os cabellos, curvar-se, dizer alto qualquer palavra, que essa voz mecanica do idiota, feita de sopros de folle sobre uma palheta relaxada, não uivasse de amor deshonesto, subindo e arquejando, conforme a sobrexcitação despertada. Clara buscava furtar-se quanto era possivel ao campo de visão da fresta. Arrumára as camas a um canto, fazia a comida n’outro, tinha a louça no reconcavo de outro canto. E se fugia das palavras d’elle, dos seus olhares chammejantes e propostas desavergonhadas, era vêr a raiva do idiota impotente para a chamar a si, como batia nas paredes murros de possesso, como enfiava os braços pela setteira do covil, agitando as longas mãos de sapo á busca de coisa que esfarrapasse e destruisse. Outras vezes mais quebrado, limitava-se a ficar de sentinella ao buraco, a rondar a porta da rua com sollicitudes de cão faminto. E Clara sentia os tamancos d’elle batendo as pedras, via-lhe a face unida á hombreira com humildade sombria, risos de pergaminho, uma magreza hoffmanica, e pela camisola em rasgões, a cabellugem amarellenta do peito, empastada e fria, como pêllos de cão morto ao relento. Os pequenos tinham um medo funebre de vêl-o, choravam em o sentindo vir, recusando tudo o que elle, nos seus momentos generosos de dinheiro comprava para lhes dar. Uma noite, o _Tromba_ enfiou bruscamente pelo subterraneo antes que Clara tivesse tempo de gritar, descalço, cansado, mais livido que de costume—e sem palavra estendeu-lhe na mão aberta, umas poucas de libras. Ella ia talvez tocar-lhe, deslumbrada, sem mesmo dar por isso. Mas o _Tromba_ recuára, e em convulsos sobresaltos onde estralejava a dentuça com ruidos algidos de ossadas, n’um turbilhão de walsa macabra: —Se queres, vem-te deitar. E como ella não dizia nada: —Furtei ao patrão, não digas a ninguem. Tem lá muito, eu sei onde está. Clara estremeceu de horror. Elle disse: —Anda dormir. E do seu queixo em cornucopia, áquella ideia de prazer, uma baba hydrophoba pingava-lhe em grandes gottas turvas. Em lagrimas, voltada para um passado melhor, a pobre mulher recordava então o homem tão forte e moço, a quem se entregára confiante, cheia de ventura e varrida de quaesquer receios, e que depois de a beijar, de a gozar, cansar, infamar e servir, tornado em fera se aborrecera um dia, fementindo quanto de leal e socegado lhe promettera. Ia em dois annos que elle abalára de casa, um dia de festa, no verão, cantando rua abaixo de a ouvir chorar abraçada aos pequenos, véstia ao hombro, n’uns fumos de bebedeira da vespera. Aquelle convivio de homem vicioso que a opprimira tanto vendo-a fraca e dedicada, e a deshoras arrastava para casa os rufiões e bebedos da sua laia, transformando em prostibulo o antro em que os filhos viviam, exigindo baixezas da mulher, explorando-lhe os cobres da labuta cruel que a derruia, pondo-a muitas vezes pelos cabellos fóra da porta e para o meio da lama, mumificára em pouco a mocidade d’ella, tornando-lhe carantonha o riso, fallindo-lhe as carnes, esburgando-lhe as mãos, chuchando-lhe os seios, e pondo-a para alli estupida, supersticiosa e megera. E por isso talvez ella o amava ainda, e receberia se voltasse—ai quem dera!—o pae dos seus pequenos, que partilhára do seu leito, e lhe tinha communicado na primeira scentelha do desejo, o primeiro impulso da maternidade. * * * * * Pela noite nada havia de comer, e a pobre que se sentia peor, deu ao mais velho os restos do dinheiro, a que fosse comprar ceia, um bocado de pão, conductos, queijo, e manteiga para fazer papa ao pequerrucho. O garoto sahiu, levando tres tostões na ponta do lenço. E antes de ir ao padeiro, como era cedo ainda, alongou-se a passeio pela cidade. A correr subiu os Paulistas, entrou no Calhariz, e foi indo, indo, até á praça de Camões. Além da gente ociosa que flanava aos magotes, largando a officina, altercando ás esquinas, entrando nas lojas de bebidas, ou embasbacada seguindo na esteira das mascaras e musicatas burlescas, as ruas arquejavam no viver dos dias de semana. Estavam abertas as lojas, havia gaz nas _vitrines_, lanternas sobre as taboletas dos armazens, barbeiros caros, postos medicos e photographias. Rolavam os pregões enchendo a noite de vozes irregulares, noticias da ultima hora, cautelas, a rica agua do Carmo... E em fiadas, salpicando de lama os transeuntes, as carruagens iam em todas as direcções, cruzando-se, serpenteando, cheias de _sorties-de-bal_, mascarados finos, e pandegos com desavergonhadas. Gabriel era um moreno de olhos avidos, presentido, precoce, e de uma indolencia irritante. E por quanto se lhe deparava de bello, as danças, rumas de costumes doirados pendendo nas sacadas dos guarda-roupas de Entrudo, as _vitrines_ profusas de bijouterias, os bonecos, as porcelanas pintadas, cofres de facetas irientes, terras-cotas, caraças, crystaes e estojos, sentia uma cubiça invadil-o, e dentro em si proprio, na fogosa imaginação dos primeiros annos, turbulenta e ingenua, creava um mundo de folgares e extravagancias, a cada passo modificado, refundido, remendado, feito de novo, e nunca definitivo, pelo que ia vendo na passeata das ruas. Começou por exemplo a desejar os soldados, cavallinhos e carros que via em exposição nos armazens de quinquilherias, á porta do Bernard, defronte no Seixas, e mais abaixo ainda, na rua do Almada, na _vitrine_ da _Aguia de Ouro_, em toda a parte afinal. Depois, ambicioso já de projectos, subia a um trem, botas á Frederica e cabelleira de anneis, ou vestido de azul ao lado de um grande cão senhoril, como aquelles lindos meninos que acabavam de passar, n’um alto _landeau_ a quatro. E de porta-machado, de bombeiro, de pagem, de velho, de diabinho e de policia, dizendo adeus e esguichando toda a gente com uma borracha de gomos verdes e encarnados, como via fazer a essa variedade de pequenos e grandes, que se cruzavam nas ruas, tumultuando a pé ou de carruagem. E percorreria as casas dos amigos, o Caetano da mercearia, o cabo Ferreira, o primo Innocencio e os mais, levado pela mão das suas aias, ao collo do papá, ou no carro do tio, entre criados de farda, velhos e graves, que dessem excellencia, todos curvados de respeito. Recebel-o-hiam então n’um côro extatico, sob saraivadas de beijos, na insolencia dos mimos prodigalisados. —Não te conheço, mascara, não te conheço! diria o Caetano intrigado, aflautando a voz. Á esquina do Loreto, Gabriel deteve-se um instante, aturdido pelo rodopio da multidão. Vinham em duzias os trens do Calhariz, de S. Roque, do Alecrim, Santa Catharina e toda a banda, sobre o Chiado que se alagava em luz, incendindo ao fundo da rampa o _Gibraltar_, e cortando claros de gaz na serpente humana, que nos asphaltos se agitava penosamente. O tom dos gritos e vozes, ganhava sobre a respiração geral da cidade, uma extraordinaria altura. A cada momento, grupos de mascaras rompiam da gentana lugubre com o arsenal de chacotas sabidas, aos saltos, enfiando em tumulto por esses armazens. Eram pastorinhas com faces a vermelhão, marafonas de cigarro ao canto da bocca, cuia disforme, guitarra á banda e olho frascario—e _pierrots_, dominós de monco cahido, toda a sucia que escoicinha entre farrapos e vinho. Através os vidros das portinholas viam-se dentro dos carros, senhoras empoadas, vestidos brancos, decotes de flores e laços, luvas de canhão molle até ao cotovêlo, scintillações de joias, espumas de renda, braceletes, leques e esmaltes nacarados de risos. Entre os amontoados de fórmas brancas e fofas, como flores rompendo da neve, ás vezes immergiam as cabecitas das creanças, em costumes de setim e oiro. Dois passos adeante, Gabriel extasiou deante de certa montra com mascaras, onde estava muita gente parada. Deslumbrante de graça, malicia, colorido e contraste, essa exposição de caras grutescas, pelo cartão moldadas nas mais bizarras visagens. Gabriel, mesmo infeliz e penetrado de um surdo ciume pelos prazeres que não podia gozar, teve de rir com os mais em frente de muitas d’essas carrancas ensopadas de vermelhão apopletico, branco de _clown_, amarello e até verde, com barbaçanas de talhe demoniaco, os olhos vazios e spasmos, narizes em ponta de alambique, verrugas medonhas aqui e além, e dentuças de javali, cornamentas mephistophelicas, barretes imitando comadres e _abat-jours_... Havia um gallo petulantissimo, enlevo e pasmo de quantos seguiam. De bico aberto e olho vivo, o mariola dir-se-hia querer cantar. E na rua em adoração á montra da loja, quem passava detinha-se a commentar todas essas physionomias de cartão e encerado. Descobriam-se então analogias eroticas—aquella parecia o fulano, a outra o sicrano, aquell’outra era mesmo o jagodes tal... Saltavam risadas da turba, como crepitação de vinho n’um copo. E uma ovarina cheia de vergonha abalou, no meio da grita geral. Oh, a tal cabeça de gallo com a sua crista escarlate tão finamente cortada no rebordo, o bico amarello, olhos espertos e o todo invencivel de um guerreiro, fascinavam Gabriel, aparafusando-o alli no chão, attrahindo-lhe as vistas, e fazendo-o perder a memoria de tudo o mais. Como seria espirituoso enfial-a como um barrete, deitar a correr rua fóra... Có-có-rócó! Có-có-rócó! Ririam das janellas, as meninas atirar-lhe-hiam ovos e rebuçados, e toda a gente teria desejos de saber quem era o gallinho gaiato, que tão petulantemente cantava. E sabendo-se que era elle, o Gabriel da Clara, que vendia cautelas e dera um premio de 100$000 reis aos freguezes tendo ainda nove annos, que successo não seria, que de bolos lhe não atirariam as senhoras! Fluctuando n’estes castellos rendilhados de auroras e sonho, tinha machinalmente levado as mãos ás algibeiras. E olhava sempre a radiante cabeça de gallo, em desejos que lhe nascessem pennas pelo corpo, bellas azas de côres nos hombros, e um admiravel rabo coberto de plumagens. Có-có-rócó! Có-có-rócó! Sentiu alguma coisa dura no bolso. E veio-lhe de repente um repellão interior—eram os tres tostões em patacos. Diabo! E encarando-o com ar de provocação, a cabeça de gallo parecia escarnecel-o, armar-lhe fosquinhas, dizendo-lhe a espaços: —Compra-me, não és capaz... Não tens cheta, pobretão! Então marcha, zt, rua!... Isto agoniava Gabriel, que de olhos errantes, um abalo de crime, ia tocando successivamente os patacos no bolso, ao acaso. Entrou na loja—ó meu senhor! O lojista remexia caraças, provava-as um instante na cara dos freguezes, desenrolando crepes, dizendo preços, indo e vindo muito atarefado. —Ó meu senhor! repetiu Gabriel mais humildemente. —Que temos? disse o homem sem olhar. —Quanto é aquelle gallo, faz favor? O lojista dobrou-se por cima do balcão a ver quem fallava; e riu-se. Aquelle riso era terrivel. Gabriel baixou a vista, arrependido de ter entrado. —Quinze tostões, disse o homem. O pequeno recuou aterrado, como se o obrigassem a comprar, querendo ir-se embora e ficando-se, pegado no chão de medo. N’isto, um senhor que veio com tres lindos meninos, deu-lhe um encontrão casualmente, ao passar, e vendo o gesto do pae, um d’esses anjinhos côr de rosa, embonecado e loiro, ergueu a mãosinha para lhe puxar os cabellos. Os manos vieram logo a empurrar tambem o mendigo, puxar-lhe os andrajos, varrendo a loja n’uma colera frenetica e fria. Vinham em velludo azul, fachas de setim pallido cingindo-lhe os saiotes, meia perna nua, rebordos metallicos nas botas, e chapéos revirando á maruja. O maior era um delgadito de olho auctoritario, bocca frenetica estancando um d’esses narizes unciformes, que a gente depois vê entre aros de oiro no parlamento e na opera, com a aggressão de uma proa de guerra entre lucarnas de beliches. Eram desenxabidos os tres, d’uma magreza fina côr de pingo de tocha, desfibrada e molle, que vem das ligações consanguineas e da chlorose dos salões, mas vivamente incendida pela chamma inquieta dos olhos, luzidios como dois onyx molhados. E á bocca da loja, bem firmados na lagea do portal sobre tacões impertinentes, os tres manos rechaçavam Gabriel em linha de batalha, tendo os braços estendidos, mãos retracteis e promptas a espatifal-o, e esse tranquillo ar de victoria desdenhosa que serve a humilhar de morte o vencido. Gabriel corrido, humilhado, e com medo que elles levassem a cabeça de gallo, estava fóra da porta com os punhos fechados, capaz de morrer de vergonha. E abrindo temerosamente a boccarra, deitou fóra contra os insolentes, talvez meio palmo de lingua. —Estes _gajos_, lá por serem ricos... disse elle no meio da rua. Mas sentia-se infeliz, desamparado como um cão, e roido de miseria, no fundo da sua pequenez e da sua orphandade. Em casa, roendo o pão mal-o queijo da ceia, aos pés do catre em que a mãe se estirára, disse n’um vago de saudade: —A esta hora, mãe, toda a gente está ahi a _reinar_, e a comer ricas comidas. Se _a gente_ fossemos ricos... Clara mascava os miolos do pão sem vontade, seguindo a penumbra errante, que na muralha carbonosa e humida, a luz do candieiro sem petroleo, fazia dançar vagarosamente. Como não respondia, o Gabriel olhou-a. —Não é verdade, mãe? Não é verdade? —Viste o teu pae por ahi? perguntou ella. Gabriel fez com a cabeça, que não. —Tambem, nunca vê nada, o diabo! disse ella com mau modo, e ficou-se absorta em não sei que lembranças reconditas. Nem cinco reis em casa, cada vez mais exigentes os estomagos, a doença cortando-lhe o recurso do trabalho, e no dia seguinte, o seu cordão de oiro tão fallado, posto em leilão na casa de penhores, por atrazo de juros. Não havia muito que ouvira no pateo da cocheira, um moço contando aos mais o crime do Largo da Paschoa—no dia anterior, um malvado que se escondera debaixo da cama d’um merceeiro, e alta noite o degolára, depois de com elle rolar n’uma lucta horrivel, de que o cadaver expunha os mais atrozes signaes. Surprehendido em fuga com um sacco de cobre, o assassino tinha confessado tudo, brandindo o punho ensanguentado, n’um sardonismo altivo que lançára terror por toda a cidade. E outra vez o _Tromba_ viera com dinheiro, a fazer-lhe propostas! Aquellas coisas lançavam Clara n’um desvario. Vinham-lhe presentimentos tragicos, medos de tudo, da noite, do idiota, dos ladrões e de morrer de repente, deixando ao desamparo as suas tristes creancinhas. E esse que ella amára, em que sitio parava? Por tabernas talvez com moças de faca, na prisão ou no hospital. E as suas lagrimas corriam! * * * * * No dia seguinte, Clara não pôde sahir, sentindo-se mais alquebrada e dorida. Mandou Gabriel á venda dos ramilhetes, com recommendações para que não sujasse o açafatinho de vimes. Os ramos eram uma desgraça de amachucados, murchos, sem aroma e sem côr. Quem compraria aquelle esterco todo? Mas era entrudo... E a mulher ensinou ao pequeno o itenerario a seguir—praça de Camões, Chiado, com estações demoradas onde estivessem muitos senhores, na Havaneza, nas pastelarias, á porta da Trindade por causa do baile infantil, esquinas do Rocio, Passeio... Foi-se Gabriel mais o precioso açafate de vimes, apregoando, offerecendo a uns e a outros, dez reis o ramo, ramos grandes, era o resto! Ás tres da tarde, desde a praça de Camões ao Rocio, era penoso o transito, passeios apinhados de gente, mascaradas cruzando a via, trens cobertos de caixeiros, homens a cavallo, policia em renques, muito chapeu amachucado. Entre a Havaneza e o candelabro do largo, a concorrencia ia furiosa e compacta, de janotas e vagabundos, cujo gaudio consistia em fazer parar os trens para lhes lançar immundicias dentro, esguichos de varios liquidos, cartuchos de pós, feijões e más palavras. Quem se indignava soffria apupos, os dichotes do alto estylo, e triplicada dóse de porcaria annexa. Convergindo alli no antecipado intuito de gosar o mais possivel, cada primate tratava de expedir berros furibundos e gargalhadas de bebedo. Alguns ardentes e ratões tinham-se empoado em casa; outros armados de borrachas com pipo esguio, regavam as golas e espinhaços da sociedade; varios desabotoavam-se, beliscavam-se, aos abraços nas mulheres do povo e pedindo desculpa do engano. E a cada vegete galopando heroicamente na pileca derrancada, a aurea juventude da casa Garrett nomeava-o pelo nome, chamava-o, fazia-o parar para um segredo. Em carros descobertos e camisa, de mascara microscopica e luva branca, braços nus, pescoços nus, altas meias de sêda desenhando pernas nervosas, as hespanholas appareceram ao alto, batendo palmas. Houve na massa um urro. E o berreiro avassallando os ares, expluiu de toda a banda, n’um triumpho indescriptivel. O elegante Ricardo até, da primeira sociedade, saltando a um dos carros, lançou ás raparigas uma alta contribuição de beijos. A esse tempo achava-se Gabriel á porta da Trindade. Sahia gente do baile infantil. Quanto Lisboa tinha de creanças radiosas, perfumadas, illuminadas e frescas, vinha descendo d’aquelle baile findo, todos os tamanhos e todos os vestuarios, n’uma riqueza inultrapassavel de estofos, bordaduras e agaloados. Uma especie de gravidade e pedanteria, aprumava alguns dos pequeninos heroes; viam-se grandes damas de quatro palmos roçagando caudas pelo braço de adoraveis fidalgos de Luiz XIV, _coquettes_ e roseas, rindo com as suas boquinhas em flexa. Havia polichinellos microscopicos como illuminuras, preoccupados das marrecas, chapeu de guizos á banda, beicinho em momo desdenhoso, e um azul cheio de sol no olhar. Os pequerruchos de collo eram os mais diabolicos e vivos, gesticulavam por cima do hombro das amas com as mãositas de covinhas, as unhas chatas, mechas de cabello na testa, e babando sem respeito os ricos fatos coloridos. Nas familias fecundas e ricas, quando a ninhada iriente se ajoujava no fundo dos _landeaux_ descobertos, profundos e ovaes, bulindo as cabelleiras luminosas, vestida das côres mais puras, cingindo-se com os bracinhos curvos, trilando as divinas coisas da alma balbuciante, atirando beijos a primos e primas nas pontas dos dedinhos frescos, desinquieta, teimosa, ensolada, dir-se-hia uma familia de aves do paraiso exercitando forças á borda do ninho, para debandar pipiando e rindo, na vida musical das florestas. Em cada detalhe de costume, setim, brocados, cachemira, rendas e plumas, todo o bazar de estofos destinado a moldar os tenros corpinhos de uma graça divina, se ia surprehender a passagem de dedos brancos e delicados, e construir sem esforço a paixão das mães pelos seus bebés, a dedicação das irmãs mais velhas, os orgulhos talvez de toda a familia, que se impozera collaborar na pequenina obra prima, dando o estofo uns, cortando outros no modelo, e cosendo a legião feminina, por algum d’esses tranquillos serões em que as cabeças deredor da mesa n’um mimo se retocam, sob a luz velada do candieiro. E Gabriel de cabeça baixa, cheio de uma inveja lugubre, esguedelhado como um monstro de conto, todo roto e todo sujo, pés descalços na lama, calçotas recomidas na orla e incrustadas a remendos de côr, o ar bisonho de um rapozinho engaiolado, estendia machinalmente o açafate de vimes, vendo passar tantos principes e fidalgos; marquezitos de casaca a matiz e caixa de rapé esmaltada; pastoras do Trianon levando papoilas e espigas nos chapelitos de palha; poetas e cardeaes tasquinhando _bon-bons_ de chocolate e baunilha; frageis judias de olhos pudicos, com pantalonas de sêda clara, chapins de oiro e véos de lhama espumosa; os abbades de côrte, tricorne á banda e bengalão ferrado—e Mephistopheles de quatro annos, Marias Antoniettas de seis, Sakespeares de oito, de envolta com alsacianas morenas e loiras, com magicas, primaveras, auroras e noites, Margaridas de mãos cruzadas no collo e escarcella á banda, todo o mundo celebre da historia e da arte, reduzido em escala infinitesima, alado de petulancias vivas, rindo em graça virginal, tão scintillante de côr e adoravel de pequenez, que dispersando em tribus pela rua, era como uma chuva de flores em cachos, vertida de alguma cornucopia de deusa prodiga, n’um dia de nupcias celestes. —Flores a dez reis, flores a dez reis! É o resto, bons ramos... E para Gabriel, ninguem olhava! Muitos ramilhetes estavam completamente seccos, havendo perdido o aroma e as côres. Uma vez ou outra casualmente, os olhos de uma senhora caridosa ou de um velho conde, detinham-se um instante sobre a mercadoria reles do gaiato; mas passavam logo, sorrindo alguns da miseria da pobre creatura, exprimindo outros uma sympathia triste, e nenhum dando a esmolinha suspirada—não era _chic_!... Por fim Gabriel atirava os ramilhetes sobre quem passava, e ainda assim ninguem se condoia. Algumas meninas zangaram-se, e uns poucos de senhores o repelliram com dureza. Quando de repente um cocheiro, magnifico como um elephante, cabeção de pelles e pescoço curto gritou á bruta—hé homem! Conduzia um carro balanceado em molas, fofo e caricioso como uma alcova, puxado a cavallos brancos. E Gabriel que virára machinalmente a cabeça, viu ao alto da escadaria do theatro, n’um cortejo de senhoras fidalgas e cavalheiros, os tres meninos da loja de mascaras. O mais espigado ia de gallo, Gabriel reconheceu a famosa cabeça da _vitrine_, de crista rutilante e alta como um penacho de couraceiro, as barbas pendentes, bico amarello entreaberto... Para ser completa a illusão, tinham vestido os braços do pequenito em azas de ave, verdadeiras azas de pennas, recortadas, retracteis, cheias de cambiantes e matizes. E se o menino cantava _có-có-ró-có_! agitando as azas e debicando graciosamente as brancas mãos das senhoras, era uma risada de todas as boccas, um frenesi de beijos, um triumpho sem exemplo... Aquillo parecia a Gabriel uma affronta. Mas atirou ao gallo as ultimas flores, sentindo a garganta presa de lagrimas, e os olhos turbados de uma especie de vertigem. Um dos ramilhetes apanhou o mais pequeno dos fidalguinhos, que se virou furioso do desacato, e dando com o descalção da loja de caraças, sobre elle rompeu de mão erguida. Oh, nem alli o poupavam! Gabriel então, não foi mais senhor de si—atirou-se a elle como um leão, e tamanho socco lhe arrumou, que o sorvado petiz foi cahir longe nas pedras, berrando despropositadamente. Prenderam-no. Esteve dois dias n’uma estação, levaram-no ao tribunal depois. Foi ahi que a Clara o encontrou, esfomeado, escaveirado, sem o cesto, sem flores e sem cautelas, vazio de reacção, incapaz de se mexer e de fallar. A pobre mulher olhou-o por um momento de olhos seccos, dizendo: —Deus te faça differente de teu pae! E esteve todo o tempo severa, concentrada, quasi indifferente ao que ia. Gabriel nunca a tinha visto assim. Quando o mandaram com Deus, a mãe disse-lhe seccamente: —Anda! E foram. A desgraçada encontrára no caminho uma leva de facinoras, que ia embarcar para o degredo; n’essa enxurrada tinha reconhecido o amante. * * * * * E sempre atraz d’ella sem descanso, corcovado, lazarento e leproso, batendo os enormes tamancos na calçada, cahindo de immundicia e frangalhos, e em phrases cerradas ejaculando desejos, que de asquerosos parecem violar a serenidade da natureza e do ceu, o _Tromba_ persegue-a com os seus olhos de gomma suja, estudando avidamente as fadigas, as fomes, desalentos e lagrimas da desgraçada, com o dinheiro do roubo apertado na pata de reptil, e á espera que ella se entregue sem queixa, um dia que não está longe talvez! A CAMISA Os antros de Londres eram no entanto rebuscados, não tendo Cromwell achado carrasco que destroncasse a cabeça do bom rei Carlos. Chegára a ultima noite do martyr, e nada de carrasco ainda. Todo o dia os guardas attonitos, os famulos curvados e os grandes personagens do paiz, tinham notado a lucta surda d’esse homem de ferro, que mudo e livido passeava no grande salão do palacio. Á meia noite, o ultimo agente chegou sem ter encontrado o braço que se pedia para collaborador da forca, na obra do assassinato. Em tamboretes de carvalho forrados de Cordova com pregaria e relevos doirados, os grandes patriotas de negro empallideciam no silencio lugubre do recinto, seguindo na face do protector todo um cyclone de refreadas coleras. E antes que elle fizesse um signal, um velho espadaúdo ergueu-se, e com tranquilla voz e gestos de bonhomia honesta, disse: —Serei o executor da alta justiça! Cromwell nem olhou para elle, e batendo na mesa: —Ámanhã, ás cinco. Como sombras solvendo-se n’uma tela branca, os patriotas abalaram lentamente, embuçando-se nas capas. Chovia, e do céo carbonoso, rasgado de torres e frontarias gothicas, uma melancolia funebre estendia as azas silentemente, n’esse mysterio pardacento que é terrivel como a morte. No dia seguinte ás cinco, o carrasco estava no seu logar, de vermelho, meia mascara no rosto, barba ponteaguda e branca sobre o peito. E a cabeça de Stuart cahiu, ante o Vaux-Hall apinhado de mundo e indeciso de nebrina. —Bem, disse Cromwell; que desejas em paga do serviço que prestaste? Os erarios estão exhaustos, mas pede o oiro que te aprouver. A invernia destruiu as colheitas e matou de fome os servos, mas dize os dominios que pretendes. Em Londres ha palacios maravilhosos que não pertencem ao Estado, e serão teus se os escolheres. Falla pois! O velho apenas queria uma cousa. E ao formular esse desejo unico, os patriotas tremiam, receando serem expoliados. —Qual? disse Cromwell. Elle esteve sem fallar algum tempo, e após: —Dar-me-has a camisa do decapitado, ensopada como está no sangue que d’elle correu. —Mais nada? —Mais nada. Cromwell não se conteve, que não dissesse: —Como é que um homem da tua tempera é futil como uma mulher? O velho córou sob a affronta, dizendo: —Ingrato! E sahiu. Mas no dia seguinte recebia a camisa ensanguentada do sangue real. Esse tropheu de infamia foi encerrado n’um cofre lavrado, em cuja tampa uma inscripção latina commemorava o feito, n’uma solemnidade de estylo que turgecia toda anglicanamente, em versiculos da Biblia. E pelas edades fóra, a descendencia do carrasco teve a veneração da Inglaterra, por via do despojo guardado no cofre de oiro precioso. Foi esta veneração que mais tarde assentou um neto do excentrico sicario de Cromwell na Camara Alta, e cuspiu na farda ducal que lhe vestira, uma lista geral de condecorações e crachás. Em breve lord Wite, duque Clifton e representante directo da familia aristocratisada, chegou a ministro, a favorito e a cem vezes millionario. Em certa quadra do anno, abalava de todos os pontos da Inglaterra uma chusma de eruditos, famintos de camisa, em direitura ao castello de Clifton, na esperança que a clemencia do proprietario lhe permittisse como graça inestimavel, uns segundos de contemplação ante a reliquia do rei santo. Senhores e servos se impunham a peregrinagem a Clifton, uma vez na vida ao menos. E sobre a côr e feitio do veneravel farrapo e suas nodoas, estranhas versões entraram a correr mundo. Brochuras referiam que era camisa de dormir; enormes _in-folios_, pejados de investigações pacientes e subtis, iam á affirmativa audaz, de que nem era de dormir nem de trazer, nem camisola ao menos, porém simples e honestamente, um par de ceroulas. Foi de vêr a lucta que se travou então, apostas que se originaram do caso, duellos a murro, a pontapé, marrada e tiro que tiveram logar. Em Oxford e Cambridge, por todos os grandes collegios e clubs, a mocidade esqueceu o _cricket_ e largou o remo, para se partir em facções—uma que arvorava a camisa, e outra que fazia fluctuar a ceroula na ponta de um chuço. Nos claustros gothicos das universidades e embocadura das ruellas medievaes, entenebrecidas a deshoras, de cada vez que um vulto affrontava outro, de logo bramia n’um inglez furibundo: —Quem vive? camisa ou ceroula? E sendo contrarios os que altercavam, estabelecia-se de prompto o combate e corria sangue a golfões, de vencidos e vencedores. Os que expiravam, diziam no estupor da ultima hora: —Morro pela ceroula! E narrando o caso, o _Times_ escrevia: —Mais uma victima da roupa branca de Sua Graciosa Magestade... Ora, estavam as coisas n’estes termos, quando uma commissão de sabios e philosophos, de mistura com alguns dos melhores camiseiros de Londres, foi pelo governo da rainha encarregada de precisar a questão, e restituir ao publico a tranquillidade para desejar, em tão tormentosas circumstancias. A camara dos lords votou milhares de libras ao trabalho pujante da sciencia e rouparia inglezas. Os jornaes publicaram retratos e biographias dos commissionados, animando-os com apostrophes estridentes; os clubs de nomeada abriam ao grupo eleito as suas salas de conferencia e de jantar; e em toda a linha as apostas repetiam-se e os duellos multiplicavam-se. Ao mesmo tempo, choviam dos prelos as pesadas brochuras ricas de argumentação, inultrapassaveis de logica e até ricamente providas de certos promenores. Segundo o doutor Kater, a peça de roupa guardada no cofre era um par de ceroulas, attendendo á malha negra que demarcava a bifurcação das mangas,—maneira de vêr que mereceu uma sessão solemne ao _Collegio dos Cirurgiões_, de Londres. Conforme se inferiu das actas e boletins d’esta preciosa sociedade, a malha trahia a ceroula, por quanto a sciencia confirma a relaxação de certos musculos pela decapitação. Mas a alta chimica ingleza que tinha assistido em silencio ao debate, interveio pedindo um resquicio, infinitesimo que fosse da substancia, afim que os modernos processos de analyse lançassem o _ultimatum_ que o caso urgia. O publico inglez porém não consentiu, tal o respeito dos saxões pelos monumentos historicos! E n’uma solemne protestação, duzentos _meetings_ fizeram sentir ao governo a sua vontade sobre a malha do bom rei Carlos Stuart. Sir Bell, o tribuno, fez um discurso genial, clamando reprobo e criminoso aquelle que tocasse, com a ponta do nariz que fosse, no medalhão negro da reliquia. «... Pois que é unico no genero, e o Martyr não poderá brindar os museus do Reino-Unido com outro de egual formato!» resumia elle no meio de um trovão de applausos. Photographos e pintores vieram piedosamente com suas machinas e cavalletes ao castello de Clifton, reproduzir o singular endurecimento, que tamanhas duvidas provocava. E vendendo cópias a dois _schillings_, enriqueciam-se em dia e meio, victoriados nas praças e ruas da grande cidade. Lord Clifton abria com fidalga generosidade as suas portas, a romeiros e sabios. Fizera emmoldurar um vidro na tampa do cofre de oiro em que se conservava a santa roupa, orgulho de sua casa e alvo das attenções de um grande povo. —Assim vos curvaes ante o precioso documento do bom rei, dizia o duque do seu _fauteuil_ do parlamento. Que farieis então, se como a sempre chorada mão de meu illustre avô o houvesseis palpado fresco, n’um extasi, chegando-o aos labios para o oscular reverentemente!... E pelas suas barbas veneraveis e brancas, fios de lagrimas corriam. Ao fim de um anno de disputas, conferencias grandiloquas, e as mais cathedralescas hypotheses, a grande commissão de sabios recapitulou, que uma de duas: 1.º—Ou no tempo do rei Carlos, reinava como refinada elegancia o fazer-se das pernas braços, e em tal caso o farrapo de Clifton era sem duvida, camisa confeccionada para um decapitado, por não apresentar abertura entre as mangas, podendo-se a malha classificar de sanguinolenta... 2.º—... Ou caso contrario, era um par de ceroulas, e conseguintemente a malha... Seguia-se um latinorio pudico, para explicar a composição da historica argamassa. Alarme em toda a linha! Nas bibliothecas choviam archeologos e eruditos, a investigar se de facto constituira prodigio de galanteria europêa no tempo de Carlos, o trazer-se as mãos pelo chão. As _ladies_ de tez purissima e olhos de saphira córavam, de pensar na renovação do requinte. Republicanos moderados, jacobinos de meia força ou vermelhos puros, berravam em conclaves secretos contra a devassidão e embrutecimento das realezas e aristocracias, jurando que a Convenção Franceza e a Usurpação de Cromwell tinham sido providenciaes, no extirpar de collectividades que se esforçavam em trazer a humanidade aos habitos de locomoção dos verdadeiros brutos. Novos discursos, novas sessões, novos duellos e novas brochuras. Do gabinete inglez radiou uma nota ás potencias, pedindo confrontações e parallelos minuciosos de costumes, no cyclo historico proposto. A França declarou entre risos, que Luiz XVI era um primate da melhor especie, e só das mãos fizera uso para assignar decretos que não lia, levar á bocca magnificas pastilhas de chocholate, ou pedir clemencia n’uma attitude de poltrão, em todo o seu doloroso captiveiro. Italia e Hespanha viram no problema uma differença de raças, e encolheram desdenhosamente os hombros, orgulhosas do seu berço latino. A Allemanha pôz-se a meditar. E só Portugal n’um impulso de sympathia pela _fiel alliada_, respondeu que desde Ourique, sendo vivos Tareja e o gallego Transtamara seu amante, era uso separar-se a nobreza do povo, invertendo aquella os locomotores, e pondo-se deredor dos principes, de cabeça para a terra e pés para o firmamento, nos grandes saraus e recepções. Inda sobre a questão pesaram annos, que ao mesmo tempo faziam curvar para a terra a espinha dorsal e a cabeça branca do lord de Clifton. O duque não tinha descendentes directos. Era um velho austero e secco, solitario no seu ducado e possuidor da melhor fortuna rural da Gran-Bretanha. Tinha uma governante velha que muito amava, e fôra ama da loira Ellen,—futura duquesa, se um garrotilho a não estrangula aos dezeseis, pobre bichaninha gata! Repetidas vezes o governo propuzera ao duque por sommas fabulosas, a venda da peça de roupa de Carlos Stuart. A rainha escrevera-lhe do seu punho uma longa carta de familiaridade affectuosa, sobre a reliquia de familia que seria crime deixar fóra dos archivos do paiz, perdida talvez nas mãos dos collecionadores particulares, e nos _bric-à-brac_ dos estrangeiros maniacos. Mas Clifton recusára todas as propostas, allegando que o despojo era penhor de familia, a que andavam ligadas grandes recordações e legendas. Sentindo-se alfim pender para o tumulo e já de oitenta e tantos, lord Clifton fez saber ao governo em certa manhã de gotta tenaz que a camisa, ceroulas ou quer que fosse, entrariam no _South Kensington Museum_ no proprio dia em que elle, lord Clifton, fechasse os olhos ao mundo, para no craneiro do castello habitar o seu sarcophago de lapis-lazzuli, que dez leopardos sustentavam e dezenas de escudos revestiam. A nobre intenção do lord commoveu a orgulhosa e grande Inglaterra. Todos os clubs revotaram homenagens ao benemerito, o parlamento e a rainha encheram-no de honras, e por seu turno o povo fez-lhe ovações formidaveis, sob as janellas do palacio. E d’alli por deante, a ideia de todos era: —Quando cerrará para sempre os olhos esse bom lord duque de Clifton? No salão de honra de _Kensington_, o director tinha já marcado logar á reliquia inestimavel, ao fundo da peça, sobre um estrado gothico, entre as estatuas exhumadas no Peloponeso e bandeiras tomadas aos francezes nas grandes batalhas do Imperio. E uma tarde de inverno, os jornaes noticiaram a morte do lord. Emquanto todas as classes sociaes vinham, luctuosas e graves, desfilar no enterro, uma deputação de sabios presidida pelo principe de Galles, subia as escadarias do solar para conduzir ao Museu a offerta do duque morto. Ah, pobre gente!... Desapparecera do estojo a peça de roupa de Carlos Stuart, camisa, ceroulas ou quer que fosse, que a governante, aceada mulher do paiz dos _highlands_, vendo para alli o lastimavel farrapo, atirára honestamente com elle á barrela da lavadeira! O MORGADO Na Casa Branca, quando o trem parou, despertei ao ruido da portinhola que se abria, e entrou um homem com uma creança de lucto. —Tenha o senhor boas noites! disse elle, erguendo o chapeirão desabado. E desembaraçando-se da capa hespanhola, bandada de roxo, com alamares de corrente, poz-se a empurrar para baixo do banco a mala de tapete que trouxera. Gordo de mais talvez, barriga importante onde um grilhão de oiro escorria, ar compostamente sereno, barba toda. Depois de se sentar resfolegou do esforço que fizera a empurrar a mala, ergueu a gola do gabão ao pequenito, dizendo-lhe se tinha frio, se tinha somno, ou se tinha fome—não me lembro já. A creança estava para um canto, e de dentro do gabão pardo, os seus grandes olhos tristes erravam curiosamente por mim, pensativos e humidos. O homem correu-lhe a enorme mão pela carita fina, com uma ternura bondosa, e voltado para mim sorria-se, como a pedir desculpa de ser tão expansivo. —É seu filho, hein? disse eu. —Saberá que sim, tornou elle. —Filho unico, talvez? —Não tenho mais, infelizmente. —É novito ainda. —A fazer oito, pelo S. Miguel. —Então padece? Pareceu surprehendido do que eu dissera. Padece, o filho d’elle? Nunca tomára remedio de botica, nem soffrera de molestia. Em todas as creanças, os dentes põem abalo a romper, como o senhor sabe. Pois n’este vieram, sem _ai_ nem _ui_! Padece, qual!... Via-se um orgulho de progenitor n’essa maneira de dizer, distillando idolatria sobre a pequenina larva enroscada ao canto da carruagem, branca, magra, feita d’esse tecido molle que é senilidade na infancia, e faz de ordinario os filhos dos velhos ou dos debochados. Era verão, viajavamos de noite. Tudo negro ao largo. Apenas de longe em longe, ardiam moutas em plena charneca, com labareda que ás fumaradas davam tons rhembrandtescos e baços. Nas ribanceiras da via, conforme se iam complicando os declives do terreno e os amontoados do arvoredo e do matto, as lanternas do trem alumiavam de imprevisto estranhas fórmas com todos os aspectos, troncos hirtos, cannaviaes em borborinho, grandes pinheiros abrindo parasol, estevas ondulando pelas escarpas da rocha a pique, e a terra esboroada verberando os calores accumulados durante o dia. De passagem pelo areal, poeiradas finas enchiam os ares, enfiando pelas janellas e cahindo ao de manso no fato. E continuamente, como aldraba gigantesca soando por um vasto corredor, o _trac-trac_ do trem ensurdecia na noite, subindo em formidavel algazarra se os _rails_ afundavam rasgando outeiro ou penhasco, ou apagando-se mais e mais, se iamos francamente correndo em planura. De bocado a bocado casinholas rompiam da sombra, e debruçando-nos viamos o guarda postado de lanterna á banda, chapeirão cahido, immovel e negro, solvendo-se rapido no turbilhão de fórmas que desfilavam. Succediam-se estações contra estações, vastas savanas implacaveis como desertos, pinhaes cerrados, ou trunfas de mattagal hirsutas pelos cabeços. Ás vezes o homem erguia-se deitando a cabeça fóra da carruagem, e ficava nas trevas sorvendo o rumor das boiadas adormecidas na pastagem, os gritos dos ralos e grillos á bocca das regueiras mais providas de frescura. N’estas distracções podia então olhal-o melhor, vêr-lhe o fato, fixar-lhe a edade e estabelecer-lhe posição. Trazia jaqueta escura, calças muito chatas de fundilhos dizendo os habitos sedentarios da provincia. Nas botas cruas muito largas de tromba, havia saltos de prateleira com esporas, e todo o vasto abdomen coberto por uma cinta, com cadilhos profusos cahindo á banda. No Poceirão, o pequeno que despertára do canto, quiz agua; e como eu tinha o frasco cheio, puzlh’o á bocca logo. —É dormir outro somno, seu morgado! disse-lhe a rir. E elle sempre exprimindo-se pelos olhos penetrantes, com o seu narizinho afilado e a bocca fria, muito breve, encarava-me sem dar palavra. O pai disse então: —Cansado da jornada, não falla. Maroto!... Achegava-lhe o gabão com um geito meudinho de ama secca, endireitando-lhe as pernas, e pondo-lhe a capa enrolada em cochim por baixo do corpo. E aberta a bolsa do tabaco, preparou uma cigarrada desconforme. Estendeu-me as mortalhas depois de se ter servido. —Fuma? —Só depois de comer, obrigado, respondi. —Como eu tal e qual, em rapaz. Agora fumo a toda a hora. Não incommodo, não? —Á vontade! Essa é boa. A charneca era rasa e nua; algum grupo de pinheiros erguia em preto a figura consternada, sobre o nascente esmaecido na commoção da antemanhã, onde a estrella d’alva dizia como um girasol de saphira, gottejando estames de luar. —O senhor é alemtejano, disse eu, a vêr se entabolava palestra. —Vivo ha muitos annos lá. —Casado? Elle apontou-me o camisote escuro em que eu ainda não tinha reparado, e tornou baixo: —Casado?... E de mansinho: —Viuvo, ando de preto pela mulher, não vê? E respirou com força. A sua voz era branda, sem os tons ingratos, intimativos e duros, do ricaço afeito a mandar ganhões e cavadores, a fazer contas á noite, a dar palestra nas abegoarias e nas eiras, e a pesar todos os homens na balança egoista dos contos de reis. Então encarando-o em cheio, vi que era pallido, com olheiras papudas, sobr’olho hirsuto, e a testa fugindo em dois fios de calva sobre as temporas luzidias. —Ficou-lhe o pequenito, prosegui eu. É o que tem casar de certa edade; faz-se tarde para educar os filhos depois. Elle abanou a sua grande cabeça com ar grave, e a olhar distrahido para fóra, quebrando a cinza do cigarro: —Esse é um dos perigos, disse. Ha outros, se a mulher é nova... —Ah, sim, tornei eu. Nova e leviana!—E olhei-o a rir. Vi-o pôr-se em pé sob o impulso de uma mola interior, escarrar com ruido, dizer palavras incertas: —Felizmente não tenho razão de queixa... Levava as mãos ao ventre, procurando o que fosse com gestos errantes. —... sim, não tenho razão. E pregava o camisote de lucto, ia ao pequeno, voltava á janella. Mas como eu olhava para elle fez-se branco, e affirmou com força: —Palavra de homem de bem! —Mas juro que acredito! disse eu admirado da singular insistencia. Na confusão tinha lançado fóra o cigarro, e buscava mortalhas pelos bolsos: —Este mundo é uma comedia, olhe que é! Tenho-as soffrido boas, não ha que vêr. —Nunca se é completamente feliz, opinei do meu lado, e elle fez que sim com a cabeça. —O senhor está novo. N’essa edade os desastres não deixam mossa, vê a gente tudo côr de rosa. Mas em velho, creia, a coisa é outra.—Estendeu o braço para os campos que sahiam vagos da noite e da nebrina, sob o pallor do ceu matinal. E com intervallos absortos: —Tudo isto é meu!—Riscava com o braço o horisonte—Além fica a herdade das Donas, além São Brissos que foi do Moira de Arrayollos, lá longe ainda se vê a Martineta, terra guapa para sementeira! Vida, vida!... E mais longe: —Podia metter-me a arrotear descampados por ahi, tudo terras gordas, virgens de colheita, aguas da mãe... Milhões em pouco tempo! Riu-se com aspecto triste. —Por ahi invejam-me a lavoira, gente feliz! Mette sempre cubiça aquillo que é dos outros. Olhe que é assim! —E porque não tenta essa agricultura em grande? inquiri. —Ora, deixal-a! fez elle com um gesto desalentado. Quem vier atraz de mim, fará o que entender.—E voltando-se: —Cá o petiz... se chegar a homem, algum dia. —Ha de chegar, porque não? tornei eu, e em resposta o velho disse-me: —Muito obrigado ao senhor. No Pinhal Novo, entrou gente de Setubal, encheram-se as carruagens, a familia de um coronel sentou-se entre nós, e não fallámos mais. Ás vezes olhava-o do meu canto, via-o espreitar o pequenito que dormia, com uma sollicitude terna, filtrada de passivas tristezas. E os cabellos brancos faziam-lhe corôa, abaixo das abas do chapeu. O coronel, enorme como um cyclope, todo feito a crista de gallo, o cabello já branco muito encarapinhado, rompia como uma torre sobre os mais passageiros, na fanfarrona postura dos hercules de chafariz. E o morgado mirava-o com humildades paisanas, de soslaio, sem se atrever a fital-o em frente, n’uma admiração pelas lunetas azues e rutilante coloração d’aquella magestosa senhoria, toda sonidos de esporas e espalhafatos de oiro nos canhões da vestimenta. De tamanho esqualo exsudavam aspeitos de sopeada bravura, fragores de carga e bramidos de commando. N’essa mão fechada sentia-se o nervosismo de quem marcialmente comprime punhos de durindana invencivel, na vanguarda dos esquadrões a toda a brida, e sob fumaças de canhões ululantes. Um respeito vergava a obesa corpulencia do morgado, quando um prior sacou farnel da mala, dizendo não ter almoçado capazmente. Perguntou á volta se alguns dos senhores ou madamas eram servidos. E patenteára um desconforme cabaz de provisões, fiambre, doze ovos cozidos, um gordo frangão de recheio, tangerinas, e marmelada para desenfastiar. O rubro coronel, que era um amigo pelos modos, não recusou a sua golada de Porto. —Está bello! dizia o prior. Sirva-se de laranjas, snr D. Emma, são das nossas.—E a D. Emma, filha do coronel e zarolha, com plumachos brancos n’um chapeu de telha escarlate, volveu com mimicas fastientas que agradecia muito, mas não. O coronel pôz-se então a fallar. Era uma vozita de incomparavel meiguice, toda pastosa nos _RR_, sollicita, mansa, escorrendo falsetes de menino do côro. E com grandissima surpreza, o morgado ouviu esse guerreiro côr de lacre, tão babylonico de construcção, discreteando em tramas de cozinha, mal-o prior. Confessou-nos elle que daria tudo por um legitimo recheio, mas o que se chama tudo! Só dava verdadeiro merecimento a recheios, quem os sabia preparar. A receita do _Cozinheiro dos Cozinheiros_ era uma burundanga de tasca. E com soberbia, alevantando as charlateiras flammantes n’um pavoroso jogo de omoplatas, desafiou alli quem lhe désse leis sobre a materia. E no mais! geleias, podins, cremes, toda a qualidade de molhos, e umas tripinhas do _Poôrto_, seu prior? —Oh, isso é famosissimo! disse o reverendo, a mastigar fiambre com dentes de fradalhão. E investindo os circumstantes por cada vez, em cata de adversario, o famigero coronel gabava-se de ter lido tudo que andava escripto sobre o assumpto, até calhamaços vindo de França! Contava mesmo artigos seus no _Almanach Taborda_, provando os inconvenientes do cidrão no podim d’ovos... o que lhe mereceu cumprimentos do prior, que não sabia estar fallando _com o illustre litterato_. Tambem apreciava d’alma as invenções da pastelaria, os bons podins, as ricas geleias, o cremesinho de fructa alli na mesma da hora. Bebericava com ruido de sorvos. E declarou ter em Azeitão uma moça, que sabia temperar isso celestialmente, o que fez abaixar os tortos olhos da D. Emma. —Oh, disse uma azeitonada da familia, que estava de verde a um canto, com dentes sahidos—como o papá não póde haver, faz lá ideia! —Com effeito, affirmou o guerreiro rejubilado, a cozinha é o meu fraco. Retorcia os bigodes de Fritz, e referiu como abichára a _Torre e Espada_ nas manobras de Tancos, por ter regalado sua excellencia o ministro da guerra, n’um jantar subscripto entre a officialidade, onde elle fizera tudo, desde uma certa sopinha de rabo de boi, que estava...—e com basofia, beijou as pontas dos dedos a encarecer—até ás compotas, que ficaram de estucha! —Pois não lhe sabia, não lhe sabia da balda, snr. coronel Pureza! dizia o prior com deslumbramentos na grossa faceira de glotão. E o guerreiro deu receitas, como era a galantine, o sorvete de ananaz, e grande numero de geleias singulares. Explicou as fôrmas, e dos feitios que melhor serviam á boa apparencia dos preparados. —Ora! ora! argumentava o prior, pasmado de tanta sabedoria. —Inda não sabe o melhor, disse a de verde, com dentes rompendo um focinhito de lebre. Faz gaiolas mais lindas! —Ah! fez o reverendo cahido de surpreza em surpreza. E que lhes mettem? Ao darmos em Lisboa, eu e o morgado apertámos as mãos, creio que lhe disse alguma coisa affectuosa, e com a mesma voz funda e espaçada, tornou elle: —José Maria Cardenes, conhecido em todo o districto. E querendo, a casa lá está. Foi-se; já longe cumprimentou o Alvares, o amigo Alvares do Credito Predial, que eu conhecia tambem. Fui-me logo a elle. —Como está vossê, bem, obrigado, disse eu. E sem delongas: —Olha cá, quem é aquelle velhote, hein? O Alvares poz os oculos, esteve a vêr um pedaço: —Ah, o morgado das Olhalvas. Bom velho, meu rapaz, mas que corno!... E passado um momento: —A mulher bem boa, c’os diabos!... —Conhecel-a tu? —Dizem. Póde ser verdade. * * * * * Dois annos depois n’uma estação de banhos, já por outubro, fumava na praia uma tarde, quando um homem de lucto me veio cumprimentar, com um arenque de rapaz pela mão. —Como vae indo o senhor? Fallava-lhe sem me recordar de o ter visto alguma vez—bem, obrigado, como está? É seu filho, este pequeno? Doentinho, segundo parece... —Nada, não senhor. Fraco. De maneira, que vim aos banhos. Diz o medico que é bom, para a frouxidão de nervos. —Sim, sim, dizia eu bocejando. Elle puxou o pequeno para mim, fêl-o fallar, fêl-o andar—estava mais crescido, não estava? mas pouco appetite... E afagava-o de leve, enlevado n’aquella sujidade amarellenta, molle, sem reacção, somnambula e ephemera como uma esponja do mar. A espaços, quando uma vela corria ao largo, o macaquinho alongava a mão chata, desengonçada, lembrando pelos deditos curtos um pé de ganso com palmouras, e gania: —Oh pae! pae! —Que é, Luiz? —Olhe além uma embarcação. Ficava a rir descóradamente o seu riso de esqueleto, em que jámais luzia a emoção desordenada e viva das creanças rijas. Por vezes mesmo, querendo fallar não sabia exprimir, esquecia as palavras, varriam-se-lhe as ideias, e engasgado punha-se a olhar feito parvo, de redor. O pae então ia-o ajudando, e vibravam na sua voz meiguices entretecidas com lagrimas. Voltado para mim, resumia: —Uma desconsolação, o que vê! Animava-o cheio de sympathia por aquella dôr grave de velho, resignada e muda, e punha-me a dizer: —Que o mettesse n’um collegio, longe dos mimos da familia. Já se desenvolvia! Os rapazes precisam encetar vida, pela dureza e pela lucta, entre alguem que os hostilise e alguem que os guie. Dão sempre resultado os habitos viris, ensaie isso—gymnastica gradual todas as manhãs, passear a cavallo uma ou duas horas, corridas pela quinta, sobriedade na comida, cama dura, habitos madrugadores. Verá como faz d’elle um rapagão. Os rapazes, creia isto, só enrijam, torcendo-se como quem torce calabres. Elle não se convencia, mostrava-me o corpinho do seu pequeno mollusco, que se alongava de mez para mez, e tinha de manhã os tons velhos do azebre, funestos e miseraveis. —Se não tem mesmo síria p’ra nada! O senhor falla bem. E vamos que lhe rebentava uma veia... Baixo, pondo-me na espadua a sua mão pelluda: —Ataques, aos dois e tres por dia. Fazia voz rude para dizer: —Filho de má semente nunca vem a ser boa arvore. —Tem mãe? disse eu por acaso. Esteve sem responder; por fim: —Morreu, coitada! Inda trazemos lucto, como vê.—E mostrava-me o camisote. Eu então reconheci o morgado do caminho de ferro, pobre homem! Estava mais velho, barba toda branca, a face cahida e sulcada. E d’alli por diante, ás tardes, davamos o giro da beira-mar, fumando cigarros na melhor camaradagem. Elle fallava-me chãmente da sua lavoura e da vida de provincia, quanto lhe rendia a cortiça, e como era mais barato pôr bacello de charrua. Ás vezes concentrava-se, e de mãos atraz das costas seguia-me sem rumor. Era de uma timidez exagerada e susceptivel, não querendo nunca incommodar, pedindo desculpa a cada passo, incapaz de pesar, dar ordens, ou fazer-se valer. E no hotel, aos creados que o serviam: —Muito agradecido ao senhor. E a pedir qualquer coisa: —Faz-me o obsequio... As mulheres envergonhavam-no, faziam-no triste, ia-se embora. Fugia dos grupos, evitava-me diante de gente, seguindo de cabeça baixa. Essa organisação bondosa, tinha o instincto da sua inferioridade provinciana, no mundo refinado que rodopiava em torno. E como eu teimava em lhe mostrar o club, quasi se zangou comigo, e desappareceu por dois dias. * * * * * Entre as familias a banhos, farrapos de aristocracia pobre, banqueiros absolvidos, camarilhas que se enrodilhavam comidas de hypotheca, infantes, diplomatas e mais appendices de côrte em villegiatura, andava um elegante _ménage_, fresco e jovial, sempre em evidencia, entrando em toda a parte e dando tu a toda a gente, que era para assim dizer, a impudencia da praia n’essa estação. Todas as manhãs de braço dado os condes, marido e mulher, iam ao banho em _toilettes_ claros, cochichando e rindo unidinhos, muito amigos, muito noivos, dando a mão aos rapazes e olhando um pouco desdenhosamente as senhoras. O herdeiro presumptivo fazia saltar o _lorgnon_ em os vendo chegar, sorria o grande condestavel por baixo de um nariz em promontorio; a côrte rumorejava... E os dois muito frescos, jasmins na lapella, polaina escarlate sobre sapatos crus, debaixo de um guardasol japonez, direito e bordado de cegonhas brancas, pecegueiros e papoilas em flôr, deitavam o binoculo ao mar incendido na reverberação do sol, contra a espuma pulverisando nas rochas, ou espanejando-se pelas areias pallidas com felina indolencia, de envolta com a renda das algas, e o desenho glauco e singular dos caranguejos. Aqui e além, havia pequeninas cidades de barracas, senhoras de claro, chapeus de palha, gente em trajos de banho, guigas embalando no vai-vem da maré, marujinhos de unhas côr de rosa—e aos pedaços, na franja das rochas, fortes desguarnecidos, bandos de cabeças palreiras, corpos vogando á flôr d’agua, os que sahiam do banho aos guinchos, os que iam de costas sobre a arfagem da onda... E aquella vida de praia luzia ao sol alegremente, carros de palha á espera, _chalets_ emboscados no fundo das quintas e jardins, a fluctuação dos stores listrados sobre as sacadas abertas, heras trepando por torrelas de ardozia, e rapazes com raparigas fazendo o seu cricket antes de almoço, pelas aleas ensaibradas de fresco. E os jornaes que chegavam de Lisboa, os japonezes do Domingo, á mistura com gelados de encommenda vindos na barafunda do mesmo carro, em grandes caixas de folha... Na sua cadeira da ilha, isolada da colonia feminina, altas maneiras de andaluza petulante, a condessa libertava então os cabellos do bonezito de palha atufado n’uma blonde diaphana, e accendia um cigarro no charuto do conde, que na areia aos pés d’ella, como um Terra-Nova favorito, a fitava com os seus olhos de gato bravo, amarellos e inquietos. A espaços estendia a condessa o abanico para o mar, seguindo algum paquete fumegante já na ultima linha d’agua,—e tão graciosa a fumar, que até as velhas perdoavam! Deitava-se para traz ao expellir fumo, n’um quasi espreguiçamento amoroso, esticando as pernas sob o vestido apertado, de cuja orla escarlate os pés sahiam batendo compasso na areia. Ás vezes trazia na escarcella, cahindo á cinta por um cordão de oiro fosco, alguma edição _bijou_. E em quanto o conde lia, descahida, as mãos pendentes, uma ondulação por toda ella, a condessa sentia-se viver, rolando n’um torpor a sua sombrinha japoneza bordada de cegonhas brancas. Paquerettes des prés, vos couleurs assorties Ne brillent pas toujours pour egayer les yeux... Iam-se chegando então surrateiramente os gulosos da boa femea, os estouvados, e o resto. Ella distribuia cigarros toda rosea do calor, com uma sombra azulada por baixo das palpebras, feliz de ser o alvo, de attrahir e deslumbrar as que lhe roubavam o córte dos corpetes muito acertados nas costas, sem costura nos seios, modelando em graça hellenica a provocante expansão das pomas, e a curva divina do ventre que tinha sob o estofo, a lascivia escandente d’uma nudez de harem. Conde e condessa de que? Um nome qualquer. Ninguem verifica titulos n’uma terra onde elles cahem sobre quem passa, como antigamente as aguas suspeitas. Elle um hespanhol da Andaluzia, trigueiro, nervoso, de olhos allucinados, e parecendo-se diabolicamente com um marcador de bilhar que eu conhecera em rapaz. E tinha os modos francos d’um senhor, ditos de graça pícara, essa originalidade dos paizes do sol, brusca, deslocada e jovial, onde parece retinir o turbilhão dos guizos e pandeiretas, de quando escoicinham fandangos. O Alvares que tudo sabia, pouco me disse do conde. —Tinha apparecido em Lisboa ia em quatro annos, montado n’um cavallo inglez e seguido d’um creado de farda e calção d’anta. Depois do cavallo, deitára carro; vendera o carro um dia, e disparou dois tiros n’uma casa de jogo. Pouco mais ou menos, percebes a coisa? Em seguida—o Alvares não se lembrava bem—bordoadas no Marrare, um entrudo; em resumo appareceu de condessa. Agora sério, trata de vendel-a por ahi, como vendeu o carro. E ella, uma real zorra, filho!... Rebolava os olhos por traz dos oculos fixos, e com certo suspiro canalha, profundo e vicioso: —Derrete-se a gente todo, só de pensar n’isso. Que fará... percebes a coisa?—E abalou muito atarefado, limpando o suor do cachaço apopletico. Demoravam-se os frios em chegar, dias lindos, o mar um delicioso lago. No club, walsavam a toda a hora. Sob toldos e decorações, havia festas de côrte na esplanada; uns navios de guerra ancorados na bahia, simulavam defronte, no escuro das noites, bombardeamentos em regra, a fogos de bengala—e toda a gente se divertia, gabando o serviço da marinha nacional. E todos os dias regatas, cavalhadas, o tiro constitucional ás gaivotas, um bazar de creches, o demonio! Nos primeiros logares, o conde e a condessa, ajoujados, os melhores amigos do mundo, appareciam aos commentarios da multidão—ella em _pompadour_ de sêda crua, bonnézito á banda envolto n’uma gaze ligeira; elle premindo na orbita petulantemente o monoculo, e impertigando o seu estomago alto de mundano. Faziam-se loucuras em volta d’essa mulher disputada, conhecedora do que valia, e pondo ao serviço do seu temperamento frio, as maneiras distinctas d’uma senhora de raça. Era d’estas _cocottes_ severissimas em publico, artistas por intuição, com predilecções requintadas e nervos irritantes, amando a conversa, sabendo rir, excitando e fingindo não dar por isso. Nos seus beiços havia um reflorir de romeira brava, humido e vivo, contrastando com a pallidez mate das feições ovaes, e um _tic_ voluptuoso de narinas, que no riso lhe bordava _scherzos_ de aristocratica finura. Chegaram a apresentar-me o conde, que se convidou a jantar comigo n’esse dia, e me pediu para lhe trocar não sei quantas notas de ouro. De resto adoravel, sua pontinha de obscenidade temperada em cynismos elegantes. Fallámos em rapaziadas, amores faceis, predilecções de vicios, as regiões da femea que mais nos agradavam. Elle bebia excellentemente, e a cada passo fazia revelações libertinas, de rapaz solteiro. Derivámos d’ahi na hieraldica, quanto era distincto ter brazão na carruagem, um ou dois castellos nas sierras, pomares em Andaluzia, e descender de wisigothicos monarchas. E a paginas tantas, perguntei que opiniões politicas tinha elle. Encolheu os hombros, gostava de reis, e de rainhas ainda mais. Nada como as côrtes historicas, para a fermentação do luxo artistico e do amor como prazer de gente fina. As monarchias não serviam sómente, segundo pensava, para tornar os Estados felizes, mas a requintar o gosto, fornecer ás artes assumptos nobres, e apurar a belleza patricia das mulheres. E virando-se para o creado: —Eh, passa-me essas ervilhas da decadencia. Bebia sem conta, copos sobre copos, batendo murros na mesa. Perguntou de repente: —Não haverá ahi com quem se walse? —As senhoras estão todas no club, respondi eu. Elle considerando a amphora de Estremoz cheia d’agua, que gottejava toda pelos poros: —São um poucochinho como os vasos rachados, as damas, fez notar. Muito indiscretas pelas fendas. Então cantarolando, bateu-me palmadas nos hombros, puxou fogo a um charuto, e pouco mais de bebedo, erguendo-se, disse-me assim; —Não adivinha o que vou fazer agora? Confessei que não adivinhava. Elle ajuntou: —Trahir o amante de minha mulher, que diabo!... É a missão social dos maridos. —Oh, disse eu rindo, encantador! * * * * * Mas fui atraz d’elle rangendo os dentes de raiva, ganindo como um cão esfaimado, ganas de lhe encher a cara de bofetadas, de o arrastar pelos cabellos na immundicia das regueiras, de o deixar morto á pancada para alli vilmente, como a sua torpeza merecia. Esta intenção exaltava-me perante ella talvez—e o meu desejo crescia em tumulto com ideias aventureiras, fugir com ella, tel-a comigo noite e dia, chupar-lhe o sangue por uma punhalada, ou rolar agonisante de amor nos seus braços, entre os cachões de uma torrente. O vinho exagerava-me tudo, a fórma das casas, a buracaria das janellas, os rumores do mar, os echos da rua, e os sons dos pianos. Lá ao deante seguia elle a cambalear, cantarolando, e a sombra esguia do seu corpo era como um reptil enorme que ondula, escorregando sem ruido. Umas poucas de vezes, perdida a cabeça, desatei a correr atraz d’elle, chave do bahu na mão, para lhe esmurrar as ventas. E de repente parava, que era isto, que tinha eu com elles?... Rasgava-me o peito a certeza de que os dois iam dormir, beijar-se, trocar juras, fazer promessas e escarnecer de mim talvez, inda por cima. E como se ella fosse minha, um ciume feroz golfava amarguras dentro de mim, bramindo vinganças desordenadas. Afinal dobrou a rua, não o vi mais. Começou então um desespero surdo, pela absoluta impotencia da desforra. Onde tinha elle entrado, quaes as janellas do seu quarto, como surprehendel-os, fazer escandalo, chamar-lhe a ella nomes infames? A rua voltava bruscamente, havia uma rotundidade de largo, á esquerda a fachada de uma igreja, depois ruellas tortas convergindo. E eu ia e vinha escutando os passos, que ora soavam n’uma rua, ora na opposta, ora morriam, ora pareciam ir-se aproximando. E a sombra que oscillava cosida com as casas, uma vez se me afigurava á direita, outra á esquerda, e assim. Então precipitava-me contra ella, suando em bica, cabellos ao vento, gravata ao lado—dava com um escuro de portal, sombras de arvores, algum cão vagabundo roendo lixos. Um pescador que passava abalroou comigo, dei-lhe um encontrão furibundo, quiz agarral-o tomando-o pelo outro. —Desculpe, desculpe. E corrido, atordoado, comecei a andar de cabeça baixa. Havia baile no club. Que tinha isso? Era fechar os olhos, via-a dentro de mim côr de fogo, côr de rosa, de todas as côres. E cabellos turbulentos nas espaduas, pés nús, braços nús, hombros nús, seios nús, toda ella núa. Essa nudez, eloquencia victoriosa da carne, fulminava-me, imbecilisava-me, fazia-me calafrios pela medulla abaixo. Nunca vira bocca mais vermelha, nem dentes mais lascivos, nem expansão de ventre mais deshonesta e divina. A tentação do asceta lendario evocada entre privações, nas febres nervosas da loucura, não tinha concentração mais calida, que o delirio em que eu fervia! E pela côr da sua face e das mãos, pela esculptura dos hombros, dedos afilados e cabellinhos espiralando no tom fulvo da nuca, eu reconstruia esse corpo de um jacto—seria alta, cinta elastica, uma expansão de tulipa invertida, dos quadris aos joelhos, rotulas macias, redondinhas, côr de rosa esvaído, e tornozêlos finos, um pé estreito e alto... Então sacudiria a camisa, friorenta, atirando os cabellos para as costas n’um geito colombino de cabeça—e sobre uma pelle de urso branco, ante o espelho cingido em lilaz e rosas pallidas, de Sèvres, sorriria namorando a propria belleza o pondo riz nos hombros, de mão na cintura, como as bellas estatuas delphicas. Passos na escada, empurravam a porta da alcova, apparecia um homem aos tombos, chapeu para a nuca. —_Buenas noches!_ E ahi despertava eu de novo, e me punha a correr pelas ruas, atraz do primeiro homem que via, e á cata da primeira janella alumiada, qualquer porta aberta, do menor rumor que despertasse os echos. Umas poucas de horas andei n’essa vagabundagem furiosa, tropeçando, fallando alto, querendo investir com tudo. Mas a fadiga vencia-me, tinha os cabellos empastados de suor, vinha-me embriagando uma tristeza estupida, desopilante e brutal. Então sentindo ar fresco, penetrado dos cheiros acres do mar, ergui a cabeça para vêr á roda. Estava na praia, deante das janellas do morgado, ainda alumiadas áquella hora da noite. Subi as escadas a correr, dei com elle em mangas de camisa, cabeça amarrada n’um lenço da India, chinelos de mouro, um arquejar de soluços. —Que é, velhote? disse eu surprehendido de o vêr afflicto. Alguma coisa de cuidado, más noticias?... Elle rompeu a chorar, agarrado a mim n’um desalento profundo. —Não sei do pequeno, desde esta manhã que o meu filho desappareceu. —Descance, não ha perigo. Perdeu-se, procura-se. Está ahi a brincar n’alguma casa, com petizes da sua idade. Naturalissimo! Quando o largou o amigo? Referiu atabalhoadamente que tinha ido ao banho muito cedo, mais gente na praia que o costume, uma algazarra do inferno, senhoras e homens em confusão. Foi a fallar com um amigo, largou a mão da creança quando ia por entre os grupos—o caso foi que o não viu mais. Inda andou a procurar por todos os cantos, expediu banheiros pela praia fóra, foi perguntando a uns e outros se o tinham visto, correu á policia, ninguem soube dar-lhe razão de tal creatura. Passeava desesperado pelo quarto, com suspiros oppressos, um peso no peito, forjando destinos tragicos do pequenito—podiam tel-o roubado os barqueiros, talvez morresse afogado, alguem lhe queria mal. —Quem ha de querer-lhe aqui mal, homem de Deus? Nem o conhecem, descance. Foi passar o dia a uma quinta, é o que foi. Familia que o levou, creanças que o tomaram para amigo, e o não deixaram vir. Qualquer coisa natural, emfim. Ámanhã vem trazer-lh’o a casa. Succede todos os dias! Mas elle não attendia, torcendo as duas mãos cruzadas, indo furiosamente de um lado para outro com o ar hirsuto d’um lobo, e gestos phreneticos de quem debate algum problema interior. —Eu morro, morro sem o meu filho!... dizia com o olhar extincto, parando bruscamente na casa—E como eu o abraçava compungido de o vêr penar assim, forçando-o a que descançasse no sophá, pretendendo distrahil-o com palestras de acaso, sobre a praia, as boas mulheres abandonadas no banho, noticias de jornaes, preços de gado ou qualquer coisa—de olhos no chão, elle remordia febrilmente o beiço, e em estribilho fazia de quando em quando: —Valha-me Deus! Tive uma cruz bem pesada! Eu fingia não ouvir os seus lamentos, e ia contando a scena do conde, o seu cynismo de bebedo, e dos meus appetites sobre a bella condessa da sombrinha japoneza. Que mulher, amigo morgado, que magnifica mulher! Uma cantharida! E livre do vinho abria-me com elle, tinha andado atraz do marido havia pouco, perdera-me d’elle sem saber, e que ciumes no meio da noite negra! Relembrando o talhe opulento d’essa mulher, a pallidez real da sua face, meneios estouvados, elegancia da cinta e dentes frescos, outra vez sentia renascer-me o phrenesi voluptuoso; insensivelmente a minha voz cahia, dizendo coisas libertinas ao ouvido do morgado. E a cada passo consultava-o: —Vossê não acha? Eu cá fazia isto e aquillo, e vossê, morgado?... Quando porem o pensava interessado no que eu dizia, esquecido do pequeno, e em repouso da aspera tormenta intima que havia tanto o minava, eil-o a chorar outra vez, um chôro amarissimo e fundo, que mettia dó. E da sua cabeça resignada, cahiam falripas algentes, n’uma aureola veneravel. —Vê-se que é o filho unico, dizia-lhe eu contemplando-o. Tivesse o amigo outro, já não seria tão susceptivel. Mas admiravel, morgado! Imagine que é tudo atraz d’ella. Dizem-me até que um da familia real lhe fez propostas de archi-millionario. Aqui sabe-se tudo. Mas console-se, seja homem, aqui tem cigarros, distráia-se... Que diabo, já se não roubam creanças para oleo! Estamos em paiz culto, e n’uma pequena terra onde fallamos todos. Póde tranquillisar-se, afianço-lh’o. —E essa mulher, esse diabo, disse elle de repente, com uma especie de angustia, é esposa d’esse homem, talvez? —Ah, bom maganão; já toma calor! De resto, uma _cocotte_. Mas esplendida, não imagina! Esteve a olhar para mim, e furioso, como fallando para dentro de si proprio: —Horas em que tenho mesmo vontade de arrebentar p’ra ahi!...—E n’um rir patibular que o transtornava: então é mesmo boa? Isto é lá vida, nem o inferno! Eu encarava-o já surprehendido,—e as lagrimas cahiam-lhe pelas barbas, tocavam-se de luz um momento, e vinham rolando algumas pelo peitilho, grossas e limpidas. Como encostava a cabeça á mão, vi-lhe na origem do annular uma alliança fina, muito apertada, brilhando a espaços sob a rosca carnuda do dedo. E aquillo recordou-me a esposa d’elle, morta, viva, sei lá!... —Meu amigo, disse eu impudentemente, o seu caso é triste, adivinho-o. Mas tenha animo! Vi-o pôr-se de pé subitamente, arquejante, moido do esforço, quasi sem me poder fallar. Mas alguem vinha na escada fallando devagarinho, uma voz disse muitas vezes: —Pae! Pae! —Ora ahi tem o Luizito. Não lhe dizia, piegas? Veio abraçar-me pelas costas, quasi risonho, esquecido do mais, furioso por abrir a porta, e enxugando lagrimas á pressa. Agarrei no candieiro para alumiar, e elle como estava, de chinelos, em mangas de camisa, poz-se a descer a escada ingreme, frouxamente esclarecida de cima para mim. O pequeno subia custosamente, carregado de bonito e bolos. —Olhe, dizia com vozita espapada, um cavallo tão bonito! E estes soldados Espere ahi! E uma caixa de musica, toque lá, ande. Sem responder, o velho estacára de braços cahidos, cachaço sem collarinho, os ignobeis chinelos mettidos nos pézorros de camponio, mangas arregaçadas como um taberneiro. Olhava á porta da escada um vulto de mulher embuçado n’uma _sortie-de-bal_, alto, fino e flexivel de _silhouette_, derrubando sobre a frente o capuz da cobertura, excentricamente talhada em dominó, de cujo bico cahia, sobre damasco e rendas, um laço de pontas fluctuantes. Apenas appareci com a luz, a mulher recuára para a rua, e no meio da escada, irresoluto e tremulo, com um meio ar idiota, o morgado olhava para mim, para o pequeno, e para tudo, sem saber o que fazia. —Sobe, filho, sobe... Veio atraz da creança de cabeça baixa, pisando os degraus com dificuldade e todo pallido da apparição. Entrou a vestir á pressa o collete, pôz collarinho e gravata, calçou as botas dando gemidos dos callos magoados. E deante do espelho, coisa rara! olhava-se, mirava-se todo, passando n’um geito febril pelos cabellos e barba, o pente de vulcanite. E tremulo, tacteando as coisas, dizendo: —Já venho, o senhor desculpe, eu venho n’um instantinho, desculpe...—Chegou á escada amparado nos moveis, fechou a porta cuidadosamente, e sem phosphoros, desceu a cambalear. Ouvi o portão de baixo cahir, atirado com estrondo, vozes que se afastavam cautelosas... E fiquei a sós com o pequenito. Então vieram-me á lembrança as vacillações do morgado n’aquella viagem para Lisboa, quando nos tinhamos visto pela primeira vez, o rigoroso lucto guardado por elle em tres annos, a sua indole fugidia, a submissão que a todos mostrava, a sua vergonha entre as mulheres, e do que a lingua do Alvares insinuára. E ligando aquelles dados ao pequenino annel que lhe vira no dedo, á graciosa _silhouette_ da dama embuçada, e singulares desalentos em que o via mergulhar, adivinhei a coisa toda. Nada mais simples! E para o patetinha que em silencio tasquinhava _bon-bons_: —Então Luizito, grande passeio hoje? Elle disse que sim com a cabeça. —Gostas d’aquella senhora, gostas? Mesma resposta. —É a tia. Como se chama? —É mamã, mamã, disse elle vivamente. —É verdade, mamã. Não a vias ha muito tempo, hein? —Não a via, repetiu elle, e a testinha comprimida, fugindo para traz, sem esphericidade e sem bossas, fazia sahir aguçado o focinhito de bruto, meudinho e pallido, com os buracos das ventas ranhosas, esmagadas a murro, e a bocca fria, inexpressiva e inerte, que tinha a brevidade d’um golpe. D’alli a uma hora appareceu o morgado. —Saiba o senhor que abalo ámanhã, exclamou elle com modos sacudidos, um tremor nas mãos. E em ar de explicação: Vou viver de todo nos mattos. Outro socego nas herdades! Queres, hein, Luiz? Agarrei no chapeu para sahir, e apertando-o nos braços: —Se precisar de mim escreva, adeus. Elle abraçou-me convulsivamente, com angustia. —E ahi está para que um homem é honrado sessenta annos! Olhe, palavra de honra. Queria antes que o senhor não soubesse. Perdão. É a minha vergonha! Não quiz crêr... —É desgraça, vergonha não, disse eu gravemente. Que culpa póde ter o senhor d’essa... O velho apontou-me o camisote de lucto, e duramente, em resposta: —Que morreu, faz tres annos! Ai! o que eu tenho soffrido, o que eu tenho passado em quatro annos para cá!... Caramba, não esmigalho a cabeça por olhar á creança. Quem cuidaria d’ella n’este mundo, desinteressadamente? Diz que o dinheiro dá tudo; mentira! Talvez elle me roubasse a mulher. E não haver leis para degolar as adulteras, que deixam os maridos, os filhos, e debandam por esse mundo com miseraveis aventureiros! Ai, nenhuma foi mais amada que a minha, todas as vontadinhas, todas as creancices, todos os caprichos, até vinha doce de Lisboa em condeças, aos sabbados de tarde. Pois enganava-me, para se vingar do amor que eu lhe tinha! Vestidos todos os dias a chegarem, um _rôr_ de libras só em musicas: e quando foi da exposição em Paris, e jornadas a Hespanha, mezes inteiros por Lisboa, os verões nas melhores praias de banhos... E eu sempre com uma boa vontade, uns cuidados, menina isto, menina aquillo, e a perder noites no theatro, a ir com ella ás regatas, a arriscar-me no mar, capaz de se virar o barco... Gostava d’ella, então, nunca se viu alguem gostar d’uma mulher? Que sou um rustico bem o sei, filho d’um triste creado, um reles homem de trabalho; ninguem me deu principios, não tinha obrigação de adivinhar certas delicadezas. Mas ella podia bem esperar que eu fechasse os olhos; para a não estorvar, até acharia meio de morrer mais cedo. Uma esmola que fazia. Pois nem isso, infeliz de mim! E inda aquillo vem reclamar o pequeno, que é muito meu! Pago-lhe as lettras, pago tudo, esse traste que descance. Mas o meu filho, nunca! Capaz de m’o envenenar, aquella perdida! Tirar dos seus habitos um pobre velho; e ao cabo, fica-te para ahi deshonrado, sem ter quem te dê caldos na doença, e quem te reze na agonia. Pois foi o velho que a tirou da miseria, e da filha d’um reles almoxarife fez uma senhora. Inda essa mulher se gaba de ter sangue real nas veias. A mãe era _gansa_ de principe, não admira que a filha sahisse o que sahiu. O senhor não faz ideia dos meus tormentos, não faz! Basta dizer que apenas dormimos uma semana. E para nunca mais.—Tenho vertigens, está uma calma, e desculpas, desculpas, entrou a explorar-me, hoje tanto, ámanhã tanto, desprezos, más respostas, um ar de escarneo; e um dia, vou pedir-lhe perdão de joelhos, e expulsou-me, dizendo que eu era um labrego indigno d’ella, e que havia de fugir com o primeiro. Eu tinha já desconfianças horriveis; o senhor perdoe-me, é desafogo—mas uma noite acordo de repente e senti beijos. Desde essa hora foram-me a embranquecer os cabellos, de noites que passava a chorar, a passear na casa como doido, a morder a roupa para ninguem ouvir os gritos. Era um ciume, uma febre, uma raiva de a morder toda, de a arranhar no peito, de lhe puxar pelos cabellos, veja o senhor—mas que? se eu tinha dó de a magoar, pobresinha, que ahi anda agora sem ter quem na aconselhe, creança como é, ainda por cima maltratada de todos. Capazes são elles de lhe bater; que ha taes canalhas n’esse mundo!... Ai! um dia foram-se-me as duvidas, desgraçadamente vi. Expulsei-a, acabou-se; não sei como, expulsei-a! A gente perde a cabeça, tem momentos de não saber o que faz. Hoje, era differente. Emfim! Foi como se tivesse morrido. Até deitamos lucto, veja o senhor. Pois assim mesmo me explora. Sou-lhe preciso sempre, vem sollicitar o meu auxilio sem pejo, saca sobre o meu nome a quantia que quer, o Vianna tem ordem... E nem ao menos, muito obrigado. A perdição faz as mulheres crueis e sofregas. Tanto que fiz por evitar esta desgraça, tanto! Perdoava-lhe a primeira, seria com ella um pai, como d’antes. Mas vicios, tenha paciencia, santa paciencia, em minha casa não! Não! não! não! Antes degredado, antes cahir por esses barrancos bolindo de bichos, antes a morte sem sacramentos. Adeus, disse elle, pondo sobre mim os seus olhos supplicantes; não me despreze, não me queira mal, no fundo todos somos uns podres, mas vem-me um phrenesi por ella ainda hoje, ainda agora, sentil-o-hei toda a minha vida. É uma cegueira, é um castigo, é um destino, de noite levanto-me como doido, vejo-a em toda a parte, onde quer que vá, e por mais que faça para a esquecer. Fez saltar a tampa do cofre hispano-arabe, tartaruga e oiro, onde estava uma photographia sobre esmalte indestructivel. E n’uma especie de allucinação arquejante, de furia nervosa, ficou a olhar longamente o retrato, como se o visse brotar do medalhão, e pouco a pouco ir avultando, tornar-se palpavel... Fallava-lhe com palavras doces, como a uma creança, em voz baixa, cobrindo a figura de beijos, o olhar flambando d’amor. —Que linda! Mesmo santa!—E n’um choro afflictivo, gaguejando: podias vir, vês tu, eu tinha lá coragem de te mandar embora! E assim, nunca mais, nunca mais! Instinctivamente então, commovido por aquelle phrenetico amor de septuagenario, que o absorvia, tão grutesco de feitio, tão vil de expansão, cheguei-me ao cofre para vêr. Pobre velho ludibriado, assim bom de maneiras, com delicadezas de instincto a espaços rompendo da rude casca exterior! pensava eu... e n’isto dei um solavanco inesperado, reconhecendo a anonyma condessa da sombrinha japonesa, successo da praia na estação que ia, cocagna de toda essa mocidade roida e palaciana que dandynava fazendo cæcum á corte em villegiatura, raro e fino animal que o hespanhol andava mostrando, apreçando, explorando, offerecendo cynicamente, interesseiramente, como n’um bazar asiatico d’escravas. No espanto em que ficára, nem achei uma boa palavra que dizer ao morgado. Que? Era então a condessa, aquelle impudor de raça, aquelle alegre vicio vestido nos _magasins du Louvre_, cheio de attitudes Robida, com elasticidades de cobra cascavel, tão provocadora a fumar nas frescas manhãs de praia, entre as risonhas banalidades da alta gomma, assim descaradamente distincta, fina, e espirituosa como uma parisiense de Duez; era então ella a esposa de similhante alarve? Que _gaucherie_ de debute, realmente! E vinha-me o escarneo de tão desprezivel origem. Uma morgada da provincia, com creações de coelhos e magustos de bolota ás chaminés da herdade... Singular, como ellas cursam de repente a alta escola do _quartier Breda_, com uma canalhice tão chic, e sem largar o palminho de terra parvoneza. Vão lá descobrir n’esse _sourire chapeau rose_, um laivo sequer do gaspacho trastagano, vão! Francamente bom homem, ia mentalmente confessando para mim, ao considerar na obesidade amorosa do morgado—se fosse outra, condemnava-a por haver atraiçoado essa tua molle bondade de porco gordo. És uma bella pessoa, sem offender quem está. Todavia, eternisando comtigo a lua de mel dos bem casados, aqui para nós, a condessa ficava d’um grutesco... Ha coisas, tu comprehendes, que uma mulher de gosto não póde fazer sem compromettimento. Imagina tu, que ella entrava a nutrir matrimonialmente em parallelo comtigo, conforme é uso nos _ménages_ patriarchaes do teu districto. Diabo, diabo! Era obsceno n’uma senhora. Punha-me então a imaginar a condessa no segundo dia de esposa, de pé no seu palacete de provincia, ainda em trajos de noiva, e acordando do seu somno de virgem, para repellir o amor d’esse homem vulgar com rebelliões de princeza captiva, transfigurada, inflammada, pedindo alguem que tivesse espirito, um ideal de cultura, e fosse bravo, dedicado e doce, com largas maneiras de senhor. E aquelle homemzinho de charrua, tão singelo e tão gebo, filho d’um creado, gerado n’um ventre de mulher de monte, herdeiro das boçalidades, grosserias moraes e joanetes paternos, tendo virtudes previstas na Carta, um compadre em Lisboa, e explorando o trabalho das aldeias com o ar de as proteger, terror dos candidatos, emprestando a juro, senhor de mãos grossas, com as unhas esmagadas, cabellos nos ouvidos e uma dôr sciatica pelas mudanças de tempo, pronunciando sem graça e rindo com dentes verdes; esse homem estaria ajoelhado aos pés d’ella, braços febris contra a sua cinta ondulosa, suores na careca, e tartamudeando monosyllabos de satyro decrepito. E via-o cheio de pretensão, fato novo, arrotando contos, dominado por um vicio de rapariguinhas novas e endurecido no egoismo dyspeptico dos viuvos, fazer cerco áquella pobre filha do almoxarife de coutada real, ambiciosa como todas as engeitadas de principe, cheia dos formilhamentos d’um luxo entrevisto em caçadas de côrte, espreitado pelas fechaduras, aspirado no rumor das festas reaes, no telintim das baixellas, em musicas de camara dominadas d’uma austera graça, nas _toilettes_ das grandes damas, scintillas de _rivières_ e voejos das ventarolas pintadas por Greuze e Galland, todos os requintes da alta vida, exagerados na pragmatica de palacio e fazendo cyclone n’esse espirito de gazella vaidosa. E a vida de casados n’um horror de herdade, as janellas da camara nupcial abrindo sobre algum pateo de lavoura, cheio de carretas do captiveiro de Israel, ganhões em mangas de camisa assobiando ao gado que bebe, cães errando de lingua fóra, e a raza campina ao largo, ceifada, pellada, sem guarida, sem pascigo, sem arvores, anesthesiando a vista, carbonisada de sol, e pondo um oceano de separação entre esse insidioso caracter de mulher bella, e a nevrose scintillante das capitaes, por elle tão ardentemente sonhada. Por mais que fizesse, e por escrupulosa que fosse, essa mulher devia fatalmente vir a detestar o marido, tendo-o sempre deante de si, no _deshabilée_ do rendeiro que tem gazes e teme a apoplexia. Depois o seu modo de ser amavel, de a abraçar mettendo de permeio um grande ventre tympanico, de lhe passar na cara tão branca e susceptivel, a torpe mão que mexia nos patacos da feria e na lanugem das crias; e uma falta de intuição, de nascimento, de gosto, que davam mesmo vontade de lhe ser hostil. Ella soffreu porventura estas coisas pacientemente, reconsiderava eu, com a esperança de Lisboa onde a tinham educado como uma princeza, interessada nas obras da intelligencia, recebendo todos os _vient de paraître_ da litteratura e da musica, vestida em Paris no meio d’aquelle deserto, cultivando plantas de estufa, fazendo Chopin a uma pequena galga que tinha, pela necessidade d’uma alma poetica que ao seu lado soffresse tambem, as inhospitas tristezas do abandono. Uma das coisas, vim a sabel-o depois, que a fizeram receber altas horas por primeiro amante, o secretario geral d’Evora, foi o vicio que o morgado tinha de arrotar, emquanto ella esmaltava de Nocturnos e bocados biblicos de Rubinstein, o religioso silencio perfumado da sua camara. Além de que, mettia-se-lhe em chinelos nos aposentos. Tamanho odio a ganhou desde então, que uma tarde, como elle não entendia as allusões, as ironias, os chascos, ella pôl-o fóra com um gesto de rainha. E a desvergonha de a querer a certa hora, nas satyriases da digestão, e sempre referencias de pae Grandet ás contas pagas, aos vestidos de seda postos de parte ao outro dia de recebidos, ás rendas de libra rasgadas em rompantes de surda colera; por fórma que a pobre ave sabia quanto custava por anno, quanto valia em cortiça, queijo grande ou lã de ovelha, o que era um tormento! E successivamente, mordida de irritabilidades hystericas, entrou a não sahir dos quartos, a não fallar ás creadas, a emmagrecer e a tornar-se pallida, com elasticidades de cobra, tons azulados de mãos, e essa deslumbrante alvura de lymphatica, sob cuja estatua tão fragil ha contensões singulares de caprichos, requintes de graça nervosa, e subitaneos repellões de impudor. Desci a escada muito devagarinho, para não perturbar a adoração em que elle ficára, fui um bocado ao club. Passava um pouco das duas. Ninguem walsava; sob _abat-jours_ japonezes, as velas derretiam nas bobeches dos candelabros, em mesas de jogo abandonadas com fadiga, momentos antes; havia grupos nos vãos das janellas, grandes risos nos terrados, uma animação de homens fallando ao mesmo tempo. Na sala de leitura, o amigo Alvares gesticulando forte para um grupo de rapazes que esperneavam de riso. Perguntei: —Que diabo ha? —Ah, meu rapaz, que escandalo mais catita! Perdeste em não estar, perdeste tudo, vae carpir para o deserto a tua pouca fortuna, que não estás em graça. —Mas é por força caso espantoso! —Imagina tu que o Castro enfia pelo baile mais a condessa hespanhola em _toilette_ de espavento, uma sucia de brilhantes. Estava tudo cheio de senhoras, o melhor. Ora filho, mal a viram apparecer foi uma debandada geral! O director de serviço quer expulsar a mulherzinha, o Castro vae-lhe tomar satisfação, levanta-se algazarra... Ah, gostei immenso, que pagode! O caso é que isto anima-se. Nos mais annos uma semsaboria. Mas muito bom! E vou interpellar a direcção. —E eu dormir, respondi apertando as mãos á volta. Na rua vi Guimarães pae, thesoureiro do Banco, fallar devagarinho ao visconde Paredes, director e casca-grossa ventrudo, com meio kilo de berloques, que alcunhava a litteratura de peste publica, e enriquecera fornecendo mesclas ao exercito e falsificando os rapés. Quando passei tinha o Guimarães umas notas na mão, que mostrava ao Paredes, confrontando-as minuciosamente. E ouvi de relance a voz ronronada do director: —Está muito bom. Telegraphou? —Vem reforço esta noite. Ámanhã de manhã, estamos-lhe em cima. No dia seguinte, havia borborinho na praia, ninguem se interessava nos mergulhos da corôa, de grupo em grupo ia gente informar-se, tomar parecer, ou rir da indignação dos mais austeros patricios. Tinham-se descoberto notas falsas em circulação, consideraveis depositos nas malas do hespanhol, que meia hora antes fôra preso mais a condessa, deliciosa traquinas que se divertia em pagar com ellas compras principescas, por esses armazens de modas e novidades. Além d’isso, corria que muito boa gente se compromettera na empreza, algumas cinco prensas surprehendidas n’um palacio á Lapa, duas fabricas subterraneas que estavam trabalhando á entrada da policia; muitas pedras lithographicas com modelos de notas, carimbos de firmas falsas, ferramentas, tintas, uma escripturação montada, chapas de mil feitios... Vinham já os primeiros calamitosos ensaios de quebras fraudulentas com capitalistas fugidos, roubos mysteriosos que a policia tinha ordem de deixar impunes, o contrabando em grande escala, e duzias de moratorias especando uma geral desorganisação do credito. E a essa hora o morgado com o filhito pela mão, quita-sol entre os joelhos, de forro verde, um solideu de seda por baixo do feltro desabado, lá ia para a sua lavoira, recolhido no camisote de lucto, silencioso, cheio de ceremonias, e tendo o pensamento na bella codorniz que acabavam de engaiolar no Aljube.—Pobre homem! dizia eu, vendo-o partir no carrão. Ir para a herdade logo nos mezes em que não ha pastagem... MADONA DO CAMPO SANTO Um temperamento, este Arthur! Côres biliosas, intractaveis cabellos extraordinariamente negros, talhados á ninivita conforme a moda romantica dos _ateliers_. Na estatura composta e nos hombros largos, uma reserva trahia a alma dura, violencias, e insoffridos orgulhos. Nasciam d’elle langores e enthusiasmos de indole calida, pueris alegrias, terrores, fluctuações, desesperos e lacunas de caracter, que lhe tinham ficado d’uma mocidade escusa, e da educação cortada de contratempos. Abandonando as _troupes_ do café e os cenaculos de tabacaria e camarim, que fazem opinião sem a ter, de tudo riem e de tudo fallam, tudo julgando e em todos vendo meritos secundarios, elle afizera-se a illuminar o silencio da sua vida, com a luz d’um talento extraordinario e profundo. Não tinha admiradores, nem amigos, nem discipulos. E incomprehendido, desconhecido, casmurro, sem a audacia de se impôr, nem paciencia de supportar o insuccesso, o seu coração desconhecia os lances da abnegação desinteressada, e sequestrado, intransigente, com os feros orgulhos do pão secco, e a tristeza furiosa dos que soffreram na infancia, mordia a gloriola dos favorecidos, comparando a sobriedade heroica da sua vida, aos ruidos de encommenda e prosperidade crescente de todos esses inuteis. Assim, na impetuosa edade em que a vida do artista se inflora n’um _bouquet_ de impulsos cavalheirescos e espontaneos, sem calculos, agiotagens ou reservas, aquelle velho de vinte annos não dava passo sem palpar o terreno deredor, olhando as coisas com um sentimento de atroz analyse e ambição egoista. Um diabo apenas, sabia levar este solitario, interessar-lhe, insinuar-se, fazel-o rir. Era o Albano, zingaro de escóla, dos que envelhecem a fazer o curso, sempre cabulando, encalvecendo, sabendo de tudo, não tendo conhecimentos completos de coisa nenhuma, e sentindo pelos regulamentos das aulas, desprezos que os graves mestres faziam pagar com reprovações e annos perdidos. Albano era um chupado de oculos fixos, com a sua careca apostolica de falripas temporaes, maxillas de cão rateiro, bocca sardonica com dentes de gume branco, e um corpo rachitico, corcovado, esgrouviando do fato pelas curtas mangas da nisa, e pelas pernas curtas das calças. Os cafés conheciam-no pela grossa jovialidade, um rir nervoso que punha guinchos d’alarme ao canto das suas palavras, e o phantastico humor cheio de _pochades_, buliçoso e crivado de ironias, que lhe tinha valido a raiva d’algumas pessoas em bonita posição. Pelos atrios das escolas, essa figura torta servida por uma lingua damnada, punha má impressão, nos premiados sobretudo, onde a sagacidade do cabula teimava em diagnosticar os maiores herbivoros do curso. Citavam a sua phrase de todos os dias, ao encontrar conhecidos, dita n’um rythmo cheio de pausas, que por si já sibilava ironia. —Bem bom! Bem bom!—Geito amargo n’um canto da bocca, e logo:—Então que escandalos? Sem nada affectar, andava ao facto de tudo, sabia fallar em tudo, lia tudo, jornaes de sciencia, livros de todas as especialidades, poemas, romances, historia, critica, e musica de todos os auctores, porque é de saber que tocava maravilhosamente rabeca. Se lhe contavam o escandalo suspirado, sem o qual morreria de paixão, de inanição e tristeza, era vêr os guinchos de deleite em que entrava, e interjeições em que todo parecia bulir. Encontrára uma noite o Arthur na _Brasserie_, palavras trocadas a respeito d’um chapeu de chuva esquecido, um jornal de gravuras folheado em commum, e ficaram conhecidos. O fato velho de Albano, inspeccionado com attenções minudentes, pareceu satisfazer o nosso homem. E sympathisaram, tinham entrado logo a discutir, apertaram-se as mãos á despedida, e ás noites depois de jantar, eram certos na _Brasserie_ para o cavaco. Pouco a pouco, as relações estreitaram-se quanto era possivel em indoles de sobrecenho, como estas. O mais expansivo era Albano inda assim, com as suas mordacidades cortantes, um largo desdem pelas coisas consagradas d’antemão, e a concisa formula sobre os celebres e grandes homens—que tinham todos sua perna podre, podendo esta ter apodrecido em varios pontos do individuo, na consciencia, na cabeça ou em regiões vergonhosas. E a esmiuçar biographias de condiscipulos e mestres, illustradas com os detalhes pittorescos das vaidades assolapadas, calinices _ex-cathedra_, e desenhos de typos feitos em ar comicamente grave, derivou d’ahi nos personagens mais em publicidade, politicos, litteratos, e dinheirosos influentes. Arthur que o ouvia regalado, em silencio, completou-lhe as vistas criticas, esfibrando então com as glotonerias d’um homem posto de banda, as individualidades da arte, que o outro conhecia pouco; e fez-lhe a sua vida artistica, como antes de estudar em Roma tres vezes fôra preterido nos concursos de pensionista, como vindo do estrangeiro com amplas provas de artista tinha achado hostilidades entre irmãos d’armas, dentro da academia mesmo, e por amor d’ella nos jornaes. E sem recursos, n’um paiz pobre onde os amadores d’arte ornam as salas com oleographias, e as galerias, escadas e vestibulos com gessos e cães de faiança, elle referiu a sua inhospita miseria n’uma agua-furtada de Santos, faltas de modêlos, desalentos e orgulhos desprezados. N’essa causa commum que faziam, chegaram a estimar-se, indo cear economicamente de quando em quando. Era d’ordinario n’uma taberna do Bemformoso que tinham logar estes festins com canôas, n’um cubiculo pintado de verde, com reposteiro de ramagens, bico de gaz ao alto, e um gato amarello enorme, de collete branco e ar caricatural, que ronronava molhando nos pratos as suas barbas mephistophelicas. Muito especial alli o vinho, um grosso vinho pintado de roxo que alem de servir para marcar roupa, afogar baratas e trazer ictericia a quem se lhe affeiçoava, possuia a inolvidavel magia de dar talento aos actores do Principe Real que o aproveitavam assim por todas as fórmas, na tintura dos cabellos, na collagem das barbas postiças, em injecções e banhos geraes, reviviscencia da memoria, extirpação de callos, ou com sardinhas fritas nos entreactos... Nunca o taberneiro se cançava em fazer o elogio historico do fabuloso elixir. —Lá em Torres, o lavrador é muito entendido na arte, e homem de todo o aceio. Em apanhando os vinhos na conta champa com elles p’ra dentro d’um tonel novo, onde está um carneiro morto com tripas já se sabe, tudo muito bem lavado. E alli se desfaz aquelle carneiro, n’aquelle vinho, até restarem só ossos. Deixa afinar aquillo muito bem, e sempre digo aos senhores que fica um balsamo mais sustancial! Os freguezes engordam todos que não sei explicar. —Olhe cá, dizia o estudante, de que morrem as gallinhas cá na estalagem? —Mas de faca. —Não se me finja carrasco! Quando desenterraram esta, coiso? —Que diz o senhor? —Vá! Em principios do mez passado li eu no jornal o convite da familia para o enterro. N’estas ceias discutia-se tudo, o Oriente, as doenças de cerebro, mulheres, quadros, aguas de Cabeço de Vide, Beethoven, os coelhos albinos, e quem sahia visconde ou casava rico. Albano que achava a litteratura decadente na área latina, tinha uma adoração por Balzac. Balzac e Beethoven! E o seu olhar fuzilava e o seu coração batia. Havia uma coisa egual a escrever a Comedia Humana, era ter composto a pastoral e a Symphonia Heroica. Fóra d’isto, nada. Pintava Rastignac desafiando Paris na sepultura fresca de Goriot, e o avaro Gobseck dilatando as pupillas de tigre contra os diamantes d’Anastacia. E essas duquezas de grande ar, dando bailes de rainhas, lançando os amantes nos grandes cargos, enchendo Paris da sua belleza, corroendo a sociedade com o seu espirito e phantasia, aladas, deslumbrantes, desprezando as leis, jogando, empenhando, descendo dos fastigios ás vergonhas, sublimes e vis como a carne em que se insculpiam, punham na cabeça do estudante um intangivel mundo feminino, a que elle dava as suas paixões, os seus formilhamentos e furores de homem. Amar a femea da rua dos Fanqueiros depois d’isso, era uma profanação de ideal. Eis porque ficaria solteiro. E se o outro gostava d’amendoas torradas? O Albano ia vêr Arthur todos os dias, com o seu cachimbo operario ao canto da bocca, o livro da vespera debaixo do braço. —Bem bom! Bem bom! Então que escandalos hoje? —Aquelle idiota do G. que partiu uma perna. —Ora até que afinal! respondia Albano esfregando as mãos. E como quem fundamenta o seu odiosinho: não era senhor de lhe offerecer um calice, que não acceitasse logo. Bem bom! Foi castigo. Se nas sessões parlamentares algum dos Castelares que alli grassam, vergastava em demosthenicas o ministro com grossa arruaça das galerias, se um condiscipulo soccava outro, ou qualquer vulto da sciencia fraquejava em conferencias, relatorios ou debates de especialidade, um prazer inexhaurivel fazia o Albano guinchar, bater palmas, n’uma satisfação radiosa e sincera. E a face de Arthur refloria, parecendo a ambos que os desastres alheios os içavam em triumpho pelo mastro interminavel da fortuna. Estes demolidores que esguichavam facecias lugubres sobre os immortaloides que nas saias da Academia, á sombra copada dos archivos, encalveciam a investigar da dentuça podre da rainha Catharina e dos bastardos de Sancho, elaborando memorias de estructura cornea; que faziam troça nas procissões e paradas, das mumias de guerra que viam com pompa, cavalgando ginetes e destingindo immorredoiramente ao som dos hymnos; que bandurreavam dos bilhostres politicos, dos oradores, dos paspalhões e obsoletas industriaes nacionaes—moviam processos scientificos d’escarneo contra essa rotina de paiz morto, rindo a ironia dos fortes, com ribaldarias cynicas de _triolet_. Era Albano quem fallava quasi sempre, inundando as ceias de canôas, com vinho e projectos de regeneração publica, decretos mirabolantes convergindo a resolver de vez, o insoluvel problema da vida portugueza contemporanea. Cada qual se punha então a dizer o que faria em chegando a ministro. Albano optava pela plantação da beterraba em grande, no que havia de gastar o quarto das receitas do Estado. E pequeninas grandes obras collateraes, por exemplo inundar a Europa de palitos feitos á machina, seis milhões por hora; pôr em arremate uns bancos de bacalhau por elle descobertos em Cabo Verde; enviar uma commissão de sabios á China fazer estudos sobre o rabicho... E sempre no fim: Olá, peixe!—Aquillo deixava o esculptor boquiaberto. —Mas a arte, a sciencia, nada? perguntava elle timidamente. —Quanto á arte, dizia Albano riscando a careca com a sua unha em garra, estou que daria resultado um conservatorio de musica e choral para os atuns do Algarve. No que respeita a sciencia, fundava em Coimbra uma faculdade anterior ao estudo das mais, a faculdade de pensar. Como vês, é maravilhoso, simples e facil. —Ahi está o genio, notava Arthur. —Ai, ai! fazia o estudante, atochando o estomago gargantuano com savel frito. Tinha elle uma irmã lindissima, figura de parisiense, meudinha, nervosa, penetrante, musical. Como Arthur pelo tempo adeante necessitou procural-o, forçoso foi dar-lhe a morada e franquear-lhe a porta. A casa era pobre, terceiro andar para mãe e filha, com sotão para o bohemio dormir. Arthur começou a gostar da pequenita, a vir mais vezes, a olhar para ella de certo modo. Depois um nome delicioso—Judith! E o esculptor pensava já muito sériamente n’uma estatua de Holofernes, que tivesse a sua propria cabeça. * * * * * Um grande alto-relevo que esculpiu para não sei que fachada, trouxe-lhe renome, por alguns dias exposto. Obra excellentemente lançada, esse alto-relevo d’assumpto biblico, com figuras vaporisadas em attitudes d’uma belleza piedosa e serena, e cabeças do mais fino toque. Essa magnifica pagina de marmore, guardava o symbolismo ingenuo e a bondade lyrica, que impressionam a indole sentimental de todo o bom portuguez. Havia n’ella perfis de medalha, roupas que se collavam respirando, pés e mãos de irreprehensivel trabalho, e o ar antigo que vem da leitura dos prophetas. Os jornaes fallaram da obra, quasi toda a gente foi vêl-a, e o _Occidente_ mesmo deu gravuras, o que lançou o esculptor. Por esse tempo vinha elle para visinho de Albano, tendo alugado um rez-do-chão de que fez _atelier_ e residencia. A casa tinha no fundo uns metros de quintal, recinto ensombrado de grandes arvores e todo chilreante de pardalada. Com o terreno inclinado, desfrutavam-se em chusmas lá longe, perspectivas de cidade que rebenta de escombros, campos d’arrabalde, quintalorios onde latadas tufavam, terrenos de pão, hortas retalhadas pelos trabalhos da avenida nova, predios em ruina, casas perdidas em jardins, montões d’entulho, bandeirolas, e na linha do horisonte as torrellas côr de óca da Penitenciaria com cimos de ardozia em pyramide. Debaixo das arvores, o esculptor installára a secção de chinquilho e _cricket_ dos seus ocios artisticos, com succursal de trapesio e barras fixas, da gymnastica que se impunha todas as manhãs, ao levantar. Davam para alli as janellas dos predios proximos, e n’uma que Arthur vigiava, vinha assomar curiosa e risonha muitas vezes, a cabecinha loira de Judith. Adoravel essa cabecinha de craneo pequeno e testa pura, com a sua face magrinha e pallida, bocca em coração, queixo petulante, e um modo de rir com flechas d’aurora nos beiços, de timbrar a palavra em gorgeios, e fazer cauda de _x x x_ aos pluraes—_ox olhox_, _ox cabellox_, _já sabemox_... que encantavam a perder o rude trabalhador de blocos. Qualquer mulher artificiosa de educação e _toilette_, tel-o-hia fatigado ou ferido mediocremente. Esse perscrutador brutal, acostumado ao estudo das linhas, dos gestos, das expressões physionomicas, todas as mimicas que a estatuaria fixa e modela, tinha o odio dos artificios, dos ares de palco que a vida das cidades imprime aos individuos, e as mulheres exageram cuidando n’elles irradiar toda a belleza. Nascida em orphandade e pobreza, provinciana no coração da cidade, vivendo com a mãe sem relações, entregue ao trabalho caseiro e ao seu piano de estudo, Judith conservava uma frescura cheia de individualidade, ligeirezas d’alveloa a sessenta volteios por minuto, e uma graça bravia de corça, que vinham antes da sua harmonia physica e da sua belleza innocente, que d’uma educação prodigalisada com mais esmero. Arthur gostava d’ella como um velho póde gostar d’uma creança, pela figura franzina, pela alegria casta, e essa innocencia relampagueante dos olhos, viva, curiosa, agitadiça, sem falsos pudores de palpebras descidas ou perturbadas, que n’outra seria petulancia, e era n’ella excesso de virgindade, de creancice e pureza d’alma. Vestida de claro, percale rosa, qualquer cassa branca franzindo até cima no peito com severidades de virgem huguenote, o corpete esvasando no desenho arabe d’um vaso, mãos luminosas, estreitas, setineas, sahindo dos punhos de renda em brancuras de magnolia, era deliciosa indo e vindo, dos seus bicos de lacre para o piano, do piano para a janella, da janella ao bastidor, do bastidor para a cozinha. E Arthur vendo-a buliçosa, n’um formilhamento de sêr nubente e delicado, com paraisos de neve na carne, toda impaciencias contidas, ondulações de quem está crescendo, gritinhos, risadinhas, começos d’árias e dolencias de larynge, tinha vontade de lhe estender o braço como um ramo d’arvore, para ella vir pousar debicando o seu _corsage_ de madona, no _pri-pi-pi_ matinal das andorinhas na cimalha dos campanarios. O que sobretudo elle adorava nas suas volatilisações d’artista, eram as attitudes de Judith, d’uma tão inconsciente nobreza, pura arte e graciosa factura, que o attrahiam, que o dominavam, enchendo d’egoismos essa contemplação muda de esculptor. Por exemplo, como ella sabia depois d’uma sonata, ficar apoiada no piano por tres dedos apenas, sem peso, sem esforço, o busto um quasi nada para traz. A sua figura tinha assim uma distincção de _miss_, doirada pelos olhos de loira, cujas fibrilhas claras torvelinhavam com labyrinthos de hydras, nas aguas de uma fonte. D’entre os hombros sahia-lhe a garganta alta, vergando como haste de flôr rara; o labio de cima tinha ao centro uma gotta de coral deliciosa, que se desfazia no riso, e voltava a tremer, toda pendente, nas horas contrafeitas; e nenhum prazer maior que vêl-a de perfil em fundos violentos, com o seu moderno typo de cidade, exquisito e fino. Tinha a edade em que a mulher está ainda sem sexo e todavia não é já uma creança, fins de infancia em começos de adolescencia, o que ha de mais mimoso na vida feminina, desejos que a admirem e esquecimentos logo d’essa pequenina vaidade, rubores d’uma palavra mais alta, d’um riso largo, rubores por coisa nenhuma. E uma encantadora desordem interior, de ideias, sensações, gostos, e prazeres virginaes! Ditos sem intuito um mez antes, modos de a olharem na rua, qualquer insignificancia quotidiana, alarmavam-lhe agora o natural assustadiço. Por vezes, de relance, n’essa conflagração de phases vitaes que não tinham podido extremar-se ainda, subitaneas tempestades marulhavam—os seus olhos accendiam constellações de sonho; certas maneiras de detalhar a respiração dir-se-hiam suspiros; cerrava muito os braços contra as costellas, pondo no busto duas azas de amphora etrusca, como se uma febre de abraços lhe viesse. E tão impressionavel, que a menor nuvem a fazia nervosa, e a menor sensação d’altura lhe dava syncopes; em dias de chuva, collada por traz dos vidros, olhos baixos, um susto da fria consternação pardacenta, pousava em immobilidades de chôro, como uma andorinha roubada aos seus novellos de ellipses, pelo bom tempo, no lapis-lazzuli do ceu. E então uma familiaridade a conversar! Ainda não conhecia Arthur de quinze dias ou vinte, e já sem preambulos entrava a querer saber o que elle tinha feito durante o dia, a que horas tinha sahido, a que horas recolhia, e como é que sendo tão novo, podia viver tão só. Esse plebeu, rosnador como os cães de fila, intratavel, sem paciencia para massadas, macambuzio e mal disposto, sentia uma immortal felicidade em responder ás perguntinhas d’ella, em adivinhar ao seu lado e por seu mando, todas as charadas e logogriphos do almanach, em guial-a nos desenhos e trazer-lhe florões para bordados. Deante de Judith a aspereza d’elle adoçava-se n’uma timidez serviçal, recolhida se ella o não mandava fallar, radiosa quando lhe sorria. E á flôr da sua larga face operaria, vinha um rubor de felicidade, n’essas visitas passadas em palestras triviaes, casos de jornal e vida caseira, em que desfilava a tragedia narrada pelo localista, as carestias da Praça, uma musica nova, e do que cada um tivera para jantar. As narrativas de naufragios, choques de comboios, explosões de minas, cidades inundadas, incendios e roubos celebres, duzentas, trezentas mortes, um supplemento algido d’orphandades, viuvezes e desamparos, obras-primas do bello horrido que a phantasia dos _reporter-yankees_ a meudo exporta para chocar os nervos lassos da velha Europa, faziam nas duas pobres senhoras impressão fulminante. Arthur lia o caso, e abaladas, dando exclamações em volta d’elle, mãe e filha commentavam o desastre choramigando, fazendo hypotheses, phantasiando promenores. A mãe, parando de costurar, calculava: —Trezentas pessoas mortas, vamos que duzentas eram casadas, e cento e cincoenta tinham filhos... Cento e cincoenta orphãos, já nós cá temos! Nome de Maria! Agora, dêmos cem pessoas a mais de um filho... Onde esta desgraça vae parar! As pessoas a quem estas victimas protegessem, parentes velhos, pobresinhos de porta, creados antigos, empregados das suas lojas... sim, porque haviam ter seu commercio, a sua vida... e ahi fica tudo ao desamparo...—seguia-se um grande suspiro—Ai! ai! Este mundo, bem pensando... E para mais, em sexta-feira! Emquanto uns riem, outros choram.—E já não dormia bem aquella noite. Em que afflicções se veriam os desgraçadinhos por aguas do mar? E que pensariam elles n’aquella hora? Por vezes Arthur surprehendia-se tambem commovido, porque interessado no contraste d’aquella simplicidade ingenua e sincera, pouco a pouco, sem n’isso reparar, ia sendo por ella dominado. O sentimento de quasi paternidade que lhe vinha ao pé de Judith, revelava-o elle nos presentes que lhe fazia, medalhões com baixos-relevos de Virgens e Christos, beniterios de espaldares rendilhados, albuns de aquarella e carvões de paizagem, flôres, quinquilharias e até ninhos, dos passaros que nidificavam nos grandes platanos do quintal. Nunca se esqueceria da ineffavel frescura de lagrimas que sentira no peito, a vez que indo vêl-a com uma grande rosa branca, toda orvalhada, ella viera com uns geitinhos infantis tirar-lh’a muito delicadamente, emquanto os seus olhos claros scintillavam. E desfolhando a rosa com os dentes, petala por petala, fôra-a comendo com a especie de gula voluptuosa com que os canarios debicam folhas d’alface, e tendo sempre os ardentes olhos pregados n’elle. Todas as manhãs ao erguer, Arthur fazia a sua hora de gymnastica revigorante, preparatoria dos trabalhos do dia. Começava com vinte kilos em cada braço, ia d’alli aos saltos elasticos sobre pranchões fixados a variadas alturas, depois fazia as distensões, torsões e suspensões do trapesio, acabando no _moinho_, grande trabalho de destreza, que exige olho fino, corpo d’aço e precisão de mathematico. Da janella, se acontecia estar levantada, Judith dava gritos de susto, pedia-lhe para suspender os trabalhos, ameaçando-o ficar de mal com elle, se proseguisse. Arthur socegava-a com palavras de valentia, intimamente lisonjeado ao menor dos seus gritinhos hystericos—e se na janella do sotão as lentes do Albano brilhavam, era uma festa entre os tres. O habito de tecer mundos de chimera e bizarrias d’espirito onde residir a maior parte do anno, dava ao estudante a mais completa indifferença, ou apenas alguma ligeira attenção, para as coisas triviaes que lhe giravam á roda. A familia merecia-lhe uma especie de benevolencia, sem effusões nem longos entretenimentos; para designar as duas senhoras dizia—_as mulherzinhas, lá em casa_; e apenas ás horas da comida, nas preguiças depois do jantar, se demorava a conversar um pouco em coisas que lhe não inspiravam interesse, e deixava correr para o não acharem antipathico. Quasi sempre as suas palavras eram breves n’esses cavacos domesticos, sim, não, está visto, está claro; ou aquelle interminavel—Bem bom! Bem bom! que servia para exprimir tudo, tedio, satisfação interior, fome, desgosto de viver, necessidades de fazer a barba, e assim. Para se não dar ao trabalho de explicar um ponto controverso, estava sempre d’accordo no que a mãe e a irmã diziam. Por vezes fazia á mesa silencios de pensador, sorvia a sopa bruscamente, cortava os pedaços n’uma gravidade de sabio, cabeça baixa, camarinhas de suor no coronal marbreado de calva. Jámais n’esses momentos, ellas lhe interrompiam a meditação, o jantar corria triste. Tinham-se affeito áquella reserva de velho juiz as duas senhoras, e já não estranhavam. A mãe vendo-o calado, pensava no marido que fôra assim toda a vida, macilento, sorvido, com os seus oculos verdes, nevralgias singulares, e cheio de excentricidades. E Judith amava o irmão como um avô, vendo-o sempre benevolo apesar de casmurro, dedicado no fundo, e com pequeninos presentes de quando em quando. Por vezes, os olhos d’elle sondavam-na por cima dos oculos com sollicitudes antigas, n’uma satisfação de a verem galante, com a sua bata de rendas cingida á cintura fina. E as duas foram-lhe descobrindo virtudes tocantes, uma virgindade de gostos, traços de caracter generoso, e pieguices mascaradas n’aquella selvageria. Levava noites a traduzir romances por uma miseria, no intento d’augmentar a modesta renda de que vivia a familia, afim de nada faltar em casa. Nos dias de annos, começos de estação, ou pelas festas, calado sempre, com a sua nisa parda de seis annos, uma corrente de latão no relogio, descia alta noite em meias, do seu antro de doutor Fausto, quando ellas dormiam; e como a boa fada do Natal deixava-lhes á porta dos quartos, na mesa de jantar, sobre cabides, ou nas mais reconditas gavetas do guarda-vestidos, pequenas peças de _toilette_, quinquilharias namoradas semanas e semanas n’uma _vitrine_, regateadas, ambicionadas, e por fim adquiridas com a feria, que aos sabbados recebia pelos fasciculos traduzidos. Furtava-se então aos prazeres da surpreza, aos agradecimentos e aos beijos, sahindo logo de manhã como um ladrão. Bem bom! Bem bom! Porque o seu odio pelas effusões domesticas, pelas ternuras choramigadas, ia á ferocidade. Certas _calineries_ de paes para filhos e irmãos para irmãs, envergonhavam-no; nunca tinha dado um beijo; e comsigo mesmo, considerando as femeas, vinham-lhe honestidades de Antonio entre as bacchanaes nocturnas da Thebaida. A rabeca porém era o seu confidente linguareiro, que tudo ia contar, exprimir, soluçar. E o que ella dizia d’esse magricella envelhecido, que doçuras de temperamento lhe sondava, que profunda bondade punha em jogo, que frescura interior deixava vêr, e que indomavel paixão de juventude! Do quintal, Arthur e quem estava, applaudiam deslumbrados; Judith tinha soluços nervosos, toda vibrante na emoção magnetica d’um arco assim movido; Albano apenas, impassivel, limpando a calva apostolica, bem bom! bem bom! sorria um pouco do successo. Percebera elle o que se estava passando entre a irmã e o artista. E com um certo riso fazia reservas prudentes, ficando calculadamente a distancia d’aquellas expansões. A rabeca sómente, nas passagens idyllicas de Judith com o esculptor, por Albano adivinhadas ou surprehendidas, ousava em surdina fazer o seu commentario ironico, e dar o seu parecer disfarçado, traduzindo pela vibração chorosa ou risonha, o pensamento occulto do rabequista. As conversas de Judith mais o esculptor, ella da janella, elle do quintal, eram o que ha de primitivo em arte de amar. —Bons dias, que lindo tempo hoje, não está? —Está, dizia elle. —Rico para um passeio ao campo. —Eu gostava mais no rio. —Podia virar-se o bote... E Judith fazia um adoravel gesto de medo. Tornava o Arthur: —Então o nosso homem, inda dorme? —Qual! Foi para a escóla já. —E a visinha nunca sahe d’ahi... —Muito pouco! Com esta vista da janella, é como se todos os dias andasse duas leguas de campo. Ou derivavam no eterno motivo: —Ora veja como vão adiantadas as obras da avenida! —Ah, muito! Ainda hontem a casa amarella, acolá adeante, estava em pé, e só lá vejo agora as paredes das lojas. O esculptor punha-se a explicar a avenida, dizia o golpe de vista decorativo de quando ella fosse cheia de construcções, o palacio de crystal com as suas naves radiando da rotunda em cupula, torres nos angulos com janellas de balaustres marmoreos, arvores de sombra, palacios de mil architecturas, bazares scintillantes, estatuas e jogos d’agua... —Para esse tempo, dizia Judith fazendo olhos tristes, já não sou viva, que pena! Arthur phantasiava-lhe a brincar destinos de princeza, ter palacio entre parques, desenhado por Garnier, um _coupé_ tirado por cavallos brancos, um marido conde, que fosse loiro e a adorasse, e primeira ordem em S. Carlos. Vêl-a-hia atravessar a cidade em _landeau_, na primavera, ás tres horas, sob a tepidez d’um ceu amoroso, toda setim malva e plumas brancas, sem fazer caso dos cumprimentos d’um pobre artista como elle. Ella ria com esforço áquella ingratidão phantasiada, com um oh! de creança resentida. Apoiando no parapeito as mãosinhas brancas, ia-se debruçando para o vêr melhor; a gotta coral do seu labio tinha momosinhos rubros de quem chora—e calados n’um embevecimento, olhavam-se muito serios, com alguma idéa profunda e nupcial. Coincidia com estas tagarellices dos dois, uma preoccupação de Judith em se fazer senhora. Declarava todos os dias estar mais alta, ir engrossando de quadris. Viera-lhe uma febre de _ménage_, passava dias arrumando, desdobrando roupas, pondo _balayeuse_ nos vestidos usados, marchando como um _I_ para se dar o aspecto imperativo. Todo o seu empenho era representar uma dona de casa; e para isso, como via a mamã fazer, era admiravel desenvolvendo preoccupações, projectos, argucias e pequenos ralhos de cozinha. Viam-na atravessar os quartos com braçados de roupa, muito impertigada, o ar severo, e virar-se de repente a vêr se o vestido ia arrastando. Por não conservar os seus dentes _d’algum dia_, a pobre mamã tinha de comprimir espevitadamente os beiços, para chamar alto. A careta stereotypada nada tinha de captivante; pois assim mesmo Judith a imitava! Com creanças então, que adoravel miniatura de comedia! Judith pretendia adivinhar todos os incommodos ou appetites d’essas pequeninas poeiras, através das birras mais inesperadas. E mil peças, dançava com ellas, erguia-as ao alto esticando os braços, balanceava-as nos joelhos, estava constantemente a penteal-as, a beijal-as, a deital-as como uma Virgem, no regaço, a cantar para que dormissem, a despil-as, a vestil-as, a inventar-lhes incommodos, como pretexto para fazer brilhar as suas habilidades de pequena mamã. Se Arthur estava presente, estes ensaios para esposa eram mil vezes repetidos, exagerados e postos em relevo, n’um sentimento de pedanteria innocente. Por vezes, no meio d’alguma scena difficil, os olhos de Judith levantavam-se sobre o esculptor, havia n’ella um retrahimento de se vêr observada, e ia-se embora de corrida. Todas estas preoccupações se trahiam n’um tom encantador de caricatura, e contemplando-a, a gente pensava com finos prazeres de bric-á-braquista, n’essas figurinhas d’esmalte tão vivas, walsando no oiro das _bonbonnières_, fugaces, illuminadas no galante estylo pastoral do seculo dezoito. Mas não raro era tambem um esquecimento do papel, em meio d’alguma postura mais de proposito composta. Então a creança dava de repente um salto, uma risadita, e quebrado o encanto, reapparecia na sua graça plumosa e ingenua d’ave do paraiso. Os momentos com ella repousavam o artista d’outros fatigantes dias levados na faina de procurar modêlos, fazer moldagens custosas, desbastar a rija constructura dos blocos; e mil attenções postas em bem ferir a estatua esboçada, retocar as coisas miudas da fórma, fremitos de roupas, serpentinado das carnes, todos os pequenos _tics_ d’onde resulta na estatua a volatilisação da vida. N’uma população degenerada por decrepitudes de raça, vicios de grande cidade, privações de pobreza e demasias de trabalho, o esculptor mal achava corpo que valesse a pena copiar. Na sua missão d’artista, em certos dias, era-lhe forçoso então percorrer os centros vitaes da população, os caes, os mercados, os arsenaes, os quarteis, os navios e as fabricas, a buscar entre os pelitrapos e _va-nu-pieds_ do trabalho, as fortes linhas harmonicas dos modêlos. Era assim que se lhe deparava aqui um pé bem lançado e livre, no garoto da rua ou servente de pedreiro; além as espaduas e braços d’Atlas, estriados, membrudos, sob a camisola de lã dos catraeiros côr de cobre; torsos de damnados miguelangescos entre os forjadores das officinas; e traços de Antinos n’uma ou n’outra cara enfarruscada, adolescencias doces de punhos e jarretes, seios e gargantas fulvas como o bronze tonkin; pedaços de natureza nobre, descorrelacionados do resto e esparsos sem ordem nem logica, por figuras vulgares, amortecidas nos excessos da labuta quotidiana. E as difficuldades para trazer ao _atelier_ qualquer d’esses donos de um trecho vivo de esculptura, artimanhas a empregar, longos preludios de explicações, promessas de boa gorgeta, uma canceira atroz de persuasões e engodos! As mulheres escandalisadas do convite, injuriavam-no em pleno mercado, rudes ferreiros riam-se d’elle com chascos; e poucos queriam seguil-o! Alguns ao fim de quatro sessões ou cinco, fatigados de pousar, abalavam e não vinham mais. E Arthur desapacientado, mortificado, nervoso, ulcerado de coleras, destruia o que estava feito, cahindo em longos tedios de ociosidade. * * * * * Arthur vivia como um asceta, sósinho em casa entre as ferramentas de officio, desenhos e gessos classicos, servido por um gallego extraordinario de avareza, e visitado por tres ou quatro amigos de seu pae, que raras vezes appareciam. Aos domingos, se acontecia haver numero, formava-se um chinquilho pacato, em que Albano era parceiro do gallego, contra o Arthur que fazia causa commum com o amigo Flores, _ártista_ pintor. Amigo Flores era o jovial folião, que os francezes já modelaram em caricatura, no zinco dos castiçaes baratos, com a palheta em riste e o seu chapéo de pluma derrubado á banda. Era um sêr filiforme de cara quixotesca, bigodes fluctuantes e pera em cauda de rapoza, alto, republicano e cheio de zumbaias, grande cabelleira ao vento, feltro derrubado, botina torta, e umas taes denguices com damas!... O orgulho da sua arte, forçava-o a attitudes photographicas, mão no peito e uma perna arqueando á frente da outra; ou então descoberto, como quem pousa para a historia, tendo um ar sonhador, os dedos na gaforina que de crespa lhe nimbava a cabeça, olhos em alvo, como a meditar o plano d’um quadro. Quando o contradiziam, amigo Flores tinha a phrase: —Não rebata as minhas asserções! Era um jacobino temeroso, que nunca se cançava em referir os seus esforços pela grande causa. Tomando a pera nos longos dedos d’esqueleto, fazia notar: —Quando vier a nossa republica, a sua primeira obra será dar-me um beijo e dizer-me assim, obrigado, querido pae. Em mimicas de sagui, todo esguedelhado á moda romantica, com tremuras d’ebrio e palavras jactitantes, amigo Flores fallava então nos trabalhos dos pretendidos clubs revolucionarios, as soalheiras apanhadas na via dolorosa da propaganda, portas que lhe atiravam ás ventas pelas eleições, mil ingratidões bebidas sem queixa. Fazia arremedos de quem investe o toureiro—Sim, que fallasse Alcantara! E Alcolena, e Ajuda, e essa rapaziada dos Terremotos toda, para contarem do que elle João Maria Guedes Flores, sósinho e solitario, tinha feito e conseguido. Por sua energia se levára a cabo no Pateo da Galé, o famoso comicio de 24, onde Ajuda nas barbas da policia mandada por ordem do _tyranno_, tinha posto as coisas em pratos limpos. E uma data de clubs fundados por elle, o _Mortalha e Onça_ de Alcolena, com duas Liberdades de gesso na sala das sessões, e um realejo alli tocando a Marselheza noite e dia, para arreliar o paço, apre! Se tinham visto o artigo do _Trinta_, todo escamado? Ninguem tinha visto. Arthur pretendia chamal-o pacificamente aos pinceis então, para discretearem antes sobre taboletas de _phantesia_, e bellas gallinheiras da Praça, por uma das quaes, Barbara de Loures, ruiva maritornes que enchia o mercado com os seus uberes de turina, entre raspões de hortaliceiros, o _ártista_ andava morto. Mas Albano queria vêr por força como era feito um jacobino, investigar das conquistas do partido popular, metter sonda na obra da revolução. Que não rebatessem as asserções do homem! E amigo Flores ia dizendo que o rei ficava de cal em o encontrando na rua, o Fontes mesmo pensára em subornal-o, dar-lhe posta afim de lhe calar o bico. E d’uma vez na calçada da Ajuda, ia muito bem, matutando sim senhor, e ouve _pst! pst!_ E volta-se, era D. Fernando fazendo-lhe signaes. Podia hoje estar n’uma posição independente, mas não era como esses pandilhas monarchicos que se vendiam por um logar; preferia seguir as suas ideias, ser fiel á causa do povo. Enchia a bocca de povo, a vontade do povo, a soberania do povo, o veto do povo, o suor e mais excreções do povo. E batendo nos peitos concavos, olho acceso, gambia fina, um ar chimerico de walsa, deixava desconfiar pela attitude que o povo fosse elle, grão senhor d’arraia miuda, chefe dos sediciosos, e vingador futuro de mil torturas soffridas. A cada passo, a sua arenga vinha infectada com essas phrases de _meeting_, tympanicas pela falta de sentido, escorrendo indignações de bacharel faminto, a que os jornalistas vermelhos teem dado voga entre as classes ignorantes, ensinando-lhes a fanfarronada, sem lhes ensinarem coisa melhor. E vinham os direitos do homem, o corpo social, a dignidade humana, as liberdades d’este seculo, tiradas sobre a podridão da corôa, e mil allusões contra o que cada qual fazia por mez... Por vezes, ao atirar da malha contra o paulito do jogo, a vehemencia do _ártista_ era tão soberba, que se ficava n’um panico, á espera de lhe vêr sahir dos bolsos, hordas de federalistas, communistas, todo o arraial d’opprimidos em linha de guerra, brandindo armas, formando barricadas, cantando _Ça ira!_ e roubando lenços d’assoar. Albano mirava-o como um animal curioso, todo grave e compenetrado; e secretamente, como um irmão da seita escarlate, fazia-lhe pequenos signaes de adhesão, applaudia em risinhos, como quem sabe de tudo, na mira de lhe inspirar confiança. Aquelle apoio vehemente, endoidecia o _ártista_, que nos dias de loquela entrava n’uma quantidade de revelações d’alta politica. A coisa marchava! Um trunfo dos republicanos dissera-lhe na redacção do _Facho_: —Dez como vossê, Flores, e a realeza não dura tres semanas! Tinham mesmo chegado a pedir-lhe artigos de fundo, d’aquelles damnados, d’aquelles fortes. A provincia dava-lhe vivas; _Sola e Vira_, um directorio do bairro central, chegára a lançar-lhe nas actas, votos de louvor. Isso lá muito fallado! Abria um riso mysterioso para confessar que havia incredulos que se punham a dizer aos seus botões, a republica está ainda para tarde. Não aconselhava ao povo portuguez aquella falta de confiança nos que andavam á testa do movimento. Já o tinha dito no famoso comicio de 24. Na proxima legislatura, seis é que cantavam na urna. —Seis que? disse Albano. —Mas deputados! Um d’elles, e amigo Flores descia o olhar, nunca acceitaria o mandato de tão illustres irmãos d’armas. —Mas Flores, implorava Albano, mau irmão, acceita por obsequio. —A coisa está séria! dizia Arthur. E a voz de João Maria Guedes Flores, baixava. No _Facho_ pensava-se em comprar o exercito, havia aguardente para adhesões espontaneas... E agora shut! nada de darem á lingua, hein? —Eu cá ouvi fallar n’um subterraneo de polvora até ao paço, segredava Albano tendo primeiro fechado as portas, e lançando ás paredes olhares tresvairados. Amigo Flores recuou theatralmente. —C’os diabos! Mas é a anarchia! Mas vão-se lançar no puro nihilismo! Isso sempre eu temi! A soberania popular não quer sangue!—Mas Albano atropellava revelações com revelações, tendo o _ártista_ seguro por um braço, arquejante, magnetisado, escutando por todos os póros. —E depois, não é tudo, homem. Entrou um navio com armas pela Figueira dentro; Celorico agita-se; Santa Comba diz que não paga; Moita poz barrete phrygio; todo o paiz vae levantar-se como um homem... —Quando? —Ámanhã talvez!... —Bem m’o dizia o Guerra! fez amigo Flores, como se prophecias biblicas viessem de realisar-se. —Quem viver verá as grandes coisas, ponderou Arthur. Inglaterra jámais nos perdoa. E a Russia, a Austria, Hespanha... —Hespanha, disse o _ártista_, com os seus males intestinos... —Infeliz! fez compungidamente o estudante. Mas coragem! Grevy escrevera a Magalhães, dizendo-lhe contassem com elle; havia mesmo umas certas palavras do presidente Grant... Emfim, qualquer manhã, a monarchia acordava pela barra fóra, caminho do desterro. —Pois vou já convocar o _Mortalha e Onça_, clamava possesso amigo Flores, rompendo por essas ruas esbaforido, sem mais querer ouvir. Se concluira alguma obra, convidava toda a gente a ir dar opinião, o Arthur, um porta-machado das suas relações, que lhe servira para modêlo de Herodes n’uma _Degolação de Innocentes_; o gallego avaro, e quando Deus queria, o proprio Albano. Amigo Flores pintava taboletas, frontarias de loja, e casas de jantar de dez palmos, em terceiros andares restaurados. Onde quer que a sua brocha tocasse, a serra de Cintra era certa, com dentaduras do castello dos Mouros, os torreões da Peninha e damas de azul em _pic-nics_ na relva. Se lhe observavam tal destempero n’uma fachada de talho ou tabacaria, amigo Flores tirava altivamente o seu feltro, esbandalhava a trunfa com os dedos de esqueleto... —Não rebata as minhas asserções! E a liberdade com que advertia o esculptor das incorrecções de cinzel, a fereza supraciliar com que o chamava de parte para lhe dizer que aquelle pé, alli, não estava a seu gosto; os modos de velho mestre com que lhe rendia elogios, dando-lhe conselhos, que fosse indo, nada de desalentar, e trabalhasse para ser um _ártista_!... Porque no intuito de reconfortar esse talento de rapaz na sombra, pretendia impôr-se como exemplo de lucta, afinal triumphante. —O caso é, trauteava elle afiambrando a perna, que cheguei á verdade e tenho hoje côr. Custou, mas posso orgulhar-me, venci. Homem, basta um caso—tal campo d’alfaces pintei a fresco n’um retiro de Rio Mouro, que todas as manhãs n’aquella casa, é um poder do mundo de grillos! Arthur ria benevolamente, dava-lhe cigarros, ia jantar com elle ás hortas nos dias bonitos. Mas o estudante não o podia aturar, mesmo ganas de lhe remendar os fundilhos com lama da bota direita. E encontrando-o donairosamente na rua a cahir das calcitas amarellas, e cambando a bota de joanetes pelintras, passava de largo acenando-lhe com a cabeça calva. —Vivendo, obrigado. Inda não rebentou o subterraneo de polvora, paciencia! Mas bem bom, a coisa marcha. Saudinha.—E virava a esquina, concertando os oculos. * * * * * Uma tarde, flanava Arthur por entre as boscagens do Campo Grande, fumando cachimbo n’uma d’aquellas indolencias d’artista, que abrem lenitivo no meio dos grandes trabalhos, quando ao virar d’uma alea, deu de cara com Albano que trazia um ramo enorme de rosas. Havia talvez quatro noites que o bohemio não vinha á _brasserie_, coisa de espantar o esculptor, affeito como estava á regularidade desesperante do companheiro. —Mas que florido elle vem, que primaveril! disse Arthur com grandes expansões. Farçante! Vem perpetrar _bouquets_ fóra de portas, para ninguem suspeitar dos amores em que anda enredado.... Albano ficou a desempoeirar com o lenço, as incommensuraveis botas de duas solas em que velejava. E disse: —Fui-me vêr um homemzinho áquella quinta, que passa a vida cultivando rosas. Typo curioso de velhote, amador de boas loiças, todo requintado, hei de apresentar-te. Imagina que tudo é do seculo passado em casa d’elle, mobilia, porcelanas, creados, musica, até os gatos. Mas boa gente! Então carregam-me sempre de rosas. Repara que vem aqui soberbos exemplares, hein? E elle, uma paciencia!... Sorvia o perfume das flôres uma por uma, dando pequeninas aspirações sem contacto nas petalas, saltitando d’esta para aquella, como se andasse a educar uma pituitaria intelligente, afim de extremar gradações n’um mesmo perfume subtil. As rosas eram deslumbrantes na verdade, pelo tamanho, pela côr, pelo capricho das volutas petalares, exquisitas _nuances_ de tecido, e caricioso setim dos ninhos interiores, descerrados como escrinios de duqueza ao peso das gottas d’agua que a manhã, boa amiga, lhes chorára no seio ao passar. As escarlates eram colossaes como dhalias, d’um funebre velludo se olhadas de través, com manchas de pellucia cereja destacando das convexidades á luz, e longinquos perfumes onde a narina se embotava e perdia. Uma graça aristocratica idealisava as amarellas, perfumadas de violeta e chá hysson, côr de gemma nos seios, e com petalas quebrando polyedro á volta dos estames, velados n’uma cupula trifoliar de pequeninas peças. E as brancas então, que virginaes!... Pareciam esgotar-se em esforços, ainda as mais abertas, para conservarem fórmas pudicas de botão. E retrahindo-se, tinham castidades de rapariga nua, que depois do banho, toda em perolas d’agua, contra si mesma se cerra, e defende e furta ao amor mythologico dos cysnes. No coração d’essas maravilhosas Ophelias, arfavam roseos tons de carne viva, ondulações molles de femea, e immaculadas frescuras de adolescencia loira, dirieis uma _coquetterie_ de donzella ao apear no primeiro baile. Arthur ia cortar uma das brancas, quando o estudante detendo-lhe os dedos, disse bruscamente: —Essa não. A outra escarlate é mais bonita, corta. Mas Arthur preferia aquella branca, qualquer outra, não se importava, mas branca. Não havia de ir pela rua com um paspalhão côr de baeta na botoeira. Albano porem, insistia birrento: —Corta uma amarella, dizia elle, leva duas mesmo, ess’outra vermelho-esmaiado, mas nas brancas não toques. Arthur teimando a querer uma rosa branca, perguntava-lhe rindo: —Trata-se de entretecer corôa mystica para alguma irmã hospitaleira da tua paixão? Mas que extraordinario scelerado! Houve mesmo uma lucta entre os dois. —Larga! implorava Albano. Tenho apenas seis rosas brancas. Uma que leves faz falta. —Mas porque essa avareza?—E o esculptor a insistir, a não largar! Albano vencido, tomou-lhe o braço, mas sem deixar cortar a rosa. Era o cahir da tarde, foram conversando em direitura ás portas, já o sol amarellecia nas arvores. —Homem, disse Albano, pondo o lenço em torno ao pé das suas preciosas flores, é que se dá uma coisa singular. —Por exemplo? fez Arthur como quem se não deixará embair. —Não me dirás, porque é que pondo nós hombro a hombro de todos os sêres que nos são uteis, um medico que lhes vigia os menores actos, desde que nascem até que morrem, não dispendemos eguaes cuidados no que toca á nossa propria conservação? Por mil sabios artificios de cruzamento e alimentação, chegamos a conglobar n’um cavallo as qualidades de força, elegancia, ligeireza e bravura, que separadamente faziam as caracteristicas de muitas castas diversas. Ha botanicos que se esgotam a procurar em flôres, em tuberculos e fructos, os effeitos de coloração e turgecencia mais inesperados. Conheces a lenda das tulipas azues, tens já visto peras de seis kilos, sabes d’aquella casta ingleza de bois quasi exclusivamente feitos de musculo, e não te são estranhas por certo essas maravilhosas aristocracias de cães, pombos viajantes e animaes ferozes convertidos á domesticidade, traduzindo o resultado de dezenas e mesmo centenas d’annos, da tenacidade e sciencia do homem. Pois emquanto dos typos estancados, das fórmas envelhecidas, e da nutrição quasi morta, fazemos jorrar impetos de seiva nova, forjamos modêlos viris de raça, e nucleos de mundo capazes de viverem outra eternidade, nunca pensámos seriamente em restaurar, decrepitas gentes que somos, a pobre familia humana, pelo mesmo processo por que depuramos um cavallo, uma tulipa, ou crystallisamos artificialmente um diamante. —Os elementos de ensaio tão passivos abaixo de nós, não offerecem a mesma docilidade no bicho homem, disse Arthur, e o estudante encolheu os hombros sem se importar com isso. —Resulta que a depauperação dos sangues, a senilidade dos corpos, e envilecimento consequente de tudo aquillo que originava força, andam tão horrivelmente adiantados, que em breves seculos meia familia greco-latina ter-se-ha extinguido inteiramente. Por agora desapparecem familias e classes; mais tarde irão na voragem nações e povos inteiros, pela immobilidade das allianças e acção corrosiva das aptidões morbidas, que todos os dias engrossam de numero e violencia. Já olhaste bem Lisboa? Vale a pena como estudo de monstruosidade. Por cem mil habitantes, trezentas mil enfermidades, tres enfermidades por habitante. Velhas molestias do tempo das Conquistas, trazidas de todo o mundo em despojo de vassallagem, copulando ha quatro seculos através da nossa pobre raça, teem gerado uma tropa extravagante de males que pullulam com vida propria, divergindo conforme a cachexia do tronco que apodrentam, multiplicando-se, resistindo á therapeutica, disfarçando as suas operações, indo a degenerar por graus e descobrindo n’uma recahida, a guela hiante das baterias, dando cabo de nós com tanta elegancia, tão scientifica, tão precisa, tão artistica, tão mathematicamente, que achamos graça á partida, e ao carrasco sorrimos de gratidão, no ultimo alento. Todos os annos esta aprazivel cidade brinda os seus habitantes com uma febre nova, e á similhança das publicações com gravuras, que distribuem chromos no fim dos volumes, anda ella preparando para d’aqui a tempos tambem, a sua febre colorida, venho a dizer amarella. Em doenças nervosas, vê tu a inesgotavel variedade e a exhuberancia de padrões! É tudo que vae do tic nervoso, tão patusco, as convulsões macabras da eclampsia. O divertido é então approximar duas affecções pelos reophoros, isto é, um macho e uma femea, para depois ir estudando a incommensuravel progenie resultante. Conforme estatisticas, Lisboa tem hoje por este processo dez vezes mais doidos que pessoas de siso, e mais ha quem chame idiotia ao siso d’essas pessoas. —Exige-se em resumo que o medico intervenha, vamos, disse Arthur que não tinha prestado attenção. —Tal qual! affirmou o estudante. Hygiene em scena, para refazer o homem senil, couraçal-o n’uma energia d’aço, estriar-lhe musculos, engrossar-lhe os ossos, agigantar-lhe a estatura, e pôr-lhe o cerebro alli bem lucido. As exhuberancias da saude fal-o-hão moralmente grande, sagaz e leve, com o sentimento viril da honra, susceptibilidades no brio, benevolencias para os fracos, e olho vivo para descortinar ao longe os perigos. Emfim, hygiene, para garantir o futuro do mundo. Até aqui os governos tem posto cada miseravel que nasce, entre o padre e o cabo de policia. O padre faz d’elle um idiota e um cobarde—o cabo de policia reverte a coisa que fica n’um contribuinte. Precisamos mandar á tabúa o reverendo, e pôr a distancia o esbirro; depois do que, o medico dará o braço ao misero explorado, para lhe ensinar a ser um homem. Constituido em dictador, o medico crearia a phalange lacedemonica da Hellade, adaptada á vida moderna, prescrevendo aos fortes o programma d’educação de Gargantua, e pondo o resto em tratamento. —Esse resto, por signal que te havia dar cuidados, disse Arthur bocejando. —Não conseguiria talvez regenerar engoiados, mas havia de pôr embargos á propagação dos aleijões e contagio dos virus. Antes de lançar o que chamam tributo de sangue, a lei diz ao conscrito: despe-te! Eis o que eu faria tambem, antes de dar ingresso na vida social a qualquer trocatintas. —Vago, disse o artista. Em conclusão, pareces-te diabolicamente com o menos fluente dos parlamentares que achincalhas. Escusas de proseguir, sei o que vaes dizer—e foi volubilmente arengando—que o problema era fazer sabios em hercules; d’ahi para cima não custava crear sociedades modêlos. Admittamos! Uma vez extremados os fracos dos fortes, creada a tal guarda lacedemonica com o seu espirito de casta assente na força e no saber, urgia só pôr de observação os sêres inferiores, para lhes extrahir pacientemente, as parcellas de utilidade que os desalmados tivessem a habilidade de dar. A vêr como? Vigiando de perto esse burgo suspeito, como a Judeia vigiava os leprosos. Fazendo essas entidades mortificadas voltar pela descendencia ás fórmas modêlos, que a hygiene houvesse imposto em craveira, antes de conferir diplomas de cidadão a alguem. Oh! dirias tu, nada mais simples de conseguir. A sciencia é muito explicita n’este ponto. E citarias apparatosamente. Se por um lado, os principios morbidos de dois sêres que procriam, vão multiplicar-se no feto e não sommar-se; por outro, os elementos morbidos de qualquer dos progenitores pouca preponderancia alcançarão na progenie, se o progenitor restante possuir em excesso perfeições, que por hereditariedade fossem capazes de neutralisar a doentia acção d’aquelles elementos. Seguir-se-hiam exemplos tirados de fontes insuspeitas e puras. Conta Chiara que M.elle X, 38 annos... O grande Perroud constata que n’um logar dos Alpes, um _couple_ da melhor saude... E mais o doutor este, e alienistas, hygienistas, facultativos militares, um pandemonio de principes da medicina! Podias mesmo aproveitar de Balzac, trechos arrancados á Physiologia do Casamento, sobre o instincto da mulher procurar marido nos temperamentos oppostos ao seu, a sua habilidade genetica de corrigir nos filhos a saude dos paes, e certos vicios mesmo de conformatura, a menos que se não trate de qualidades exclusivas ao homem, como fórmas d’esqueleto, estreitura nas cadeiras, pernas direitas, força muscular, coragem... E para cortejo, sendo preciso, versos de Horacio espremidos no proposito de escorrerem fulminantes conceitos sobre os maus cruzamentos, nebulosas do Hamlet ditas a Ophelia no mesmo sentido, emfim a cavalgata de logares communs que os eruditos gostam de vêr piaffar nas memorias e conferencias. —Bem bom! dizia Albano, bem bom! —D’aqui, um mundo de leis a catalogar para uso dos _vauriens_ do teu lazareto. Exemplos. Quanto germina, quer solo estrangeiro. Brada aos ceus propagar monstros, até as artes soffrem com isso. Assim, ordenarias pelas allianças, grandes transfusões de sangue primitivo, rutilante, fecundo em ímpetos. Angariar colonos nas boas raças estranhas e novas, magnificos escocezes de seis e sete pés, camponios do Wurtemberg, lombardos e tyrolezes filhos dos colossaes modêlos de Buonaroti e Bandinelli, e negralhões do Cabo, que tu affirmas serem brancos engraxados, por birra de fazer divergir, na fachada ao menos, a civilisação africana das mais. E punir de morte casamentos entre primos ou individuos com elemento anatomico do mesmo signal, já que de constituições identicas só brotam degenerados e monstros. Nervoso que desposasse nervosa, zás! cabeça fóra. Primo que aza arrastasse á prima, costa d’Africa com elle, não é verdade? Mas, notou Arthur com modulações comicas de phrase, palavra de honra que não vejo em tudo isto, coisa que justifique a tua ignobil avareza de rosas brancas para um velho amigo, que tem por essas maravilhosas flores uma fraqueza das mais irresistiveis. Calculaste mal, meu velho! A divagação de hygiene não deu para me engodares até casa, e eu não vou d’aqui com a lapella desmobilada. Uma rosa, vá! —Meu pae, proseguiu tranquillamente o estudante parecendo não ter ouvido o que o esculptor dissera, era um nervoso de humor oscillante, cheio de feítios bizarros, susceptivel d’estomago, vivendo de palpitações bruscas, e com dias de não fallar a ninguem. Confesso-te que me custava a soffrer ás vezes, pobre homem! Então repentes, um domingo rasgou o papel da sala, escarlate, porque diz que lhe estava a arrancar os olhos por dentro do craneo, e eram dôres horriveis. Superficies polidas, muito vastas, allucinavam-n’o, punha-se aos gritos, inteiriçado n’uma convulsão; e em cincoenta annos de vivo não foi senhor de correr a mão por velludo, que a syncope logo o não castigasse. Só a musica domava esses estados, cahia em somnolencias, lingua traçada, era atroz! Quanto a minha mãe, é a mulherzinha que tu sabes, semanas inteiras preoccupada com as mentiras lugubres dos jornaes, chorando o infortunio de toda a gataria dos visinhos, psalmejando rezas nos dias aziagos, e não comendo carne por ser crime matar animaesinhos de Deus. Accrescenta a isto irritabilidades e niquices do mais doloroso hysterismo, explicadas sempre pelo que a superstição tem de mais phantasmagorico no sacco; terás a pobre senhora! Ouve agora a descendencia d’este casal singular: entre a Judith e eu, viram a luz tres pimpolhos. Um que morreu á nascença; outro surdo-mudo, com uma cabeça medonha, esteve doze annos n’um grande berço de verga, até que se foi. Mas o terceiro está vivo e escorreito, e vae deitando um corpo! Por exemplo, fez dezeseis annos hoje. Vemol-o tres vezes por semana, pódes vir comnosco um dia, é aqui perto... Estavam a meio da avenida Estephania, escurecera—e corriam terras de cada banda, alteando aqui, socavando alem, esfumadas n’um vapor sepulchral que o gaz estrellejava. Á esquerda, na planura que declina cingida em altos gradeamentos, como iam entrando na cidade, viram a mole do hospital Estephania boquiaberta de janellas, flambar por dentro a vida lugubre da enfermaria, como um Molloch punico, digerindo ao rubro algum sacrificio humano. Da direita era um muro de hospicio, fechando terrenos carcomidos, onde muito para lá, na impassivel sombra, um gigantesco dado dormia. N’isto vieram de lá grandes vozes de clamor, elles tinham-se parado a ouvir. Eram cantigas n’um tom destoado, arrastando-se, esguichando em uivos, rouquejos sanguisedentos, brados de gente que pede soccorro, e esse rir imitando o rir humano, sardonico mas inconsciente, que faz arripiar os cabellos. Arthur surprehendido, perguntou que seria. —São as jaulas de Rilhafolles, disse Albano, é talvez meu irmão a festejar os dezoito. Deixei-o agitado hontem, o director mesmo fallou em lhe reprimir as vivacidades com um certo collete, que me parece ter grandes sympathias na casa. É a primeira vez que lh’o vestem. Nem admira, a gente está em uso de estreiar fato novo pelos anniversarios. Elle põe um bello collete. Bem bom! pobre rapaz, bem bom! —Que? Está além doido? disse o outro. —Sim, fez com uma affectação de indifferença o estudante; mas ha já tempos, tanto que nos acostumámos. O vaidoso persuadiu-se uma occasião que era el-rei D. Diniz, e ateimava que era, e partia tudo apesar de o acreditarmos; d’uma vez lá em casa, teve uma furia que ia estrangulando as mulherzinhas. De então para cá, essas convicções teem descido com o hospital. Agora imaginando-se milho, foge das gallinhas para não ser tragado. Mas cuido que as metempsicoses não param aqui, porque se declara amphora de vidro, chá preto, uma infinidade de coisas, conforme as luas. Ora não me chamarás orgulhoso, ouvindo da minha propria bocca que sou o filho mais bem conformado de meus paes. Olha bem p’ra mim, tens por amigo um velho de nascença. Quanto a minha irmã...—Arthur pozera-se pallido, e por seu lado Albano mirava cuidadosamente o esplendido ramo de rosas. —Essa tem saude, ao menos, aventurou o esculptor. —Saude! Terá; o certo é que fazemos prodigios todas as manhãs, para ella tomar uma chicara de leite e dois biscoitos. Porque nunca tem vontade de comer, nunca!—Mas logo, mas ao jantar, mas eu não posso, mas se me faz mal; um desespero, homem! A outra mulherzinha chora, e eu alli feito carrasco, para ella ter medo e almoçar. Hein? Se elles me vissem a metter pedacinhos de biscoito pelo bico do canario a dentro... —Que ha de a gente fazer, disse Arthur. —Sim, tornou Albano, toma-se amor a estas bagatellas, por mais que se não queira. A Judith, tu não imaginas, pesa tanto como uma penna. Depois seccuras sempre, noites de ficar anichada n’um capote meu, ao pé da mãe, com medos de tudo. E allucinações então, não se falla. Enfia altas horas pelo quarto da outra, por um estalo que ouviu no sobrado, os olhos do gato ás escuras, qualquer badalada na Estrella; precocidades, umas melancolias que eu nem sei... São os paes conspirando no sangue para darem com ella na cova, como acabaram com os outros! E ahi está no que dão allianças degeneradas. Aquillo vae-se definhando, definhando, e verás que me morre um dia, ámanhã, sei lá, quando mal me descuide... —Diabo, disse Arthur fazendo ares joviaes para lhe afastar os maus sonhos, estás lugubre como um cangalheiro. Sabes lá que vae succeder, sabes lá nada! Ora fallemos d’esse ramo de rosas que evitas como um escolho de palestra, e eu persisto em não largar. Desde que nos encontrámos, te fiz saber que não passaria sem uma grande rosa branca esta noite. Tens cinco minutos, vá! —Ah, sim, as rosas, tornou o estudante. Aquillo é antes um insecto que uma rapariga, não queres saber? Vive de rosas. —Todas as raparigas vivem de flôres, mais ou menos. —Effeitos poeticos no caso! Com a differença que a Judith mastiga n’ellas, engole-as, suga-as com um deleite inexprimivel. É mesmo o unico prato para que não perdeu o appetite. Isto de pequenina; mas o vicio tem ido a crescer. Talvez lhe evitem hemoptyses, por isso lh’as deixo comer: tudo tem as suas compensações. Desde que está nubente, nos periodos criticos, sabes, certos dias de raleira, ou em tendo febre, aquillo torna-se n’uma sofreguidão feroz, uma voluptuosidade de larva horticola, e põe-se a devorar cabazes de rosas como uma esfomeada. Em casa fazemos provisões, deves ter notado. Por exemplo, nunca ficamos sem ellas de noite. É como quem sustenta um passaro. Mas custa caro esse luxo excentrico. Por vezes o mercado está exhausto. Immediações de bailes ricos, ou vesperas de dia santo, pedem um dinheirão por meia duzia de flôres fanadas. Então a mãe vem dizer-me: se fosses vêr os Fonsecas, eram velhos amigos de teu pae, inda assim não estejam doentes... E ahi venho em peregrinagem á quinta do meu amigo do seculo passado, aturar-lhe as manias, ouvil-o sobre porcelanas, familia rosa, familia verde, as cinco côres de Ming, e revestiduras _craquelées_, e as cascas d’ovo, e _potiches_ du Barry, e um labyrintho de classificações, de fôrmas extravagantes, de fabricas, de seculos e biographias de fabricantes celebres, de fazerem bocejar o mais authentico christão. Então pergunto pelas collecções de roseiras, fallo do tempo que faz, finjo interessar-me todo em coisas de jardim, aterro-me das bichas-cadellas comerem os pobres botõesinhos novos, digo especies ao acaso...—E a Judithzinha, quer saber a velha Fonseca, inda gosta muito de rosas?—Oh, sempre!—Fonseca, o teu braço, diz a boa matrona. Ouves? Inda gosta muito, pobre menina! Vá, mandemos-lhe um bom ramo, que fazem as rosas n’essas roseiras?—E os dois adeante, ajoujados como quando eram novos, borboleteando pelas ruas da quinta, parando em frente das roseiras mais raras, colhem, colhem.—Se eu tivesse uma filha! medita em voz alta a velha n’um suspiro esteril, e o Fonseca todo risonho vae-lhe dizendo que aguarde, tudo póde ser... Ella tem o seu riso doloroso de senhora só, e pondo-lhe no hombro, coquettemente ainda, a touquinha branca, muito florida de laços roxos, diz-lhe n’uma censura amigavel:—Promessas sempre tu tiveste. Mas só promessas, grande mau!—E trago de lá um soberbo braçado de rosas frescas, com muitos beijos e muitos recados para as mulherzinhas, chova ou vente, seja inverno ou seja verão. Que diabo, não te rirás, mas fico contente comigo, parece que ganhei o meu dia. A gente tem pieguices tambem, uma ou outra vez. Judith terá hoje uma bella ceia. Bem bom! Judith vae regalar-se por dois dias com as melhores rosas de Portugal. Até me ponho somitego, todas as rosas me parecem poucas para ella.—E pondo-lhe o ramo deante: vá, corta a tua rosa branca, a Judith é mesmo uma perdição que tem pelas brancas. Eu até faço experiencias. Quando ella fica uns dias sem rosas, appareço-lhe com uma no casaco, casualidade, assim como não tendo feito reparo. Nos primeiros momentos desvia os olhos, conversamos, vou-me demorando, porque assim, porque assado, e vejo-a erguel-os de repente sobre a flôr, scintillantes de gula; ora experimenta um dia! A palestra vae sobre mil coisas pueris, e ella agitada já, a não estar dois segundos no mesmo ponto, a piscar as palpebras com os primeiros symptomas d’uma fascinação quasi toxica. Quer então abalar desgostada, sabendo que estou alli para a vêr debater-se nos seus nervos, mas a rosa é mais forte que ella, muito mais, muito mais. E vem tocal-a com piparotes amaveis, vae, vem, anda á roda de mim borboleteando, a fingir que está bem, e a rosa lhe não deu mau olhado. Repara-lhe nos olhos, de coisas medonhas que dizem, voracidades, furias, todos irritados de fluido, lampejantes, dando punhaladas na flôr! Mas a rosa vence-a, pobre Judith, vence-a de todo, e vem tirar-m’a da casa subtilmente, põe-se a cortar-lhe as petalas ás dentadinhas: está prompta! Depois o paladar mais scientifico, um sentimento da equivalencia sensorial nos varios sentidos... Dás-lhe uma rosa ás escuras, ella mastiga-a, e diz-te logo a côr que era, o grupo que a flôr marcava n’alguma grande familia, tudo. Mas morre, verás, aquillo morre. Fortunas minhas! Nem de rosas se póde viver, que eu saiba. Enfim, disse elle estendendo o ramo para Arthur, tira lá uma, tira. —Não, fez o esculptor bruscamente. —És tolo, gritou Albano, corta essa tal rosa branca, vão muitas aqui para a ceia d’ella. —Palavra que não quero, insistiu Arthur. Era graça, gosto lá de flôres! Albano teve um riso nos cantos da bocca, disse bem bom! bem bom! no entono de quem fica rosnando, e foram subindo a Alegria caminho de casa. O esculptor marchava distrahido, um pouco atraz do companheiro, mãos nos bolsos, cachimbo apagado, absorto n’aquella doentia singularidade de Judith comer rosas, tão extraordinaria, ligeira, graciosa e poetica, que dirieis um episodio de lenda mystica, pintado por algum veneziano da edade gothica, em fundo de oiro byzantino. Pela mente do artista alava-se essa vaporosa e singular creança, como o colibri mais ligeiro e a borboleta mais velludosa, na metamorphose do insecto que espaneja pedrarias das azas, e no perfume dos calices orvalha a bocca em sede. Sob a algidez d’um raio de lua, vel-a-hia volitar de cabellos esmanchados pelos rosaes do paraiso, entre flocos de neve, levada no rythmo das walsas do _Freyschutz_, toda pallida n’um sudario luminoso, e com a belleza morta d’essa Mathilde que o Dante evoca trazendo flôres no regaço, dolorosa e vaga, nos tercetos do _Purgatorio_. Adejaria entre rosas, pousando os labios na viva caricia d’esses corações vegetaes, toda banhada n’um rosicler de pureza infinita. E a cada passo, bemfazejas e candidas, ondulariam flôres em saudações amorosas, supplicando a esmola d’ella as colher na passagem. Junquilhos haviam talvez bordar-lhe grinaldas de noivado, na fimbria austera da tunica; lilazes e jasmins de neve viriam pelos seus cabellos rolar, na audacia de lhe sorverem os celestes perfumes; lirios brancos e palmas lhe brotariam do peito immaculado; humildes floritas viriam adoral-a á flôr das relvas, para morrer sob os seus pés, depois de lhe haverem beijado as frias mãos d’estatuela, admiraveis e brancas. E esquecendo as mais flôres, sempre preferindo as rosas, indo por entre ellas n’uma via lactea de perfumes, e colhendo-as com dolencias musicas de gestos, para encher regaçadas, coroar a fronte, ou debical-as uma a uma, com a sua graça d’insecto, Judith iria atravez os interminaveis jardins da bemaventurança, serenamente, ligeiramente, transfigurada n’uma expressão divina de repouso, plastica e impalpavel a um tempo, no manso vôo espiritualisado e extatico d’uma Assumpção do Veronezo, sempre, sempre... * * * * * Entanto chegavam á porta do Albano, que disse ao esculptor para subir. Mas passava de nove horas, Arthur vinha um pouco fatigado, e separaram-se. Seguia o esculptor caminho de casa n’uma prostração doentia, cabisbaixo e lento, quando ao voltar da rua esbarrondou com um par amoroso, que ao rez das paredes, buscando o auxilio immoral das sombras, velejava cochichando no melhor aconchego. Casualmente Arthur voltara-se, e pôde vêr uma grande dona de saias bufantes, em passo de carga, dando o braço a um louva-a-Deus de grenha espessa. —Eh Flores! fez elle sobre o par que se ia escamugindo já por uma travessinha mais aphrodisiaca. Eh Flores!—E como o par fazia não ouvir, e Arthur necessitava de fallar ao _ártista_, foi-lhe na esteira com grandes brados—Eh Flores! Eh Flores! Monteado por tão insolita maneira o jacobino fez alto, poz a dona n’um recanto, e veio parlamentar com o perseguidor, bastante mal humorado. —Diabo, diabo! Que systema pessimo rebater as asserções d’um homem que vae espairecendo com sua dama um bocado. Que me quer vossê a estas horas? —Quem vem a ser aquella nau? —Que? Nau! Aquella é a grande Barbara de Loures, que vendo-se adorada por um homem das classes superiores, não pôde resistir-lhe. E baixando a voz n’uma lascivia desordenada e surda: de encher a cama, c’um raio! Em eu as vendo de barba, hum! já sei—com’as castanhas, muito boas e muito quentes. Diz que só _ajuntando-se_... Mas ando a vêr se a atraco pela politica. Que a gaja é uma republicana escamadissima. Para embrulhos não quer senão o _Facho_. Ai, mas que carninhas! —Pois é matriculal-a, disse Arthur. —Hein? fez amigo Flores espinoteando, como beliscado no posterior das zonas medias. —N’um club jacobino, está visto. —Ando a pensar em servir-me d’ella para tornar os mercados republicanos. Isto, passada a lua de mel! fez elle com grande ostentação. Olhe que se angariam n’aquella Praça magnificos correligionarios, gente destemida, malta de pulso, arruaceiros! Entre as mulheres sobretudo. Porque as mulheres são uma força desaproveitada, já ousei dizel-o no famoso comicio de 24! Ellas muito serviçaes, muito sinceras! e nas _bernardas_, olhe que não sei! Em summa, Alcantara com dois ou tres clubs de femeaço, dá brado. Se tal metto em cabeça á grande Barbara, ella por um lado, eu por outro, e não dou á caranguejola do throno um mez para se mandar mudar. Que eu tive já esta ideia para creadas de servir. Mas vossê sabe, a municipal incute-lhes respeito ás instituições. Emquanto estiver a guarda, podemos contar que a creada de servir é pela monarchia.—E circumvagando olhares desconfiados, poz-se mysteriosamente a dizer que o não largavam, malandros! não era senhor de fazer um passo na rua. —Mas quem? perguntou Arthur. —A policia, homem! Como lhes faço medo, mandam-me guardar á vista. Erros do paço. Pois vou-me. Não sabem elles que a obra da revolução é fatal como a das tempestades. Até sempre. Marcha-se porque se marcha; é boa essa! —Espere cá, espere cá, disse Arthur que não tinha podido sustar-lhe a verborrhêa de Quixote vingador. Preciso de vossê, appareça de manhã. Quero sessenta roseiras do melhor, custe o que custar. Pés com flôr, o mais vigoroso que houver. Ámanhã sem falta então. Conhece vossê quem venda? —Eu não, mas a grande Barbara deve ter noticia d’esse ramo de commercio. Não gosto de rebater asserções de ninguem, mas é muito, sessenta roseiras. Dará vossê baile? —Não, dou de jantar a alguem, d’aqui por deante. —Caspite, provaremos dos vinhos. Então casa armada? Se vossê faz gosto, pintamos-lhe frescos na casa de jantar. Alguma coisa no genero Pompeia, como se não conhece por cá. —Não, não, disse Arthur. Só necessito as roseiras. —Concedido. Adeusinho. Soube vossê da grande manifestação republicana do _Mortalha e Onça_ em Caparica? Anda tudo ahi cheio, guarda reforçada. E o ministerio cae! Imagine que eram os clubs todos, mais de trinta pessoas, tudo em grande burricada, com barretes phrygios e cannas verdes, cantando a Marselheza. O _Trinta_ botou artigo de fundo. Ah, foi imponente! Ao jantar vieram felicitações dos democratas da Amora. D’esta vez o rei embarca! O meu discurso vem no _Facho_, vossê deve ter lido. —Não li. —Vossê não é homem que se instrua com jornaes. Indole molle. Faz mal. Eu cá, sempre na brecha! —Olá! disse a matrona com grandes berros de impaciencia. Despachar, gentes. —Adeusinho, que a dama desafina. E os malandros a rondarem-me os passos. Eu vos direi, tyrannos! clamou elle mostrando punhos ameaçadores ás esquinas desertas. Então de manhã. Eu indago das roseiras. Saudinha. E trate de me vêr aquelle discurso, homem. Vem no _Facho_ de hontem, terceira pagina, ao alto da quarta columna. Lá verá asserções que ninguem póde rebater.—E foi-se a passos tragicos, com as abas do frac avoejando. Em tres dias fez-se uma revolta em casa do esculptor. Veio terra vegetal para grandes canteiros talhados de redor das paredes, e em volta ás arvores; um jardineiro plantou com mão profusa as roseiras compradas a Campo d’Ourique, no Petit, ou remettidas pelo Loureiro do Porto. Ao mesmo tempo adquiria Arthur dois grandes volumes de floricultura, disposto a estudar a fundo o problema das rosas. Muitos exemplares que não cabiam no jardimzito, povoaram o _atelier_, alinhavam-se no corredor, e dir-se-hia velarem o somno do pobre rapaz, espreitando para dentro da alcova. A residencia então tomou um ar permanente de festa, onde os perfumes erravam de em torno ás estatuas, n’um mysterio nupcial que fazia inda mais triste o artista. Da janella, toda friorenta n’um chaile, Judith tinha assistido aos trabalhos, com uma sollicitude attenta e silenciosa. Albano não apparecia, por seu lado. —Então faz-se agora jardineiro? disse ella quando uma noite o esculptor lhe trouxe o primeiro bouquet de rosas brancas. Elle balbuciou confuso o quer que fosse em explicação—que as manhãs eram longas, tinha agora pouco trabalho, era um meio de entreter tempo. Depois adorava as rosas. E aqui fez por exaltar-se, tivera predilecção por aquellas flôres desde pequeno. E como ella mordendo as petalas devagarinho, uma a uma, o mirava com os seus olhos attentos, Arthur cada vez mais escarlate balbuciou coisas vagas, e a voz perdeu-se-lhe. Essa vez fallaram pouco. A mamã dormitava no seu quarto, o irmão sahira para um leilão de livros. Ella tinha uma roupa escura muito simples, cingida ao corpo e cahindo em pregas amplas, onde a brancura das mãos ficava luminosa apertando o bouquet. Pareceu-lhe mais alta, nunca elle a vira tão pallida, e d’um austero tom cahindo para rigido, quando se faziam silencios entre os dois. Puzera uma romeira branca collada ao pescoço n’um desenho monacal. E contou a Arthur que se sentira doente n’aquelles dias, um frio nos ossos, pequenas tosses que a fatigavam, de noite mesmo sonhara coisas funestas. —Porque não veio cá? disse ella em queixume. Foram uns serões tão tristes! —Outro dia larguei Albano tarde. Podia incommodar, não subi. —Incommodar! fez ella com um modo admirado. E voltando á sua ideia negra contou d’umas borboletas sombrias, que a mamã vira entrar pela janella á noitinha. E o tempo mais frio, sempre nuvens, parece que tudo chora... Ia comendo irresistivelmente as rosas, toda disfarçada e a medo, como uma creança que faz uma maldade. Á porta da escada, quando Arthur já se ia embora, ella com modos acanhados disse que lhe queria pedir uma coisa, mas tinha vergonha, receava que elle se puzesse a rir. —Oh não, disse o esculptor todo serio. Que é? —Guarde este dinheiro, tornou Judith muito baixinho, guarde, foi d’umas rendas que fiz para o armazem. E entregou-lhe dez tostões—Agora oiça cá, é muito serio, sim, muito serio. Alli defronte ha uma capella, mande lá dizer duas missas, no altar de Nossa Senhora do Rosario, minha madrinha; prometta, ande. —Mas prometto. —Diga ao padre que é por intenção d’uma pessoa doente, que necessita muito de viver. Diz, sim? —Digo. —Eu estarei na janella da sala rezando. Sabe rezar? perguntou ella ingenuamente. —Meu Deus, ensinaram-me. —Inda bem, Nossa Senhora ha de ouvil-o. Tudo o que eu fôr ganhando será para ella, coitadinha, que é pobre. E não diga a ninguem, nem á mamã, nem ao Albano. —Posso saber, disse elle, por quem faz esses sacrificios? —Nada, respondeu ella baixando a vista. Vae sendo velhinha a mamã, e depois Albano não vive senão com livros. Para lhes tratar da roupa com amor é preciso ser da familia. Uma estranha não quer senão que lhe paguem. Quem havia cuidar d’elles se eu morresse! Aquella infantil preoccupação fez pena a Arthur, que lhe beijou respeitosamente as mãos, pela primeira vez. —Gosta de mim? disse ella olhando-o de face com grandes olhos ingenuos, em quanto lhe prendia na casa uma d’aquellas rosas brancas do ramo. —Mas muito, juro, muito! —E foi por minha causa que mandou vir as roseiras? —Não, não, palavra. —Shut! foi tal. Albano deu a entender. Eu mesma adivinharia. Hemos sempre ser amigos, quer? Se Nossa Senhora fosse servida dar-me saude, quem sabe ainda... Mas sinto-me tão fraca, e o tempo muda, depois... Fez com o polegar na ponta do queixo, o gesto d’uma coisa que se aniquila. E chorava. Foi como Arthur a viu em sonhos d’alli por deante. Todas as manhãs lhe mandava rosas em grandes corbeilles. Mas nunca mais aquella visão de flôr, que emmurchece e pende, se lhe apagou do espirito. * * * * * Por esse tempo de feito, Judith adoeceu. Havia uns mezes que ella andava pallida, com o bistre das olheiras mais fundo e mais largo, recolhimentos religiosos, certos langores de cabeça, uma tristeza nos dias de frio. Á noite, Arthur vinha lêr alguma coisa, fallar do que corria, e saber como estavam. Via-lhe sempre um riso de esmalte amoravel, os cabellos enrolando muito baixos, no occiput, em duas rosaceas de oiro baço, um bocado de pescoço flaccido, e essa pallidez de mãos, cerosa e diaphana, que põe em cuidados os medicos. Como symptoma inquietante, nada. Nem dôr, nem prurido, nem ardencias de febre. Uma fraqueza crescente, um emmagrecimento sem causa, fastios, e em certos dias, cansaço. Consultado pelo artista, Albano ficou calado—e pela primeira vez não rematou com o bem bom! do estribilho. N’esse calvo gasto de toda a emoção, envelhecido antes de feito, com postiças indifferenças pela familia, cynismos de philosopho e superioridades de sabio, via Arthur surdamente ir-se mostrando a alma mais affectuosa, á medida que Judith desfallecia. Elle que até alli tratára a irmã como uma cadellinha de collo, correndo uma vez por outra a sua velha mão pelos cabellos d’ella, com benevolencias de pedagogo e sobrancerias de senhor, descia agora do seu sotão de anachoreta nos entre-actos dos livros, com a rabeca debaixo do braço, calva pensativa, e os myopes olhos perscrutando atraz dos oculos fixos. E alli sentado aos pés d’ella com um ar de artificial expansão, tocava-lhe os bocados de que Judith mais gostava, Schubert, Massenet ou Haydn, em cuja musica ha tremulinas de lua no azul dithyrambico dos lagos, por onde arfa a neve dos cysnes, em tapeçarias de nenuphares. A _Célèbre Rêverie_ fazia-a chorar, assim como uma queixa de creança abandonada, por um caminho que mergulha nos bosques, sinuoso, e se perde em subsolos de floresta—e a voz esmorecendo a distancia, na noite, no desamparo, na fome... A espaços, inda ella chora na aura que faz ondular a herva dos descampados. É um dulcissimo e vago suspiro, uma supplica de alguem que embalde esmola por esses montes á chuva, á procura de cabana onde passar a noite, d’um ninho de ave onde dormir, da saccola do velho mendigo ao menos, para repousar a cabeça... E a meio da clareira onde a chuva bate, lá longe, reunindo forças que a desamparam, inda o anjinho implora, e chama, e soluça. O vento leva o rumor d’essa voz que esvaece, repetindo manso, de mansinho, a supplica, tresvairada pela febre na oração! —Oh cala-te! fazes-me mal! dizia ella detendo-lhe o arco inspirado. E em redor todos calados, deixavam errar a imaginação nas brumas pallidas do sonho, soffrendo em commum d’esses presentimentos cujo phantastico é rhembrantesco, como nas noites de Walpurgis. Albano para distrahil-a tocava-lhe então coisas vivas e alegres, walsas, coplas, bailados meyerbeereanos—o dos patinadores, no _Propheta_, onde os grupos vão por turbilhões n’um impeto de vida brutal, sob a neve, á luz dos fachos; a bacchanal do _Roberto_ que uma lascivia quente penetra, entre murmurios de beijos e o espumar das taças; e essa deliciosa walsa das wilis do _Hamlet_, quando Ophelia vem louca, coroada de flôres e vestida de branco, musica tão volatil, tão sentida e tão doce, que a orchestra entrecorta de rumores de agua e echos fluctuantes da campina. Judith conhecia a sorte das mulheres n’essas operas celebres; quasi todas morriam de amor, abandonadas, violadas, incomprehendidas. E por alegre que fosse o trecho tocado, na sua mente os vultos lendarios corriam de mãos em cruz e olhos vazios, evaporados do marmore romantico das sepulturas. Por outro lado, ella não podia passar sem ouvir o irmão, por uma hora ou duas. Distrahia-se ao menos assim, era como se fosse uma _soirée_. E deitada na marqueza com a nuca sobre as mãos, um papa abafando-lhe os pés, ficava assim muito tempo, muda, com o espirito longe, e immovel como adormecida. Para a contentar, Albano revolvia o reportorio classico, _gavotes_ de Lurli, poemas ingenuos de Gery, certas sonatas faceis de Beethoven, o Mendelssohn menos complicado, e esse menuete de Boccherini d’uma tessitura galanteadora e aerea, que diz a vida de salão no seculo dezoito, e ella nunca se cançava de ouvir. A musica amansava ao mesmo tempo o esculptor, regularisando-lhe as descargas dos nervos, mostrando-lhe os lados dôces e feminis da vida, dando o poema de cada impressão, de cada côr e cada sêr, sagrando tudo, as arvores antigas como deuses e altas como monumentos, as paixões nobres do homem, todos os infinitamente pequenos do amor e da bondade universal. E Judith sempre mais fraca que no dia anterior, com a exquisita melancolia virginal dos anjos doentes, olhos cheios de ceu, e a graça hysterica de um sangue pobre. Uma manhã não pôde erguer-se. Albano vestiu-a, tomou-a no collo como uma creança, e dôcemente veio sentar-se com ella ao pé da vidraça. Piscava os olhos vermelhos, tufados, com um _tic_ nervoso de palpebras, careca desolada, fingindo humor feliz, como se nada em casa houvesse de inspirar cuidados; e dizia muitas vezes—Bem bom! Bem bom! Mas a sua voz tremia com um degelo de lagrimas na guela; e deitada no hombro d’elle, Judith fitava-o com esses olhos inquisidores na fixidez d’uma ideia negra, constellados, profundos e crueis, de enferma que vem de lêr uma sentença na face do medico. O tempo arrefecia, iam nos ceus galopadas de nuvens, grandes chuveiros nos longes, dias pardos, as primeiras severidades luctuosas do outono. Vortilhões de nevoa afogavam de manhã toda a paizagem de construcções esboçadas e bairros por terra, como esfumaçando dos tectos n’algum vasto incendio de cidadella. Essa fumarada crayonava nos seus ventres de monstro, escadas de Rembrandt d’uma profundeza insondavel, boqueirões que mastigavam com as suas maxillas tenebrosas, flammejantes linguas que vinham sobre os tectos lamber alguma presa estranha, membros destroncados que rolavam em explosões de minas pre-historicas.—E confundindo os cimos na formidavel confusão da abobada, iam-se franjando em rendas de tom alvacento, insculpiam trevos de ogiva barbara, columnellos, e escadarias com grandes mendigos encapuchados na sombra. A espaços, algum feixe de sol amarellentava essa betuminosa e lugubre architectura, campindo fundos d’apotheose murillana, nos truculentos ceus, onde o azul raro abria a sua elysea flôr de colorido. No quintal de Arthur, os platanos choravam dos ramos, folhas doentias, na aggressão do vento—e desnudando os troncos dolorosos, dir-se-hiam esqueletos despegando dos membros farrapos de sudario ou de pelle. Uma regressão de seivas ia por jardins e alamedas, na melancolia torporosa dos primeiros frios. E ella ia-se devagarinho, quasi sem febre, o menor escarro de sangue, resvalando serenamente pelo mal como por um tapete de flôres. Apenas uma pequena tosse secca a fatigava muito, cavando-lhe as feições a duras enxadadas. Arthur vinha sempre, tendo agora com ella liberdades de irmão e velho amigo. Fallavam pouco. Ella cansava, a voz ia-se-lhe sumindo como um fio de agua, nas profundezas do peito. E de mãos dadas olhavam-se os dois, n’uma quietação, como _babies_. Ás vezes, raras, ella sorria, os seus olhos ganhavam lucidez como condensando a vida toda d’esse corpo franzino, e ficavam assim. Viera a maldita insomnia, uma inquietação, zumbidos. E as noites eternas torturavam-na, sem uns pobres minutos ao menos, de repouso. Albano e o esculptor repartiram então entre si o tempo de vela, porque a pobre mamã velha e doente, não tinha mais forças para noites perdidas. Atrozes, essas noites sem conto, gastas a procurar posição de repouso, e successivamente alagadas em suores debilitantes. Raras vezes a tosse lhe permittia dormitar momentos, voltava-se para um lado e para outro, pedia rumas de travesseiros para logo os repellir com fadiga—e uma oppressão no peito, um ralo interior, um dolorir de membros, que lhe faziam insupportaveis certas horas. Pela madrugada, em o ar indo a regelar, a tossinha redobrava, teimava, insistia por horas, horas, horas, até dar com ella para a banda sem accordo, asphyxiada e rôxa. Então sobrevinham terrores, desvairamentos, hesitações. Jesus, se estaria morta! E no silencio da casa, elles olhavam-se com desesperos mudos. Albano applicava sinapismos, punha-lhe aos labios aguas aromaticas com ether, auscultava-a por todos os lados, ou ia-lhe procurando as pulsações com os olhos sobre o relogio de segundos. Ainda não! Ella respira. E sorviam o ar com ruidos freneticos. Arthur ia logo accender sua lampada d’alcool para amornar um caldo. Ao largo a manhã bocejava n’um tedio nevoento e frigido; ruidos de carroças sacudindo ferragens, operarios que partiam, mugidos de vaccas e pregões vagos, punham em volta da pobre gente afflicta, vidas áparte, egoistas, explorando-se com raivas subterraneas, sem fazerem reparo n’aquella agonia de terceiro andar. Ao meio dia, em tempo de sol, se acaso a sentiam mais reanimada, e tinha mastigado o beef ou tomára bem a colher de Madeira, a mamã vestia-a com grandes precauções de flanellas, enrolavam-na em chailes para a sentar ao pé da janella, n’uma velha poltrona em coiro verde, da casa de jantar. Albano e Arthur disputavam-se o encargo de lhe pegarem ao collo, da alcova para a janella, da janella para a alcova, o que fazia sorrir a boquinha desbotada de Judith. Tomando-a nos braços, cada um d’elles nunca deixava de a sentir mais leve que no dia anterior, por mais que fizesse por se illudir. Albano trouxera um clinico celebre da Escóla, que por amor do estudante todos os dias vinha com o seu bom riso d’esperança, resuscitar a enferma, que aljofrava no riso pallido a mais admiravel resignação. Se alguma coisa parecia dar-lhe pena, era que se affligissem tanto por ella. Agradecia em effusões excessivas o menor serviço que lhe rendiam, tudo achando bom, e sempre a dizer que não precisava de coisa alguma. Pequenas vaidades comtudo, ainda vinham como ephemeras margaritas, á flôr d’essa existencia de sylpho que se evaporava, gotta agora, gotta logo, imperceptivelmente, como um perfume raro. Sempre fôra um dos requintes penetrantes da sua preoccupação feminina, ter mãos de rainha ou de santa, com unhas esmaltadas de opala. E mirando agora a transparencia dos seus dedinhos mirrados, com vagos tons d’azul na raiz das unhas, o momo do labio maguava-se todo. Espiralitas rebeldes soltas da coifa, vinham de manhã nimbar-lhe em oiro o marfim da testa. E torcendo-as contra a luz, ella deixava vêr lenitivos de momento, e como um secreto orgulho na face murcha de soffrer. Mas cada vez perdia mais o gosto das côres claras, branco, côr de rosa, violeta pallido, fazendo na escolha dos vestidos severidades de viuva e de velha. A vista d’um chapeu, d’uma visite, qualquer vestuario de sahir, atravessavam-na de melancolias lividas—começava talvez dentro d’ella a horrivel saudade da vida alegre, luminosa, cheia de replicas e luvas frescas, das raparigas sadias e casadoiras, receios indefinidos de nunca mais vir á janella por seu pé, e essa nostalgia insondavel dos que vão morrer na flôr dos annos, nostalgia das velhas affeições queridas, do bom sol de inverno, das grandes arvores seculares, da mocidade dos outros, do amor, das aguas que se espelham, gorgeios de creanças, e da terra inteira e vigorosa—que embrutece a dôr, e Deus sabe se vae impulsionar com desesperos sinistros a chimica tragica das sepulturas. Por ventura a ideia de morrer lhe tinha acudido n’aquellas desfallencias de noites brancas, em que esphacelada de tosse, ella mesma se illudia, assim imaginando afugentar a morte. Tanto que dizia sempre estar melhor, fallava em residir uns dias na quinta dos Fonsecas, em mudando o tempo. Só d’uma vez, contando-lhe Arthur como se desempenhára das missas na capella defronte, por intenção d’ella, como estivesse esse dia peior, lhe ouviram ambiguamente dizer com uma voz abafada e tremula: —Tem de ser, paciencia! Os seus olhos tornavam-se enormes, inquietos, quasi ardentes, perscrutando as faces e gestos de todos. Recrudesciam-lhe cuidados pelos outros, a mamã que não comia, Albano que não socegava de noite, o Arthur sempre concentrado; depois eram as gavetas todas desarrumadas talvez, roupa que se ia accumulando de semanas, e ella a não poder costurar, Jesus! o irmão com falta de camizas engommadas. Mas ia levantar-se, andar, ter forças um d’estes dias, não era verdade? Já não deixava a cama, e nem suster podia a pobre cabecita de passaro. Voltavam-lhe fervores de monja por toda a côrte dos ceus, paixões da musica séria, grave, triste, que permuta confidencias de sêr para sêr, e em cuja secreta essencia a alma se banha, para despertar em mundos translucidos de reminiscencias divinas e indefinidas imagens, resolver a dôr pelas lagrimas, e impôr os grandes sacrificios na vida, sem rebellião nem blasphemia. N’este irresoluto spasmo de espirito bruxoleante, ella ia d’um a outro bocado sem coherencia nem logica, querendo apenas pela vibração, traduzido o estranho cosmos interior, que instantaneamente lhe chegava e instantaneamente partia. Embalde o estudante lhe evitava os dolorosos, os convulsivos, os doentios, os sem esperança—Chopin que parece ter escripto sob o inferno d’uma chaga por todo o corpo, excruciado em torturas freneticas; Massenet o poeta das emoções indefiniveis; Beethoven mysterioso como o mar, terrivel e dôce como elle; e os outros, Gounod, Berlioz, Widor, Schumann... Mas eram esses que ella pedia a toda a hora, estendida no seu leito de cassas immaculadas, entre rosas que esfolhavam meio comidas por esses vagarosos dentinhos, mãos em cruz como certas estatuas de mausoleu, o espirito errante. Ao anoitecer punham a lamparina longe, a um canto da alcova, uma penumbra morna ondulava tufando impalpaveis fórmas de mil coisas evocadas; e era quando Judith gostava mais de ouvir o irmão. Na dubia e calma atmosphera, a musica equiparava todos esses organismos, polarisando-lhes a emoção n’uma mesma corrente de gostos e affinidade de devaneios. Aos gestos d’esse arco requintado, debandavam os allegros como pombas que vindo beber n’uma urna tumular de creança, partissem levando no bico ultimas lagrimas de mãe n’ella choradas. Esboçavam os scherzos fugacidades de cherubins em marcha do ceu á terra, n’uma grande espira biblica, com stalactites d’iris e revoadas d’espiritos santos, entre os threnos das cytharas e chuveiros de rosas mysticas. Por intervallos, suspensões faziam a alma indecisa recuar, reflectir, sacudir as plumas, tomar folego. E em meio da longinqua harmonia quebradiça, serena, carinhosa, supplicante, retinia subitamente um grito. Então os prestos desemboscavam-se, sahiam d’agua para algum sabbat n’uma flecha de lua, faziam-se e desfaziam-se, perseguindo-se, beijando-se, voando em pares por baixo das folhagens multiplas de arecas e nogaes perfumosos, vergando aos circulos como nos corpos de baile, pousando em grupos dissolventes, balanceando-se em grinaldas de flôres por cima dos murmurios da agua, ou ficando a rezar o motivo baixinho. —Meu Deus, Judith, tu dormes, minha filha? —Não, mamã, estava a pensar, vês tu, que é tão bom viver! Albano nada dizia com medo de se ouvir; Arthur tinha receios de perguntar. Depois, era evidente. Começava a romagem dos tisicos n’essas frias manhãs côr de teia d’aranha e folhas mortas, em que a cidade vae pagando ao cemiterio o seu tributo de cem virgens. Na face de Judith, dos malares ao queixo, um claro-escuro projectado na pallidez fazia-lhe a _masque_ rigida e severa. Para mais, tudo acabrunhava o pesadêlo funebre; dir-se-hia ganharem as coisas de roda, physionomias crueis e implacaveis caracteres. Qualquer agouro caseiro de que Albano sempre se rira, deixava-o pensativo ás vezes, realisado agora. Alta noite, a calada do predio apavorava pela glacial enormidade, fazendo um enorme rir de caraça, baixo, vazio, sardonico; a pendula da casa de jantar irritava-lhe os nervos; lentos chuveiros iam rolando na terra negra, como prantos por vestidos de lucto; e nos descampados da Avenida, os uivos lamentosos dos cães noctambulos, pediam á cidade arquejante no seu somno de vicio, como pobres jaus, esmolas de corpos para matar a fome aos cemiterios. Aggressões em tudo. Se Judith passava pelo somno, os relogios davam horas muito alto, para ella despertar. Estalava o sobrado, quando punham mil precauções em pisal-o. Repetidas _soirées_ com piano e canto até de manhã, na visinhança; gatos cabriolando n’um esbanjamento de prazer, por essas casas; e a mamã apavorada, bradando no meio d’um sonho tenebroso—Jesus, minha filha morreu! Por vezes tudo parecia um pesadêlo transitorio. Ella podia lá morrer! Morre-se lá com dezeseis annos! A natureza tem necessidade de corrigir por estes modêlos de innocencia e intangivel doçura como Judith, maus rebentos que produz e cadeias de monstros que deixa propagar, sem piedade nem consciencia. E argumentos dos livros. Os organismos novos arrancam dos proprios seios extraordinarias forças de reacção, com que se defendem dos males que os assaltam, até os deixar varados no campo. Coisa alguma nasce sem um destino e um fim, Arthur, pois não é verdade? Vem ao mundo a mulher para mãe. Logo, Judith não podia morrer ainda. De repente cahiam em si desconhecendo-se, a si mesmos perguntando desde que tempo podera amassar-se-lhes dentro tanta fragilidade, tanta estupidez incoherente, tanta miseria. Cada um d’elles a occultas do outro, punha a sorte de Judith em loteria. —Se emquanto fôr por esta rua, nenhum cão ladrar, ella melhorará, dizia Arthur apressando o passo, n’um terror de ouvir signal desfavoravel. E se effectivamente ladravam, enraivecido, fazendo um gesto violento: —Não vale! Não vale! dizia elle transtornado. A voz de Judith baixava sempre, baixava, cahia o pulso, a tosse era mal um suspiro. —Por estes dias... dissera o velho pratico, e Albano tinha entrado a rir lugubremente. —Ora adeus! Póde lá ser! Por estes dias! Estava essa vez a manhã mais deliciosa, picada de friositos confortantes, nem a primeira nuvem, toda a cidade fumava, e flechas de sol embutiam jerogliphos n’um vehemente ceu d’Andaluzia, e grande rumor de pregões, como houvera peixe... Não, elles não consentiriam que a sua pobre amiguinha fosse para os covões da fria terra molhada, dura, surda, que rangia as mandibulas na escuridão, e se enroscava corroendo tudo, apodrecendo tudo, substituindo tudo, e d’envolta remexendo no mesmo cadinho d’alchimia torva, velhos ninhos e cadaveres, cabellos loiros e folhas seccas, ultimos risos e virginaes capellas. Buscavam excitar-se, reanimar reciprocamente as masculas energias decahidas, com dizeres de que não criam uma só palavra. Ante a impotencia nos meios de reagir, vinham-lhes cobardias, transigencias graduaes em materia de fé, vacillações atrozes. Deus atravessava ás vezes essas cabeças desnorteadas, n’um fundo de nevoa sebastianica, carrancudo, com o sarcasmo feroz d’um tyranno que se vinga de o não terem acreditado em começo. Elles n’uma vil duvida, tendo nos ouvidos a prophecia do clinico, _por estes dias, por estes dias, por estes dias_! contavam as horas que só restavam talvez, perguntando quando seria, appellando para alguem que tudo podesse, fosse quem fosse, Deus ou o demonio. E renegavam dos seus grandes principios d’outr’ora, hesitantes, será, não será? entreolhando-se n’uma d’essas angustias verdenegras, cobardes, mesquinhas, despreziveis, inevitaveis, humanas, que são a bilis do coração, profundamente amargas. Quando foi meio dia, por uma temperatura a mais amoravel, com abelhas zumbindo nas escapadas de sol, borboletas que arfavam, carruagens descendo dos bairros aristocraticos para a cidade commercial, raparigas que punham os ultimos _pompadours_ claros, todo o mundo que se desentorpecia passeando, respirando, cantando, pareceu Judith sensivelmente melhor. Os seus olhos fizeram-se docemente humidos, sem esbrazeamentos de febre; nem uma suffocação de tosse; a voz mesmo subiu um pouco; e coisa que não fôra vista em toda aquella semana, teve um riso quasi feliz. Vinha o sol alegremente pela alcova, festival e fulvo; ella mirava as suas mãos diaphanas com enlevos de _baby_. Albano deu-lhe a colher de Madeira, uma grande pilula de carne, e tintas menos baças pareceram reflorir-lhe por transparencia na pelle. Aquillo deu vislumbres de esperança ao esculptor, que lhe poz junto dos labios, muito jovial, uma bella rosa branca, por milagre obtida já n’aquelle tempo, ultima talvez do anno. Porque nunca se veio a saber como o pobre rapaz tinha artes de arranjar o seu pequeno ramo todas as manhãs. Passava de seis dias que Judith parecia haver esquecido as flôres, de entorpecida na mollidão da febre, por fórma que havia rosas por toda a parte, nos grandes jarrões do aparador, vergando por cachos no centro de mesa, ou murchas em cabazinhos por todos os cantos. Erravam assim no ambito perfumes fanados de egreja, recolhimentos de penitencia, e halitos tepidos d’oração. Arthur veio encontrar Albano, que subira ao sotão para trazer a rabeca. —Mas que vem a ser isto? dizia elle alvoroçado. Melhorou tanto!—E abraçava todo feliz o companheiro. Albano poz n’elle os olhos mortos, não fez senão dizer bem bom! umas poucas de vezes, e viram-se-lhe as lagrimas correndo a quatro e quatro. —Estás agora piegas, tornou o esculptor cuidando que eram d’alegria. E desceram. Judith tinha querido vestir-se, mas fallava com os dentes cerrados e muito pouco, riso immovel, rolando os olhos n’um vagar quasi dramatico. Albano achou-lhe o pulso regularissimo; conservava-o entre os dedos contando, trinta e uma, trinta e duas, trinta e tres... Subitamente o grande silencio d’um relogio que pára. Judith sorria para todos. Como o irmão estava á cabeceira do leito, teve de virar a cabeça um quasi nada, e ainda o viu todo tremulo, encostado á parede. Mas o pulso recomeçára, trinta e quatro, trinta e cinco... E tão contente, a pobre velha mamã! Fôra Nossa Senhora da Penha, e mais o santo tal, e uma grande esmola que ella tinha deitado ás almas de S. Domingos. Quando estiveres melhor, querida filhinha, iremos aos Fonsecas n’um dia assim como este, em carruagem fechada.—Ia dizer surrateiramente ao ouvido de Albano, no vão da janella: parece-me que ella tem as pontas dos dedinhos frias. Se fechassemos as vidraças? Vae tu vêr.—E para Judith, carinhosamente: muda-se de vida, mal te ponhas boa, deixa isso cá por minha conta. Esse habito de não comeres ás horas, não dormires com medo de tudo, e nunca dares um passo fóra de casa, não póde ser salutar a ninguem, o doutor m’o disse: muito menos a ti que és tão debil, querida filhinha. Bem t’o recommendava eu; nunca querias attender, cabecita ôca!—Mil planos então successivamente, se retalhavam e abatiam na loquela feliz da pobre velhota, mudarem de casa, mandar fazer uma grande pelliça a Judith para o inverno proximo, e noites de theatro, e passeios, e tudo. Sorriam todos, Albano por comprazer dos mais, ceu e terra deslumbrados na fulva magnificencia do astro. Aos platanos d’Arthur, tinham subitamente voltado passaros chilreando n’esse ephemero bom tempo; repicavam sinos por todos os campanarios da cidade; salvas no largo azul-myosothis do rio, predios que embandeiravam içando pau de fileira, musicas dispersas de regimento, uma doce alegria de pombas voando de caramanchel em caramanchel e beira em beira. Vendo Judith tranquillamente na velha marqueza, mirando as suas mãos exangues, um pouco cheia de cara, e como preludiando convalescença proxima, Arthur mesmo sentia-se reconfortado, após tanta noite de maceração e vigilia. E dizendo que já vinha, foi a casa vêr se descançava um pouco. A mudez que Judith conservára, tinha-se rompido áquellas palavras. E dissera: —Não se demore, n’uma voz que impressionou profundamente o esculptor, timbres de cabra, como se a emitisse o phonographo, e tão espaçada que dir-se-hia não lhe irem occorrendo logo as palavras. —Ha-de ser fraqueza, disse Arthur, querendo por força que ella estivesse melhor. Pela tarde, mais de quatro horas, estava elle no _atelier_, á espera que amigo Flores chegasse de casa do Albano, onde o mandára saber de Judith, quando o _ártista_ appareceu. —Então como está? disse o pobre rapaz muito pallido. Amigo Flores sacudiu a juba onde fios brancos corriam, e respondeu: —Já boa. Escusado ter lá ido. E a escada que é alta!... O outro não entendeu, repetiu-lhe: —Hein? Melhor? —Já boa! —Vossê manga comigo? gritou-lhe Arthur com violencia desmedida. —Não rebata as minhas asserções. Morreu! Arthur deu um rugido de leão espingardeado, atirou-se a elle com furias de doido, e pelos hombros derribou-o sobre um grande gesso do _atelier_. —Morta, que? Morta? dizia elle a tremer, com o outro debaixo do joelho, as mãos crispadas errando, e um riso horrivel na bocca. Morta? Este canalha!... Ia alcançal-o pelas guelas com a cabeça perdida de dôr, mas presentindo o lance, amigo Flores furtou-lhe o corpo de repente, e Arthur cahiu de bruços, desamparado, como se fôra morto. —Diabo, diabo! fez o jacobino attonito. Fui-lhe rebater as asserções, era a pequena. Hum! Indole molle; pouco dará. Quando sem chapeu n’essa noite, envelhecido e lugubre, Arthur veio para modelar o rosto e mãos de Judith, encontrou Albano assentado na cama onde a irmã estava morta. Ao lado, espedaçado n’um impeto de colera, via-se o Stradivarius que o pobre careca vibrava tão bem, sendo ella viva. Elles viram-se e não trocaram palavra, minados por esse febril e medonho tedio, que vem na ultima noite aos enforcados. O egoismo sereno das fórmas em roda, infiltrava-lhes desprezos áridos por tudo, uma quisilia de vingança contra a cidade, d’ella não vestir o lucto que os imbecilisava a ambos. A pancada do relogio na casa do jantar era tão nitida, tão viva, tão insupportavel, que Arthur desconcertado fez parar a pendula. Assim as horas iam sem elles saber, e aquella ultima noite foi tres vezes mais pequena. Sómente a bocados, do fundo da Estrella, vinha em dobres arquejantes aquelle tragico sino que fôra o pavor de Judith pela alta noite, no inverno, quando o rir dos ventos cortava a solidão de imprecações, e muito embrulhada no velho capote d’Albano, ella se ia anichar ao pé da mamã, rolando para todos os lados os seus bonitos olhos assustadiços. E esse velho phantasma agora lamentava-a como de longe, um gigante amoroso, encarcerado n’uma velha torre de menagem. Não sei que arzinho escapado por fendas, punha ondulações nas cortinas. Por cima dos moveis, na mesa do centro, ou esmagadas sobre as costas das cadeiras, peças de roupa abandonavam-se em attitudes vazias, enrodilhavam-se, cahiam, remexidas dos bahús por mãos convulsas, trazidas ao acaso sem luz, postas de parte, atiradas com desespero, e por fim esquecidas na ultima _toilette_ de Judith. Um cangalheiro gordo, com a andaina preta esfiada de miseria, cabello em escova bordando cimalha por cima d’uma testa baixa, toda polida de gordura, viera tomar medidas para o caixão. Albano sem saber o que fazia, tinha empurrado o homem brutalmente, que se fosse embora quando não matava-o, e a gritar que não queria a sua irmã pisada, quando lhe deitassem a terra por cima da cova. Estacado á porta da alcova, braços cahidos, collarinho sem botão, o collete abotoado ao acaso, Arthur viu de relance aquella desordem de gavetas abertas, a ultima chicara de caldo fria na beira do aparador, colheres pelo chão, a um canto o centro de mesa com pinhas de rosas esmorecendo sem agua no crystal do jarrão proeminente—e por tudo aquillo os seus olhos iam vitrosos d’imbecilidade. Um grande tule pendia n’um cabide, com vincos ainda da loja, cortes nitidos de tesoura na base; e por elle abaixo, com folhas de panno envernizado, grinaldas brancas desabrochando efflorencias de quinquilharia vulgar, n’um asco de tintas frescas ainda. Ao redor d’um crucifixo de pau, assustador, como esculptura, velas altas derretiam nos castiçaes da sala. Duas hospitaleiras com grandes rosarios badalando á cinta, andavam á roda bulindo, aconchegando as coisas de olhos baixos, psalmejando rezas lugubres em latim barbarengo. Elle via-as na sombra negra dos biocos, aborridas, resfolegando, bocejar muitas vezes com mau modo, emquanto as suas rezas seguiam de cór, n’uma lenga-lenga afadigosa. Mas entre a realidade e os seus olhos, um vago de bruma interpunha-se, fazendo-lhe vêr as coisas n’uma perspectiva remotissima. A morte de Judith surgia-lhe indefinida como n’um pesadêlo, sem maguas d’aresta viva, sem biographia, nem vehementes saudades inconsolaveis, sem lagrimas mesmo, descorrelacionada, confusa, como phosphorencia do cerebro doente. Era uma impressão de coisa passada n’outros tempos, com outras pessoas, n’outros logares. De quando em quando, as _corbeilles_ em misulas nos vãos da casa de jantar, esfolhavam rosas silenciosamente, deixando folhas murchas irem cahindo n’um pranto humilde. E Arthur n’uma cadeira baixa considerava as pequeninas graças d’aquella doce amiga, como ella cortava as espinhas com os seus dentinhos brancos, vivacidades sedosas dos seus garços olhos que piscavam n’um fremito irrequieto, e todas as manhãs os seus bons dias chilreantes de trepadora. E apodrece para ahi n’esse desconforme cemiterio, calcada a pés juntos por coveiros ferozes e descarnados! Dez horas, onze horas, duas da manhã, tres, quatro... Pôz-se a amassar gesso para a mascara, quando o viu plastico penetrou timidamente na camara e foi para o cadaver. —Gostavas d’ella? perguntou o estudante n’um tom estupido. O esculptor fez com a cabeça que sim, e o outro ficou a vel-o applicar o gesso. Sobre a colcha afogada em flôres, tochas á cabeceira, dormia ella vestida de noiva para os esponsaes da bemaventurança, o nariz afilando n’uma aresta fina como um gume. Cerrada com ancia, essa bocca dir-se-hia um sulco a buril. Quem teria coragem de viver sem ella n’este crapuloso e vil mundo, quem? E como o esculptor comprimia certos pontos do rosto, os olhos, azas do nariz, as maçãs da face, todas as proeminencias e fossetas das feições, Albano n’uma ternura magoada, desviando-lhe o braço: —Olha que isso faz doer, coitadinha! Esta simples phrase fez que os olhares se encontrassem, medindo a horrivel desgraça; veio-lhes o mesmo brado d’aniquilação supplicante; e n’um choro de profundos soluços e grandes lagrimas que rolavam no branco setim da morta, abraçaram-se por cima do leito, e assim estiveram, por muito tempo, n’aquella postura. Uma das hospitaleiras, que tinha ido roendo pão e queijo que trouxera na mala, entre o livro de orações, unguentos, e um frasco com agua benta, foi para dizer baixinho alguma coisa ao estudante, que alheio a tudo nem a ouviu, e fez um gesto de hombros evasivo. Aquillo forçou a pobre mulher a ir ter com Arthur. Era uma anafada, minhota de fallas, mais velha que nova, com sua grande verruga no queixo. Pedia dinheiro para a agua de Labarraque. Arthur descollava a mascara de gesso ao tempo, e áquellas palavras os seus olhos cahiram sobre Judith, viram-lhe a face marbreada de roxo, tomando a expressão carrancuda d’uma mulher offendida. E teve os olhos longamente n’aquelle desmoronar. Por um canto dos beiços tufavam n’uma espuma viscosa, bolhas de gaz podre que punham ruidos de fervor. Já moscas se abatiam por dezenas no rebordo das palpebras e fendas do nariz, depondo larvas. A irmã minhota de lado, desviando a outra que se pozera a dormitar: —Já cheira. Um calafrio alvorotou Arthur áquella horrivel palavra. Só na parede, ao debil ondular das tochas, arfava a sombra deitada de Judith, n’uma tranquilla respiração, e dir-se-hia dormindo, tão placida, a virgem das rosas brancas! Ainda hoje ouço dizer, que Arthur seria o mais extraordinario esculptor do seu tempo, se aquella morte subita o não desorienta no foco das suas grandes faculdades. Elle antes de tudo era uma cabeça fraca, que por uma indole singularmente recatada e hesitante, jámais ousara sasonar e polir as indomaveis paixões da sua alma. Como nos abandonados d’affectos desde o berço, aquelle primeiro amor de mulher alanceando-o no mais fogoso da edade, devia explosir por fórma a perturbar-lhe dentro o rythmo placido do coração e do cerebro. O certo foi que mudou de residencia ao outro dia da morte de Judith, e Albano nunca mais o viu. Embalde o pobre careca o andou procurando por toda a banda, agora que tanto precisava d’aquelle grande irmão. Nunca mais o taberneiro do Bemformoso ouvira fallar d’elle, na _brasserie_ quasi estava esquecido; as ruas deixaram de o vêr. Á mingua de melhor coisa onde matar tempo, Albano decidiu-se a acabar o curso. E esses annos que foram passando, tornaram o esculptor n’um singular personagem. Morto o idolo que soubera inspirar-lhe culto absorvente, o amor d’elle deformou-se, ampliou-se, derivou por excessos que o frenesi tornava assustadores, ou transfigurava-o o talento em prodigos d’arte ás vezes, como é uso nas gentes d’_atelier_, que amam sempre materialisar as mais fortes emoções. Elle não via nem fallava a ninguem; tinha tomado amor á aguardente, morava n’um arrabalde distante, todo curvado d’espinha e envelhecendo o mais depressa possivel. Amigo Flores, que alfim desposara a grande Barbara, nunca vinha áquella thebaida; o gallego avaro aposentara nos bucolismos da aldeia natal—e assim Arthur vivia miseravelmente, sem companhias, sem trabalho, sem amigos, sem fato, com uma juba feroz e uma barba intractavel, atormentado por não sei que estranho calor no cerebro, e escutando as grandes coleras desordenadas do coração revolto. O primeiro anno corrido sobre a morte de Judith, fôra para elle um d’esses terremotos de caracter mal forjado contra as asperidões da vida, que ao menor abalo esbeiçam fendas, por onde se vêem estrebuchar fraquezas e escorrer restos de crenças, lucta de paixão, hesitação, saudade e loucura, que a educação plastica do artista ia moldando lentamente, desesperadamente, em lucidos pedaços d’estatuaria. Ao cabo d’alguns mezes, quando já iam embotando as irritabilidades mais lancinantes da dôr, por fadiga dos centros de sensação, muitos detalhes finos d’essa divina figura de creança, escapavam á memoria d’Arthur, empallideciam, ou vinham-lhe apenas como esforço de reminiscencia, nas más horas de desconforto. Sómente as grandes linhas dramaticas da sua morte, relevos scenicos, attitudes que ella tomava, detalhes de perfil, um modo de inclinar a cabeça, certos timbres da sua voz melodica que elle ouvia de noite, ainda agora estando tudo tranquillo, ficaram-lhe para sempre na ideia, vehementes e nitidos, por sympathia ao ramo d’arte que professava. Dez vezes ou doze, com deseguaes intervallos, começara n’um bloco ou outro a estatua da mesma mulher em diversas posturas, e outras tantas o cinzel desalentado lhe cahira das mãos em meio da obra, na pavorosa desconfiança de estar profanando o divino ideal preconcebido, com facturas de mediocre nobreza. No casinholo inhospito em que morava, esses esboços de marmore faziam por baixo da pedra a desbastar ainda, assombrosas tentativas de evasão, resurreição, de gritar por soccorro, como visagens por traz de espessos veus, medonhos arremedos d’angustia, estorsões dentro da lava solida que os constrangia: e no supplicio d’aquella immobilidade viva querendo cuspir entulhos da bocca n’um grito dilacerante, romper com os seus membros o atoleiro que a envolvel-os se petrificava todo, communicando a atroz sensação d’um soffrimento alarmante, tão magistralmente lançados esses primeiros golpes de grande esculptor. Era assim que de informes pedregulhos, rompiam admiraveis trechos acabados e vivos; braços invocando os ceus de mãos descarnadas; cabeças radiando suavidades esquivas, de nariz palpitante e bocca em supplica, tocadas talvez na visão paradisiaca do fra _Angelico_; busto d’uma impossivel delicadeza, sempre cingidos em romeiras de monacal desenho, onde pequeninas mãos apertavam rosas, surprehendentes e brancas, com pétalas finas como papel...—e para baixo o infame bloco impassivel soterrava o resto, desconforme, anguloso, hostil, brutal, como o tronco adusto soterra e termina a dryade na floresta sagrada da antiguidade. Estas tentativas de sceptico iniciando prodigios de cinzel para o sarcasmo de os pôr de banda logo, indo de obra prima em obra prima como um eterno descontente, no proposito de enraivecer a posteridade que o buscasse acaso n’uma obra completa, tudo achando mesquinho e pobre, e sem pretender da vida algum dos seus miseraveis triumphos, gloria, fortuna, estimulos ou emulos, faziam ellas só, toda uma arte estrondosa e moderna, cheia de singularidades e grandezas é certo, mas assignalavam no artista desconfortos de gigante e amarguras de vencido. Uma estatua seguia outra, e outra; e todas a alturas differentes eram postas de banda com teimosia colerica. Dias inteiros, mezes inteiros, levava no meio d’aquelles destroços d’olympo novo, sem fallar, sem trabalhar, exasperado de virgindade, consumido na chamma funebre do alcool, fazendo medonhos esforços para a reconstruir toda na ideia e parando onde se não lembrava, com medo de perverter a sua adoração de escravo, magro, revoltado, quasi faminto, com rosetas escandentes na face morta, e a bocca n’um rictus tragico de cariatide. A sua poderosa estatura curvava-se para a terra lentamente, aqui e além já lhe nevavam cabellos, a aguardente poz-se a agitar-lhe na allucinação que o ia invadindo, frageis phantasmas exhumados do passado—e via-a, fallava com ella, sentia as suas desgraças, deslumbrava-se na sua belleza, tinha com ella longos colloquios. Gargalhava pelas ruas sósinho, argumentando comsigo mesmo em voz alta; o fato cahia-lhe de miseria aos pedaços, deixou d’usar camisa, as suas botas cambavam. N’esse embrutecer cruel comtudo, lucidos espaços riam d’onde a onde; então n’um convergir de ultimos esforços, volvia aos ensaios, aos seus esboços, começava e recomeçava, modificando, inutilisando, com a ancia d’um naufrago e o desespero emphatico d’um rebelde. Viam-se no _atelier_ espalhados por duzias, como occupações d’esses curtos intervallos de razão, pares de mãos divinamente esculpidas, longos dedos, unhas de opala transparente, celestes delicadezas de toque, mas todos eguaes e como reproduzidos do mesmo modêlo raro. Ou copias sem numero d’uma mascara de gesso, soffredora e candida, que na parede, envolta em crepes, olhava pelo vazio das orbitas. Tal insistencia nos accessorios da mesma figura, exprimia o sentimento immutavel, mais remoto ou menos, da dôr. Era a arte d’um taciturno, immobilisando a imaginação do artista, mas crystallisando cada bocado em perfeições surprehendentes. E Albano? Emfim como ultimo relampago, uma vez Arthur descobriu que acabara a estatua, ao fim de a haver começado doze vezes. Mas essa, que maravilha unica de genio! Desabrochava completa, estendendo os braços para invocar Deus, por um assombro d’equilibrio lançada na attitude de quem desprende vôos, desennovelando-se da base como uma labareda de sarça, em zig-zags aéreos. Esse phenomeno de estranha belleza, era ao mesmo tempo um prodigio d’audacia, palpitava, fallava, sentia-se soffrer e respirar como uma creatura. Tinha uma simples roupa em longas pregas, a romeira cingida até á barba com austeridades claustraes, tranças meio enroladas ainda, soltando-se da nuca n’uma expressão espavorida e subitanea. E alli para um canto, acocorado por baixo d’uma juba de velho leão cahido, contemplou Arthur longamente a sua obra, com olhos extinctos onde pela derradeira vez passara um fogo subterraneo de cratera. Pelas joelheiras laceradas, furavam os seus joelhos carcomidos, e a barba indomita de mendigo, espargia sobre os ossos do peito lugubres fios brancos, vestindo-lhe a nudez por uma especie de instinctivo pudor. Ante o asceta miseravel, essa apparição de madona ascendia em escapadas de genio do seu pedestal floreteado, que representava um enorme bouquet das flores que Judith amara tanto. N’isto ouviu dizerem perto o nome d’ella. Sem curiosidade voltou a cabeça, estava Albano ao pé d’elle devorando a estatua, maravilhado, attonito, imbecil. —Ah, és tu, disse Arthur que se levantou n’um pulo, sem mostras d’alegria comtudo, vendo Albano correcto n’um vestuario de gentleman. Tens tabaco, por acaso?—Albano desviou a vista um momento, para procurar charutos nas algibeiras; então Arthur com um martello, fez a estatua em pedaços[1]. [1] São estes restos da mais assombrosa esculptura que tem visto o mundo, que soldados por agulhas de ferro, ornam hoje o tumulo de Judith, e mais todos os esboços, meias estatuas, fragmentos e ensaios, que por morte d’Arthur foram achados no _atelier_. A INDIGESTÃO N’um pequenino paiz do sol, batido dos ventos, riscado de brancas serranias e coberto de laranjeiras, celebridades e patuscas historias, governava um bom e gorducho rei, Menelau de nome, de estatura meã e ventre espherico, cheio de benevolas ociosidades para o seu povo, e senhor d’umas brancas mãos de prelado, que como actividade só sabiam deixar cahir por entre os dedos, as bellas moedas dos erarios publicos. Vinha el-rei Menelau d’uma ascendencia mui nobre e antiga, que nos brazões ostentava symbolos de todas as nobrezas em campos de mil côres, e nas suas veias conseguira fazer circular um precioso licôr feito com sangue de todas as dynastias da terra, desde as mais antigas até ás mais modernas. Este licôr branco como leite, tão nobre conseguira estillar-se pelas edades fóra, tinha uma composição extraordinaria de anemia, infecundidade, preguiça, tristeza e doçura. Por sua côr separava o rei dos fidalgos que o tinham azul aguado, e do povo que sempre o derramara escarlate, por obedecer a seu senhor. A côrte de que o rei se rodeava, era confeccionada com os mais puros nobres do reino, nomes historicos ouvidos em todas as partes do mundo, primos e credores uns dos outros, gente correcta de modos, desdenhosa pelas camadas ultimas, pouco atribulada em labores mentaes, e captando as reaes sympathias por um ramo qualquer d’instincto recreativo. Havia por exemplo, os que sabiam perder ao bilhar com Sua Magestade encantada de lhes ter ganho sem esforço, os que traziam de fóra bons ditos e finas partidas galantes, os que atiravam aos pombos, os que walsavam, os que subtrahiam _brevas_ ás caixas sem arrombamento do charão onde o rei usava guardal-os, os que aguarellavam picantemente caricaturas dos inimigos politicos de Sua Magestade, os que lhe elogiavam os dotes e convenciam de grandeza, os que lhe escreviam discursos, compravam cavallos, dictavam o estylo das equipagens, faziam suave a vida vendando-lhe os descontentamentos da massa e truncando-lhe a leitura dos jornaes, quem por elle mandava, comia, tinha ideias, effervescencias, pratos de trufas em molhos sabios, comichões, contas nos estofadores e lojas de _bric-à-brac_, alegrias, clarões de vinho generoso, e babas gulosas nas bellas espaduas alabastrinas. A bondade triste de Menelau permittia em volta nas camarilhas, desleixos de attitudes e palavras que ao povo, a distancia, se afiguravam rotulos das sardanapalicas do alcaçar, onde as cortezãs bebessem por calices sagrados, e pallidos arcebispos de mitra á zamparina, fossem aventurando _can-cans_ fadistas com lindas açafatas unctuosas de maneiras e causticantes de pedraria. O monarcha no entanto estiolava, alquebrado de conviver na turba-multa que ia quotidianamente pelos salões do paço, e nostalgico talvez dos aconchegos de familia pobre que não tinha. Não era para solavancos de politica cynica, o pobre rei de sangue dessorado, achaques parranas, e absolutas tendencias caseiras para um dominó de compadres. E a cada vez que via em lucta os partidos, disputando-se opiparas prebendas, negociando crachás e titulos, anichando os seus sacristas e ganymedes, vomitando infamias pela guela da imprensa, dissolvendo os costumes e preterindo os meritos, o gorducho Menelau enterrando a corôa de oiro até aos olhos e roendo na ponteira do sceptro, punha-se acabrunhado a gritar que não resistia, davam com elle de pantana, e era seu real desejo abdicar para se ir ás alcalinas de Cauterets. Embalde n’esses terriveis momentos de cobardia, eram chamados ao paço todos os chronistas e archeologos do reino, a citarem a Menelau uma quantidade d’expedientes e ditos de velhos reis seus antepassados, em analogos lances de governação tormentosa. E era muito para vêr, como tão veneraveis e poentos sabios se esfarinhavam em diligencias, para do pichel da historia vasarem no branco coração do rei, litros e litros do heroismo das primeiras dynastias. Embalde os cornetins facundos das bandas marciaes vinham animal-o com offertas de marchas, hymnos e mazurkas de superfina trama; lidadores de toiros lhe consagravam sortes de ferros curtos e ricas pégas de cernelha; directoras de collegio lhe davam celebridade expondo nos armazens de modas, retratos seus a froco com olhos de contas amarellas; e doirados ministros escorreitos de pomada odorifera nas poupas, em saltitantes coplas lhe certificavam ás horas d’assignatura regia, que tudo marchava a trote no seu reinado, os subditos nadando em jubilo por vêl-o de saude mal-os meninos, a roda andando no dia seguinte, e essa noite um raio de pecita nova nos Buffos, onde os decotes das femeas nem tinham principio nem fim. Alentos de tão jucunda prosperidade que pavoneavam em gloria o ministerio, deixavam frio a Menelau, sombrio e mais que nunca absorvido na estulta ideia de abdicar. O ministerio consternado recorreu então a expedientes febris, pôz-lhe bismas e sedenhos, deu-lhe injecções, fez desfilar paradas em grande uniforme, com sonidos de tambores e clarins, expediu-lhe em commissões os altos corpos dirigentes do espirito publico—as sciencias representadas n’um auctor de graxas impermeaveis, as artes repousando n’um grave brochador de frontarias, as litteraturas, as industrias, o clero... Mas nenhuma supplica commovia o rei Menelau, que só ambicionava ir comer a dotação n’um velho palacio campestre, bem longe, com tapadas onde bramissem veados, e á sombra de cujos arvoredos elle podesse concluir a sua fortaleza de miolo de figueira, tão gabada pelo plenipotenciario da Suissa. * * * * * Havia na côrte um poeta de longa coma de azeviche, fallado por seus trovares, e pelo qual uma a uma, todas as damas se perdiam. E encontrando Menelau a cozer moedas nos forros do manto, como salvaguarda em caso de desterro, assim lhe fallou: —Que funda tristeza faz murchar para a terra como lirio ceifado, a fronte augusta de Vossa Magestade? Saudades acaso, de linda castellã que se foi com seu donzel no palafrem da aventura, mordida pelo aspide da ingratidão? Considerou o rei no menestrel, e respondeu d’esta sorte: —Ah, meu muito amado menestrel, que não sabes como doloroso é ser homem assim pequeno, e carregar aos hombros inda por cima, mais de quinhentos nomes de familia! Os povos comprehendemnos hoje menos, que os orientalistas os jerogliphos. Se passamos na rua, vassallo algum se prostra; os _maestrinos_ abocanham de musicas burlescas a dyspepsia que nos punge; e desde que se falla d’um rei, todo o mundo pergunta de qual naipe. Queres tu de trespasse o meu throno e dependencias? É dos mais pequenos e gloriosos do mundo, Deus lhe lançou a pedra fundamental. Como vês, não deita fumo nem cheiro, ha porta para a escada; o diabo é que oscilla como um dente velho. Mas descança, tenho a guarda aqui perto! Não imaginas como isto era, aqui ha oitocentos annos. Nobreza nem raça! Calcula o trabalho de meus antecessores em fabricar fidalguia de primeira qualidade, chegando a haver monarcha que n’esse intuito cavalheiro, legou aos reinos não menos de dezeseis e dezoito bastardos. Nos degraus d’esta machina, onde empoleirado dou beija-mão aos do meu sequito, ha nodoas de sangue d’um valor incalculavel, o que resta em documento de parricidios, fratricidios, filicidios e assassinatos de menor formato, todos os brilhantes feitos historicos das monarchias. Archeologos impertinentes vinham disfarçados ás vezes, raspar para dentro de saquiteis, estas sagradas particulas de crimes abençoados por Deus, para d’ellas fazerem venda aos colleccionadores. Razão por que revesti os degraus com este amor de alcatifa escarlate—d’um _chic_!... O rumor que se ouve não vem da ira popular, mas de ratos que me offerecem serenadas. Posteriormente fiz obras, forçado pela canalha, confesso. Abri janella para um saguão que chamam parlamento, e para despejos ha o barril do _Jornal official_. Levas isto por meia libra diaria, hein? —Corôa e tudo, meu senhor? —De certo, disse o rei Menelau. E com riso triste: —É de latão, menestrel! A outra roubaram-m’a para pagar uns navios de guerra. O poeta esteve scismando que responderia. E alto para comsigo, ia dizendo: —No theatro das _Maravilhas_ vão dar revista d’apparato, com musica e bailados. A vêr se o empresario fica com estas chinezices por uns tostões... —Já lhe tenho alugado em varias peças, o meu throno e soldados. Mas vomitam-me tudo de vinho! —Estomagos vermelhos! disse o poeta. E fazendo uma pequena pausa, perguntou: —Os generaes de Vossa Magestade... não sei como diga, sim... acham-se em estado de servir? —Para commissões, grande tirocinio! Faltam rodisios nos mais gloriosos. Pintados porém, ficam em folha. —E quantos mil soldados, mesmo assim? —Quando me casei muitos. Mas o presumptivo é fogoso, tu sabes. Com a mania das pellas e a educação guerreira que leva em palacio, tem amolgado regimentos sobre regimentos. Eis por que o ministro da guerra vae chamar as reservas, e elevar o principe a coronel. —Bem, bem, disse o poeta, vou-me de longada, a vêr se deparo ahi um adelo. —Dar-te-hei como luvas, se o negocio fôr a meu talante, a grã-cruz dos _zoilos verdes_, valor, lealdade... O poeta que já ia á porta derrancado nos salamaleques da etiqueta, avançou ás palavras do gordo Menelau. —Inda mais grã-cruzes, senhor? Mas vejo-me todo pingado d’ellas, não ha ammoniaco já que as saponifique. Ambicionára antes de Vossa Magestade graça de menos vulto. —Falla pois, disse o monarcha. —Se Vossa Magestade editasse o meu livro de versos?... —Que é versos? —Queixas de intimo e amargo soffrer, volveu o menestrel rolando os olhos mortos, como nas declarações d’amor. Se uma organisação eleita, como a minha ou a de Vossa Magestade, se surprehende algum dia envenenada por desgostos sem lenitivo, tão grandes que é pouco o mundo para os conter, desanda a versejar fatalmente. Pelo verso, meu senhor e rei, as maguas volatilisam-se da alma, como os perfumes das amphoras, e esvoaçam palpitantes em espiras de musica á região dos nevoeiros. —Meu Deus, disse o rei. Que necessidade eu tinha de ser poeta! E para o menestrel: —Fico por editor do livro, a tua ideia encanta-me! Mas como chamal-o? O poeta ergueu n’um jubilo as duas mãos viscosas: —_Folhas e Cascas_, meu senhor! —Mas excellente! —_Folhas_, em memoria dos vellinos com que Vossa Magestade collabora no volume, _Cascas_ em memoria do resto. Menelau ficou scismando no que ouvira ao poeta. _Queixas de intimo e amargo soffrer... Se uma organisação eleita como a minha ou a de Vossa Magestade... Pelo verso as maguas volatilisam-se da alma como perfumes, e esvoaçam em espiras de musica..._ E a imaginação alava-se-lhe no vortilhar d’estes alvitres subtis. Tambem elle soffria perdido nos prosaismos do moderno mundo, tão grosseiro que o não cortejava, tão sceptico que lhe punha em duvida a origem divina, tão egoista que pensava truncar-lhe a dotação. Oh, iam longe os tempos de poderio e triumpho, quando pomposamente os reis entravam nas cidades á frente das cavalgatas decorativas, entre evohés e flôres, envoltos no clangor das trombetas dos arautos; ou acceitavam nos mosteiros gothicos os gordos festins dos dom priores com arengas biblicas; ou nas florestas, ainda sobre alazões fogosos, caçando os veados reaes, viam nimbar-se de clarões celestes n’um maciço de folhedos, a apparição d’algum santo patrono, que resmungava parolas desconhecidas, apontando o ceu. Então eram elles senhores e mandatarios, luziam as corôas em fulgores omnipotentes, e ao menor dos seus gestos cahia no pó a plebe assombrada, oscillavam da forca rebeldes e apostatas, e o Papa lhes remettia por nuncios purpurados o ultimo bilhetinho do Eterno com sellos da chancella celeste. E tudo abatido agora, as realezas da terra e as realezas do ceu, o empyreo e os thronos, nem obediencia nem fé! E insensivelmente, monarcha Menelau rimava já... D’alli a tempos o menestrel voltou desanimado. Correra tudo, casas de penhores, caixas de theatro, capellistas, irmandades do Santissimo e bailes campestres. Ninguem queria o throno real e suas dependencias. Concertos recentes, feitos por obreiros barbaros com o famoso camartello constitucional, tinham-lhe tirado o merito como obra de arte. Estava agora uma architetura hybrida, sem typo nem estylo, com pedaços de todos os cyclos historicos, e sangue de todos os morticinios politicos. Cada revolta desfilando por elle, cada usurpação fazendo-o oscillar, a invasão estrangeira vinda por amparal-o, lhe tinham arrancado dos nichos rendilhados, dos frisos em voluta, dos columnellos e architraves, a estatueta d’um prestigio, o florão d’um dom exclusivo, e a cariatide de uma tradição herdada. E emquanto com formidavel impudencia o escabello rude da canalha ia em cada sedição tomando dimensões cyclopicas, o pobre throno carcomido fazia pender mais e mais o seu docel esfiado—cabeça decrepita offerecendo o gasnete ao nó corredio do cadafalso! Era já o alegre tempo dos reis exilados, villegiando pelos hoteis do boulevard Hausseman e camarins das _estrellas_ novas, indo cear _chez_ Bignon, _chez_ Vachette, e _chez_ todos os restaurantes de sumptuosos gabinetes, com leitos Gauthier, bidé, mesa de jantar e o pequenino pente de madreperola, discreto e util, que alisa a não deixar vestigios, depois dos _can-cans_ em pelota, os cabellos esmanchados de Coralia, Fanny Essler ou Rosita Maury. Pelas corôas nem meia davam. Todos os dias os expressos atiravam ao vortilhão de Paris, principes e princezas, herdeiros sem reino que herdar, reis e rainhas em paletot côr de mel e _cache-misère_ côr de pombo, gran-duques tamanho de grãos de milho, barbados como maçarocas, e tão poderosos, que se cahiam das calças na sua capital, vinham esmurrar as ventas em paiz estrangeiro. No hotel Druot, alternavam-se as vendas das collecções Demidoff com os leilões das rainhas caloteiras. Esses desthronados não soffriam muito porém, que os embriagava a verve de Audran, Halevy e Planquette, sopro de vida nova, subtil e perfido, que ia expungindo os dynastas da velha sagração poetica, pondo-os a correr mundo de lingua fóra, e com guizadas de _couplets_ na colleira. E dos varandins de palacio, lançando os olhos pela infiel cidade que o repellia, rei Menelau dava suspiros pensando nos collegas, mas sempre versejando, o excommungado! * * * * * —Muito bem, disse o monarcha certa manhã, ao cabo de reflectir demorado. O principe é novo para as redeas do governo; por outro lado, ninguem me quer a estalagem com a reputação que lhe fizemos. Que remedio senão reembutir-me no throno? E aparando com um canivetinho de oiro, a penna de pato das litteraturas celebres, proseguia: —Pois que sou das raras organisações eleitas, e pelo verso se volatilisam maguas, etc..., por que me não farei poeta, e publicarei tambem um volume de folhas e cascas? A ociosidade indispõe-me com o povo. Quero pelo trabalho reconduzir-me ao seu respeito. Escreverei para ser grande. Pôz-se então a rimar com toda a gana, os assumptos nobres da sua côrte, virtudes e birras domesticas das açafatas e damas de honor, as dôres de dentes do grande chanceller que punham o gabinete em crise, um ou outro parto feliz da sua galga favorita, attingindo mesmo uma ode sobre a baixa dos algodões, muito gabada no corpo do commercio. Esta nova phase governativa creou-lhe hostilidades e carinhos na imprensa e classes obreiras. Os republicanos compararam-no a Nero dedilhando lyra, á face de Roma estorcida em clarões de incendio. Nos grupos de mundanos corria em risadinhas surdas o dito mordaz d’um certo marquez Fulgencio, ao ouvir lêr a real ode. E a maioria saudava no excelso rei um d’esses genios poeticos, mandados por Deus de onde a onde, á glorificação dos povos, que por sua doçura, esforços, sabedoria ou martyrios, muito haviam bemerecido da omnipotencia. Duas sortidas ou tres, jogadas pelo gordo Menelau á popularidade que lhe escorregava e fugia, o certificaram da boa impressão que nos animos deixára a nova da sua coqueluche poetica. Eram lojistas que vinham á porta com os metros em attitude, pessoas que lhe faziam adeusinho nas ruas, dois jornalistas ou tres que lhe sorriam como a collegas, descobrindo calvas de vasta auctoridade e saber. E d’uma vez que a sua caleche se virou por conselho do ministerio, n’uma das grandes ruas da cidade, mais de mil pessoas vieram offertar ao soberano, pedaços de adhesivo e outras miudezas de affecto. Já a sua bella face de moleiro ruborescia n’um bem-estar regalado, e os reaes olhos de goraz, velados em palpebras somnolentas, ousavam fitar por um certo tempo, menos assustadiços e supplicantes, a turba-multa das ruas, entrevista nos passeios de carruagem. Dizia-se em geral: —Mas é um homem intelligente, nosso rei Menelau. Escreve, por exemplo. Para desculpal-o das incoherencias de governo e certo esbanjamento dos dinheiros, os amigos opinavam: —Que diabo! Um poeta! E nos centros litterarios, como as suas rimas largavam por analyse, descamações de caspa e esquirolitas de veado, esses mesmos amigos juntavam: —Como ha de ser bom poeta nosso rei Menelau, afadigado como anda nas coisas da governação? O reino atravessava um periodo singular. A industria de engeitar filhos, deixando de ser monopolio das altas classes, democratisava tresvairada, por toda a matulagem de beccos e cabanas de aldeia e cidade. Quem roubava de cem contos para cima era absolvido e condecorado; quem tirava um lenço ou um pataco ia degredado por toda a vida. Os juizes escolhiam-se entre forçados, e os titulares entre pulhas. Evidenciando um cynismo mordaz que era moda, os primogenitos diziam nos salões ás ricas herdeiras: —Tenciono fazer como meu pae, que nunca se casou. Os assassinos invadiam as estradas para arcabuzar as diligencias, lavravam por toda a banda fomes biblicas e pestes asiaticas. Como Saturno, os coroneis devoravam os regimentos; os generaes cobriam-se de gloria e medalhas nas secretarias, casas de batota e chás officiaes; e os aspirantes de lanceiros eram as primeiras bailarinas do exercito! Todos os dias quebravam casas bancarias, havia leilões por dividas, abriam armazens de penhores, ou os jornaes annunciavam suicidios. E no respeito a sciencias, os astronomos fixavam a terra nos espaços, e todos os astros em roda descabellados em corrumaças de pandega, ou fandangueando em desnalgado bailete. Os poucos espiritos sãos, voltados sobre um passado de historicas pompas, contemplavam n’uma apathia desopilante, perdoando as vergonhas presentes pelas glorias de então. Espicaçado pelo exito, rei Menelau invadia os dominios da alta arte poetica, o soneto pastoril, o acrostico recamado de doçuras do Hymeto, o logogripho cheio de trocadilhos e imagens cartonadas, sublimidades metricas onde a real inspiração tinha vôos de gallinacea. As suas preoccupações litterarias subiram a ponto, que até uma penna de bastardinho mandou cravar na ponta do sceptro, inda assim não lhe fosse escapar a inspiração que o ferroasse acaso, ás horas solemnes da pragmatica. Não era raro apparecerem os discursos da corôa e respostas aos plenipotenciarios, crivados de rimas e allusões mythologicas que faziam a confusão dos funccionarios, e chegaram mesmo a levantar hostilidades com os inglezes. Bem depressa porém, a atmosphera de sympathia e favor em que os loiros de Menelau refloriam, fizeram o rei baboso de sua pessoa, infiltrando-lhe ambições de mais vasto diametro, filaucias de grande homem, e insidias felinas de creança amimada. Nos conselhos da corôa, embuçado no velho manto real, que a agulha da rainha illustrara de passagens com o desenho de centopeias, batia o pé se lhe negavam dinheiro para frescatas a que era dado, allegando ser na verdade um monarcha mal empregado em tal pelintrice de paiz. Ia audaciosamente das fórmas pindaricas da ode e do soneto heroico, composições lymphaticas de meia pagina, que o das _Folhas e Cascas_ secretamente refundia, para as audacias do volume orlado a côres, todo em _cul-de-lampes_ do estylo mais puro, letras Ehrmann brincadas de figuritas ridentes em attitudes de chimera, illuminado como uma biblia, e impresso em China e Wattman de primeira. E outras aspirações de gloria artistica d’aqui—ter palacios e kiosques por quintas e tapadas, com marmores e bronzes celebres, esplendores de baixella constellados de velho Limoges, cavalgatas historicas pelas florestas, festins de peru para poetas em velludo e oiro, e uma bicharia engaiolada nos jardins do paço, que pela noite era o terror do burgo de redor. Emfim, uma tarde o povo que mendigava nas ruas ao desamparo, roendo talos na sombra dos portões senhoriaes, ou acocorado psalmejando pelas escadarias dos mosteiros, ouviu pela guela dos canhões annunciar, entre morteiros e bandeirolas, barafundas de fidalgaria rolando em berlindas de côrte, alabardeiros de tricorne e quita-sol, liteiras e palafrens em marcha, que os brochadores acabavam os primeiros volumes da versaria real, e nas monumentaes caleças pintadas de erotismos Watteau, viriam pela cidade caminho do paço, á solemne entrega da famosa lucubração do reinante. No couce do prestito, balanceado nas correias da pesada e alta traquitana insculpida, dizia marquez Fulgencio para a preciosa marqueza, coifada de marabús: —Espantosa, a obra d’el-rei meu primo! Como execução, que colorido biliar! Pelos fundilhos rotos da rima, vê-se carne morta do ideal. E a emmaranhada fecundidade, bom Deus de Isac e Jacob!... Ah! nunca poderão bem aprecial-a, sem tesoura e pente. * * * * * Rei Menelau era um magnanimo, foi um magnanimo em todos os dias do seu reinado. Ante as supplicas dos que em chusma, quotidianamente affluiam ás portas de palacio, n’esse tempo de miseria livida, o seu coração vertia sincero dó. O que o compadecia mais era esmolarem a pé, as pobres creaturas. E na cathedral d’uma vez, quando uma velha lhe cahiu em joelhos pedindo esmola, o monarcha foi todo admirado da pobre não trazer luvas. Mandava dar a quem vinha restos do seu pantagruelico jantar, cem talheres para a camarilha, baixella de oiro cinzelado, e quarenta artigos de menu, intactos pela maior parte, e portas travessas vendidos depois aos ricos hoteis da cidade. D’onde vinha receberem os pedintes em serviços de Saxe, apenas esqueletos d’aves e peixes, de envolta com rodellas de limão e cascas de fructa. E exquisito á mesa, o bom monarcha. Um fastio!... Para lhe captarem o appetite, condecorados e eruditos cozinheiros esgotavam-se em pastelarias de recheio phantasioso, molhos nunca sonhados, preparações d’especiaria cara—o que vinha a custar rios de contribuições. O rei mal tocava n’um prato ou n’outro. Quanto a beber, muita vez succedeu erguer-se da mesa com olhos pequeninos, entoando coisas desavergonhadas d’um certo naipe, aos beliscões secretos nas carnes de honor, com seu fiosito de baba mui patife no beiço. D’elle dizia marquez Fulgencio então, paternalmente: —Coração de oiro, um nadinha piteireiro! Suppliciados de miseria, como iam grassando vertiginosamente a fome e a molestia nos burgos humildes da cidade, determinaram os pobres por conselho da burguezia, implorar do rei quantos proventos este auferisse na venda do precioso livro de versos, tão fallado por esses reinos afóra. No memorial que a palacio foram levar, todo escripto por um _doudejante_ da geração moderna, phrases equestres empenachadas de imagens n’uma estrupida de hyperboles, hirtos substantivos cambaleando entre adjectivos, como bebedos entre cabos de policia, tropegos verbos remendados de prefixas e espinoteando em cambalhotas como arlequins—empalhavam processionalmente os espantalhos classicos com que a populaça se julga ennobrecer e heroismar aos olhos dos ricos e poderosos, nos seus mezes de jejum forçado. Alli se allegava o tradicional amor das blusas pelas monarchias; a coragem, valentia e esforços havidos em commum, nas guerras contra o invasor; soffrimentos sem queixa sangrados em inundações e subidas do milho, emquanto o paço nas recepções de circumvisinhos monarchas, caros e nunca assaz amados primos, walsava de calção curto, invertendo as barrigas das pernas nos derrancos do cotillon; alli se chamava ao povo eterna creança, leão indomado, Prometheu captivo na rocha, Atlas, e uma convergencia de historicas calumnias, afinadas no sentido de surprehenderem á bocca do cofre, mui lampeiramente, é verdade, os centos de mil reis que rendesse a principesca edição de rimas e cascas. Tres periodos ou quatro sobretudo, exalçavam com arte a mais pathetica, um certo rolão vulgarisado nas comidas pobres, que pelos dizeres da petição, usava amassar-se com suores de trabalho, amarguras da indigencia (que vida, Jesus, que vida!) e altas dosagens mais d’outros liquidos humanos, d’excreção dolorosa ao que parecia. «Esse pão negro e duro, excelso senhor e rei, dizia o requerimento, é o dos que soffrem e trabalham em prol das industrias e agriculturas patrias, é o pão do povo, o pão da officina, o pão da pobreza. Rudes canceiras logram ganhal-o, suor de nossas frontes o amassa; mas alimentando o corpo, elle enche ao mesmo tempo a consciencia d’uma santissima paz inviolavel. Á noite, sob os tectos das mansardas, quando a chuva...» Ia assim o panegyrico da brôa, escorrido da penna doudejante, luzido, esfregado de novo, tocando pratos e com porta-machados á frente; e em carriolas d’estylo passavam depois allegorias d’instituto, com diademas á fadista e ventres estripados de crina, rhetorica que para além de tres seculos, havia já figurava em cortejos de pompa igual, elogios de sabios mortos por exemplo, introitos de relatorios sobre os arrozaes, programmas de partido politico, cabeçalhos de testamento e não sei que homilias de quaresma. «Oh! mas esse pão vem-nos transfigurado quando legitimamente ganho, e iguaria alguma de principe, por delicada que se antolhe, poderá igualar-lhe a salutar influencia e excedel-o em exquisito sabor...» Justamente este trecho comprometteu a fortuna da pretenção, por deixar cogitativo nosso rei Menelau. Com que, exquisito e magnifico de sabor, hein? E assim remordia elle sob os baldaquinos do throno, mexendo os dedos dos pés em folgadas babuchas de missanga: —Os cozinheiros do paço vão estancando os seus arsenaes de receitas, sem que até hoje lhes tenha podido manifestar por seus meritos a minha real satisfação. Ora que estes funccionarios nunca hão de fazer lulas a meu contento!... E então que sinto um fraco positivamente por estas vassallas de caldeirada... Oh, os cozinheiros! Condecoral-os foi perdel-os. Desde que brilha no peito do chefe a commenda dos _zoilos verdes_, vae a côrte notando decadencia nos fricassés—e pela minha santa Padroeira que era um papo de milho, o pedaço de gallinha que hontem me serviram no jantar de gala. Tambem, tornou elle bruscamente, mettendo os dedos enroscados de anneis pelas buracarias do manto; como hão de grosseiras gentes interpretar o paladar d’um principe? Vem todas de muito baixo, para verem uma arte—e concluiu devagarinho—no comer. O que mais serve a meu contento inda assim, é o cozinheiro da fazenda. Mas faz-me almoçar contribuições em sangue, quasi cruas, de fórma que para as comer, todo me enojo a retirar-lhe de cima as pelles de contribuintes, que sempre vem agarradas co’a violencia da penhora. O caso é que me estragam o estomago e vou estando obeso e branco como uma abbadessa. De vereadores e merceeiros rotundos, poderão dizer os maldizentes, que me trazem na barriga; mas sobre esta pansa espheroide que irão conjecturar senão que ando aqui a digerir o thesouro?—Uma tristeza poetica empanava-lhe a face de capadinho. Disse lentamente umas poucas de vezes, partindo as palavras como quem as esburga de sentido «... amassado com o suor...»—quasi esteve a esboçar um gesto de nojo, recordando calceteiros ignobeis, incrustados de lama como animaes d’esgoto e suando bestialmente, que dias antes vira n’uma rua, enfileirados no trabalho como captivos no ergastulo; mas continuou «... iguaria de principe, por delicada que se antolhe, poderá igualar-lhe a salutar influencia e excedel-o em esquisito sabor». Fez de si para si: —É talvez bom para diabetes esse pão celestial. E eu soffro! Esteve sem fallar um bocado, e estrallejando a unha grande d’encontro aos caninos de lobo, ergueu magestosamente a face na crispatura de quem scisma, aquella face historica e rigida que a pragmatica mandava, nas quedas de ministerio. —Pois vou-me experimentar pão com suor, a vêr que tal. Mordomo! Um janizaro rapado á navalha, grandes collarinhos especando o cerebello, libré doirada com bolotas de relevo, e vastos lacis apopleticos de face, ergueu magistralmente o reposteiro, acto continuo fazendo com a cabeça um arco de cento e oitenta. O rei foi dizendo: —Que promettese alguma coisa aos do memorial, tudo mesmo, mas ouça cá, para o anno que vem. Se gostarem de musica, a banda toca o hymno lá baixo no pateo. Mas hei por minha espontanea vontade não reverter o lucro das minhas rimas em beneficio das classes famintas, agora que ellas tanto exaltam o pão, primeiro ganho e depois comido. Sim, diga-lhes que iremos ao _Te Deum_ na cathedral se as colheitas forem capazes, que tencionamos não pedir mais dotação, nem auctorisar augmentos d’imposto além do duplo dos que vigoram. Olhe, mordomo, ria-se para elles, coitados, que passam mal segundo infiro, e são fieis e passivos vassallos, conforme afiançam no seu favor de tantos do corrente. Quanto ao dinheiro temos pena, sim, verdadeira penna de pato, mas vê bem o mordomo: elle tem destino, oh, destino mui nobre e exemplificante. É que vamos comprar farinha, suar o suor do trabalho que dizem ahi tão amaro e sublime, e com estas duas coisas amassaremos pão de que nos iremos alimentando, e a côrte. O mordomo attonito, sem atinar com palavras de resposta, esteve livido d’assombro alguns momentos, e arquejava dentro da farda como um grande kagado na sua concha. —Mas, soberano senhor, aventurou elle com medo de vêr o projecto realisado; que vai ser de Vossa Magestade com semelhante regimen? —Descança, serei forte como um hercules. —Que vae ser da côrte, tão dessorada mesmo comendo á barba longa! Forçada talvez a trazer lunch, Jesus Maria! E baixa nos generos a semelhante abstinencia; os salmões que meu sogro fornece, sem procura, apodrecendo para ahi; a fructa que fornece meu genro desamparada; meu cunhado fornecedor de vinhos, quebrando como um scelerado vil; e minhas sobrinhas gallinheiras, meu irmão com mercearia, e meus compadres, primos, primas! Ah, perdidos todos, deshonrados, abandonados, e por cima Vossa Magestade não poderá sobreviver-lhes a pão secco.—E o desgraçado n’um desespero medonho, arrojava o chinó pelos mosaicos do salão. —Pobre mordomo! fazia o rei commovido. Ahi está um que me adora sinceramente. E começou a mais linda ode sobre a amizade, endereçada ao servidor; inexoravel porém na birra do pão com suor, e brandindo o sceptro com sobrecenhos merovingicos: —Sim, comel-o-hei, clamava elle por todo o palacio. A honra me vae n’isso empenhada, que os grandes exemplos do alto devem partir. Quer virtudes no throno o meu povo! Ostental-as vou. E se morrer na lucta, os chronistas poderão dizer: foi sobrio e poeta, chegava a roer pão duro como os cães, mas deixa versos de dar ciume aos maiores genios. Pobre diabo, convimos, mas grande rei!—Toca a suar. Ora foi desagradavel, muito desagradavel ao povoleu, a recusa do dinheiro implorado. A fome subia por toda a banda desabusando a canalha ruim. Vinham trigos de longe a fabulosos preços, por terem sido vergonhosas as searas; succediam-se os roubos, as quebras fraudulentas, os adulterios e os suicidios. Nos cargos que pagava o estado, affluia toda a sorte de frandulagem ignorante ou descarada, sorvendo os dinheiros na razão inversa dos serviços e dos meritos. Por vezes, quando algum d’esses se elevava por quatro discursos retumbantes e meia duzia d’intrigas habeis, matilha de adeptos vinham rodeal-o de prompto, conclamal-o emphaticamente nas folhas, jurar que era elle o mais eminente dos contemporaneos, o melhor dos amigos e o mais probo dos patricios—e assim se formavam pequenas côrtes ambiciosas, de olho acceso á mira do propicio dia, em que levando de vencida as facções contrarias, podessem de garra adunca e maxilla voraz, trinchar no que de alimenticio ainda restasse n’esse esqueleto de nação. Dos baixos-fundos ignorados da massa, viam-se romper de chofre creaturinhas verdes talhadas em cunha, desconfiadas, molluscoides, escorregadias, que já no occaso de mocidades subterraneas e suspeitas, furando, successivamente furando, conseguiam á flôr da celebridade afitar por fim os cornichos, na mira d’alguma posição culminante. E surdos mineiros exasperados pela vileza de longos annos famintos, appareciam certa manhã ministros sem ninguem saber por que modo, directores de secretaria, primeiros magistrados, poderosos banqueiros, chefes de situação; e perguntava-se sem ninguem responder, d’onde elles vinham, como tinham podido impôr-se, qual plano de conducta iam seguir, ou por que tenebroso fio de maquinação e filaucia se logravam incluir no circuito aureo da riqueza, da evidencia ou da gloria. Realmente, n’uma raça de cobardes, punham calafrios taes audacias de vampiros, e a ignorancia e cachexia publicas recuavam, de cada vez que as investia violentamente algum d’esses insaciaveis polvos. Mortas as actividades, empobrecidas as familias, assolado o paiz pelas quadrilhas d’aventureiros politicos que nas ruinas das instituições se emboscavam a pilhar quanto viesse, a fome do povo breve correu a gamma lançada entre a humildade e a ameaça, por não ter mais que perdesse. Se acontecia romper guerra nos seios d’uma facção ou entre facções adversarias, medonhas revelações d’infamias commettidas davam um panico geral. Vinha-se então a saber como fôra pago tal transfuga, quanto custava tal emprestimo, ou o que auferia tal funccionario. Por esses rasgões da fé protrahida e da lealdade sonegada, o olhar mergulhava nas catacumbas da bancarrota, de cujos pilares pendiam enforcados, verdenegros, os cadaveres da honra e brio nacionaes—e tinha visões de medonhas catastrophes! Depois boatos sinistros em photosphera a cada lugubre episodio, fundos falsos de calumnia, deboche e crime, cingindo em espiras de serpe reputações cá fóra venerandas, e por milhares engolfadas em podridão! Semelhante desordem partia as molas de jogo harmonico na vida da sociedade e da familia, a boa fé cessava, morria o credito, cada qual n’uma hesitação eruptiva mirava de soslaio todo o mundo, estranhos, parentes, irmãos d’armas, pensando o contrario do que lhe era afiançado, remordendo os beiços n’um sarcasmo furioso, e com esta idéa vibrando punhaladas sobre quem quer se aproximasse: —Tu enganas-me, ladrão! Como na lugubre éra feudal, o vasto soffrer pervertia as faculdades; os loucos e maniacos eram aos milhares, havia no desenho das cabeças predestinações de patibulo, e essa melancolia negra de mocho, que vem dos estados doentios, ralados por uma dôr moral. Porque a rude batalha da vida que tudo exacerbava, ia alterando em passo egual a physiologia rythmica dos grandes centros, fazendo até exagerado e falso o testemunho dos sentidos—do que davam prova os laivos de litteratura ou arte que tinham resistido ainda, mau grado as apathias dominantes. Assim, não eram raros os que vencidos de tedio morriam amaldiçoando tudo; os que emigravam para não voltar; os que se reduziam á condição d’immundos animaes, e os que em seitas informes, desprezivelmente rotos, encarquilhados, perseguidos, vagabundos, por toda a banda prégavam absurdos e desvarios. No luxo dos ricos, notas d’extravagancia insolente davam medida d’eguaes desregramentos. As mulheres collavam os vestidos com relevos impudicos, imitando nos córtes figuras de peixes, borboletas e aves, n’um charivari de côres vivas e contrastes de gosto caraïba. N’esta agonia de raça tropega, sem consciencia nem vigor, se a recusa de Menelau fez mau effeito, a nova do pão amassado com suor do trabalho, e apoz comido em palacio, parcamente, pobremente, como na loja mais fria d’um mendigo, longe de ser olhada como grutesca, victoriaram-na em exemplo da mais sã philosophia. E entre essa gente, Menelau subiu ainda. * * * * * Quando por toda a parte se espalhou que o monarcha, n’um impulso de heroica bondade, pretendia começar a viver dos ganhos das suas habilidades particulares, o pasmo da massa foi extremo, por se pensar que a amplitude d’este capricho chegaria á doação voluntaria e generosa, de tudo que o rei annualmente costumava sugar ás burras da nação. Ter rei de graça, eis o pensamento offegante n’esse paiz da fome. E a lenda transfigurava a figurinha regia, n’um messias de estranha pureza e abnegação sem preço. Formou-se mesmo um partido politico entre a juventude culta, tendo por lemma um pedacito de brôa, e em guiza de programma arvorando as rigidas frugalidades de Sparta. O jornalismo tomando conta do caso, atirou com elle aos escaninhos da provincia, n’uma galhofa d’epithetos. Choveram sobre a corôa mais bençãos e offrendas de polkas; as padarias coifaram-se pittorescamente de taboletas, onde Menelau coroado d’espigas e todo nu como um deus de fabula, estendia olympicamente os braços, mostrando pães saloios á posteridade. E de repente outra nova correu de bocca em bocca, deixando os povos attonitos—foi dizer-se que o rei ordenára festins por tres dias, n’uma das suas quintas de prazer, para inauguração da era nova que ia surgir. Esses festins teriam o cunho da mais estreita cordialidade, seriam por ventura um laço de amor apertado entre as grandes classes e o povo; todo o mundo alli se daria o tu da boa confraternidade sem reservas; e cada pé-fresco saracoteando-se nas escovinhas fadistas da sua condição, poderia em caso lhe fazer conta, beliscar os triceps das gordas conselheiras decotadas, ou correr o braço d’envolta aos toutiços dos magestosos dignitarios da côrte. Dispensar-se-hia o _toilette_, os militares iriam sem armas, os camponios levariam os seus barretes, as engommadeiras os seus capotes, os mendigos a piolharia accessoria. Nada de ceremonias, bella sociedade, nada de ceremonias! Sómente, como preventivo contra expansões de temperamento calido, se dava de conselho ás damas não levarem braceletes, collares ou quaesquer adornos de preço; se pedia aos agraciados de veneras não trazerem placas cravejadas, mas simples pequenas fitas symbolicas da ordem a que estivessem jungidos; se esperava do cavalheirismo dos senhores gatunos, durante esses dias, a suspensão de escamotagens ás bolsas e lenços d’assoar a que por desfastio eram dados, coisa pouca; como tambem se pedia aos assassinos o obsequio de, por egual periodo, se divorciarem das suas navalhas. Não por se temer desaguisado, que era bem conhecida a fina educação, elevado caracter, e alto nascimento de tão flamenga tropa, mas porque os ardores do sangue nacional fazem excitavel o brio, palavra puxa palavra, figurão boquiaberto está a pedir santa empalmança ao relogio, e d’ahi, como uma pessoa é fragil, sem querer, alguma vez... Emfim, nunca fiando! Tanto mais, que as festas offereciam engodos da melhor confecção, fontes de vinhaça gratis, pão molle, a bella favinha, e pela noite fechada, ora adeus! com moçoilas, salve-se quem puder. A cada poeta era permittido declamar trechos allusivos á obra de regeneração que se ia emprehender: haveria loiro para os celebres e vivazes, e Menelau mesmo fazia tenção de lêr um bocado de grande effeito. Apoz os banquetes, danças nacionaes, fogo de vistas—c’os diabos, que magnificencia! diziam todos por toda a parte. Mas emquanto taes alegrias vehementes esfogueteavam assim nos clubs do pé-fresco, extraordinarias batalhas se feriam em palacio, indomitas, torvelinhantes, entre Menelau que teimava democratisar-se ao limite n’aquelle passeio ás hortas, projectado, e toda a soberba côrte envergonhada de semelhante dispauterio. Porque emfim, se o monarcha descia do solio a fandanguear com patuleas de jaqueta e bocca de sino, a illusão optica da magestade ficaria perdida de todo, visto ella residir na persuasão geral de que o rei por fórma alguma podia ser um homemzinho á semelhança de qualquer outro, porém uma especie de semi-deus como o mikado japonez, meio mythico, meio incomprehensivel, meio velado, e sempre complexo, vibrando medos de redor quem se aproximasse, participando as propriedades da tromba-marinha, tendo os lampejos da scentelha electrica, e em communicação com os grandes espiritos errantes da sabedoria, da força, e da justiça. Desgraça se algum vassallo sentisse a sua voz de cega-rega, lhe adivinhasse caspa, lhe chegasse a suppôr fórma e natureza ordinaria, ou no grande polypeiro da real batata, contar viesse, ter-lhe notado botões purulentos, como na penca do mais elephantiaco general reformado. Ah, sendo assim, a monarchia estaria perdida! Que iria ser depois d’isso, do estranho nimbo, vetusto e terrifico, da velha realeza superficialmente doirada, que respeito inspiraria ella, quando o mulherio tocando-lhe nos velludilhos do manto reconhecesse logo que eram d’algodão, e pondo os olhos nos borguezins vermelhos do principe, entrevisse a rir por uma fenda, na culminancia dos callos, algum prosaico resquicio de piuga? —Cautela, meu primo e soberano, cautela, dissera marquez Fulgencio, todo peralvilho n’uma cabelleira empoada e profusa, assestando o _lorgnon_ com requintes impertinentes. A experiencia d’estes meus annos vos manda contar, que o povo imagina os monarchas pelas effigies das moedas e estampilhas, cuidando que elles só teem cabeça, e de relevo! Conheço a fundo a predilecção que daes ás lulas, e de sobejo vos tenho mostrado quanta benevolencia me inspiram essas pequeninas devassidões de paladar. Sois rapaz, sabeis evitar a azia pelo bicarbonato... Desde os arabes que a nossa familia cobre do seu real appetite, aquelles animaesinhos filamentosos; ha mesmo em brazão de nossa casa, uma caldeirada de lulas em campo de prata, que demonio! Mas se por ellas vos metterdes a dentro no banquete que intentaes, a plebe verá que tendes intestino, ao contrario dos deuses. E o carrascão, precioso soberano! Na nossa familia, este sumo dá azas á lingua, principalmente sendo por conta do lavrador; lembrai-vos que os segredos d’Estado devem ser inviolaveis. Mas o rei ficou inflexivel ainda, impaciente mesmo e desgostado, por vêr que o não seguiam no unico systema de restaurar o amor do seu povo, e fornecer completas provas do quanto elle seria capaz de se sacrificar pela felicidade dos subditos. Todos os meios de persuasão esgotados, o ministerio dos antigos, que sempre caprichára impôr o seu credo de rotina, secular e barbaro, ás passividades deprimentes da corôa, julgou digno pedir a demissão; marquez Fulgencio, que fôra n’um canto esfregar as palpebras corrugadas de cynico, com cebola, volveu chorando aos borzeguins do primo, pedindo para alli morrer, antes que transigir; e como urgia um profundo golpe politico, foi chamado o partido novo, e jorraram as reformas, começando pelos tres dias de festa e reconciliação geral, consoante o programma em boato. Apenas publicado esse programma, violentas sobr’excitações tetanisaram a cidade, ninguém queria crêr, o commercio teve medo, fez-se lucto entre os nobres, e o resto ria e farandolava em vivorio descommunal. Embalde as grandes classes mandaram deputações, d’embate aos caprichos democraticos do monarcha, fazendo-lhe sentir os perigos que havia, n’uma popularidade jogada de tal fórma. —Meu primo e soberano, as tradições de nossos maiores... aventurava marquez Fulgencio. —Os fornecimentos de meus parentes em atrazo, dizia lacrimoso o mordomo. —As prosperidades d’esta gloriosa nação, entrou a dizer o alto commercio. E Menelau impaciente: —Não! Não! Não! Appellou-se para a religião, e vieram os grandes mitrados de longas paragens, implorar por sua vez. Não! O poeta favorito mesmo, que via ameaçado o seu pascigo revigorante á mesa dos quarenta talheres, recebeu na face morta uma recusa formal. E os jornaes: —Estamos sobre um vulcão. Ás armas! Mas qual armas! O populacho que fazia os motins e intimidava os poderes, estava do outro lado. E as festas tiveram logar, apparecendo os ministros tunicados d’amarello, e o rei com ramas de loiro no craneo, e ricas sandalias cobertas de saphiras e perolas. Para chegar á campina onde estavam postas as mesas do festim, atravessava-se o grande lago, calmo e magnifico como um Mediterraneo. Era no tempo de maio, o ceu fazia tenda de montanha a montanha e horisonte a horisonte; entre oasis de palmeiras, cedros, baobabs e arecaes ondulantes, pequeninas aldeias riam sobre as aguas, entre reviravoltas de pombos e inviolaveis cegonhas brancas, sagradas no paiz. Violentos reverberos de sol enchiam a marinha toda d’arestas refulgentes, verduras de juncaes por entre as ilhotas perdidas, humidas massas de bosque em cujos mysterios, extaticos dormiam formidaveis tumulos de heroes e reis barbaros, sacudindo dos verandahs arruidos tapetes de folhas e cascatas de flôres. Acastellavam-se em volta titanescos scenarios de serrania lascada, convulsiva, aspera, côr de lilaz nos recovados á sombra, azul nas faces meio luminosas, e fulvas ou côr de rosa pelos espinhaços onde mais vivas diziam as incidencias do sol; e mais longe, cada vez mais, nas ultimas escarpas de _silhouette_ apagada, fazia obeliscos a neve, enormes, n’um scintillante crystal de facetas em flecha. Espendurado de barrocaes a pique, pela vertente dos desfiladeiros onde cabritos montezes balavam de cornatura demoniaca, os pagodes cobriam-se dos seus chapéos de feltro, grutescos como clowns repicando ao vento carrilhões phantasticos de campainhas. Então n’um grande trireme escarlate, esculpido de chimeras de oiro, dragões alados, cães de Fó com sceptros na pata, o rei no meio dos seus ministros, sob tendaes de purpura e ramos de oliveira, atravessou o lago nas azas dos remos, como n’um fim de magica, apotheotico, enramado, entre barcaças onde a turba se apinhava para o saudar ao som de cantigas, que as guitarras repinicavam sob as unhas dos _bailhões_, em acompanhamento ás rimas extrahidaa da real versaria. Bebia o rei por copos d’antiga fórma, como lêra ser uso antigamente, o vinho que negritos vasavam d’alto, rôxo-terra, de bellas amphoras lavradas de mascarões e relevos. Gritavam-lhe muitos: —Deixa provar, ó _reinadio_!—E vá de risota na companhia. As barcaças levavam quem tinha querido entrar, gente de acaso, gente de trabalho, mal vestida e grosseira. Menelau na sua tunica de linho, a meio dos ministros, barriga proeminente e vasta, onde as pontas dos seus dedos mal podiam cruzar-se, afigurava assim coroado de verde, d’estas gallinhas cruas, expostas nas casas de pasto sobre ramilhetes de salsa—e á pôpa do trireme um menestrel repetia-lhe as proprias composições. Derrotavam por esta e aquella aldeia, e mais povo em lanchões advinha a engrossar a esquadrilha. —Pae, diziam pequeninos gentios de nariz arrebitado e face de cobre, o rei assoa-se ás mangas com’a gente. Megeras de grenha revolta, pernas nuas, tanga de riscado, cabellosas de tromba, pasmavam que o rei não fosse de roca, como os idolos da freguezia. E evaporado o encanto as desillusões começavam; até que aproaram n’um desembarcadeiro pittoresco, onde colonias d’algas estendiam para a rocha, supplices mãos de vergastadas—e a turba urrando, cantando, brandindo maças, agitando as pennas d’avestruz doa saiões, fazendo telintar braceletes de bronze nos membros, e collares de dentes dos inimigos vencidos em combate singular, ia desembarcando em desordem, arco ao hombro, flechas á cinta, aos saltos sobre as frescuras da areia molle e salgadia. De pé no trireme, ia-os o rei passando em revista preguiçosamente, enojado do fartum que deitavam, perguntando se povo era aquillo, e no fim de contas já dizendo mal á sua vida. Ninguém da corte o tinha querido acompanhar, nem o menestral, nem marquez Fulgencio, o que amargou á sua benevola alma de creança, pueril, desequilibrada, sem firmeza, ao mesmo tempo fidalga e pusillanime. Lançado em plena campina, o banquete tinha simplicidades de menu, por tal maneira rusticas e primitivas, que os pés-frescos entraram logo a murmurar, n’uma raiva de fome estimulada pelas emanações do lago. Para entalar uma bucha de pão com o meio litro de vinho, não valia a pena sahir de casa, muito menos da cidade; que diabo de rei era este somitego, que nem se explicava ao menos com dois dedos de beef? Os gritos de—carne! carne!—pozeram de sobreaviso o monarcha, forçoso foi mandar abater os bois que havia nas arribanas da granja. Como os cozinheiros do paço, orgulhosos da sua sciencia e jerarchia, não tinham querido embarcar, os convidados arregaçando as mangas e brandindo navalhões, deliberaram elles mesmos fazer cozinha. E o arraial ganhou com isto episodios d’effeito imprevisto, desordens carniceiras, alegrias ferozes d’insaciavel gula, como n’um acampamento de nomadas. Por toda a planicie acendiam fogueiras, subiam ás arvores para cortar lenha, esfolavam e abriam pelo ventre corpulentas rezes dependuradas nos galhos do pinheiral; entre as cabellugens viscosas do matto, na exuberancia das relvas, aqui, além, viam-se abalar mulheres em cata d’agua, levando cantaros á cabeça; por traz das rochas, nos maciços de zambujeiro, alecrim selvagem, leitos de campanella, rosmaninho ou trevo, languidos casaes rompiam á socapa, recompondo furtivamente nos vestidos, a desordem do amor partilhado. E Menelau paternal, esfregava as suas mãos prelaticias, rosnando:—ah seus maganões, toca fazer população! Cavalgando pipas que sem cessar jorravam, outros bebiam por grandes escudellas, olho turvo, maçã congestionada, arengando a oratoria das tabernas e dos mercados. Mas o cheiro da carniça grelhada entre pedras, que entrou a derramar-se no campo, trouxe os primeiros desenfreamentos do appetite, os urros e pulos redobravam; magotes de gentio com vivas ao monarcha, agitando ramos e farrapos, lá iam em danças da _Africana_, meio obscenas, meio barbaras, deante da tenda regia desenrolando serpentes com vastas perspectivas, n’um charivari de remoinhos e berros, em que se misturava o basso som dos pés descalços no chão. O festim começou na relva, por baixo dos pinheiros, aqui e além desordenadamente, com maltas de grossas femeas, collarejas, lavadeiras, donas de tasca, senhoritas d’arrabalde, deliciadas d’arengar na presença do rei, todo o calão officinal dos seus mestres. A titulo d’exemplo, Menelau impozera-se comer apenas d’aquelle nobre pão suado nas lides do trabalho, heroicamente, tão saboroso e reconstituinte no rezar da petição que os populares tinham feito. E por simples comprazer d’agradar, ia manducando a grandes bocados esse rolão salobro e massudo como argamassa, que sabia a terra e a bafio. Por vezes, a droga vinha-lhe á bocca n’um solavanco d’azia, lagrimas involuntarias brotavam dos seus olhos pisados, emquanto o povo murmurava—está commovido, mariola! Querendo reanimar o monarcha, os pés-frescos tomavam liberdades d’occasião, davam-lhe abraços em pleno ventre, propunham-lhe jogar o _homem_, ou no melhor dos callos lhe iam ferrando pisadas esmagadoras, mascavando brindes com vozes de vinho, n’um chafurdar d’insolentes cordialidades. Ao mesmo tempo, e mais isto o maguava, ouvia elle os versos que compozera em noites inspiradas, repetidos por boccas vinosas, corruptos de calão, intercalados de riso e facecias, e subia-lhe um desgosto de funebre reinar sobre tal babuge de homens. Fulgencio tinha razão, tarde reconhecia isto, o pobre Menelau! Mas forçoso era parecer alegre, mesmo respondendo a brindes, que em vez de lisongearem a sua divina pessoa, o estavam enxovalhando mais e mais. Com um riso livido marbreando-lhe a bocca contrafeita elle esboçava gestos, que bruscamente se quebravam n’um asco, respondia palavras incoherentes; e pelas fauces da canalha viam-se desapparecer os ultimos nacos de boi e os ultimos picheis de vinho. Veio a noite, nas sonolencias do campo os grillos crivavam o silencio de silvos, e como lampadas accesas para uma boda, já as estrellas pendiam na tenda palpitante dos céos. Blondes translucidas subiam do lago, condensavam-se, subiam mais, ligeiramente, apagando nas serras a chanfradura dos desfiladeiros, e confundindo bastiões de rocha com as torres asperas dos pagodes—pois a essa hora ainda, espapaçados por baixo das arvores, os pés-frescos bebiam ou rolavam nos braços das suas damas. E como o rei quizesse voltar, muitos oppunham-se, cercavam-no, mais um pedacinho, amigo rei, por quem é, apertando-se-lhe em volta n’uma quadrilha de ratoneiros. A retirada foi quasi uma evasão, todos queriam embarcar no trireme; muitos em zig-zagues, batiam no hombro de Menelau, dizendo—até sempre, ó coiso, explica-te cá com um cigarro. E o rei impava da brôa comida, sentia-se asphyxiar pausadamente, crescia-lhe o estomago dorido, e suores d’angustia gelavam-se empastando-lhe os cabellos nas fontes. Tarde o seu arrependimento chegava, de haver transigido com a populaça, e abdicado do orgulho dynastico que mantinha a distancia, essa vil raça de fellahs; esquecera que a realeza como o pau bichoso, dura podre muito tempo, em se lhe não tocando; a sua travessia pelos versos fôra ridicula; querendo viver do triste pão das cabanas, tinha sido idiota. E como esponja embebida em liquidos, turgecia-lhe no estomago aquelle rolão comido, desmedidamente, furiosamente, obstruindo-o n’um peso de metal que enregela e se mobilisa. Para o desembarcar, os ministros fizeram padiola, porque o monarcha nem se podia mexer; e atraz a turba esguedelhada, praguejava e mugia á luz dos fachos, na alegria indecorosa do vinho. Rubros clarões então descobriram os caes apinhados de burguezes, de chapéo sobre os olhos e mãos nos bolsos, rindo baixo uns para os outros, e voltando costas quando passava o cortejo. Por vezes, do coração das trevas rompia um dichote cruel, que instigava publicamente o escarneo, incitando á revolta; escuridões gordurosas choviam das emboscadas, fervilhando rumores d’ameaça; e subitamente, cortando o bairro nobre, babylonia de fachadas algidas, alpendres lugubres, e torres roqueiras com gradaria carcomida, Menelau viu bem que estava perdido. Nem uma luz nas frontarias, nem um viva na bocca das familias patricias, que o viam passar co’a turba multa de pés-frescos. E a sua bocca escaldava, o estomago crescia-lhe sempre, e esses labios brancos murmuravam n’uma afflicção d’embuchado:—o meu reino por uma botija de Sedlitz! Ai, pobre Menelau! Quizera digerir pão ganho a trabalhar, como se de tal fosse capaz o seu estomago d’ocioso, delicado, senhoril, dyspeptico, que uma ascendencia de pompas, costumes galantes e prazeres, sómente educára a viver do pão dos outros, e aqui está como se foi d’indigestão o bom rei Menelau, tão querido do seu povo, que todos os annos inda agora, ha lucto no dia da sua morte; e antes d’elle seis mezes ninguém trabalha de magua, o que tambem se dá nos seis seguintes, apesar de mui laboriosos, todos os habitantes do pequenino paiz dos pagodes. Para cumulo de pouca sorte, morreu sem admirar a rica palma chifre e oiro, que pelos certamens poeticos do outono, Mont-Real lhe endereçou em preito ás _Folhas e Cascas_ rimadas, premio votado unanime pela nobre academia tolousina, na secção: _sujet libre, quarents vers au plus_. A palma figurou muitos decennios entre as joias da corôa; mas fatalidade! veio um dia a republica, que a fez talhar em botões, para as cuecas de gala do presidente. JANTAR NO MOINHO Estes dias luminosos em que nos apraz o amor das coisas simples, a comprehensão e o cumprimento dos deveres honrados, passados no campo e fóra da convivencia monotona dos trens de praça, dos _meetings_ republicanos com vivorio, dos typhos e do parlamento, são-nos particularmente agradaveis e infiltram-nos no organismo fatigado, particulas de saude que fazem alegre a alma, e dentro de nós cantam marchas colossaes de poderosa instrumentação, _preghieras_ de rythmo suavissimo e casto, toda uma opera de auroras e triumphos, cheia de grandes arias e surprehendentes córos. O ceu não tem negrumes, é frio e lavado o ar, transparencias em que o olhar se embebe sem esforço e a alma sonha sem pesadelo. Tu bem conheces este estado gazoso da alma, caro homem gordo que vens de me lêr, quando passas da rua onde móras na Baixa, para o ar de Pedrouços ou Lavarrabos. Este purissimo azul cantado desde que ha lyras, tão puro de lei, que nem as evolações morbigenas da poesia chocha d’outros tempos conseguiram corromper e estragar, sempre novo para os evohés de cada vate que chega, é o grande poema colossal, que cada um de nós busca metrificar e comprehender, na aprendizagem artistica de cada espirito em jornada para o supremo ideal de bondade, de justiça e d’amor. Em cada manhã que rompe, pelas esplanadas que vagarosamente o arado sulcou, e as primeiras folhiculas das seáras germinantes avelludam de um tom verde e tenro; pelos barrancos franjados de arvoresitas sem folhas, espinheiros cobertos de drupas escarlates, maciços d’alecrins selvagens, losnas acres, rosmaninhos sombrios, estevas, piornos e murtas, o sol verte a sua pulverisação de oiro n’uma serie de musicaes vibrações, cujo rythmo só percebe uma pupilla impressionista; vibrações por que se afina a musica dos passaros na pennugem dos ninhos e o _pizzicato_ do arvoredo regorgitante de seiva; vibrações que provocam lentamente o desgelo em refulgente orvalho, na concavidade dos pegos, á flor dos quaes anuros irrompem coaxando, verdentos e amorosos, fazendo tambem os _couplets_ do seu primeiro noivado d’este anno... Com o meu chapeu derrubado e as minhas botas de couro cru, solidas e altas, cinta preta e jaleca de pelles, á hora em que os senhores estão digerindo ainda môlhos do Silva e carinhos d’itaïra, vou eu a pé, fumando o meu cachimbo ou pensando nos meus alqueves, pelas veredas que passam nas folhas de semeadura, ou como fulvas serpentes galgam as espinhas dorsaes das cordilheiras. Os cantos dos pardaes recordam-me sem saber porque, um canto d’ave estrangeira, preciosa ave cujo perfil etrusco lembra uma pintura exhumada dos sarcophagos de Corneto e Castellaccio, e cuja larynge é um thesouro—mademoiselle Borghi, essa morena de olhos intelligentes e bocca sarcastica, a quem Lisboa já deveu as maiores commoções e os mais vivos enthusiasmos. E á força de muito pensar na cantora, sob estas arvores que em voz baixa cochicham e gentilmente me cumprimentam, as _coquettes_, julgo que a voz d’ella me chega abafada no rumor das franças que o vento beija, trazida sobre os monstros phantasticos de nuvens elegantissimas, que chegam em caravanas como dromedarios dolentes, com a sua bagagem de chuva talvez; ou ainda communicada pelos fios do telegrapho, em cujo extremo Edisson tivesse a bondade de nos prender a sua simplissima e prodigiosa descoberta. N’uma aldeia lá baixo, ao fundo do aspero Alemtejo, onde passo a mór parte do tempo, a raça é bella de linha, vigorosa e sobria, d’uma pureza e simplicidade de costumes que me encantam, e governando-se como as tribus dos primeiros dias, sem conhecer ente supremo, além d’um velho lavrador patriarcha que reparte com os mais pobres, nos maus annos, os seus celleiros. Admiravel, a ignorancia serena d’estas boas almas pelo resto do mundo, e o seu desprezo ao mesmo tempo, pelos artificios pelintras, que grassam como uma civilisação tuberculada, por terras mais populosas da cercania,—cabeças de comarca com funccionarios a trezentos mil reis e casaquinha de botões recomidos, ou pobres villotas, a que a estação de caminho de ferro deu pretensões de centro culto e fidalga indolencia. O circo de montanhas altissimas que serve de _fichu_ á aldeia, isolou dos maus convivios a população laboriosa, cuja probidade inabalavel é encantadora de vêr. Ao mesmo tempo, um respeito pelas mulheres, um desvelo de familia para familia, uma religião poetica e pagã da natureza... As raparigas casadeiras sahem sós pelos campos, em cabello e roupinha curta, atravessam as eiras e os jogos de bola ao domingo, n’uma confiança donairosa, que é sympathica a toda a gente. Á porta das cabanas, a população das femeas costura e canta, n’uma paz cheia de candura. No meio dos largos, oliveiras de troncos rocados onde enxuga roupa. Os bois de trabalho, enormes, tendo um ar de pessoas de familia, com leves cumprimentos de cabeça para um lado e outro, passam junto ás portas sem guia, caminho dos seus curraes, á hora de beber; ou na grande dorna da fonte, sorvem com intermittencias preguiçosas, a agua que jorra por uma gotteira desconforme, em quanto aos seus pés quasi nuas, espendurando-se-lhes dos cornos, creanças brincam como bandos de novilhos descuidosos. Quando desce o astro, galvanoplastisando no poente clarões de forja titanesca, e entra a vir por baixo das arvores uma brisa refrigerante, as raparigas tomam os cantaros á cabeça, e direitas, trigueiras, de olhos magnificos, mãos no quadril, abalam por grupos cantando á fonte, com regularidades quasi architecturaes de figura. Vão os campos adormecendo, algum cão de malhada tem latidos, a aldeia tem recolhido aos lares, dos seus rusticos trabalhos, e faz-se assembléa geral em redor da fonte, para saber como ficou cada um na colheita, se fulana casa, e o burro do compadre vae melhor. Os rapazes arregaçados e altos, figura secca e musculo d’aço, bellos adolescentes como Yalouleds argelinos, tendo um ar calmo de estatuas, tiram agua para os cantaros das irmãs e das primas, cantando sob os freixos que agitam com ar benevolo, as suas cabelleiras de folhagem. Os gados apertam-se cabriolando com sêde junto do bebedouro, fazendo elegias com balidos, a exprimirem poeticamente as suas saudades do sol. Trindades. Escurece. Por baixo dos parreiraes sem folhas, umas agora, outras depois, vêem-se as moças em _silhouette_, equilibrando cantos arabes, sem ondulações nas ancas, e como levadas n’um sopro. —Até ámanhã! Até ámanhã! —Como vae a tua vacca, Maria? —Mal, por desgraça minha. Desde que o boi lhe morreu, o _alimal_ não tem cara de gente! Resposta que pinta a vida primitiva, amiga e em commum, d’esta familia toda animal, homens e brutos, partilhando eguaes interesses e gozando d’eguaes respeitos, sem distincção de fórmas ou categorias, o homem auxiliando o bruto, o bruto auxiliando o homem, e todos com direito á vida, e todos com direito á estima, santa vida! * * * * * Meio dia nos relogios de sol dos camponezes que varejam as oliveiras (não podem calcular como houve azeitona este anno!...) e no estomago valente das raparigas, que em baixo curvadas sobre a terra, apanham os fructosinhos negros cantando: Tenho dentro do meu peito Um canivete doirado, Para cortar um _pan-leve_ No dia do teu noivado. O sol é como um botão d’oiro polido na farda azul do incommensuravel. Subo as encostas apoiado ao meu bordão de rendeiro, e á medida que subo alargam-se-me os horisontes, como pannos de fundo successivamente corridos nos confins dos valles, que a luz retoca n’uma graça castissima de tonalidades. Á direita, um moinho braceja com os seus braços de vélas laboriosas, dilatadas como azas de borboletas reaes. E penso no moinho de Daudet, aquella deliciosa ruina no fundo da Provença legendaria! O vento faz-lhe ranger as cordagens e o cavername. Á roda tudo verde, relvas altas e humidas, tapeçarias interminaveis que ás ouviellas dos ferragiaes vão descendo, com os seus _bouquets_ de arvoredo, renques de choupos e salgueiros, casinholas e hortejos, o convento em ruinas onde as corujas piam, e no declive silencioso, o cemiterio da aldeia, sem capella e sem arvores, semeado de pontos negros com numeros brancos, e tendo aqui e além, pequenas grades negras de sepulturas. Detenho sobre aquelle cerrado os meus olhos. Ai de mim! Dos que me viram pequeno e me tiveram nos joelhos, dos que brincaram comigo e todas as manhãs me vinham acordar n’um cicio de beijos castos e risadinhas innocentes—pobres e queridos deuses da minha alma!—muitos jazem além para nunca mais. Doze badaladas na parochia. Os que lavram e os que varejam, os que apanham azeitona e plantam bacello, param da faina. —_Meio dia, panella vazia!_ é o que se ouve. E nas courellas, nos olivaes, nos reconcavos da montanha e nos vinhedos do valle, ranchos fazem roda, cantando para jantar. Biot, Helmoltz ou mesmo Tyndall, se estivessem cá, iam logo calcular a distancia dos cantadores pela intensidade mais ou menos amortecida com que aqui chegam as vozes. Eu sigo caminho, fumando no meu cachimbo, solitario e nostalgico, com a saudade brumosa dos que nunca tiveram _chance_ na vida. Começa o montado, chão coberto de bolotas, arvores lacoonticas que pendem carregadas de fructos, meio engastados nas suas capsulas serabulhentas. A vara de suinos passa, fossando, tasquinhando, grunhindo. O suino mesmo em sociedade, é macambuzio, coitado! Quantos vivem e morrem a comer essa bolota farinosa, que a meia duzia dos seus irmãos felizes faz bordar a ouro nas golas dos uniformes de gala! Detenho-me a calcular melancolicamente, que por mil d’estes tristes assados em familia, e patentes á venda por essas salchicharias, ha talvez um só que chega a conselheiro. E esse consagrado mesmo, que monotono e que tristonho!... Quasi sempre copía em côrte o ar rhinoceronte do rei João VI, calvo, obeso, adiposo e molle. Mesmo a fallar na camara dos pares, do seu _fauteuil_ côr de bronze, sob os olhares do arcebispo de Mytelene, a sua voz é um grunhido nasal, bom para se repercutir em charneca, nada mais. E o typo do massador, do auctor de prosa dura, victima de fluxos hemorrhoidaes, callos _olho de perdiz_, e assaduras na região do perineo. Sempre que elle é ministro, os artigos politicos da opposição representam apenas—um raspão de costelleta. E no seu fervor doutrinario, a maioria, o mais a que chega, é a servir ao paiz _Son excellence Eugène Rougon_, com feijão branco. * * * * * Á janella do seu moinho, o moleiro de barrete azul e cigarro, faz-me os seus cumprimentos de velho amigo, confessando que me não esperava tão cedo, e dizendo que estou um homem, benza-me Deus!—o que a fallar serio me não espanta, pois que lh’o oiço ha dez annos, sempre que nos vimos no campo. Pomo’-nos a tagarellar sobre o que vae pelo mundo, nos casamentos projectados, pauladas distribuidas desde a minha ultima estada na terra, nas esperanças da seára e no preço do vinho. Que as decimas do anno hão de augmentar, pelos modos? Ha uma coisa que não entende lá muito bem, o pobre trabalhador, a quem o Estado tudo suga e nada dá. —Uma comparação! diz-me elle com energico arregaçar de mangas. Comprar uma creatura o seu porquinho, gastar na compra do bagaço e farello com que o engorda, ás vezes uma quantia séria, e quando vae a fazer chouriços e presuntos do bicho, vir a magana da justiça dizer—oh! das cabras, salta p’ra cá tanto, por fazeres matança p’r’á fartura da casa. Paga-se de ter burro, de ser casado, de ter filhos, de pisar a terra de Deus, paga-se de tudo, senhores!... Com um dedo descuidoso aponto-lhe a rir o varapau que elle esqueceu á porta. O moleiro encolhe os hombros e responde: —Mas em quem? Encolho tambem os meus, sem lhe poder mostrar um costado criminoso, n’um paiz onde todos mais ou menos o são. Se quero jantar? Não recuso, e elle vem-me abrir a sua porta hospitaleira, fazendo-me penetrar a sua morada cheia de saccos de farinha, mós alvas, e trigos em montões sobre as grandes esteiras de palma do Algarve. A mulher estende a toalha na banca, lisonjeada da minha franqueza e orgulhosa de me receber á sua mesa, a santa creatura! Uma pequena loira, de olhos espantados e bocca humida, um grande cão de guarda de poderosa cabeça e pêllo negro, dois gatos malhados, e o rapaz do carrego, chegam-se para me receber affavelmente, para me sorrirem, para brincarem comigo e me fazerem festa. E todos: —Esta casa é sua! Esta casa é sua! Dizem o moleiro e a mulher com a bocca, os gatos, os cães, a pequenina e o rapaz com os olhos—bons olhos sinceros e castos onde Deus reflecte a suprema bondade, e a biblia do azul deixa um capitulo da sua limpidez. Jantamos. Mostram-me as habilidades da filhita, que já anda á escola. Descubro um livro, dois livros. —_A Cartilha maternal_ e os _Deveres dos filhos_. Que jubilo, encontrar aqui a mão que tenho tantas vezes apertado, d’esse benemerito tão simples e grande, que todos nós, escrevinhadores de má morte, umas vezes por outras, vamos ouvir ao Salitre, na pequenina casa onde ha creanças loiras tambem, _Cartilhas maternaes_ e _Deveres dos filhos_! Em dez lições a creança tem feito prodigios. Vae pela manhãsinha no burro entre dois saccos de farinha, para a aldeia, toda embrulhada no chailito da mãe, os livros n’uma taleiga, lunch na outra, escoltada pelo rapaz e pelo cão. O rapaz cantando ladeira abaixo as imaginosas cantigas que ouve pelos bailaricos; o cão latindo atraz das alveloas e codornizes, que entre regos procuram os bagos de trigo semeado de fresco. Á tarde volta, faminta e viva, fallando essa linguagem monosyllabica dos anjos, que as mães comprehendem tão bem, e faz rejuvenescer as tremulas avósinhas corcovadas. Despeço-me, e vem tudo á porta para me acenar quando eu fôr longe. Até mais vêr! até mais vêr! Na ribeira, as gallinholas pullulam, segundo me disseram na adega. Até mais vêr, boa gente! Este velho Fortunato é rabugento quando espera, diabo! É preciso estar lá d’aqui a uma hora... ERRATA Na pagina 220, linha 21, onde se lê _doenças cerebraes_, deverá lêr-se _doenças nervosas_. INDICE Pag. Symphonia de abertura 9 Os novilhos 23 Noite no rio 33 Abandono do pombal 43 O roubo 59 O homem da rabeca 93 Mater dolorosa 99 Mephistopheles e Margarida 111 A camisa 135 O morgado 145 Madona do Campo Santo 185 A indigestão 271 Jantar no moinho 313 FIALHO D’ALMEIDA VOLUMES PUBLICADOS _Contos_ 1 volume. _A cidade do vicio_ (contos) 1 volume. EM PREPARAÇÃO _O paiz das uvas_ (contos) 1 volume. _OS DECADENTES_ (romance da vida contemporanea), constando dos seguintes livros, d’acção independente entre si, porém relacionados sob um plano critico geral: _O seductor Meyrelles_ 1 volume. _A Fabrica_ 1 volume. _A Quebra_ 1 volume. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A CIDADE DO VICIO *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. 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