The Project Gutenberg eBook of A Primavera This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A Primavera Author: Antonio Feliciano de Castilho Release date: April 7, 2021 [eBook #65021] Language: Portuguese Credits: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA *** OBRAS DE Antonio Feliciano de Castilho _Constando-me ter havido quem reimprimisse em França, sem licença minha, dois volumes de minhas Obras, e sendo isto sobre iniquidade, manifesto roubo, declaro que perseguirei em juizo com acção de furto, em quanto a nossa Lei sobre imprensa não estabelecer outra propria para taes casos, a quem quer que, sem minha expressa licença, reimprimir esta ou outra qualquer Obra minha, ou impressas fóra as introduzir e vender neste reino._ _A. F. de Castilho._ A PRIMAVERA POR _Antonio Feliciano de Castilho_, _Bacharel Formado em Direito, Socio da Academia das Sciencias de Lisboa, da Sociedade Juridica e da dos Amigos das Letras da mesma Cidade, da Sociedade Literaria Portuense, do Instituto Historico de Paris, da Academia Real das Sciencias e Bellas Letras de Roão._ _Mais correcta, emendada, e copiosissimamente accrescentada._ Lisboa. NA TYPOGRAFIA DE A.I.S DE BULHÕES. _Rua do Soccorro de Cima N.º 39. 1.º andar._ 1837. _Stet quicumque volet potens_ _Aulœ culmine lubrico:_ _Me dulcis saturet quies;_ _Obscuro positus loco_ _Leni perfruar otio;_ _Nullis nota Quiritibus_ _Ætas per tacitum flua_ _Sic cum transierint mei_ _Nullo cum strepitu dies,_ _Plebeius moriar senex._ _Illi mors gravis incubat,_ _Qui notus nimis omnibus,_ _Ignotus moritur sibi._ _Sen. Thyest. Act. 11._ ANTE-PROLOGO. Bem será para alguns motivo de maravilha, e de riso para muitos, a declaração por onde me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o estou principiando, e querendo Deos o levarei ao cabo, antes de conhecer a Obra para que vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles bem estirados, são hoje discorridos depois de impressa, e por tanto segundo meu costume aposentada e esquecida, a minha _Primavera_. N’estes quatorze annos, começados a contar aos vinte e dois da minha vida, não só se encerrou, e desvaneceo aquella melhor, mais florída e derramada parte d’ella, que tanto discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior, senão que ahi se desatou tão desfeito temporal de successos estranhos, de terrores e calamidades publicas; tantas certezas saírão vãs, realisarão-se tantos impossiveis; por tal arte se transtornou e renovou ora em bem ora em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e tenues reliquias de um passado, que ainda nós os moços alcançámos, subsistem já agora quer nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e emfim por tudo isto nos petreficámos, e envelhecemos em tanta maneira, que por mim digo, n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna desbaratado cabedal de seculos, e o Tempo uma larga idade do mundo. Tantos e taes annos que da minha Obra me separão, não custará muito a crer ma tenhão tornado ao cabo tão alhea, como se d’ella só mui por longe me houvera susurrado uma leve noticia. Esta idea confusa, mas suave e suavissima como apagado retrato de antigos amores, como lua de estio contemplada em fundo de ermo, ou como vista de remotas velas ao coração do que alem-mar definha desterrado entre asperezas, esta idea toda mansa, toda rosada, toda primavera, mais temo perdê-la do que todas as minhas outras illusões, se por ventura já hoje alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez me não falte rasão, que ao reler estes Poemettos, nem ache n’elles as côres que os longes me figuravão, nem os gostos com que os hia não compondo, mas para assim dizer colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles do Mondego: tanta foi a metamorphose que de mim fizerão os livros, as couzas, e a idade! Como que tenho uma dolorosa certeza de que me acontecerá com isto o que ja me succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia, as cazas onde a minha primeira infancia fôra brincada, amada e perdida: tudo achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo me dizia muita saudade e nenhum prazer; cada pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão outros tantos desenganos. Grande differença esta entre as nossas proprias antigalhas e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo misterio nos deleitão, são a primeira pagina de um romanse para a imaginação; as nossas pela sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima de uma historia que assaz nos corria formosissima. Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas horas ao de cima d’estas fantasias, e antes de se me apagarem, se já he que isso tem de ser, alegrar com o seu reflexo estas paginas, que mal poderáõ ser muitas: sempre he cedo para lançar pelas janellas fóra os brinquedos de nossa puericia; e mal haja quem o faz sem que todo o coração se lhe aperte dentro no peito. Por isto que digo, entenderáõ meus leitores o porque, exhausta logo no primeiro anno a primeira impressão da _Primavera_, tantos se tem devolvido sem que jamais me deliberasse a reimprimi-la. Pelos fins de todos os invernos e começos da melhor estação, me era ella de todos meus livreiros requerida; por mais de uma vez me senti abalado, mas a lembrança do meu desencantamento me era sempre esquiva, e repugnava-me, como uma certa simonia, o arriscar-me a por alguns cruzados malbaratar uma dilicia do sanctuario de meu animo. N’esta parte não me entenderáõ todos, mas os meus intimos confirmarião com juramento o que digo. Agora porem que até a minha pobre bibliotheca já se ahi vai rareando e desfazendo vendida, e me importa pôr entre mim e a terra do meu nascimento muita outra terra de permeio, e Deos sabe para quanto tempo, obedeço aos desejos de muitos dos que ainda lem, ao conselho dos amigos, e á lei da necessidade. Reverei para a impressão, e perderei para mim este livro de saudades, livro que só fechado eu poderia ler como me convinha. E por quanto, depois de sua leitura talvez me desamparasse a vontade de aventurar algumas reflexões sobre este genero de poemas, fa-las-hei antes, e já aqui; deixando para o Prologo as que ácerca da Obra me forem por ella mesma suggeridas. A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente lhe dão nome, pastoril, com ser de todas a mais antiga, nunca em nenhuma parte se perdeo, dado em muitas decaisse não raro do seu credito e lustre; e segundo todas as mostras, deitará ainda até ao fim das idades literarias. Sempre moça como a terra sua mãi, mansa como os arroios seus irmãos, formosa como as flores que lhe guarnecem o chapeo de palha, livre e leve como os zefiros pela assomada dos montes, alegre, namorada e innocente como as aves na madrugada do anno, he de ver qual se vai sozinha e vivissima por entre tantas couzas mais fortes que morrem; com o seu cajado de pastora, segura entre tantos inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle bem vinda; vingando e vencendo todos os seculos; dando a alguns d’elles de mais amoravel indole a sua propria fórma; e relevando-lhe, ainda os mais ferozes e guerreiros, que lhes ella misture com a sua frauta do serão os himnos da guerra, lhes entreteça maliciosa violetas com os louros, e os campos que elles a ferro e fogo devastarão os repovoe ella de imaginadas verdura, flores e felicidade. Hum curioso reparo poderáõ ter feito os que os fazem no ler poetas, e he, que apenas haverá algum dos chamados Epicos, para quem o campo e sua vivenda não fosse deleitoso assumpto. Compraz-se Homero de travar com as façanhas dos heroes toques e pinturas do viver natural e primitivo; Virgilio, que ja primeiro que se abalançasse ás armas e guerras tinha cantado os pastores, e doutrinado os lavradores, particularmente se recreia quando no meio das batalhas pode a uns e outros mandar algumas saudades; nos dois Orlandos e em todos os livros de cavallaria, vai igual mistura; o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia escrito o Amintas: e d’entre os nossos, para por todos citar um, mas um que por todos valha, Camoẽs, não só afamou os Portuguezes sujeitadores de elementos e homens, mas todo se deleita em conversar os pegureiros e campos da nossa graciosa Lusitania, terra cujos filhos, se me não engano, são por indole dotados destes dois extremos, de brandura e de valor, de amor ao obscuro rusticar e ao glorioso correr de aventuras e perigos: por onde entendo que para muito mais do que são os fizera Deos, assim como fizera para muito mais do que he o grandioso torrãozinho que habitão. Disse engenho subtil, e bons juizos crêrão, que o desejo, ancia e esperança de bem que todos temos innatamente, era claro argumento de uma vida futura, ja que nesta se nos não deparava contentamento: assim tambem dissera eu, que este natural e universal gosto á poesia amena he um indicio de que, se jamais o homem foi homem e ditoso, la nos campos o foi; que as plantas d’onde nos brotão sustento e recreação, exhalão secretamente amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos valles das idades patriarchaes, em quanto os bosques não caírão para em sua vez se levantarem as muralhas, as bençãos do ceo orvalhavão muito mais amiude. Alguma couza farão para aqui palavras do meu Florian, que porque d’elle são as verterei de muito boa mente—“Oh se nós podessemos ler em seu original texto os bons autores d’essa Allemanha, enlevar-nos-hia a tanta singeleza, a tanta doçura por onde de todas as outras se estremão suas obras! Em conhecer a natureza, e especialmente a natureza campezina, levão-nos elles uma infinita vantagem: amão-na mais deveras, retratão-na com tintas mais fieis. Todos nossos poemas pastoris nada tem que ver com as meras traducções de Gessner. Ninguem jamais fecha a Morte de Abel, os Idyllios ou Daphnis, sem ja se sentir mais soffrido, mais terno, mais mavioso, e porque tudo diga, mais virtuoso que antes da lição. Não respira senão moral pura e facil, e virtude d’aquella que logo vem trazendo bemaventuranças. Fosse eu parocho de aldea, que sempre á estação da missa havia de ler e reler Gessner aos meus fregueses: e por certissimo tenho que todos meus aldeões se farião probos, todas minhas parochianas castas, e ninguem me havia de ao sermão adormecer.”— Isto dizia de Gessner Florian, digno de o louvar pelo mui bem que o sabia comprehender e seguir. Isto não escrevia eu nem o dizia, mas amplamente o sentia n’esse bom tempo que ja la vai. Gessner não era para mim um nome, senão um individuo presente, um suavissimo contubernal; nem ja suas obras me erão livros, mas realidade, vida e mundo.—Sei que se não leva a bem o muito fallar um individuo de si proprio, mormente em publico, e mormente ainda quando esse individuo he tão mesquinho sujeito como eu: mas de que outra couza posso eu escrever? dos outros? não os conheço; erudito, não o sou; descubrimentos não os fiz, nem ja agora os farei: fólgo de espraiar conversa com os meus patricios, na falta de melhor assunto, fallo-lhes de mim e de meus gostos.—O mais selecto de todos elles era pois Gessner, no qual e na escolha de Poesias Allemãs por Huber, andou por alguns annos cifrada toda minha leitura, porque de quantos autores patrios meus conhecidos havião escrito e poetado de couzas rusticas, nenhum havia que ou por sobejidão de engenho e argucia, ou por mal cabida escuridade, ou pelo trivial do pensamento e dicção, ou pelo desageitado do metro, ou pelo urbano artificio do que lhes parecia singeleza, ou emfim por um não sei que de mais ou de menos, lhe não lançasse lodo e arêa no jardim que bem ao meio da alma me havia sido por Gessner plantado.[1] Muito aproveitei em tão boa escola: como poeta não, que bem o sabem meus leitores; como homem sim, que disso tive mui cabal e experimentada certeza. Minhas nativas propensões beneficas se arraigarão; minha interior aspereza, que todos de si a tem, se amolleceo; sentia-me palpitar no peito um coração da idade de ouro; esvoaçava-me na cabeça uma alma inteira de Arcade; compunha todo o meu economico futuro de uma choupana, um pomarinho, e pombas mui brancas e cordeiros mui nedios; em summa, se Florian fosse meu parocho, propor-mehia nas suas homilias como um santo da sua bemaventurança. Assim, e por esse tempo, foi a minha _Primavera_ improvisada, e como ella as _Flores_ e as _Quatro Partes do Dia_, Poemas que brevemente sairáõ estampados, e inteirão com o presente volume o fragil monumentinho dos annos, em que fui tal, qual desejava permanecer toda a vida. Passe ainda adeante a sinceridade: com vergonha não só minha, mas do tempo em que vivo, confesso que d’essa ingenua bondade, pela qual eu mesmo a mim me comprazia, o de mais (como espirito que era subtilissimo) se evaporou; parte se azedou no vaso com as más sementes de odio que de fóra lhe lançavão; o resto se recozeo e estragou ao fogo das civis dissensões: procuro-me e não me acho, ou se me acho não me amo. Ainda a minha antiga choupana, os cordeiros nedios e as pombas alvissimas se me fazem lembrados por uma noite de estio, mas riem menos, e não me acenão senão fracamente. Tanto vi e vejo de alhêas maldades, tanto tem procurado os entes mais abjetos e vis amargurar-me, que nem quasi na virtude acredito, nem na possibilidade de ser feliz: e este estado, se não he de todos o mais antipoetico, se na escola romantica pode até lograr os foros do _bello ideal_ e ultimo sublime, pelo menos he o mais avêsso á filosofia e mansidão Gessnerica. Oh quando poderáõ os dois monstros, em cujas garras inexpertamente caí, quando poderáõ Politica e Romantismo dar-me um longe, uma sombra dos interiores commodos que me lá ficarão com a poesia natural e singela? E igual pergunta dolorosa poderia fazer o mundo, a ter um coração e uma voz. Ja quanto á Politica me calo, que esse voto fiz eu; mas quando será que o Romantismo exclusivo e tiranno qual se presenta, se gabe de perfumar entendimentos para o amor, de reclinar o amor como filho nos braços da virtude, e de transformar o templo da virtude em caza do contentamento? Quando será que outro homem, da laia e costumes dos nossos velhos, possa dizer na sinceridade da sua alma:—“Se eu fosse parocho, leria Byron ou Schiller á estação da missa, para tornar castas e probas as minhas ovelhas”? Mas todas estas reflexões de nado valem: a torrente vai funda e rapida, ninguem, e muito menos eu lhe poria dique. E até (que tão pouco dou pela minha filosofia) talvez que tudo o que por ahi vai, que certamente: parece bem triste e bem máo, seja bem necessario ao concerto e melhoria do mundo. Não digo eu o que as couzas são, sim o que se me ellas figurão: não as sentencêo sem appellação; na minha primeira instancia as julgo, e o que moralmente me parecem isso assento com afoita liberdade. Perde ou ganha a humana especie em cada vez mais se apartar por obra, por palavra, e por pensamento, do rural e simples theor de seu primitivo ser? por minha experiencia affirmaria que perde, mas os sabios que o decidão, e a mim seja-me licito pôr duvidas. Não me intrometterei com o que vai por outros reinos; esse uso de qualquer contrabandista literario de nunca chegar ás couzas patrias sem primeiro haver tocado nas de França e Inglaterra, não me quadra a mim, que ao menos tenho a sufficiente consciencia e pejo para não citar o que mal conheço: em Portugal me limito. Somos nós mais felizes ou melhores que nossos avós? Certo que não; e tanto, que se esses bons e honrados velhos podessem ter adivinhado quaes seriamos nós, nós herdeiros de seus nomes, escarnecedores de seus exemplos, e deshonradores de seus castos e amigaveis costumes; nós que ao seu velho fallar e escrever de _deveres_, substituimos o nosso novo fallar e escrever de _direitos_, e á moda de ter palavra, a moda de ter palavras, ter-se-hião horrorisado como de abominação, do pensamento de gerar. Acordai do sepulchro um d’esses anciãos, que depois de pagar inteira a divida a pai e mãi, viveo todo para a mulher, matou-se pelos filhos, guardou a palavra como religião, a religião como necessidade, e cada paschoa de flores, bem com Deos, contentissimo comsigo, se ufanava de sentar ao melhor lugar de sua mesa o parocho, e todos os seus vizinhos de envolta com seus filhos. Mostrai-lhe todos os nossos progressos, que em sós algumas vantagens materiaes e corporaes se resumem: alardeai-lhe o que esperamos, mas não lhe escondaes o que destruimos: lede-lhe a primeira pagina do primeiro Jornal que topardes d’esse mesmo dia, raza de impudencia, empapada com fel, estillando lagrimas, revendo sangue, suando calumnias e desavergonhamentos, respirando e soprando odios de nação contra nação, de cidade contra cidade, de familia contra familia, de irmão contra irmão, de povos contra reis, de reis contra povos, e dos homens contra a Providencia. Supponde que Deos lhe offerece renovação da vida, e offerecei-lhe vós todas as blazonadissimas excellencias do nosso viver e do nosso esperar: repellir-vos-ha com aquelle braço que antigamente defendia e não apunhalava a Patria; tapará com o resto da mortalha o rosto que só depois de cadaver córa pela primeira vez; e cerrando rijo os olhos contra a luz, e deixando-se recair pezadamente, de vós não pedirá mais do que um favor, o de lhe restituirdes a sua lagea.[2] Emquanto assim vai o presente avesso do preterito pelo que toca á moral e á felicidade, fallo da verdadeira felicidade, d’aquella em que a moral entra como elemento, e não da fizica e corporal, da de fazenda e honras, como hoje se entende; vejamos a que ponto subirão com o _movimento_ e _progresso_ as nossas letras. Entrai as typografias, e dizei-me porque assim amotinão com o seu noturno e diurno lavor a vizinhança? perguntei-lhes porque assim gemem e se afadigão? em quaes livros nos estão preparando mananciaes de doutrina, ou de costumes, ou de suave, honesto e ja tão precizo desenfadamento? Dissereis que nossos laboriosos maiores as deixarão esfalfadas com os copiosos frutos de suas lucubrações: o mais com que se atrevem, são ridiculos farrapos de bestiaes torpezas. Seguem-se os mezes aos mezes e os annos aos annos, sem outras literarias novidades. Terra he que ja deo optimas searas e vinhas abundosas; agora descultivada e baldia, e á lei da natureza bruta, desata toda sua força e substancia em cardos, em ortigas, em venenos e serpentes. Quantos livros, e quantos bons livros, que nós outros nem conhecemos nem ja valemos a sopesar, saíão dos nossos prelos, nos tempos em que a probidade, e a mansidão, e a concordia tinhão seu preço. Um só reinado, e ainda bem chegado a nós, e de rei que por bom se não cita, com tanta copia de literarios monumentos nos deixou avergadas as bibliothecas, que dez centos de annos como o presente não produziráõ a decima parte. São os nossos typógrafos de hoje, se com aquelles os comparamos, como os nossos cutileiros de punhaes, comparados com os bons armeiros que forjavão espadas como as de nossos heroes de boa data, que só com sua pezada presença nos maravilhão, a nós, que por nossa verbosa sabedoria, acabaremos de desbaratar tantas e tão longes terras, como nos ellas ganharão esgremindo-se. Tal vai pois o estado literario como o social; e nem menos podia ser, porque estas duas couzas, como alma e corpo, se pertencem inseparaveis: Mão de Deos que ao corpo politico quizesse restituir a saude, por ahi lhe fortaleceria não menos o espirito; Sopro de Deos que ao espirito restituisse a luz, por ahi lhe ordenaria e vigoraria todos os movimentos. Por tanto, conhecendo e confessando que nem facil he nem possivel torcer a carreira desenfreada que o nosso mundo leva não sei para onde, todavia para mim tenho, se na cabeça está isto, se no coração, não o direi, mas tenho para mim, que mui bem fará, e muito amado será dos rectos juizos quem nos fizer volver olhos de saudade para a vida que ja se viveo, o que ainda um ou outro, aqui ou acolá poderá inteira, ou quando mais não fôr, em partes, em amostras reviver. E pois será isto uma illusão minha? Se o geral da gente vai por entre dores para uma couza que se chama perfeição, não pode um individuo em particular deixar-se ficar atraz, despir essas suadas armas de milicia conquistadora, e recolher-se, honrado desertor, lá onde viva seguro com Deos, comsigo, com poucos vizinhos, logrando-se da natureza, e desfrutando em variados prazeres todos as estações; prezentes que Deos enviou para todos os homens, mas de que os das cidades só pela folhinha tem noticia! Por quão feliz se não devêra dar o escritor desambicioso, se aos puros sons de sua lira afinada nos bosques, lograsse, não como Anfião fundar e povoar cidades, não como Orfeo arrancar as feras dos arvoredos e domestica-las; mas arrancar d’entre feras humanas homens inda não corrutos, e assenta-los, para sempre feriados do reboliço dos grandes povos, no divino remanso de uma campestre solidão! De mui leves cousas e tenuissimos momentos pende ás vezes o destino de toda uma vida: assim como de um encontro fortuito resulta uma affeição amorosa, que logo produz um consorcio e um sisthema completo de existir, assim de uma palavra em uma conversa casual, da substancia de uma pagina lida em certa hora, do aspéto de um painel, podem nascer, e mil vezes terão nascido, determinações, vocação, e fados de individuos. E para vir a um exemplo recente e meu, aquelle bom livro das _Prisões_ de Silvio Péllico (todo imbuido, releve-se-me a expressão, de uma christã e filosofica filosofia, que a maior parte das assim chamadas nem uma nem outra couza tem) aquelle bom livro, ja principiou e talvez acabará de me curar o animo: não lhe restituirá a muita harmonia com que o de Gessner mo temperára, porque a mocidade das illusões passa e não volta; mas deixar-mo-ha provavelmente assaz alto e forte, que ainda no meio das maiores tempestades repouze e abençoe tudo. E não he isto maravilha, que a alguns outros que o lerão ja eu ouvi iguaes, senão maiores encarecimentos de sua medicinal virtude.[3] Este desvio, por onde me agora deixava ir, levar-me-hia longe, que assim he accomodado a meus gostos; mas porque he desvio o largo, e retomo o caminho que hia seguindo. A poesia amavel, a que nas mãos e seio nos vinha offerecendo ramalhetes, e frutos no regaço, e amores nos olhos, e nas fallas consolações, afastou-se d’entre nós, onde ainda a alguns poderia aproveitar, e assim como outras muitas boas artes e prendas, foi reclinar-se á espera na beira da torrente dos dias, d’onde não volverá, sem que primeiro se restaurem muitas optimas couzas e todas suas, que o mundo velho tinha produzido. Mas d’onde viráõ estas couzas? Do mesmo mundo velho? mal o creio, que o novo quebrou a ponte que os juntava, e rio de ufania vendo abismar-se fábrica que assim parecia eterna. Renasceráõ por tanto da propria natureza da terra, da indole da alma humana que ja uma vez as produzio, ou do sopro do ceo: renasceráõ tarde; renasceráõ quando nós ja não formos; renasceráõ, talvez diversas, mas renasceráõ. E quaes são estas couzas do mundo passado, cuja perda tanto dóe ás Musas e á Virtude? são as formosuras e magnificencias da religião, o respeito aos finados e a seus sepulchros, ás lições da experiencia, ás obras dos antigos homens, a veneração ás cãs, o quasi culto ás mulheres, a benevolencia e sociabilidade, o aferro aos usos e modas patrias, o amor do estudo, que nós dissipámos com as leituras efemeras, e o amor do torrão natal, nobre fecundissimo sentimento, mas impossivel onde se vive sem muita brandura e sem firme certeza de permanecer. Tudo isto se perdeo para nós, e não sei que bens haja em seu lugar posto a _Filosofia_. A que verdadeiramente o he, ainda que esse nome se não dê, a que realmente faz homens livres e felizes, não he Furia que destrua tão venerandos objetos; ama-os, defende-os, reforma-os quando o tempo os viciou, concerta-os que se amparem mutuamente, pede-lhes frutos, e com seus frutos se fortalece. Quando de espaço me dou a escavar estas verdades, nada me assombra a nossa crassa e desdenhosa ignorancia, mãi ou filha, e certamente socia da nossa immoralidade. Esta mal agoirada ignorancia e esta immoralidade cresceráõ; ja nossos filhos apenas saberáõ ler, e se o turbilhão que a roda leva não houver quem o suspenda, brutos e ferozes sairáõ os netos. Applicai todos os vossos sentidos ao coração da nossa Cidade: se a vida he movimento, ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de ter um perfume, uma harmonia, ahi não ha senão morte, e aquelle movimento he de cadaver que fermenta para se dissolver. Poesia, verdadeira poesia ja n’este Reino, onde em todos os tempos pullullava espontanea, posto que raro amadurecesse, ja por consequencia acabou: quanto desde hoje se poetar nas enamoradas doçuras da vida aldeã, mais não será que recordações sem germen de futuro. D’entre a memoria e o espirito, não da experimental convicção do poeta, nasceráõ esses versos, como lagrimas de balsamo, que não de dentro da arvore, mas d’entre a casca e o libro vem raras gotejando, para cairem e se perderem no terreno bravio da solidão. Oh Liberdade, Liberdade! quão mal te comprehendem os que te separão do bello! quão mal te servem os que te malquistão com os homens de bem! como involuntariamente te levão á morte os que só te pedem como summa felicidade, o direito de nada respeitar, estradas de ferro, navios de vapor, um himno, e punhaes ou carceres contra quem quer que não beber ás suas mesas! Pobre Liberdade, não he este ainda o teu dia: não és tu idolo de selvagens, mas Divindade benefica de homens prudentes. Eis-me outra vez com a Politica, e o meu voto quebrado. Ja vejo que a minha cura não está tão adeantada como o eu suppunha: não ha remedio, amanhã releremos Silvio Péllico, e por hoje voltemo-nos com toda a diligencia a rematar, como quer que seja, este escrito. Sáe pois o presente livro por todos os modos extemporaneo, ja porque a estação nem he d’elles nem para elles, ja porque lhe fallecêrão dias para amadurecer e sasoar, e ja porque dos que lhe tomarem o sabor, uns o taxaráõ de temporão, outros de serodio, sendo que uma e outra couza he elle, e demais a mais pêco, segundo a planta de que se creou. Uma só lembrança me consola, e he, que assim mesmo ja deveo ser peor, quando da primeira vez appareceo, e mais lhe não faltárão gostadores; tanto he assim que nunca faltaráõ simpathias ao que de sua origem he bom, ainda quando desbotado e estragado pela impericia de quem o tratou. Melhor he hoje do que então era; não porque o eu tornasse á forja e á bigorna, ou o recorresse e lustrasse com esmerada lima, senão porque havendo hoje menos dados á lição dos livros, e em especial d’este genero, tambem ja não ha criticos, senão he para as acções da vida publica e domestica; por onde as obras escritas podem passar a seu salvo, sem que suas pobrezas e vergonhas sejão vistas e apupadas na praça. Desconsolada consolação he esta de se poder desafinar cantando, por se cantar entre surdos: mas esse mal, se o he, só a mim me toca, e para o descontar me sobra a lembrança, de que alguns caladamente me agradeceráõ o diverti-los do publico espetaculo. Para estes em boa hora sáia e sai o livrinho fallador de campos e amores: suave appareça como a violeta sozinha encontrada no passeio de inverno: suave e não estranhado como o raio de sol por cima de campo de batalha apoz uma noite de geada; nada aproveita elle aos cadaveres, mas alegra e consola como esperança aos que mal feridos jazião, e a quem o regelado lentor das trevas coalhava o sangue, desesperava as dores, tranzia os ossos, e os descoroçoava da providencia. Ramalhete he de flores silvestres que a meus amigos deixo na hora do apartamento, que ao menos em quanto durar lhes recordará que os amei. Terra de Portugal e outr’ora de Portuguezes, terra namorada do mais formoso ceo, terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada de verde e bordada alcatifa, amorosamente abraçada do Oceano, talhada e regada de tão espelhados rios, terra de tanta poesia e de tanto amor, eu te deixo! E para que ja nunca onde quer que a fortuna me detenha, me cuides de ti esquecido, terra do meu Portugal lembre-te que o meu ultimo pensamento ao sair das tuas praias foi o da tua Primavera e o da minha Mocidade. _Lisboa: 1 de Dezembro 1836._ PROLOGO. Não erão vãos os meus receios; acabo de visitar a _Primavera_, não ainda para lhe emendar as miudezas, mas para a conhecer por alto, e podê-la sentenciar no todo. Reconheci-a, mas demudada, mui outra da que a tinha deixado na graça, geito e amores; trocarão-ma os annos, trocando-me. Desama-la ainda não, mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero mal, he só porque lhe quiz muito bem, e foi minha; mas como ja me risquei de seu namorado, não hei de chamar-lhe formosa, que o não he, nem dissimular que sejão defeitos, muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive por perfeições e primores. Não ha remedio, prometti-me seu juiz, passará por onde houvéra de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder do seu preço, e eu do meu, consolemo-nos ambos d’esse pouco damno; ella por não receber de mim injustiça, eu com ter obedecido á consciencia, que tambem em letras a ha. Antes porem que entremos a contas e lhe formemos o summario, releva anticipar uma dúvida não leve, que se me pode pôr, e desfazer um reparo, que deixado a si pareceria de fôrça. He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro inamavel por defeitos a seu proprio autor, não havia porque de novo o semear em público, antes importava pôr todos os meios para que o nunca mais vissem, nem d’elle se fizesse menção; que o contrario he faltar a toda a reverencia, que aos leitores se deve, dando-os por broncos para conhecer o máo; ou á caridade natural comsigo proprio, expondo-se sem fôrça de obrigação a menoscabos, se não injurias. Não quero responder que em dar o que ha quando ou emquanto não ha melhor, ja o que o faz se ha de haver por desempenhado; nem que, para reo que sem tratos e sôlto confessa os delitos, sempre por bom direito se usou de misericordia; melhores me parecem do que estes, os meus fundamentos: e ei-los aqui. Primeiro: que andando a _Primavera_ ja impressa e corrente por muitas mãos, e não podendo ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la da memoria de muitos que a bem agazalharão, melhor arbitrio he, pois que tem de se conservar no mundo, renascer n’elle expurgada de muitos vicios da primeira impressão, e se a paciencia me acudir com o preciso valor, retocada no que pertence ao literario. Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo vir a haver, moços que se dem a poetar, acontecerá que entre os mais livros portuguezes que ás mãos lhes cheguem, vão de envolta os meus (assim mo promette sua boa fortuna, que os livros a tem como os homens, e ás vezes os mais ruins muito melhor do que os bons): mãos de principiantes não sabem escolher, os amores, amenidades e branduras da _Primavera_ cáem muito a gente moça, ir-se-hião traz o gosto, e beberião muitos defeitos; do que seria minha a culpa, se eu não procurasse agora arrancar boa parte d’elles, e contra os demais os não precavesse com honestas advertencias. Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que fui, sou, e hei de ser, do que só pelo que sou; porque nascendo-nos o presente do passado, ainda que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem diverso, o futuro, o sermos só conhecidos pelo que somos não he sermos conhecidos. He pensamento que merece ser entendido. Alexandre Dumas o explicará. Sem pedir venia traduzo o passo, com quanto seja longo, certo de que o não parecerá. —“A maior desgraça da crítica, ainda quando se não sae com ignorancias e velhacarias (diz elle no prologo da _Catharina Howard_) consiste em sentenciar uma Obra nova desmembrada do feixe literario cuja he parte: ahi está porque nunca se póde avaliar um livro com exacção antes da morte do autor; e mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido desde o primeiro até o ultimo, os dias, que para acabar seu edificio se lhe fazião mister; por quanto, se antes de tempo morreo, o monumento que traçára tem de ficar incompleto para sempre como a Sé de Colonia, e os homens mal justos para com elle ainda para alem da sepultura, lançar-lhe-hão á conta de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo vão por tapar, quando a morte de invejosa e apressada lhe veio atar as mãos, e ja talvez para se arrematar mais não faltava que uma só pedra: ora por aquelle vão, he que a crítica se mette e entra, quer o autor esteja vivo, quer defunto.” “De trez idades se compoem a vida de quem nasceo fadado a dar de si produções, e em trez periodos se desparte: como couza alta e nobre que he, tem primeiramente sua base por onde se começa; depois um cume onde se chega; ultimamente la por dentro um motivo, tenção e fim particular para onde se torna a descer. Pelo que, he necessario que o homem tenha vivido todas estas trez idades e que o seu talento haja cursado estes trez periodos, para se poder avaliar aquelle talento no seu todo, aquelle homem na sua produção.” “Primeira idade, quando a fantasia prevalece á rasão. A esta idade de viço pertencem as horas que tão despedidas voão dos vinte e cinco aos trinta e cinco. He o periodo para dever inventar _Hamlet_ quem se chamar Shakespeare, o _Cid_ quem tiver nome de Corneille, os _Salteadores_ quem for Schiller.” “Segunda idade, em que a fantasia e a rasão se embalanção, ajudando-se mutuamente, e vindo a formar das suas duas uma só força neutra. A esta idade vigorosa pertencem os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos quarenta e cinco. He o periodo em que os mesmos trez sujeitos produzem _O Rei Lear_, _Cinna_, _Wallenstein_.” “Terceira idade, em que a rasão prevalece á imaginação. A esta idade de reflexão pertencem os annos que descem dos quarenta e cinco aos cincoenta e cinco. He o periodo em que elles compoem _Ricardo III_, _Polyeuctes_, _Guilherme Tell_.” “Ora pergunto, ficarião completos Schiller sem _Wallenstein_ e _Guilherme Tell_, Corneille sem _Cinna_ e _Polyeuctes_, e Shakespeare sem _O Rei Lear_ e _Ricardo III_?” “Parece-me portanto que nunca devêra a crítica requerer de um poeta, senão as obras de sua idade; e bem sabemos nós como o faz ella sempre ao revez, sendo as obras que mais se empenha em querer extorquir de um engenho as dos annos que ainda não vingou, ou as dos outros annos que ja deixou transpostos. Pelo que toca a uma obra que vem condizendo com o periodo d’onde dimana, nunca a impertinencia dos juizes a dá por cabal: são uns Aristarchos sem paciencia, que acodem logo com a crítica a cada pedra de per si, ao passo que ainda se está guindando, sem advertirem que aquella pedra só assente e junta com as outras pedras he que ha de dar prova da traça e desenho geral do architéto: são como uns pomareiros esquipaticos, que não tomando em conta o inalteravel fio das quadras do anno, pedem fruta madura á primavera, frutos verdes ao verão, e ao outono flores.”— Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa e claramente me decifrou, e me ajudou a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito ha que eu tomava de longe; uma verdade que eu andava adivinhando como por entre nevoas. Ora pois, dos trez apontados motivos de determinação, foi este ultimo o de maior momento: quiz dar completo o meu retrato, menos o intellectual do que o moral, a quem desejasse conhecer-me: não podia omittir como feição o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella primeira idade, que dos vinte e cinco decorre até os trinta e cinco annos. A _Primavera_, escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de entrar encorporada na collecção das minhas Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que ficára outra, e por conseguinte falsa como feição. Tudo quanto era seu geito, seu pensar, seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se hão de perdoar gabos a quem sem disfarces nem dó se disciplina deante do Povo por peccados poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de bom, sem o que não tivera agradado a tanta gente. O por onde a lima pode e deve correr afoita e sem dó, são—_as numerosas faltas de boa falla portugueza—desleixo de frase—e estiramento de períodos_. Quero-me explicar, não para os Mestres, sim para os novéis no officio de escrever, com os quaes particularmente converso nos meus prologos; e porque não havia eu repartir do fruto de minha tanta ou quanta experiencia com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la com seguir cursos de Bellas-letras que entre nós se não ensinão? Um dos maiores delitos literarios, e em que mais usualmente cáem os moços, he o _desprezo de lingua e corréção_; delito que per si basta para descontar muitos meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber sua lingua, diz Boileau, o autor mais divino nunca passará, por muito que faça, de máo escritor. He ella a ferramenta para este genero de lavor da alma; e quem poem as mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer, escolher e apontar bem os instrumentos de que se ha de valer, nem se pode mostrar bom artífice, nem merecer desculpa de o não ser. Toda a Musa em creança padece dispepsia de versos, diabetes disséra quem se menos prezára de cortez com Divindades. Na primeira idade he costume, e por muitas rasões, das quaes não será a mais fraca a aversão ao trabalho, presumir-se antes de facilidade e presteza no escrever, do que de corréção e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro, querem que a penna lhes obedeça, como se ella podesse; forção-na, e dahi resulta que pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo, apparece cá fora frio, mesquinho, desengraçado; e maravilha-se o escrevedor quando a mesma couza que valentemente o agitava, em quanto em si a revolvia, depois de passada para o papel adormenta os ouvintes, e a elle proprio o desconsola. De todos os defeitos de autor, talvez se podesse affirmar que só este he verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, se os pensamentos e affetos de cada idade são della, e dessoão e descontentão a todas as outras, tem por si o serem d’ella, e como taes se defendem por conterem verdade e pintarem o homem; não assim a lingua, que em todas as idades he ou deve ser uma, não provando outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, e por bem do proximo direi com vergonha minha, que no que me ficou escrito d’essa quasi infancia poetica, as couzas nem me espantão nem me offendem, ainda quando as desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem de continuo caír as faces; e por isso que he escolho em que naufraguei tão desastradamente, o assignalo com tanta miudeza e teima; nem cançarei de o assignalar e accender-lhe em cima boa luz de farol, em quanto vir, como vejo, outros, que nem por idade se absolvem, esbarrar n’elle e perder-se a todas as horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem ás letras) vós que encetaes a mui ardua e perigosa vereda que pelas letras conduz á fama, seja qual fôr o genero de poesia para onde propendais, seja qual fôr o vosso não vulgar engenho, sejão quaes forem os louvores que os velhos na arte vos concedão, e os applausos com que as sociedades vos afoutem, não vos deis pressa de apparecer: os conselhos que Horacio vos deu, durão com toda a fôrça que a natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se compor de espaço, consultar os bons e peritos, guardar por nove annos, chamar, e tornar a chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita. O amor proprio nos persuade e impelle a apparecermos cedo, devia elle, se não fôra cego, ter-nos mão para nos não sairmos senão a horas; _A melhor fruta colhe-se mais tarde._ (_F. R. Lobo._) Muito mais vale começar jornada com dia claro, do que, para adeantar horas, largar a pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços são faceis, perigosas as quedas, e quasi certo o extravio, que a final lançadas as contas nos farão chegar mais tarde e menos gostosos ao lugar que demandâmos. Repetirei, porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o que ja por semelhante occasião disse em outro meu livrinho, contra esta enfermidade que se tornou praga, e nos traz a todos lastimosamente gafados; não ha mais remedio senão soccorrermo-nos aos livros mestres de nossa lingua. A aversão que vós outros, gente moça, lhes tendes, bem sei d’onde nasce, que tambem eu por ahi passei: correm para vós como rio caudal os livros d’essa França, todos especiosos e doirados, todos galhardos e louçãos, arrebicados e argutos no dizer, promettedores de maravilhas nos titulos e indices, conversando comvosco paixões fortes e brandos affetos, uns vomitando republica por todas as folhas, outros por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, e todos á uma embebidos do presente, afinados pelo vosso ponto, e se o posso dizer, mancebos como vós mesmos. Não ja assim os nossos patrios autores: estes não vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem, pela escuridão êrma das bibliothecas, mal envoltos na grosseira capa de seu tempo, enterrados no pó, meio devorados dos bichos; se os olhais por fóra, parece-vos que a vida vos não daria para um só volume: se os consultais por dentro ja os titulos vos não namorão, os indices vos descoroçoão: folheai-los por alto, vem os milagres incriveis, a historia encarecida ou chã, a poesia enleada e escura, o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e sizudo, os costumes castos, a moral severa, a fé religiosa e inconcussa: cada pagina na sua simplicidade apregoa Deos, revem por cada poro o cheiro do mundo velho: mas esforçai, affazei-vos por alguns dias a soffrê-los e comsenti-los; continuá-los-heis sem tedio, logo com gôsto, com ancia, reconhecendo a final quanto as primeiras mostras vos havião mentido, como pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor andavão sumidas galas, joias, riquezas, maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão a vontade, e fazem que vos peze do tempo que os não conhecestes. Assaz nos divertimos do caminho, rasão he que a elle nos tornemos. O segundo defeito geral que me occorreo n’esta leitura, foi o que eu chamei _desleixo de frase_. He este muito menos grave que a impureza da lingua, sendo-o todavia assaz que mereça quanta reformação lhe eu possa fazer. Quando quem não cura da pureza de sua lingua, cura ao menos de lhe não deitar remendo de panno estranho ou novo que não seja vistoso e garrido, quando o que se não preza de dizer limpa e castamente, ao menos timbra no exprimir com viveza não vulgar, com certo matiz, com certa novidade, algum passo mais se lhe póde conceder. Procurei se ao menos teria eu posto algum pouco d’isto, e achei um desconsolado não. A locução não me pareceo tão poeticameme figurada como convinha em poesia, ainda pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos como a caruma no mato. Uma e outra couza requerião, em quem as quizesse bem emendar, muita paciencia, e muitissima mais da que eu tenho. De ambas, mormente dos epíthetos, procurarei limpar a maior; todos não he possivel: tanto e por tal geito estão com toda a Obra cozidos e enraizados, que lhes vale o que ás ervas parasítas em parede velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas demazias, perdoa-se ao resto, com o medo que em faltando, se esboroe a parede, e venha ao chão toda delida. Tambem me queixei de _estiramento de períodos_. He defeito portuguez, peninsular, meridional. Dava-me agora na vontade tornar a culpa ao sol, que n’estas suas terras faz que tudo se desaperte, e derrame, e desate em viço e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol para os esquadrinhadores metafisicos, a quem inda assim, não quero mal; e eu, melhor que a nenhuma outra causa, lançarei aquella minha diffusão ás costas dos annos em que escrevia, com o que sempre fico de bom partido, por das minhas a tirar. O que he grandemente verdade, he ser este defeito para muitissimos leitores, principalmente mancebos ou hospedes nas regras de escrever, virtude, e a virtude contrária vicio. Saírão a _Noite do Castello_ e _Ciumes do Bardo_ muito mais contraídos e apanhados em couzas e palavras, do que estes Poemettos e as _Cartas de Echo_: pois comtudo muitos houve e ha, que por isso mesmo ficárão preferindo aos novos os antigos e até velhos opusculos. A cada hora me diz um que me torne ao meu primeiro caminho; outro que não desampare o novo: uns, que estas ultimas obras se não lem senão de escaço numero; outros que as passadas não occupão meia hora os olhos dos homens graves e bons juizes. Oh! quem reconheceo nunca a verdade da fabula do velho, do rapaz e do burro como o triste, que para expiação talvez d’algum grande peccado, entrega e desampara a público os partos do seu tinteiro! Pois que não póde ser contentar a todos, ir-me-hei como e por onde o meu juizo, gôsto e natureza me levarem. A poesia substancial e severamente escrupulosa, he o mais das vezes descontada por uma certa desharmonia: a muita harmonia, ainda quando mais apoucada de ideas, ja entretem suavemente: qualquer leitor se entende com taes escritos, ninguem com elles se cança; são um genero de musica facil, que ainda quando não exprime affetos, se ouve com gosto; são como um deslizar de barco por uma agoa mansa: por isto he que os livros do _Porto_ e _Tristezas_ de Ovidio se lem de um cabo a outro com muita deleitação.—_Inter utrumque_: nem tanto apêrto como Almeno na chamada tradução de Ovidio; nem tanta soltura como o seu amigo, e outr’ora meu mestre, Elpino Duriense[4] nas poesias originaes; nem tanto pospor a harmonia e clareza á brevidade como Filinto; nem tanto sacrificar o entendimento ao ouvido como Elmano. Isto foi o que me pareceo lograr na _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_, e não me arrependo se por ventura o consegui. Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra o que eu quizera na _Primavera_: alguma couza, para poder com ella reconciliar os severos; tudo não, por não dessimilhar em demazia esta parte do retrato. Até aqui descubrimos defeitos que importa emendar, agora os vamos ver do outro genero, em que me não he licito bolir, por serem essencia do livro: erão aquelles no tocante á lingua, estilo, e metro, que ainda que importantes, não passão de accidentes da obra; estes são da alma, vida, e pensamento da mesma obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza a voz, mas o uso e necessidade lhe valeráõ.) Descritivos se chamão em geral todos os poemas deste genero, e como a taes, parece que tudo quanto for pintar dentro do quadro do seu painel, lhes compete e convem. Não he comtudo bem assim, porque as descrições, por mui formosa e naturaes que se ostentem, tambem canção a imaginativa de quem lê, quando umas ás outras se vem succedendo perennemente e sem um bom entremeio de narração, ou outro valente interesse, que por um modo verosimil as reuna, separando-as ao mesmo tempo, para que se não confundão, nem se afrontem, nem esmoreção. Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não bastar seu altissimo engenho para livrar seus poemas de enfadosos. Ora este livro he quasi um embrechado massiço de descrições; e assim, se o posso dizer, mais para ou olhos da alma do que para o seu entendimento. Mas serão ao menos estas pinturas, consideradas uma por uma, de algum preço por fineza de tintas, ou pontualidade de desenho? autos são em que me não compete dar sentença. O Padre Kinsey, ou o Portuguez que em seu nome escreveo, disse que eu não pintava bem a natureza; talvez que outro tanto, e ainda peór, se devesse dizer da mór parte de nossos poetas; mas não he contra elles, senão contra mim só que eu enfeixei varas no princípio d’este prologo: como os applicados noviços se não enganem comigo por minha culpa, que se desvairem e percão com os outros, paciencia! Aqui está comtudo o que me parece; este descritivo he desbotado e de côres pouco vivas e proprias se com o de Gessner ou Kleist se compara, mas he o melhor que eu soube; eu que nem podia ir-me pelos campos fazendo, como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de imagens, nem discorrê-los como Gessner, de lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey, ou o seu ponto, não houvessem de se me avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás escuras, ou quasi, o retrato da natureza: muito mais faz quem atravessa o Tejo a nado, do que hum Almirante Inglez que em segura e bem apercebida náo rodêa a esfera; poderá este trazer mais riquezas e informações, mas á fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o desconhecido nadador de uma só corrente. Passemos ávante, e das descrições entremos nos affetos. N’esta parte direi pouco, porque sem embargo de que o desabrimento com que me castigo onde entendo merecê-lo, me podia deixar alguma licença para tambem me louvar pelo que em mim visse de bom, melhor he que nos louvores, em que mais facilmente nos podêmos enganar, nos contentemos de ser ouvintes. Ainda assim, não acabo eu de dizer tão pouco, que muito bem se não entenda ja que no tocante a affetos não quero muito mal á minha Obra: fallo dos affetos em geral, porque passos ha n’ella a cujo affeto não sei ja hoje querer mal nem bem; honesto, formoso, e macio me parece, sei que n’esse tempo devia ser meu, porque eu não compunha, tirava do coração, mas ja o não posso entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, apezar de tudo e de mim, hão de passar intatos, que em assunto de branduras o eu de hoje respeita religiosamente ao eu de algum dia; e porque tudo diga, ainda que quizera emendar, não saberia. Sim me inclino a que haverá (e ja de alguns m’o boquejarão) excesso, redundancia, languidez em tantas suavidades, caricias e extremos de bem querer a tudo, e a todos. Inclino-me e talvez o creio: mas que havia de cortar? a que havia de perdoar, se assim como o eu antigo valia tanto mais que o eu presente, póde ser que o melhor se me figurasse agora peór, e o peór melhor? Digamos duas palavras da Mithologia. Ja não sou tão emperrado pagão como n’outro tempo; desconsola-me ver o desmedido uso que d’ella fiz. Não se entenda por isto que me alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria de botar pelo mundo pregáõ, como Beranger, que os Deuzes ja saírão do meu credo. Todo o excesso em crer ou não crer, em admittir, ou recusar me parece hoje em dia um disparate, de que sempre, mais por aqui mais por ali, vem a resultar contras e arrependimentos. Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo o emprego que dos Romanos para cá se tem feito d’ella, _incredulus odi_. Só consinto na fabula parca, explicavel, e só a amo quando soberbamente poetada. Alumiarei com um exemplo: quero-a assim como a derrama ás mãos chêas por suas tão poeticas prozas o christianissimo Chateaubriand, esse mesmo que de longe visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto acho eu pelo commum no meu livro: de cada canto me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas não responde verdade, e se alguma couza ahi vierão fazer, certo que não foi inspirar-me um só rasgo poetico. Porque pois as deixarei? porque não substancia do livro, e n’elle tem posse velha e apozentadoria. Dêmos a derradeira parte do prologo, que em prologos deve ser sempre esta a de vantagem, a algum poucachinho dizer sobre a moral. Moral hoje, moral em livro de poeta, grande novidade e grande estranheza! Sim hoje, que ainda ha muito quem se preze de viver honesto, virtuoso e pela antiga: sim em livro de poeta, e por isso mesmo; visto como tudo quanto era contra ella o tem a proza a si tomado, não será muito que lhe abra sua porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre cantinho térreo de sua pousada, como he este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha escuridão e penuria, por todas as fendas e agulheiros do mal reparado edificio poetico lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal de seus inimigos, e contra essas não ha valer-lhe. Ha pois do titulo d’este livro a dentro, dado se não prometta senão primavera, um como ar de bondade e saude para o animo, de socego e bemaventurança para a vida: e por isso he que, a despeito da todas suas manchas, me parece bem, como ja no Ante-Prologo deixei tocado, atira-lo, como sementinha de erva medicinal, ao baldio sáfaro e corruto d’esta idade. Bem estou eu antevendo quantos de mim hão de haver lástima, por me assentar no meio de tão ferida e accesa batalha, por cantar entre tantas vozerias de odios. Paciencia! tambem sei que homem sentado não sóbe, nem a trôco de cantigas se comprão riquezas e valimentos: mas cada qual tem sua estrella, e a minha, que outra vez descobrio depois de largo eclipse, esta foi, e esta ha de ser; oxalá que para sempre! Com o bom de Archimedes me pareço n’isto, o qual na hora que a cidade estava sendo entrada do inimigo, e alagada das torrentes de ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, nem deixava de proseguir na composição da lustrosissima esfera celeste, unicos amores que no canto calado de sua casa o desvelavão. Havia ahi uma não sei que magnanimidade; e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado feroz que despede tal cabeça para cima de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo a brincar com flores e cordeiros, ao tempo que em redor de mim estão no chôco tão grandes destinos do mundo, não me lastimo, porem rio-me, e cuido estar vendo em mim proprio um menino, que por um dia de tempestade, enthesoura conchas e forma lagoazinhas na praia, emquanto andão á vista galeões alterosos á luta com os elementos, e na mesma praia uns pasmão, outros se aterrão, outros suspirão pelo instante do naufragio para se arremessarem aos despojos, apenas o mar os cuspir.—Fugindo me hião agora outra vez os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral, esquecida até por quem lhe deo couto! Com ella sou, e com ella determino acabar. He a moral na maior parte d’estes poemas pura, facil e amavel; e se não tão efficaz como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse menos, he porque podia menos atavia-la, e aformozea-la do que elle, e atavios e formozuras até servem para fazer do bom optimo. Todos os amores de que se urde e tece a domestica felicidade, se achão aqui representados por um modo que se recommendão, e d’elles se imbue de mui bom grado o animo; o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal, a amizade, até o affeto aos animaes, arvores, flores, e mais creaturas de Deos, companheiras nossas n’este mundo, aqui vem de envolta com a recreação. Porque tudo diga, pelo gostador ou gostadora d’este livro daria eu mais, e mais quizera viver com elle debaixo do mesmo telhado, e tratar quer negocios quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro, com gostadores e pregoadores d’outros livros que estamos vendo rebentar de muito mais avultados engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas a quem dar criação, sei que emquanto não podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros, lhes daria a _Primavera_; e ja não digo o mesmo das _Cartas de Echo_, e muito menos da _Noite do Castello_, e _Ciumes do Bardo_. Mas, acudirá algum prudente, couzas se deparão na _Primavera_ que mais são para ser defendidas a donzellas, e resguardadas de fantasias ainda verdes, do que para se aconselharem por doutrina. Sim as ha, e todas essas paginas que para idades encorpadas e apercebidas de experiencia bem podem não ser damnosas e parar em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo antes de lhes entregar a obra para lição: e porei exemplos; na _Festa de Maio_, os fins dos episodios de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo poema boa parte da republica de Chipre, como o culto religioso da Natureza, os bens em communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento de um com muitas _et cetera_. Antes de passar adeante, trasladarei, que alguma couza fará para aqui, parte de uma Nota que ácerca da republica de Chipre se lia na primeira edição, a pag. 169. —“Note-se que este poema está muito longe de dever ser considerado como didático; que toda esta republica de Chipre he meramente um Dithirambo, aonde a licença do poeta he muito mais ampla do que em outro qualquer genero de poesia; que esta sociedade de que se ha de formar a republica, he de poetas, homens de quem vulgarmente se diz que mais dão ao prazer do que á rasão; e que em boca de poeta se poem a arenga recitada no templo. Para os avisados escusada fôra a nota, mas para os fanaticos, que ignorão ter a Musa do Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter contra tudo, he indispensavel.” Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, porem melhor houvéra sido não carecer d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á republica de Chipre, não assim ás demais desenvolturas, como as dos dois ja apontados episodios. Porque as puz umas e outras? vá mais penitencia. Puz as pinturas amorosas em quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da vida e do anno, em que todos nos deliciamos nas fantasias sensuaes, e se somos poetas, cuidamos morrer abrazados e afrontados em não desabafando. Porque não expurguei d’ellas esta segunda edição? pelo mesmo motivo do retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza, e á gente nua, e aos maridos de muitas mulheres, são necedades taes, que não merecem que nos detenhâmos em as refutar: são d’aquellas demencias, cujo aggregado dá o que entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados e térsos, se denomina filosofia, e que só dura emquanto a experiencia e o tempo nos não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão geral, ja muitas vezes apontada, de querer mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem, que depois d’isto ja a ninguem farão mal. Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade, o juizo que da _Primavera_ formei; he primavera por matos de serra, com mais flores do que graças, com mais ares saudaveis do que ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias mimosas, mui nua em muita parte de terreno, mas com seus longes de campos e cazaes felizes, e muitas saudades lá pelos extremos confusos do seu horizonte. Quem se d’estas cousas contenta, fico se recreie com ella; e quem com ella se recrear, para amigo o quero, que esse saberá, como eu, amar muito os homens, fugindo-os; e enfadado, como eu, das terras onde não ha ver passaros senão em gaiola, nem verdura fóra de gigas, nem arvoredo que não seja pintado, nem pastores e innocencia senão na opera e trajados de seda e veludo, nem felicidade senão em promessas de políticos, irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos, de si, e dos penhores de sua alma no seio e entranhas da vida campestre. Oh, se assim fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda por vizinho!... _Lisboa 4 de Dezembro de 1836._ _Post Scriptum._ _Lisboa 29 de Março de 1837._ Quando todo estava no trabalho de desempenhar minha palavra, e fazer ainda mais do que no Prologo deixára promettido, revendo cuidadosamente, afeiçoando, podando e enxertando de novo este volume, sobreveio-me aos 2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de minha vida, uma perda de que em nenhum tempo se me poderá o coração consolar. Quebrarão-se-me as forças para continuar no trabalho, bem como se esvairão muitos, antes todos, meus projetos. Ja não arrancarei (e para que?) este pouco e inutil resto de mim mesmo da terra que encobre a minha melhor metade: aqui procurarei, se tanto podér ainda, pagar com uma pouca fama e muitas lagrimas, a quem a mim me deo até á sua ultima hora seus olhos, seu amor, toda sua alma. Qual ficou este livro tal sae, e muito inferior ao que eu promettia, podia e devia fazer. Se algum de meus leitores entende por experiencia o que seja padecer n’uma viuvez uma completa orfandade, esse passará com indulgencia, e ainda suspirando, pelos muitos defeitos que na leitura lhe occorrerem. Aos sem alma não tenho que dizer: se quizerem castigar o espirito meio morto, porque não pôde mais, fação-no, que dôres d’essas não acharáõ ja em mim lugar nenhum. EPISTOLA Á PRIMAVERA _Vai a Epistola em tudo outra da que fôra na primeira Edição: conserva a invenção e os pensamentos, mas emendou-se a linguagem, apertou-se o estilo, deu-se alguma côr mais ás imagens, explicarão-se melhor alguns pensamentos, reformarão-se e afinarão-se quasi todos os versos._ DEDICATORIA A MINHA IRMÃ. _Eu mandei o meu Genio campestre apanhar flores por entre os gelos do inverno. Formosas não saírão, bem o sei, porem n’esta estação do anno não mas dá melhores o estreito jardimzinho que me as Musas doarão nas fraldas do Parnaso. A ti, minha Irmã, me ordena o coração que as offereça. Felicidade será para mim, se quando para o teu lado me tornar, tu me disseres abraçando-me:—“Eu amo as flores que tu me enviaste, no meu seio as guardo: as da primavera menos me contentão do que estas, que o teu Genio campestre colhe no teu jardim, por entre os gelos do inverno.”_ DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO Fôra o inverno de 1821 para 22 dos mais desabridos e temerosos de que entre os vivos se faz memoria. Na Beira, onde me então achava, vião-se arrancados e espedaçados bosques, olivaes e pomares, sementeiras afogadas, pontes demolidas, e os rios sem margens. Dos 25 de Dezembro até os 9 de Janeiro, que me demorei em uma aldeinha, uma legua desviada de Coimbra, saboreando no trato cordeal de alguns amigos e parentes as férias, então mui festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada e rigorosa a porfia das invernadas, que nos falseou quasi de todo a recreação mais apetecida dos que fartos da cidade, vão alguma hora ao campo desenfadar-se. De não passear nos vingavamos o melhor que o tempo e lugar no-lo consentião: práticas desaffrontadas de constrangimento, temperadas de bom sal, e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas, leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia, e improvisos de _charadas_ e adivinhações nos enchião as horas não contadas. As espaçosas noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes e semelhantes passatempos, em de redor de uma farta fogueira, segundo he costume d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando o sol descobria, e o ar um pouco mitigado nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo jardim onde se explanava um soberbo lago, outr’ora pela orla mais assoalhada dos laranjaes, que mui corpulentos e viçosos, acenavão de seus ramos com frutos e flores, pondo a vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era, umas lembranças, uns longes de primavera no coração do inverno, saíamos da prisão dos lares, aproveitavão-se com sofreguidão: talvez nenhum dia de perfeita primavera na longa cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais ledo, do que estas pobres tardes sonegadas ao mez do Natal. A fantasia enganada do sol, toda se me desatava em poeticas flores, o que n’esses tempos só por maravilha me acontecia fóra da primavera, e luares do verão. Quando vinha a noite, acceita ao meu coração, (que sempre de si o conheci, não sei porque, amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos ao conchego do nosso lume fiel nos tornavamos alvoraçados, comigo só me hia pouzar a um canto, colhendo, concertando e accrescentando com mui entranhado contentamento, quantas florinhas me havia brotado a fantasia. De saudades da primavera me parece ainda agora que nascião todas; o que certo sei, he que ahi, e n’um imaginar d’estes meus, me veio a lembrança e desejo de escrever á Primavera uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença tão concedida a poetas, não o sei; sei que no ditar estes versos para se escreverem, e no conceber-lhes o assunto a passear ou a seroar, gozei prazeres que ja a crítica me não póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo o meu pezar he não poder outra vez peccar pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me da Primavera: os annos que a trazem ás arvores no-la levão a nós, e ja la vão quinze, (quinze annos!) sôbre o tempo em que eu brincava com estas innocencias. _Lisboa: 9 de Dezembro de 1836._ EPISTOLA _Á PRIMAVERA_. Corre a Noite, jaz muda a natureza; Os campos solitarios esmorecem; Mal se ouve ao longe o estrondo da corrente: De quando em quando a lua desmaiada Mergulha em nuvens, surde, outra vez morre; E das planicies a extensão geosa Ora resae e alveja, ora se apaga. N’esta cabana de grosseiros troncos, Tecido vime e colmo, onde sereno, Vento, e cuidados não coárão nunca, N’esta onde habita perennal fogueira, E onde he Penate o Genio da hospedagem, Venho entre amigos deslembrar tristezas: Do frio lá de fóra o ultimo resto Ja o atirei á chama tragadora. Em ti, Amores meus, em ti só fallo Ó Primavera minha; em ti só cuido; A ti quero escrever: inda ha bem pouco Em meu passeio a flor das larangeiras, E do sol que hia a pôr-se o extremo raio, Cá me derão de ti saudades tristes. Desde que ao scetro do raivoso Junho Tu doce com teus Zéfiros fugiste, Meu dia estendo em languidos suspiros. A noite em vagos sonhos me afigura Ver-te, cantar-te, desfrutar teus mimos: Mal desponta a manhã, mal foge o sono, Desespero-me, lido entre amarguras; Peço aos bosques sem folha, aos ermos campos, Aos rochedos de neve, ás turvas fontes, Ao ceo toldado, aos ares tempestosos, E a toda a natureza, a minha Amada. “Primavera, onde estás?” do outeiro exclamo; De valle em valle, de um cabêço em outro, “Primavera, onde estás?” responde o echo: No prado o guardador, no monte o Fauno, Pelo arvoredo as Dríades á escuta, “Primavera, onde estás?” depois exclamão. Emquanto assim fiel, por ti ó Deosa Me desentranho em ais, onde te escondes, Perguiçosa gentil? onde vagueas Bella inconstante que estes ais não ouves? Algum Deos namorado, em plaga estranha, Encheria de amor teus olhos livres? Esquecer-te-hião, (Ceos!) promessas tantas? Sim: que te importa o definhar de um vate? Do vate que te amou, te adora ausente? Tu folgas e elle gema; elle delire, Tu a prados sorris vestindo prados, Revês-te, amante nova, em novas flores: Fontes ha tambem lá, que importão éstas? De fonte ao claro espelho te engrinaldas; E ufana de encantar sensiveis peitos, Tambem, como entre nós, por lá dardejas Fogo de amor aos entes insensiveis. Volta, volta, ó cruel, aos campos nossos. Qual paiz no universo, a não ser Pafos, He mais digno de ti? ¿por onde achaste Para o cortejo teu, Ninfas, pastoras, Como éstas que entre a murta o ceo nos cria? Amantes mais fieis? florestas, rios Namorar-se, mais frescas, mais formosos? Mais doces flautas quando amor entoão, Aves mais doces quando amor gorgêão? ¿A tua Cintra, Elisio dos desejos, Nobre jardim do Oceano, onde folgavas Contemplar na alta noite em mista dança Ninfas das ondas, Ninfas das florestas, Assim te descaío? ja não proteges Os córos virginaes que ali passêão Sorrindo ao ver seu nome em bosque e bosque? ¿Por toda a parte as Graças que espairecem; Do aligero esquadrão travêssos brincos, Frechas doiradas em contínuo vôo Aqui e ali aos peitos descuidados, E se errão corações, ferindo os bosques, Porque os bosques ali tambem suspirão, Tudo pois te esqueceo? Volve, ó Querida; Cede, não sejas dura, a amor, aos versos. Desde que te ausentaste ahi pende a lira Nos braços nus de um álamo sem folhas, A minha lira ao vento abandonada! A lira d’oiro, onde entoei teu Nome, Onde a minha paixão soou mil vezes Na linguagem dos ceos a teus ouvidos, Ei-la sem honra; os ventos lhe roubárão Dos antigos festões o escaço resto! Ao passar com seu gado, e vendo-a muda, Diz suspirando a turba dos pastores: “E’sta a que dava alento ás nossas festas: Mal haja quem a trouxe a tal desterro!” Dríades ternas, que meu canto ouvião Não talvez sem prazer, dizem passando: “O vate emmudeceo longe da Amada!” Mas apenas teus Silfos precursores, C’roados de violetas assomarem Na ethérea região de nossos climas; Apenas este ceo pezado e turvo Mandar á terra os ultimos chuveiros; Apenas rebentando as novas folhas Se remoçar esse álamo tristonho, E entre a nova ramage, emtorno á lira, Cançada de seguir-te andar pouzando A rolinha estrangeira, e sócia tua, Á lira despirei do inverno o musgo; E n’ella, de aureas cordas melhorada, Só de ti chêo, na presença tua, Brotarei versos, como brotas flores. Oh voa, acode a consolar Cibele, Cibele a térrea mãi da especie humana, Cibele, amores teus, qual tu Deidade! Se ora a visses! ... do carro verdejante Os rebeldes tufões a derrubarão: Co’a trança descomposta, o manto em rios, A altiva c’roa em parte destruida, Nua jaz á vergonha, ao vento, á neve. Seu tanto desamparo he mágoa aos filhos: Mas para dar-lhe a mão, torna-la a Nume, Poder, qual em ti ha, não ha nos homens: Do fundo do teu lodo a ti só chama, Ai, leve-te algum vento as queixas d’ella! As torrentes sem freio divagando Contra marmóreas pontes indignadas, Investem, chocão, despedação, rojão Ruinas em montoẽs aos fundos mares. As Dríades, teu povo e tua gloria, Tremem, oh dor! ao furioso assalto D’Euros, e Notos, e Africos em guerra: A seu brutal furor nenhuma escapa: Crer-se-hia que as prisões da Eolia furna Para sempre arrazára a mão de Jove. Dríades nobres de arvores antigas, Refugio outr’ora das calmosas séstas; Dríades bellas de arvores vaidosas Co’a idade juvenil, verdura e fôrças, Tem a seus pés quaes vítimas caído. Co’os negros frutos oliveira amiga Baqueou; não lhe valeo celeste guarda; E Minerva prantêa o estrago enorme: Cáe o pinheiro amedrontando os valles, E Pan, sentado nos troncados restos, Triste espera por ti co’a flauta muda. ¿D’esta cabana a rustica fogueira Sabes quem a sustenta? ah! corre, vôa: Cedro, que eu te sagrei, caío por terra, E onde brincou favonio estalão chamas. Mui tarde chegarás se não-te apressas; Do colono e pastor os ais te invocão, A mesma natureza he morta quasi! Que fragor, que trovão! piedade ó Numes!... Este deu raio, e pérto.—Outro rebrama!... O Olimpo sobre nós desaba em fogo! Chlóe, e Amarilis trémulas, gritando, Desfeita a rubra côr em côr da morte, Enchem de seu terror esta cabana. O’ innocentes, miseras pastoras, Não griteis, não tremais; vereis em breve Dissipado este horror nos longes ares; Contra o crime orgulhoso os Deoses troão, Não fere o raio a rusticos alvergues. Não, não me engano, ouvís como se afasta? Como la vai ja longe? o mais do estrondo Ja he toada vã no vão dos bosques. Chuva propícia em caudalosa enchente Desce na escuridão; resoa o této Com o crebro saltitar das frias gotas: Sibila o vento na vizinha serra. Chlóe a porta fechou: nós apertâmos O cerco estreito em deredor do fogo. Cantou o gallo esperto: he meia noite! E eu vélo ainda, e velarei saudoso As horas todas que á manhã precedem! Horas, horas de paz no horror das trevas; Horas de estro, misterio, omnipotencia Ao que nasceo das Musas bafejado! Sonhe a ambição com purpuras, e scetros; Torpe avareza com os inuteis cofres; A vingança, fatal a si e aos outros, Cogite embora nas traições, no engano, Nos agudos punhaes, no sangue em jorros; Vulgar amante afine, esmere astucias, Com que succumba a tímida innocencia, E aos laços venha destramente armados: Eu dando a amor o que se deve ao sono, Em chama pura, porque he tua, ardendo, Alégro com teu Nome a horrenda noite, A saudade em saudades apascento, E inda ausente, comtigo ausente fallo. Como o perdido em temeroso escuro, Que ao mais leve rumor trémulo pára, Assacinos agoura em cada tronco, Não ouza resfolgar, prosegue a medo, Aqui lhe surde a silva, alem penedos, E lhe abrem fauces mil os precepicios, Só tem na aurora esp’rança, e mal que ao longe Annuncios d’ella vê, canta e renasce; Serei mais que feliz pois vas ser minha, Mal te sonhar ao longe, ó Primavera. Sim: eu te amo inda mais que a vide ao tronco, Mais do que o touro em maio ama a novilha; Quero-te mais que o Deos de amor ás trevas, Mais do que Flora ao Zéfiro inconstante. Eu suspiro por ti, como suspira Murchada planta por sereno orvalho, E ardente ceifador por fresca fonte: Es-me tão cara como a bella esposa A seu amante de chorar cançado, Quando no dia d’hirneneo se abração: Tão doce emfim como o primeiro beijo, Que uma terna pastora, a medo e a furto, Consente ao seu pastor levar-lhe aos labios. Qual dos amores, que no mundo girão, He mais grato que o meu? Este em delícias Excede tanto aos mais, como tu vences, Tu belleza do ceo, do mundo as bellas: Eu amo e para amar não me recato, Ao mundo inteiro meu ardor confesso, Tenho rivaes e do ciume zombo, Gozo-te, e nem pudor nem leis mo estorvão. Inda me está lembrando (hora doirada!) Quando longe do mundo, e a sós comtigo, Pela primeira vez te disse “Eu te amo!” Abria a Aurora o roxo mez das flores: Juntas em córos no arvoredo as aves, De ramo em ramo aos ranchos adejando, Em nunca ouvidos sons a luz saudavão: Inda do puro rio a opaca nevoa Bem não era desfeita ao sol nascido; Inda das folhas concavas pendião Trémulas gotas de luzente orvalho, Que depois leva o brincador Favonio; Quando (ai memoria doce!) eu dei comtigo Inda meia a dormir na fofa relva. N’alguns louros de roda entretecida Hera tenaz um toldo te formava: O melro grave, o rouxinol cadente, Para encantar-te os sonhos, diffundião Entre uns rosaes a musica dos prados; Enchia aroma puro os puros ares. Ligeiras, bellas Sílfides, velando Invisiveis teu placido retiro, Impedião que um Fauno petulante Ou rustico pastor pozessem olhos Em teu corpo sem véo, cheio de encantos. Alí me conduzio propicio acazo: Não mo impedirão Sílfides zelosas, A natureza inteira he franca ao vate. Ridente sono, da innocencia imagem, Cerrava ainda os olhos teus ao dia: Todo brandura o juvenil semblante, Até sem o saber, até dormindo, Faria suspirar homens e feras. Entre a face mimosa e a fria relva Tinhas meio curvado o braço lindo: Como ao desdem, na esquerda seguravas A cornucopia, a não poder com flores: Halito doce de fragancia amena Sáe do seio, que túrgido se eleva; Dos roseos labios, da pequena boca Vem tão doce, vem tal, que um peito humano Bafejado por elle, excede os numes, E a alma, em vez de pensar, delicias volve. Tal eras, tal fiquei ó Primavera! Espertaste de todo; e toda risos, E todos luz e amor os olhos verdes, O que era ja sem termo accrescentaste, Dobrou-se a graça ao mundo, o fogo aos peitos. Um mar de deleitosas fantasias Me soçobrou, confesso, e tempo largo Jazi com o ledo mundo em braços da alma. Depois tornando em mim, ví-te ja prestes Para baixar do outeiro aos amplos valles: Quão mais louçã, e em galas mais garrida! ¿Que muito, se a mais nova das trez Graças, De tuas mil Oréades servida, Pozera as proprias mãos ao vago enfeite? Erão-te manto ondado, e roupas simples, Quanto verde ha na terra, e flor nas plantas; Mas triunfava a rosa! aos botões d’ella, Nem ja todos botões, nem flores todos, Fôra o tépido seio em throno dado, E em vez de o embellezar, se ornavão d’elle: Erão raios do Sol a c’roa tua!... Parei de embevecido! e quem no mundo Te vio jamais como te vio teu vate? Em teu seio amoroso um Cupidinho, Qual borboleta d’oiro, esvoaçava De botões a botões, na escolha incerto. Vio-me; e curto farpáõ, doirado, agudo, Curto farpáõ que os olhos não percebem, Me arrojou, me sumio dentro no peito. Graças ao tiro do mimoso Alado! Na profundez da f’rida, e gôstos d’ella, Contente reconheço, adoro um Nome. Amante, desde então, ditoso amante, De dia a dia te encontrei mais terna. Incenso, que antes dava a falsas Musas, Off’reci-te, acceitaste, e foste a minha. Abriste-me a Aganippe em cada arroio, Cada monte foi Pindo, e Tempo os valles: E tu em cada valle, em cada monte, Ante a lua, ante o sol, me estavas sempre Musa do coração, presente aos olhos. De poetas foi sonho a voz das outras, A tua graciosa ciciava, De toda a parte vinha em tom macio, Que filtra inspirações, e a amor contenta. Se os de ambições miserrimos forçados Que ás cidades dão vida, e a si a roubão, Podessem vir um dia onde tu reinas! Se a mente que as paixões lhes anuvião, E olhos em que os cuidados, seus verdugos, Atárão com trez nós perpétua venda, Podessem ver-te a luz deliciosa, O manso da alegria, os gostos puros!... Deixando sem adeos tumulto e pompas, Mais de um, mais de um, salvando a tempo os filhos, Co’as pouzadas dos bons unirra a sua. E a quem darás tu nunca o riso cheio, Como o déras a este, que trocasse Oiro a virtude, e marmores a flores? ¿Que ja sôlto de si e a si tornado, Viesse pôr, para os livrar de queda E adora-los em ocio, os seus penates Á beira de uma límpida corrente, Que de um bosque atravéz susurra e foge. Víra os Genios da terra o anno inteiro A lhe aprestar a mesa; aqui brotando a No pomar curvo, ali na horta regada, Lá no chão da seara, alem na vinha Que o recôsto do outeiro alastra e enreda, Mais longe nos cabeços verdejantes Onde o gado em socego os leites cria. Não lhe ameaçára o raio o této humilde: As manhãs, d’entre as ramas espreitando Pela aberta janella, o acordarião, Por lhe alargar a vida: os passarinhos Lhe dirão nas frescas alvoradas “Bem vindo, alegre amigo, ás nossas casas! Nós cantamos teu Deos, somos felizes, Tu louva o nosso, e goza d’este mundo.” Se algum cuidado a vespera deixasse, Levar-lho-hia na vêa murmurante A correntinha onde lavasse o rosto. Vê zagalas fieis, vê perigrinas De formosura e joias não compradas, (Que uma da-lha a saude, outras o prado); Com ellas espairece a fantasia, E se inda o coração quer mais ventura, Ama; ao ceo que ja tinha, um Deos lhe accresce! Quanto via e pasmava em mortos quadros, Onde astuto pincel prodigios obra, Sombras vãs, cujo preço he rios d’oiro, Tudo agora real, vivo, mais bello, De mais subida mão pintura immensa, De graça lhe cercára o lar e a vida. Mas ah! porque me sólto em vãs ideas! Embora o preço teu não saiba o mundo, Primavera, eu te adoro e tu me afagas: Caro co’a lira vezes mil teu nome, E tu me infloras magamente a lira: Em longo mútuo abraço almas trocâmos; A minha he mansidão, frescor, perfume, Toda a tua, poesia, amor, extremos. Lanças-me em teu regaço, e quando a noite A lira e cornucopia aos dois nos furta, Das-me dormir co’a fronte no teu seio, D’onde me vem coando uns sonhos leves, Todos teus, todos candidos, na fórma De flores, de aves, de amorinhos, de auras. Assim, me queres teu até no sono! E porque sombras más o não perturbem, Mo ficas a velar á luz dos astros, O semblante pacífico ao sereno, Os olhos no ceo da alva, e o peito amores. Mas tu ... porque não vens?—Não não me engano, Inda agora os trovões rijo batalhão. Talvez rola n’esta hora a tempestade Pelo oceano de Atlante ondas sobre ondas; Rugindo estoira o mar em crespas serras: Possança de baixeis, esfôrço, industria Não vale a contrastar-lhe a valentia; De toda a parte a morte esvoaça, ruge Na horrenda cerração com sons do averno; O náufrago abraçado a sôlto lenho, De toda a parte a vê, a ouve, a sorve; Vai a abismos e a ceos repulso d’ambos, E perde, antes da vida, a luz e a mente. Sumio-se o ultimo audaz de sôbre as aguas! De nuvens atro veo submerge a lua; Não luz na escuridade alguma estrella; He o luto do Homem forte! Ó Mar és livre! Triunfaste, adormece.—Ah que de vezes Taes scenas, tal horror, maior, mais negro, Nos tem de si brotado a umbrosa quadra! Ó tu contrária sua, o tu dos homens Sempre invocada amiga, ethéreo Nume, A quem ceo, terra e mar dão vassallagem, Onde estás, que não vens com um leve assopro Trazer serenidade aos elementos? Se inda és a mesma, e súpplicas te movem, Sobe ao carro da aurora, os ares fende, E acode ao Luso clima, onde te invocão. ¿Lembra-te a gruta, a gruta onde Amarilis De seu ja quasi esposo Umbrano, o astuto, Acceitou, de sincera, a grave aposta? Qual era, que o pastor lhe não podia Dar n’uma tarde tantos beijos, tantos, Como as folhas do plátano vizinho, Sendo o premio da aposta inda outro beijo? ¿Aquella gruta, onde ambos consumirão Um dia teu, a adivinhar a ponto Todas as graças do primeiro filho; E só no sexo os votos discordavão, Porque Umbrano pintava outra Amarilis, E Amarilis raivosa um novo Umbrano? Pois n’essa, n’essa gruta os meus amigos Para hospedar-te um grão festejo tração. Pôr-se-ha do cedro á sombra altar gramíneo Com seus flóreos listões, onde c’roados Te libem vinho annoso e leite puro, Concertando himnos teus com lira e flautas. O lavrador da proxima campina, A estirada cantiga aos bois tardios Parando calará, para escutar-nos. Então, então começa o tempo d’oiro, Folgão no campo os naturaes prazeres, E a rustica alegria apraz aos deoses. Aqui, apoz as candidas ovelhas, Vai trigueira, descalça pastorinha Aos echos do arredor cantando amores; Ali galhudo Sátiro se esconde Para colher alguma Ninfa errante; Alem com ledos sons retine o bosque, O riso ferve, as flautas se misturão; Mais longe, aos pés de mal fingida ingrata, Se exhalão rogos apiedando as selvas. Um favonio subtil encrespa as ágoas, E enfada a Ninfa, que estudava uns geitos De se enfadar com quem de amor lhe falle. Priapo brincador gira saltando Nos jardins, nos vergeis, e nos pomares, Ramos bate, alvorota o plúmeo bando, Que foge, mas de Amor não foge ás settas. Amor e seus irmãos, com o facho em punho, Lanção tacito fogo a quanto existe. Junto da verde faia susurrando Se ouve outra faia um não sei que, tão doce, Que aos amantes apraz o seu murmúrio. Do rebanho o marido entre o rebanho Bala amoroso, e todas lhe respondem: Pela novilha se enfurece o toiro, Accomette o rival, goza o triunfo. Côr de neve, innocentes cordeirinhos Ja balão na verdura, ja recresce Maravilhando a serra, a grei profusa Das erradias cabras saltadoras: A nova creação corre exultando; Aquelle foge, os outros o perseguem, Voltão, saltão, empinão-se, discorrem Por toda a parte n’um momento o prado; Cresce o leite, e o pastor a quem ja faltão Cinchos para o queijar, tarros que o levem, Lédo se enraiva com riquezas tantas. Todo o arredor da aldea he movimento, Contente lida, esp’rança, amenidade. Porque se hão de calar da infancia os brincos? A infancia he primavera, he mundozinho Florente, de que nasce um grande mundo. Menino á espreita e mudo entre as silveiras, Apoz o som do grillo o vai buscando; Outro os ramos envisca, as redes arma; Prêzo de longo fio ao pé mimoso Passarinho pelo ar chirla e revoa, E crendo-se de novo o rei do espaço, De inconstante creança um dedo o rege. Um mais travêsso, ás árvores trepado, Nos ramos se embalança, ou furta os ninhos; Outro mais atrevido, emvão forceja Por montar no carneiro, que se escapa, Fazendo ao longe retinir os bosques Co’ o crebro som da aguda campainha. Tenra menina um malmequer desfolha, E pelo amor da mãi á flor pergunta; Em quanto seus irmãos vão na corrente Pôr de cortiça um concavo barquinho. Na luta, na carreira apostas fervem. Oh! da infancia do mundo amaveis scenas! Se inda as virtudes sôbre a terra existem, Se inda existe o prazer, o socio d’ellas, He no campo, no campo; e a quadra tua Nos mostra, ó Primavera, este prodigio. Mas da fogueira as chamas enfraquecem! Ja os gallos das proximas cabanas Vão começando a annunciar-me o dia: Que som grato! que enlêvo estar sentindo Por um sereno albor, estes vizinhos Nuncios da aurora, a cuja voz respondem Outros aqui e alem, com voz diversa! Sim, o dia começa: a luz nascente Pelas fendas do této está brilhando. Eis-me só junto ao lar! quem sabe ha quanto Se irião meus bons hospedes ao colmo: Agora em doce paz lá estão dormindo. Que breve noite! e he finda; ah toda he finda! Da fresta, onde cheguei, contemplo os ares, E claro vejo o ceo, de nuvens limpo: Mal brilha no horizonte a estrella d’alva. E os olhos meus (oh dor!) só descobrirem Como por um véo denso a natureza! Os montes que longissimo se alcanção De vinhas e arvoredo entresachados, O rio ao longe a fulgurar co’as ondas, Os remotos cazaes da gente humilde Pelas verdes campinas alvejando, Não vê-los eu! não ver!... Mas que murmúrio Sólta a folhagem do loureiro antigo, Que defronte de mim remonta aos ares? O Favonio acordou, que hontem de tarde, Cançado de girar, adormecêra Junto á cascata no pomar sombrio. Vai subito partir: em curtas horas Será comtigo, e te dirá meus versos. Meus Amores, adeos! adeos meu Nume! Da Epistola a resposta a vinda seja. O DIA DA PRIMAVERA POEMETTO EM DOIS CANTOS _Em dois Cantos se divide agora este Poema, para commodo de quem lê. Entendi em apertar melhor que da primeira vez, este feixe de flores, se o he: algumas deitei fóra sem fazerem mingoa; as demais forão refrescadas, e se me não engano mais algum viço ganharão. Puz-lhe com tão boa vontade as mãos como na Epistola: pelo que, sem deixar de ser o mesmo, he outro; he o mesmo no essencial e intrinseco, todo outro no lustre e na toada._ DEDICATORIA A MINHA MÃI. _Á maneira das arvores, que acordando do sono do inverno ao bafo omnipotente da primavera, como que ressuscitão com o riso e vida nos primeiros olhos e flores, o meu engenho começa a matizar-se das suas, com a tornada d’estes dias puros e deleitosos aos amigos do campo. As primicias, que d’ellas pude colher, forão para a grinalda que apresentei na Festa da Primavera celebrada com os meus amigos. Depois de a haver tirado do altar da Deosa que governa a mocidade do anno, a quem senão a ti, ó minha Mãi, devêra offerecer esta grinalda? sim: outrem qualquer a engeitára por de nenhum preço; de ti sei eu certo que lhe acharás uma graça especial, mais finas côres, e fragrancias mais suaves: emfim me atrevo esperar que póstos amorosamente os olhos na minha Obra, entenderás, sem o dizer, como eu sinto todo o amoroso da gratidão, ao cuidar em quem me deo alem do ser, a educação, e todos os mais carinhosos desvelos: alguns suspiros e lagrimas, para cúmulo da minha felicidade, serão talvez por ti, ó minha Mãi, espalhados na minha ausencia._ HISTORIA DA FESTA DA _PRIMAVERA_. Remontando a vêa do Mondego até obra de um quarto de legua para cima da Cidade, encontra-se na margem do poente um gracioso retiro, selvatico sem aspereza, e como que enfeitado sem arte: dissereis que em hora de contentamento o fizera a Natureza, para algum dia hospedar no regalo d’aquellas suas sombras um ajuntamento de poetas seus. De _Lapa dos Esteios_ pozerão nome ao sítio em dias remotos, segundo soa, os vinhateiros e pomareiros que de umas e outras varzeas do rio costumavão acudir ali por paos, com que estear suas parreiras e arvores derreadas com o pezo da fruta. Ainda permanece o nome, porem ja o arvoredo se não desbarata pelos vizinhos, e a Lapa, de tão solitaria e amena que he, parece a appetecida estancia do Genio da liberdade. Entra-se por um breve cáes ornado de cinco alterosas arvores, das quaes uma torcendo-se toda para o rio, se debruça para saudar e cobrir com a sua sombra os bateis que chegão. No tôpo do cáes, e fronteira a quem desembarca, se alevanta um genero de muralha nativa de rochedo, rôto em muitos seios. Esta penedia, até aos nove ou dez palmos de altura, sóbe nua e só ornada de sua mesma aspereza; d’ahi para cima, como envergonhada de sua dura condição, se esconde toda com um frontal de heras, que ora resaem como cabeços pendurados, ora se recolhem para fantasiarem la por dentro suas grutazinhas e labirinthos, d’onde ás vezes se estão vendo saír por um cabo e por outro os passaros, que depois de beber e se banharem na vêa da agoa, se empoleirão pelos lamegueiros vizinhos, namorando e cantando a suavidade e fresquidão de suas habitações. Pelo lado direito d’esta aprazivel scena, sóbe uma cerrada espessura de bosque pequeno, onde os olhos se enleão na confusão de troncos e folhagem: pelo esquerdo abre-se para cima uma escada rustica mas commoda, de doze degraos. Tecem-lhe estendido toldo dois lamegueiros velhos, e outras arvores mais pequenas se abração por ali, travadas com mil voltas de hera. Dá esta subida em uma planura sôbre o comprido com seus assentos de ambas as bandas, isto he da terra e do rio, o qual por entre um basto arvoredo, que d’ahi por uma especie de promontorio, vai descendo até lhe metter os pés na corrente, se está vendo a furto transparecer: das primeiras cabeças d’este arvoredo cáe para os assentos uma boa a vedada sombra. O puro e perfumado dos ares, a vária presença da terra e aguas, o susurrar dos ramos abanados da viração, as melodiosas querellas das aves, em summa o natureza enfeitada só de suas mãos, e paz e descanço de deserto, são a fonte perenne dos encantamentos d’este sítio. Uma ladeira suave opposta á escada, e ainda mais sombreada, despede em outro cáes com seus degraos nativos de rocha até á agua. He este menos bem assombrado que o primeiro: não tem relva, nem arvore, nem verdura afóra ada muralha no tôpo, toda velada de musgos, matizados com seus tufos de fetos silvestres, congossas e um sem numero de outras plantas e ervas, sobresaindo a espaços alguns ramos solitarios de figueira brava: mas o que de interior graça lhe fallece, lho compensa a larga vista que para fóra desfruta. Era chegado o primeiro dia de primavera. Tratado e assentado estava de ha muito entre mim e meus amigos, como iriamos passa-lo juntos, em uma romaria e festa poetica á honra d’aquella mais formosa parte do anno. Não faltavão á volta da Cidade muitos sitios accommodados ao intento, antes não creio que possa haver no mundo outra verdadeira Arcadia, que em tão pequeno espaço resuma tantos: mas d’entre todos coube á Lapa dos Esteios a palma da competencia. De doze se compunha o rancho, todos amigos, poetas e academicos. Por volta de meio dia, pouco mais, nos ajuntámos com muita alegria e abraços, e todos com as nossos ramalhetes de primavera nas mãos, nos pozemos alvoraçadamente em caminho para o rio, onde ja o barco nos aguardava. O ar estava puro: contra o sol que ardia rijo, nos acudia com refrigerio um pouco vento, que ao mesmo tempo nos fazia mui boa feição para contrastar a corrente. Saltámos e partimos.—Em quanto alguns por um e outro bordo ajudavão o favor do ar com o trabalho de suas varas, repellindo o álveo, e fazendo-nos resvalar mais prestes á medida de nossos desejos, os demais amotinavão ao longe ambas as ribeiras com suas cantigas de amores, entoadas em chusma. A cada momento porem se quebrava por si o canto, para se contemplar e encarecer o muito que a natureza e o artificio podérão e soubérão crear para enlevo de olhos, por ambas aquellas dilatadas margens e campos: pradaria verde e florída, outeiros risonhos, cazaes branqueados, grangearia e recreação de quintas, pomares, hortas, jardins, e mil arbustos curvos por entre choupos e salgueiros até beijarem a agua, esse era o painel em que meus amigos se hião enlevando, e que a mim, que pelo longe que era posto, o não podia nem por nevoas enxergar, me desentranhou algum suspiro, dando-me a sentir no meio da geral alegria alguns momentos magoados, recostado na borda da embarcaçaõ. Mil couzas pequenas, e por ventura vãs (mas quaes ha que sejão taes para gente moça em dia de júbilo?) matizarão toda esta viagem: taes como a grita que de subito alevantámos ao passar por baixo do arco grande da ponte, aonde as vozes, refletindo do massiço da cantaria, nos ressortião para os ouvidos com uma estranha soada, como que por aquella porta e esteiro estivessemos entrando um mar nunca d’antes descoberto; despedidas á Cidade que de nós se alongava, branca e assentada em seu monte, até que desapparecia, e ás margens que para nós arremettião correndo com seus estendaes, lavradores e rebanhos, para logo nos passarem alem, fugir-nos e perderem-se; a vista de um bando immenso de pombas, que levantando-se espavoridas com a nossa passagem, de um ilheo de arêa onde se estavão a beber e banhar-se, nos atravessarão pela proa e forão derramar-se todas queixosas pela ribanceira vizinha; o ceo a espelhar-se inteiro nas aguas ufanas de retratarem multiplicado o sol da primavera com toda sua magnificencia: semelhantes nadas produzião em somma um genero de felicidade a estes moços Anacreontes viajando, á qual, para de todo o ser, só faltava poder durar. De instante para instante importunavamos os barqueiros, perguntando insoffridos quanto nos restava do caminho. Cuidava-se ver a Lapa dos Esteios em quantas soledades apraziveis nos apparecião ao longe. Emfim a apontárão com o dedo; levantão-se todos, todos com clamor unísono a saudão. Saltámos logo no primeiro cáes, deixando o nosso barco amarrado a uma arvorezinha, que se algum curioso vier visitar aquelle sitio, he a terceira da parte esquerda. Uns de outros derramados, nos fomos prestesmente por onde o acaso ou a fantasia nos levavão, correndo e devassando toda aquella solidão, que por algumas horas vinhamos povoar: e tornando-nos a ajuntar no alto, onde tão commodos assentos se nos deparavão. “Esta Lapa disse um, para estancia e habitação das Musas parece feita; por aqui as heras pendem de toda a parte!” Sobre o que, se procedeo logo á lição dos poemas que todos levavamos. Aqui usarão meus amigos para comigo de huma cortezia, de que por mais que fiz me não foi possivel defender-me, ordenando-me com seus rogos que os meus versos, para os quaes o ultimo lugar em tal companhia podéra ainda ser de muita honra, rompessem antes de outros aquelle acto. Estes, a que eu pozera o titulo que ainda tem _O Dia da Primavera_, ja primeiro que o sitio fosse escolhido se achavão feitos, rasão porque não ha que procurar n’elles a pintura d’elle. Concebêra eu um dia de Primavera levado pelos campos em contentamento com aquelles companheiros; tomei de minha livre imaginação o que me pareceo bastaria para o encher; e poetei-o sem me obrigar a nenhuma outra verdade. _Elmiro_ (que todos havião arcadicamente tomado para si nomes de pastores) assim como a leitura foi rematada, veio para mim com um listão de heras nas mãos, e mo lançou, a todo o poder que eu pude para me escusar, do hombro direito ao lado esquerdo.—Seguio-se _Anfrizo_, o qual em pé junto de mim, e com uma coroa em punho, recitou uma formosa Ode, toda floreada dos louvores que a amisade lhe figurava poderem-me bem assentar; e chegado que foi á ultima estrofe, me coroou abraçando-me. Tambem a esta honra me foi forçado ceder, com quanto claramente em mim sentisse o muito que vinha mal empregada: a amisade ordenava, o dia era seu, rendi-me. Era a grinalda de artificiosissimo lavor, mui fresca, e tecido de louros, heras e cópia de flores naturaes; guardei-a com ufania e como joia; quizera conserva-la para sempre, mas representava gloria, e minha, murchou, desfez se, largos annos ha que he pó, e pó disperso. Dado que ja então fosse tal o meu triunfo, qual nem em sonhos de ambição o podéra antever, _Josino_, a cuja feiticeira Musa ja eu era, muito havia, devedor, inda o subio de ponto, lendo antes de um poema, pequeno em extensão mas grande e grandissimo em merecimento, um elogio a mim em tão delicados versos, que não posso menos de perdoar-lhe a lisonja. _Aulizo_[5] leo um longo poema intitulado _A Primavera_, que todo respirava amor aos campos e á virtude, ataviado de mui mimosas galas poeticas, e de mui particular doçura e sabor para os ouvidos: nem se cuide que sangue ou amisade ou vãgloria me fazem fôrça para o dizer, que antes o dissimulára eu, se o ser irmão e amigo fossem partes para, quando a todos os mais vou distribuindo seu preço, lho sonegar a elle; e ainda assim talvez o não ousára, se tão boas testemunhas não valessem a confirma-lo. Foi esta leitura interrompida de uns sons de flauta, que por cima das cabeças, e de mui perto nos vinhão: era o meu caro amigo, Horacio portuguez, José Fernandes de Oliveira Leitão de Gouvea, que alvoraçando-nos e alvoraçado, nos apparecia ao cimo da curta escada que da Lapa sobe para a _Quinta das Canas_, que lhe fica sobranceira. Forão tudo clamores de alegria, recebendo entre nós, poetas todos verdes, o nosso decano e patriarcha; cercámo-lo com abraços, das mãos lhe furtarão a flauta, foi levado de repente a todos os recantos do nosso Parnaso, contando-lhe todos á uma o que até ali se passára, que vezes se fallára n’elle, e se desconfiára de sua promettida vinda. Este homem amavel, jovial, incapaz de estudadas gravidades, dado e corrente com todos, bom sem merecimento de esfôrço, filosofo sem o cuidar, coração que ainda não saío nem ja agora sairá da infancia, homem só comsigo parecido, que a ninguem imitou nunca, nem de outrem será nunca imitado, e cuja vida, se alguem soubesse escrevê-la, sairia tão original e unica como elle mesmo, este digo, nascido para ser alma de qualquer ajuntamento moço e alegre, tomou para logo seu quinhão na Festa. Deu-se fim ao poema interrompido com a chegada do novo socio, que muitas outras vezes o tornou a interromper com applaudir e abraçar o poeta. _Josino_, que assim como o ouvia fôra entrançando uma coroa de hora da arvore mais chegada, mal que o ultimo verso expirou, se foi com ella, por entre as palmas de todos, premiar a fronte do cantor. _Elmiro_, que de apoz se seguio, nos cativou as attenções com um poema de muita invenção e belleza, aonde outra vez a amizade me brindou com perfumes seus, para os não dizer da lizonja. Igualmente o coroámos; e outro tanto se foi fazendo aos demais, que recitarão poemas mais breves ou traduções. _Salicio_[6] repetio uma mimosissima tradução livre de uma parte da _Primavera_ de Thompson: _Albano_, uma tradução em lindas quadras do Idillio Primavera de Gessner: _Francilio_, uma tradução em proza de Utz, que leo de pé com o copo em punho, e rematou com um brinde: _Franzino_ uma versão da _Primavera_ de Cramer: cerrando-se finalmente este rico banquete poetico com mais de quatrocentos versos de um poema de meu irmão José Feliciano de Castilho, que pelo muito menino que ainda áquelle tempo era, não foi dos menos vitoriados. Todos estavamos coroados, e o rancho se espalhou. “Ja la vai o sol abaixo; os seus raios apenas tocão ja os cumes dos outeiros d’alem: aproveitar o tempo!” bradarão alguns amigos da borda de uma eira que dominava a Lapa: e todos sentimos que a tarde nos hia insensivelmente escapando. Então ao som da flauta do nosso Horacio, começarão todos de dançar e saltar, e as aves incitadas da musica, levantarão mais alto os gorgeios da tarde. As folhas das heras, que por ali guarnecião todas as arvores, e algumas flores voavão ás mãos chêas como em chuva, de uns contra os outros. De quando em quando se alevantava alguma voz inculcando, porque o fossem todos ver, algum particular gracioso e ainda não observado d’aquelle sítio. Chamando _Aulizo_ pelos outros, lhes fez notar do cáes mais arido, o como o rio d’ali visto, á conta de sua curvidade se afigurava lago cercado de collinas desiguaes, coroadas e semeadas de larangeiras, oliveiras e pinheiros, e cazaes alvejando, enxergando-se mais a longe, e por entre estes, outros outeiros, quasi a se desvanecer na distancia e sombra da tarde. Debuxava eu no animo toda aquella scena saudosa; saía-me o quadro maravilhoso, mas era por ventura verdadeiro? não o sei. Uma merenda saborosa nos appareceo de repente e como por encanto: _Elmiro_ fôra o magico providente. Toalhas brancas de neve estendidas no cáes do desembarque, forão povoadas de primorosos manjares, garrafas ja de dias, e copos coroados de verdura: uns rolos de arvores estendidos em quadro nos valerão de assentos: dois meninos gémeos, vestidinhos da branco, erão os Ganimedes do nosso banquete folgazão. Parte assentados, parte reclinados em diversas posturas, outros por entre estes girando com os copos e pratos na mão, boas descaídas, descuidos a tempo, apontadas graciosidades e risos do íntimo, brindes com o copo alto na direita, enviados a mui longes e mui diversas terras (que não havia um só que da sua não padecesse ausencia e se não finasse com saudades), outras saudes ora mais ora menos sumidas, a objetos nomeados umas vezes e outras não, mas mui bons de adivinhar pelos suspiros e geito do saudador, a voltas e proposito d’isso narrativas e contos para folgar, musicas alegres de flauta mil vezes começadas e outras tantas interrompidas, e outros muitos nadas com que a penna se não atreve, convinhão em aprazivel mistura para encantar a ultima hora da Festa da Primavera. Posto era o sol, mas o ceo ainda não carregado de noite: havia-se de partir, faltava o animo para o fazer; instavão os barqueiros, crescião n’elles a rasão e o importunar, acabárão comnosco que nos rendessemos. Despedidos os amorosamente da Lapa ja áquella hora entranhada de escuridão temerosa; com os pés ja postos na beira da agua, nenhum queria ser primeiro que trocasse terra de tanta festa, por um barco que nos hía tornar para onde vida de proza e cuidados nos aguardava: senão quando, levantando o bom Gouvea a voz, com ella suave e chêa que se hía por aquellas margens alem, começa de cantar _A minha Lilia morreo_; improviso seu, chêo de uma branda tristeza, que aos cançados e não fartos de gozar costuma ser segundo gozo. Assim hia elle até n’isto imitando o seu Horacio, que nos poeticos festins que dava ao Genio da alegria, nunca se esquecia com seu quinhão de pensamento para a morte. Profundo era o silencio que de toda a parte cercava o nosso cantor; só se ouvia o murmurio baixinho da corrente. Não havia quem nos apartasse: por derradeira vez nos tornámos ainda á Lapa, travou-se uma dança por despedida, e fez-se uma saude geral ao lugar e ás trez Graças que ali costumão a vir muitas vezes[7], até que emfim nos embarcámos, com as nossas coroas na cabeça. Foi aos barqueiros defendido usar de vara, antes se lhes encommendou que nos deixassem embora ir, tão mansa e perguiçosamente como á vêa mal desperta do rio parecesse, e ainda n’aquelle pouco descer das aguas houvéramos nós tido mão, se podessemos. Pareceo bem, para atalhar a confusão de tantas vozes como as que ali fervião juntas, nomear á maneira do Rei do vinho nos festins dos antigos, um que nos governasse. Este foi Gouvea por acclamação unanime. Lembrou um que d’ahi ao deante nos ficassemos uns aos outros dando o tratamento de confiança, que a boa amizade consente e requer: approvou-se. “E quemquer que a esta lei desobedeça, haja-se por expulso da _Sociedade dos Amigos da Primavera_.” Approvou-se com alvoroço; levantarão-se todos abraçando-se, apertando-se entre si as mãos, e dando-se entre risos o tratamento novo tão amiudado para lhe quebrar a estranheza, que ninguem se entendia.—“Todos os Socios (gritou outro, e de novo se fez silencio) hão de conservar até que o tempo as destrua, estas suas coroas, se não monumentos de gloria, penhores certo que mais vale, de horas felizes:” approvou-se por lei o que ja todos levavão no coração bem votado. Suscitou-se depois que recitasse cada um segundo a ordem dos assentos, alguma sua poesia breve, e que mais lhe parecesse accommodada á occasião. Não faltárão aqui seus debates, lembrando uns como apoz tanto recitar, tinha a cantoria muito melhor cabida do que os versos nus, outros affirmando que a flauta melhor que nenhuma outra cousa diria com a hora, sítio, e calada grande do rio: até que um veio conciliar a diversidade dos pareceres, dizendo que umas couzas não tolhião as outras, antes podião ir todas a revezes tendo seu lugar: o que assim se cumprio. A serenidade da noite junta com as saudades do dia, nos fez achar inefavel doçura nos sons da flauta, que parecião modulados pela melancolia, e se esvaíão ao longe nos ares. Se ás vezes o acaso nos levava mais para uma das margens, uns frouxos echos chêos de doçura a tristeza se comprazião de repetir a musica e as palmas com que a nós applaudiamos. Emquanto um só cantava em meia voz, e nós o ouviamos calados, a face na mão, e meio reclinados contra o rio, suave nos era escutar como as quasi insensiveis ondas, com som muito mais baixo nos vinhão beijar os lados do batel, d’onde, se fugião partindo, com um murmurinho saudoso. Descemos em terra, e abraçando-nos repassados de igual amizade, e das mesmas lembranças, votámos logo ali nova Festa em honra do primeiro dia de Maio, a qual se veio a fazer, como ao deante o declarará o volume: e todo esse meio tempo de uma até á outra, foi tecido de doces memorias, fantasias poeticas, tenções e esperanças de prazer. Assim se podia e sabia ainda então passar dias mansos, innocentes e bemaventurados! _Lisboa: 2 de Janeiro de 1837._ O DIA DA PRIMAVERA. CANTO I. _A Manhã_ Ei-la que chega a amante Primavera! Logo ao romper do dia susurrando Vós, Favonios azues, a annunciaveis. Chega ... chegou! as aves a festejão Desatinadas, doidas; ja com verdes Braços lhe acena o bosque; estão-se os rios A retrata-la; as fontes a murmurão; Traz gala o monte; os valles se alcatifão; Ri-lhe o ceo todo, a Natureza he d’ella! Mais cedo ao leito do marido annoso Hoje a Aurora fugio; tomou regaço De orientaes aljofares mais rico, Mais cópia em seio e mãos de ethéreas flores. Aos umbraes inda escuros do horisonte Quem a aguardava, quem? os meus Amores Que encontro! que abraçar-se!... O Zefirinho Que ja por entre nós passou trez vezes, Trez vezes ao passar mo ha segredado: Vio tudo, tudo ouvio, que era elle proprio Um dos que pelo ar vinhão soprando O matizado pavilhão de nuvens, Em que ás terras baixava o Par celeste. Rosto a rosto inclinado; as mãos unidas; Mago riso um só riso em bocas duas; Absortos em luz mutua os mutuos olhos; Duas Gémeas do ceo, duas Virtudes N’uma Virtude só, se afiguravão. —“Ó minha Irmã (dizia a Primavera) “Quem nos ha de estremar? tu es do dia “A Primavera, eu sou do anno Aurora”— —“Filha como eu do Sol (acode rindo “A Aurora), ó doce Irmã, vérte-te o Fado, “Não q eu to inveje, os bens de urna mais ampla: “Deu-te folgar sem mim, deu-te a alegria “Dos dias que eu só abro, e os tão gabados “Prazeres que eu não vi, não verei nunca, “Prazeres do sol pôsto, e de alvas noites. “A mim lida perenne, a mim rigores “De oppostas estações, reinar de instantes, “Contínua fuga, e os odios dos ditosos, “E as maldições de Amor comtigo affavel. “Eis porque a meu pezar, já por costume, “De olhos que espargem luz se orvalhão choros. “Perdôa-mos teu jubilo mos sécca. “Desce, eu parto, urge o Tempo, e ja me acena “Co’a mão rugosa para novos climas. “Fica-te em nossa amada Lusitania, “Inda pouco ha tão triste. Observa os cumes “Contra o nosso nascente; ahi vês á espera “A turba toda dos campestres Deozes, “Flora, Cibele, Dríades, Napéas, “Hamadríades, Náiades, Silvano, “A caçadora Cinthia, Amores, Graças, “Os ledos Risos, a amorosa Venus; “E Pan ha muito tempo em nova flauta, “No verde cume do apartado monte, “Lá onde canas trémulas susurrão, “Para a tua chegada estuda um hino, “A cujo estrondo os Sátiros voltêem.”— Diz: olha para traz, vê o Sol, desmaia, Beija a Amiga, e fugindo a entrega ao dia. Desfez-se a névoa eis Sol! Joelho em terra, Amigos meus; he o Sol da Primavera! “Ó Sol das flores, Salve! Ó Sol de amantes, “Salve! E trez vezes Salve! ó Sol dos vates!” Vêde-o doirando do arvoredo os cumes; Vêde nas aguas límpidas fervendo De reflexos de luz áureo cardume. Corramos n’um momento os campos todos! Como esta luz do Ceo, que a toda a parte Desce, rompe, insinua-se, alvoroça; Como esta luz do Ceo, vates mancebos, Devassemos a terra: uma só gruta Não fique, um arvoredo, ou valle, ou fonte, Por onde não mergulhe a vista, o estro. Esta, que ora seguimos, tortuosa Concava senda, ha pouco estreito rio Co’as grossas chuvas da vizinha serra, Parece de um jardim curiosa rua! De um lado e d’outro os còmaros pendentes Ja não são montes de crueis espinhos, Montes são de verdura, e roxas flores, Onde n’outra estação viráõ c’os cestos Colher nevadas mãos negras amoras: Recende o legacão, e a madresilva. De madresilva ornemo-nos as frontes ... Mas não: fique-se em paz a flor nevada; Quer-se antes a violeta, eu sei outeiro Onde ella mora, he flor da Primavera; D’esta eu fiz elleição não quero d’outra, Vós, se outra preferís, apanhai d’essa. Por aqui vai a encosta desfarçada: Como que ja de cór meus pés a sabem. Ja vós de cá vereis, la quasi ao cimo, Um ramalhete espesso de aveleiras, E de dentro luzindo uma apparencia De alvo lirio entre verde, um cazalinho; Pois essa he a casa de Egle. E mais avante, No alto; não voltêão solitarias As pandas velas de veloz moinho? Tambem ja la pouzei n’uma afrontada Tarde do estio, e lhe dormi á sombra. Tudo isto me conhece! Esta ladeira De rusticos degráos, que ahi desce á dextra, De perenne verdor acobertada, Cáe na fonte da aldea. (Ahi vão por agua Com seus vermelhos cantaros as moças. Outras cá vem, com passo mais tardio, Sobindo ja, com os potes á cabeça Lustrosos, vacillando e sempre firmes) Não presumis quanto he social a boa Da fontinha aldeã! não ha formosa Que ali se não detenha e não se enfeite; Não ha pastor cortez, que ao fim da tarde, Ja recolhido o gado, ali não desça Para ajudar a encher; inda não houve Na vizinhança amor, cantiga nova, Ou fallado successo, que cem vezes Do fundo de seu antro os não ouvisse A Náiade anciã; nem bôda alguma, Sem se enramar o portico musgoso. Á esquerda, pela varzea anda rebanho; Que ouvi balar, e ainda ouço a cantilena De pegureira voz. Dizei-me á pressa, Que scena off’rece a varzea? a relva molle De alvas boninas trémulas brincada, Onde o calor nascente o orvalho enxuga, O sombrear das arvores dispersas, Bellos não são de ver? he vasto o bando Das ovelhas pacíficas? he linda A guardadora sua? está sozinha Em pé volvendo o fuso e olhando o pasto, Ou com algum pastor sentada em ocio? Traz disperso o cabello ou prezo em rosas? Que donoso cantar! que peregrina Poesia que esperdiça aquella moça Com broncas solidões e ovelhas rudes! Couza que assim namore a fantasia Não quero que haja, não: virgem formosa Sozinha sob o ceo; velando em brutos A que era de velar como um thesouro; A graça envolta em lãs, contente e rica; E annos verdes, sem pena aqui florindo, Longe de olhos e amor, jogos e esp’ranças! Detende-vos: o aroma he de violetas. Ei-las! irei tecendo a c’roa minha Com estas, que escondidas, pudibundas, Como a pastora, em paz desabrocharão, O ar, como a pastora, em roda encantão. Ja percebo o rugir das aveleiras; Não vejo inda o cazal estancia d’Egle, Mas perto, oh perto vem: todo esse rôlo De espesso fumo que serpêa aos ares, He da interna fogueira que amanhece, Cuidadosa do almoço, aos moradores. Entremos no pomar. Ja Primavera Copiosa o bafejou, de agradecida Ás pomareiras mãos que lho aprestárão. Inda folhas não ha, mas tudo he flores! Vede como ante o sol tremúla e brilha O pecegueiro co’o vermelho ornato: Vede alem da pereira a branca véste, Da cerejeira, do abrunheiro a cópa: Vede como uma vide em cada tronco Tenaz se enlêa em tortuoso abraço; Ja seus pequenos pampanos rebentão, Verdejantes festões ja vão formando: Do cheiroso morango a planta humilde Aqui e ali no verde chão rasteja. Arvores, plantas d’Egle, a nomeada Em todo este arredor pelas delicias Dos ricos frutos seus, não se numérão, Nem sei louvor que lhes não ceda, e muito. O porque sejão taes, fique em segredo Quando vo-lo eu disser. — Aqui Vertumno Veio uma tarde do passado outono, Mudado em rouxinol, cantar nos ramos, D’onde, mais bella que a gentil Pomona, Egle andava colhendo a rica fruta. Julgou ver sua Deoza o terno amante, E tão doce cantou por entre os frutos, Tão queixoso gemeo, gemeo tão meigo Cercou-a tanto com chorosos pios, Tantas vezes pouzou na mão de neve, Na trança negra, no virgineo seio, Que Egle o metteo no candido regaço, O levou toda ufana ao lar paterno, E em pintada gaiola inda hoje o guarda, Que o Deos não quer fugir do cativeiro. Quando a sente acordar pela alta noite, Acalenta-a com languidos requebros: Ao romper da manhã, quando no bosque Ouve perto cantando as outras aves, Logo a acorda com vividos gorgeios: Mas quando a vê surgir, qual Venus da agua, Sem mais vestido que a esparsida coma ... Ahi he o pipillar, o esvoaçar-se, O encrespar de plumage, o dar sem tino Contra os duros varões co’ o peito brando: Ahi o abrir do bico a pedir beijos, E o revelar calado o amor e o nume. Por isso he que ao pomar onde foi prezo Fadou, quanta vos prende, infinda graça. Como he puro este ceo do campo d’Egle! Como he doce este Zéfiro que folga Entre as arvores d’Egle! este he ditoso! Ei-la que sáe de seu campestre alvergue. Calados se podeis, entre estes verdes Porque vos não descubra, olhai-a um pouco. Quereis ver como a ponto lhe adivinho Os passos, e o que faz, e os pensamentos? Sim, Egle he sempre aquella, he sempre a mesma; Arvore sem enxerto he sua vida, Dá sempre a flor igual, iguaes os frutos. Mas silencio, Vertumnos insoffridos, Ja vo-la pinto, e me direis se eu érro. Do braço nu e candido lhe pende De louro milho o próvido cestinho. Chama as pombas, lá vão pouzar no alpendre; Á eira arroja os grãos, lá são na eira, Arrulhão, comem sofregas, refogem; Ahi vai novo punhado, ahi vem de novo. Uma d’ellas, mais alva do que o leite, Vai pouzar no cestinho ao lado d’Egle, E mansa come na formosa dextra; Furtão côres com o sol o collo, as azas. Egle lhe chama filha; affirmarieis Que o brutinho a entendeo, salta-lhe ao seio, Espaneja-se: agora lhe promette O pombo mais fiel para consorte, E um ninho todo fôfo, e muito afago Aos pequeninos seus; mas quer em paga Um beijo, e um beijo pede: a face inclina, O bico a vem libar; alonga os labios Unidos em botão, corre o biquinho, E ao centro do botão lhe leva o beijo. Agora vem ao tanque, aos rubros peixes Trazer segundo almoço: oh!—providencia Não ha mais desvelada, ou mais formosa! Mal que o choveo nas aguas transparentes, Por entre os crebros circulos assoma De vivos olhos purpurina turba, Tragão-no, e fogem requebrando as caudas: Ermo o lago outra vez ficou dormindo. Que dizeis? volve a casa? em manhã d’estas Egle volve ao cazal! tornará logo. Mas vós não ficareis, que o não consinto; Hoje he só Divindade a Primavera. Emquanto a hora da Festa inda vem longe, Irmos correndo á sôlta, irmos folgando He o nosso dever, foi jura nossa. ¿Mas que risadas d’esta parte sôão Entre os salgueiros, do regato á borda? Rasgado o cinto, desgrenhada a trança, Uma Ninfa gentil é quem sozinha, Se ouve rir no pacífico arvoredo! La vai na vêa d’agua bracejando, E a soltar de afflição piedosos gritos Um Sátiro infeliz! ja muito longe A corrente lhe leva o odre e a flauta. Agora á flôr das agoas apparece, Some-se agora no lodoso fundo. Em vez de o soccorrer, o apupão rindo Da opposta varzea os rusticos pastores. —“Dize, bom guardador das vaccas nedeas “Que successo foi este?”—“Eu vo-lo conto. “A Ninfa hia correndo, antes voando, “Ao longo d’esta margem que verdeja, “Quando eu dei fé; suava-lhe no alcance “O mofino do Sátiro ... (Que vejo! “Inda poude aferrar ... Más horas leve “A agua que o não tragou! Pois ja não larga “Os vimes que aferrou co’a mão pelluda. “La trepa ... Vê-lo em cima! Oh como o bruto “Se estira ao sol e arqueja!) Hia no alcance “Da pobre Ninfa o Sátiro; umas silvas “A prendêrão, travando-lhe do cinto. “Carpia-se a coitada entre alaridos, “Como passaro prezo; esta novilha “Não muge com mais ancia em vendo os lobos. “Bate as palmas o fero, e mais ligeiro “Atropella a carreira, e vai clamando —“Venci-te—Avida mão ja lhe lançava, “Senão quando (tomado está dos vinhos) “O pé caprino na orvalhada relva “Resvala: vê-lo vai de tombo em tombo “Medindo a ribanceira, e dá no rio! “Logo ao caír, fugíra-lhe dos hombros “O odre do vinho, e a flauta d’entre os dedos. “Mal poude resfolgar—Ó flauta! ó odre!— “Disse trez vezes, e esqueceo-lhe a Ninfa”— —“Bem hajas, guardador das nedeas vaccas: “Mais feliz sejas tu com teus amores, “E menos apressada a que seguires.” Socios, que mais ha ahi? Que vos demora Em de redor de um choupo? Letras, versos Entalhados no tronco! uma grinalda A abraça-lo, outras mil por toda a cópa, Que parece um rosal! na terra mirtos! Lede-me esse letreiro: algum queixume De infeliz namorado. Oh! ceos, he crivel? LEI DE AMOR tem por titulo? se fosse Da propria mão do Nume aqui gravada! _Amar, amar! viver d’amores!_ _Que o tempo off’rece e nunca espera;_ _Aos corações bem como ás flores_ _Não se renova a Primavera._ Oh Lei, porta de Elisio antes da morte! Sim, sim, de Amor tu es; vós sois das Graças Coroas que a ufanaes, a encheis de aroma. Socios, ministros das Piérias Deozas, Erguei mão não profana ás flores sacras, Privilegio he do estro, ouzai colhê-las: Levará cadaqual no peito a sua Bem sobre o coração, tão perto d’elle Que ouvindo-o palpitar lhe falle amores. Pois he lei quero amar: sim. Porém onde Onde estará da Primavera a Deoza? Por toda a parte os seus vestigios nóto, Mas não a posso achar. Ah! vós que rides, A insólita paixão julgaes chimera. Existe, existe a Virgem graciosa, Dos Ceos a Filha occulta anda na terra: Não são sem divindade estes prodigios. Quem faz tão branda murmurar a fonte? Quem abre a rosa na materna planta? Quem dá cheiro á violeta, e côr ao lirio, Ao ar fresco o regalo e verde aos campos? Quem poesia de amor ensina ás aves? Quem é que influe no coração dos homens Tanto amor, tanta paz, doçura tanta? Existe, existe a Virgem graciosa, A minha doce Amante, a minha Amada, Dos Ceos a Filha occulta anda na terra. Sinaes de sua mão, pizadas suas, Fragrancias que espirou, por toda a parte Me envolvem, me arrebatão, me endoidecem; Mas busco-a e não se mostra; exclamo, he surda! O dia he fallador, he distraído, Deidade virginal recêa o dia, Casta, só quer talvez ás castas sombras Revelar seu misterio, abrir seu peito. Oh quem me dera que baixasse a noite! Da noite no pacífico silencio Côa pelo ar vazio o som mais leve: Por isso a Filomela a quiz por sua, E o mocho lhe confia as longas queixas: Quem me ja déra que baixasse a noite! Irei clamar do cume dos outeiros “Ó Primavera, ó minha Primavera!” E depois que trez vezes repetirem, Ao longe os echos meu tristonho grito, Attento escutarei se me responde. Se nada ouvir, prostrando-me, e cobrindo De igneos beijos a terra (os igneos beijos Tem valor de conjurio entre amadores) Com maior devoção, dobrada fôrça, Clamarei “Primavera, ó Primavera!” E os campos todos correrei bradando. Na solitaria gruta alguma Ninfa Ha de acordar, e á parte do oriente Lançar a vista, procurando a aurora: A aurora não virá, e eu longo tempo Andarei pelas trevas suspirando. Se trez vezes o sol descer ás ondas, Sem que possa encontrar a minha Amada, E sem que algum mortal dê novas d’ella, Apagarei no peito o incendio inutil, Pensando que era ingrata, ou que por sonhos Somente a víra em extases do estro. Mas viver sem amar, sem ser amado? Vida entre gelos equivale á morte, No pasto ao coração mantem-se a vida; Sois brandas affeições, a essencia d’ella. Confessar-me da Lei que abrange a todos, O primeiro infrátor? Ó Chlóe, ó bella, Serás tu d’entre mil, o preferido Emprego aos versos meus e aos meus excessos. Ja tens da Primavera o genio, as graças, Sua fama terás, terás seus hinos. Quando com teu rebanho para o rio O bosque ao fim da tarde atravessares, De longe me verás na flórea margem Sobre um penedo a celebrar teu nome. Quando o quente redil ao gado abrires No frescor da manhã, dir-te-ha meu rosto Que entre as da tua porta arvores caras Não fui amanhecer, mas toda a noite De amor andei cercando o teu descanço, Sentindo-te o respiro, ou crendo ouvi-lo. Quando na sésta, á sombra da oliveira Tiveres descuidosa adormecido, Em sons de flauta escutarás por sonhos O cantar novo que te mais recreie. Mas vede como leve escapa o tempo! Ja alto e rijo o sol encurta as sombras. Largo se ha divagado! Hora purpúrea, A mais social, mais folgazã das horas, Chamando está por nós co’a mesa agreste. Onde a iremos tomar? n’algum tugurio De solitaria Baucis? nem de feno Pobres tétos consente o sacro Dia. Ali temos o outeiro alcatifado, Rico montáõ de flores! Que mui frescos Pela assomada os louros se entrelação! Mas sobre tudo que aprazivel gruta! Por fóra he de hera um tufo luzidio, Dentro um fôrro de musgo. Alvitre novo Ó Socios escutai. Esta collina Desde hoje para nós fique Parnaso. Eis a gruta de Cirrha, onde costuma Febo sonhar magníficas imagens! Esses louros são delle! Aquella fonte (Ceos nada falta!) he fonte de Castalia! No remanso diáfano boiando Niveos ganços as azas empavezão; Fingi-lhes doce a voz, chamai-lhes cisnes: Lindas pastoras nossas Musas sejão. Respiremos o estro! Ó lá de Cirrha Virações, acudi-nos contra a calma: E vós louros selvaticos, ó louros, Velai com vossa abobada frondente Os vates e o banquete, o rir e os versos. A primeira saude a Bacho e Ceres, A Palles e Pomona, ora presentes Do banquete á rural simplicidade. Para dias iguaes, plantar-lhes voto Cá bem no viso do sagrado outeiro, Densa cabana de perpetua folha: Para aqui, de canceiras feriados, Viremos amiude abrir os peitos Ao bachico folguedo, a Amor e aos cantos, Co’a alegria assombrar, e co’a amizade Do loureiral as Dríades vizinhas. Na venturosa paz d’este retiro, Não virá perturbar nossa humildade Com seus trovões, com seus _coriscos horridos_ Turba sublime de soturnos vates. Alçando o collo, enfaticos praguejem Contra os _tirannos_, contra os _monstros barbaros_; Pintem de rôjo os _prepotentes déspotas_, Fulminem os _perversos aristócratas_, E fujão por estudo á natureza. Não lhes invejo, não, a bronsea tuba, Que despede trovões e rasga ouvidos. De nosso humilde genio estou contente: Nada mais temos que uma agreste flauta; Com ella muda, ás vezes longas horas, Da natureza os quadros estudâmos. Socios dos rouxinoes, só diffundimos Depois de meditar, nossos gorgeios; Em quanto o mocho a luz aborrecendo, Nos amenos vergeis nunca discorre; Dorme o formoso dia em cava furna, E sólta pela noite horrendos guinchos, Pouzado junto ao ceo, mas entre horrores. Elmiro, ó tu que, tanto como odêo, Odêas as sonoras bagatelas, E ris, como eu, dos estrondosos nadas; Nunca te afastes da florída róta, Por onde a Natureza o Genio chama. Da madrugada nos mimosos sonhos, Costumas ver de murtas coroada, A amavel Sombra do risonho Géssner. Oh! quando aos campos teus um dia voltes, Á sombra do teu cedro será doce Ouvir-te prantear perdida amante! Entre as folhas cheirosas susurrando, Qual favonio indeciso, os Manes d’ella, Mansa tristeza ao coração te enviem. Emquanto no escarceo da grão Cidade Eu misero, eu saudoso andar lutando, La no fertil torrão verás contente Por ceos de teu jardim nascer a aurora: Regarás pela fresca as flores tuas Junto da terna Mãi, que este só gôsto Na morte conservou do esposo amado; Triste e formosa qual viuva rôla. Outras vezes as pombas que sustentas, Terno irás vizitar co’as Irmãs bellas, Qual entre as Graças passeára Adonis Nos arvoredos da ociosa Chipre. Elmiro, ¿e alguma vez tambem meus versos Serão do teu retiro um passatempo? Quando eu tos enviar, vós reunidos Junto do fogo nos serões do inverno, Contentes os lereis; e tu, girando Co’a vaga idea nos passados tempos, Dirás a suspirar “He meu amigo”. FIM DO CANTO PRIMEIRO. O DIA DA PRIMAVERA. CANTO II. _A Tarde._ Ja dos louros as grimpas se embalanção: Surgir, surgir da relva sonolenta! Ja fresca viração consola os ares: Que zoada que vai por toda a selva! Estrépito de rio impetuoso Na calada da noite a crê mil vezes O viandante perdido. Hora da Festa, Bem te ouvimos anciosa estar chamando. ¡Da Primavera á Festa, á gruta, ó Socios, De Amarilis e Umbrano á vasta gruta! Ja agora o bom de Anfrizo ha de ter pronto De sua déstra mão o altar gramíneo, Arqueado em docel do cedro a cópa, E do cedro no pé com flórea tarja Da nossa Primavera aberto o nome, Se he que amor lhe não fez gravar _Dorinda_; Dorinda, cujos magicos encantos Na lira do amador gerão milagres; Cujos olhos, tão negros como a noite, São como a noite ao Deos de amor tão caros. Sim, vamos — Vedes vós o pequenino Que la vem amontado em verde cana? Quão guapo agita as redeas côr de rosa, E açouta co’a varinha a brava fera! Ouvis-lhe a doce voz que por mim chama? —“Salve, menino! e adeos, que hoje não posso. “Outro dia virei, toda uma tarde, “Trabalhar nas flautinhas, que arremedem “Cantar de rouxinol soprando-as n’agua. “Amanhã me procura aqui no outeiro, “Verás, verás que historias te não conto.”— Partio: como galopa afervorado! Ja vai conta-lo á mãi. Este menino He da aldea a doudice, e os meus amores. He dote de seus annos a innocencia, Como do botãozinho he dote a graça: Mas aqui ha melhor, he botãozinho Ja fragrante, he virtude antes do sizo. N’aquella sésta do abafado agosto, Quando fostes nadar, eu passeava Sozinho a espairecer pela frescura; Eis para mim correndo este menino, Vergonhoso me diz:—“Queres atar-me “Este cordel nas pontas do meu arco, “Bem seguro, bem forte, que não quebre?”— —“Sim, amavel menino (eu lhe respondo) “Sim quero atar-to bem seguro e forte”— E emquanto lho fazia, assim lhe disse: —“Vais caçar borboletas? ou mordeo-te “Alguma abelha, e queres castiga-la?”— —“Não, não: vou dar em minha mãi um tiro”— —“Um tiro em tua mãi!”—“Sim n’outro dia “Deo-me tanto nas mãos, que me ficarão “A doer, tão vermelhas como as rosas”— —“E porque assim te deo, que te ficassem “As mãozinhas vermelhas como as rosas?”— —“Eu tinha (acudio elle) um melro novo: “Era meu, apanhou-o a minha rede. “Sempre estava a cantar; era tão lindo! “E quando assobiava? os outros melros “Punhão-se la do bosque a responder-lhe, “Queria tanto á nossa Mirtilinha! “(A nossa Mirtilinha he a mais pequena “Das minhas trez irmãs): e ella tratava-o, “Quando eu hia á seara ás cegarregas. “No outro dia esqueceo nos a gaiola “Ao sol toda a manhã: quando fui vê-lo, “Não se podia ter, abria o bico “E não tomava nada. Um pequenito “Me disse que era calma: agarro n’elle, “Vou-me ao tanque, e mergulho-o cinco vezes. “Ficou muito peór: punha-o direito, “E elle sempre a caír, fechava os olhos, “E estremecia todo. Aquietou-se: “Cuidei eu que dormia e disse, Dorme, “Veio um velho, abanou-o, e disse, He morto. “Fui com elle na mão chorando, e em gritos, ta, “Procurar minha mãi. Ficou pasmada “Quando o vio, e eu lhe disse—Ahi está, não can- “Nem ja faz festa á nossa Mirtilinha— “Poz-se a ralhar por isto, e castigou me”— “Cruel menino (lhe volvi severo), “Cruel menino, e em tua mãi pretendes “Ir com setas vingar-te?”—“Oh! não (me torna), “Não lhe hei de fazer mal. Se tu soubesses “O que uma seta faz!...”—“Não te percebo, “E pois que faz? explica-te, saibamos”— —“Na cabana de Silvio (me responde) “Ha um cópo de páo todo pintado, “Que elle ja prometteo que me daria “Se eu lhe levasse a fita, com que ás vezes “A minha irmã Glicera ata os cabellos. “Por fóra do tal cópo está com um arco, “Para atirar a uma pastora linda, “Um menino como eu, com os olhos negros “Voltados para mim, e sempre a rir-se. “Anda nuzinho ao frio, e tem nos hombros “Azas, que lhe não ganha a borboleta. “Silvio disse-me o nome que lhe davão, “Porem ... ja me esqueceo: tambem me disse “Que elle costuma á gente descuidada “Atirar muita vez d’aquellas setas. “Eu cuidava que as setas matarião, “Tinhão-mo dito um dia os caçadores, “Mas Silvio me jurou que não matavão, “E contou-mo sem rir; Silvio não mente. “Aquellas setas vem, entrão no peito “Sem ferida nem sangue, e até sem dores. “Se obrigão a chorar e a ficar triste, “Como ás vezes succede ao meu bom Silvio, “Em toda esta tristeza ha tanto gôsto, “Que he mais doce gemer, que estar alegre. “Eu d’isto nada entendo, porem Silvio “Me disse que algum tempo o entenderia. “Lembra-me agora! o tal menino d’azas (certo “Chama-se _Amor_; não he verdade?”—“He (Lhe respondo, apertando-o nos meus braços), “Chama-se Amor, e he como tu formoso.”— —“E seus tiros não fazem que fiquemos “Tão amigos de alguem, como o cordeiro “Que anda a brincar com seu irmão no prado?”— —“Sim he verdade”—“Então venha o meu arco, “Ja tenho em casa muitas setas prontas, “Vou ferir minha mãi.”—“Louco! o teu arco “Como o d’elle não he (lhe brado rindo): “Lança-te ao collo seu, perdão lhe pede, “Beija-a, conta-lhe tudo, e eu te prometto “Por cada beijo teu, mil beijos d’ella”— Não me ouvio mais, correo: e de caminho Colheo para offertar-lhe algumas flores. Mas eis-no; ja no suspirado sitio! Essa a gruta: este o cedro annoso e immenso, Condigno pavilhão do altar votivo. Inda as c’roas vos faltão, ela ó Socios, Rompei demoras, ide ás flores, ide, E volvei logo a dar princípio á Festa. Só fiquei: se eu podesse aqui no prado Por meus olhos tambem colher algumas! (Que as violetas que hei posto andão ja murchas.) —“Ó pastorinha de formoso gado, “Se podes, nem te peza alguns momentos “Perder comigo, apanha-me violetas, “Ensinar-te-hei por prémio outros cantares. “Teu rafeiro no emtanto o gado vele.” Partio, deixando ao lado meu, na relva O cordeiro que tinha em seu regaço, Tão alvo, tão pequeno como um lirio. Pobre innocente! nos meus dedos busca Da mãi, que ao longe bala, a doce têta! Se comer ja soubesse, eu lhe daria D’estas papoulas, d’esta fina grama. Que silencio! mal ouço uma fontinha; Serena viração de quando em quando; O crepitar miudo dos raminhos, Que a leve cabra arranca do espinheiro; A voz d’um lavrador aos bois tardios; E o cançado gemer de um carro ao longe. Cá volve a minha Flora! estou c’roado: “Graças ó doce e rustica Belleza! Sempre emtorno de ti rebentem flores Que o teu rebanho cobiçoso pasça; Nunca te falte pelo estio a sombra: E amor te volte em fruto as esperanças, Se esperanças de amor no peito nutres. Vês tu aquelle altar? foi obra nossa, Foi por nós consagrado á Primavera, E vamos festeja-la. Altar sem Nume Faz menos devoção; se tu quizesses, Bem o podias ser. Anda, mimosa E amavel pastorinha; enflora á pressa A trança, o collo, o seio, e no regaço Lança flores quaesquer, qualquer verdura: Oh! da-me este prazer. Do cedro ao tronco Vai-te encostar do modo que te digo, Co’a mão na face, e com o sorrir nos labios[8]. Direi aos socios meus, quando voltarem: “Invoquei tanto e tanto os meus Amores (Nome he que á Deoza dou, não tenhas susto “Nem me furtos a mão) e he tão benigna, “Tão docil, tão cortez a Primavera, “Que saío do seu bosque, e apraz-lhe ouvir-nos.” Folgaremos de os ver caír no engano, Ajoelhar-se á fingida Primavera, E mais de coração cantar-lhe os hinos. De que te ris, singela rapariga? Porque foges de mim? Se não consentes, Cedo iremos buscar-te nos teus montes, Chamar-te Deoza, em dôbro envergonhar-te.” Que he isto! ja volveis? mostrai-me as c’roas. Como escolheste bem, terno Josino, Meigo no coração, na voz mavioso! Goivos com mirtos para ti cazaste, Com o suave condiz a suavidade. Se nos campos do ceo, reino do Genio, Eu podesse colher miudos astros, Dos versos onde alçaste ao ceo meu nome C’roa de ethérea luz seria prémio. Dou-te o que posso, gravarei teu nome Em bosque, onde Hamadríades o leão: Decoraráõ com o verso os teus louvores, E alguma em si dirá: “Quem me ora désse Em minhas solidões este Josino, Por ver se he no cantar, qual dizem, meigo.” Vejamos meu Irmão[9] a tua escolha. Eis-te como eu cingido de violetas; Ah quanto são iguaes os gostos nossos! Abraça-me cantor da natureza, Um a outro, um pelo outro aqui juremos Juntar sempre em busca-la a industria nossa. Abraça-me outra vez: nossa amizade, Nossa terna amizade, e nosso estudo Aperte mais e mais do sangue os laços. Se jamais fado atroz nos separasse ... Longe do pensamento esse impossivel! Duas vidas irmãs que medrão juntas Tem uma só raiz; dão flor, dão fruto Nas mesmas estações, e ás horas mesmas. Quer benção mande o ceo, quer sôpro de ira, Um só bem, um só mal abrange as duas, Emquanto uma existir persiste a sócia. Vai para o nosso altar, um só momento Me prende, o meu lugar tu la conserva Entre ti e o das Musas ja mimoso Nosso irmão, que no berço achou a flauta: Menino, a quem cingistes de alvas rosas, Como elle emblemas da innocencia breve. Elmiro, o teu diadema he bello e simples; Mirto e teixo pregões de amor e mágoa. Não são menos de ver, nem menos proprias As vossas, bom Franzino, alegre Albano. Do amor perfeito as flores melindrosas Tecem, Franzino, a tua, e tem por joia Uma saudade a tremular na fronte. De teus suspiros o ditoso emprego Longe está, bem o sei, mas não suspires: Tua amada fiel na ausencia chora, Sua imaginação durante o dia Voa a buscar-te aos campos do Mondego; Dos campos do Mondego aos braços d’ella Sua imaginação te leva em sonhos. Albano, a ti o amor foi mais propício: Vês amiude os olhos que te inflammão E o sorrir facil que te muda em louco. Não muito abertas, incendidas rosas Cercando as tuas fontes, me afigurão A imagem ver de envergonhados beijos. Vem meu Anfrizo: a tua d’entre todas He por certo a mais funebre grinalda; Um ramo de cipreste e alguns suspiros. Ah tua mãi tão cedo abandonar-te! Orfão triste, perdoa ao vate amigo, Que em chaga inda tão fresca a mão te ha pôsto. Se para ella ha balsamo no mundo, Só Amor sabe d’elle, e mãos de neve Tem para to applicar virtude innata. Sim, Dorinda gentil como que busca Esse ermo de tua alma encher de affetos, E no vão do teu peito insinuar-se. Mas a saudade maternal he muito; Todo o mundo, a amizade, e até Dorinda Só poderáõ na angustia confortar-te. Teu mal sustido chôro eis recomeça! Só a dor te contenta, á dor sirvamos: Narrar-te quero a historia do cipreste, Que dos ramos feraes partio comtigo. Prêzo das graças da opulenta Silvia Titiro guardador de pobre armento, Com seus ais estes montes abalava. A bella desdenhosa, muitas vezes Quando o sentia a modular ternura Ao som da flauta n’um sombrio valle, Torcia, por não ve-lo, o seu caminho. Ah se o visse, estendido entre o rebanho, O pranto a borbulhar nos fitos olhos, E ao som da flauta, em baixa voz unidos De quando em quando um ai, e o nome d’ella! Rigores virginaes, desdens de rica A amor, á compaixão talvez cedessem, E ficasse mais bella, a ser piedosa. Por só consolação de seus desgostos, Co’a pèga que ja foi da ingrata Silvia Folgava repetir de Silvia o nome. Nunca a avezinha ao misero deixava, Que assim a havião prêza os novos mimos. Só ás vezes aos lares revoando Da formosa cruel, de la trazia Furtada alguma prenda ao pobre dono; Sem querer lhe atiçava o fogo inutil. Era triste, mas doce, ouvir de noite Pelos bosques bradar “Ó Silvia, ó Silvia” O terno amante; e acompanha-lo a pêga, Ja pouzada em seu hombro, ou ja gritando La de cima de um tronco “Ó Silvia, ó Silvia!” Longos tempos assim pelas florestas Vagar se ouvirão solitarios ambos; Té que o loquaz brutinho de cançado Veio um dia caír entre as mãos d’elle, Bateo as azas, terminou seus dias. Á fiel companheira ultimas honras Deo como poude Titiro: sagrou-lhe Um pequenino tumulo de barro, E um ciprestinho de anno, que por novo Inda estudava o geito de ser triste. Aos Numes implorou que o não crescessem: Mas pouco e pouco o tronco foi subindo, E com elle de Titiro a saudade. Bem póde ser que o tumulo não visses, Que ervas espessas de redor o afogão Ah desde que o pastor tambem jaz morto, Morto ás mãos da saudade, e em terra alhêa! Tempo he da Festa. Á Festa!—Ahi estão as flautas Ja silvando rebate ás alegrias! Travai dança, alta dança ruidosa, Quaes em seu monte os Sátiros a saltão! Venhão de apoz os hinos: logo Bacho Nos acuda co’as taças, menineiro No aspéto e no palrar, no resto annoso, De cãs a reluzir por entre as parras. Ser-lhe-ha boa salva o retinir dos cópos E os das saudes misturados gritos. Do altar meu canto agora ascenda ao Nume! Vem ó Dona das Graças e Flores, Volve á terra teu mago calor; Aos que fogem de amor gera amores, Nos que a amores se dão cria amor. Tu és Venus, a Grecia delira Crendo-a Filha do túrbido mar, Tu és Venus e Musa da lira, Cumpre á lira teu Nume exaltar. Tu és Dríade, e Náiade, e Flora, Mocidade e Saude e Prazer, Com mil nomes o mundo te adora, Mil poderes compoem teu poder. Do Ceo puro és a noiva córada, És só d’elle como elle he só teu; Rica em trajos, de aromas banhada A seus beijos te off’rece Himeneo. Feliz extase, abraço jocundo Do consorcio completa as prizões, Primavera, em teu seio fecundo Ja pullullão mais trez estações. Á voz tua amorosa e macia, A teu mago e perpetuo sorrir Tudo cede, e te adora á porfia, Como te ha de o mortal resistir? Léda brinca a feliz meninice, Léda a ninfa em seus dons se revê, Lédo o velho desruga a velhice, Tudo he lédo, e não sabe o porque. Onde assomas o mato florece, Desatina a avezinha a cantar, Côr d’esp’ranças a terra amanhece, Arde o peixe nas brenhas do mar. Perde as iras a rábida fera, E se estranha de ter coração. Primavera, que és tu Primavera? Vida, fôrça, virtude, união. Desde que abre ao carneiro doirado Hora alegre o celeste redil, E das sombras e gelo espalhado Despe as terras Favonio subtíl; Despe a mente por ti bafejada Suas neves e escuro invernal, Ressuscita de flores toucada, Enche a lira, nem sôa mortal. Pois tu és quem me acorda e me inflamma, A ti, Deoza, os meus versos serão. Mas debalde o meu estro te chama, Os meus olhos jamais te verão! Amigos, baixo he o Sol, findem-se os hinos: Ponde silencio aos copos falladores; Assaz he tempo. O dia era dos campos, Ás aguas toca a noite; a noite grave, Recolhida, saudosa, ama pascer-se No murmurinho de deserto rio: Tambem o coração tem dia e noite, E precisa dos bens desenfadar-se. Largo dista a corrente; o passo aperte Quem sabe quanto he grato á luz de estrellas Ouvir palrar as Náias a deshoras. Vamos tomando o gôsto aos fins da tarde; E emquanto mais ligeiro o bom Josino Corre a aprestar a barca, entreteremos O caminhar, colhendo rosmaninho Para o colchão nóturno. ¡Que delicias, Ir-se acamado em flores aboiando Á luz modesta da nascente lua! Ama o rio os cantares de saudade; Cantares de saudade atiraremos Até ao mar pelas sombrias margens. Logo que o não rogado, amigo sono, De papoulas toucado perguiçosas, Lá nos for procurar, e manso e manso Forem caindo os sons e pensamentos, Iremos amarrar na margem muda A qualquer tronco a barca flutuante: Lançaremos por cima o branco toldo, Bastante abrigo do nóturno orvalho: E estendidos macio, e conversando Em voz baixa, embalados cederemos Ao começado sono os restos da alma. Quando alta noite algum de nós acorde A um leve crepitar do linho undaute, Cuidará que uma Náiade surgíra Fóra da agua a cabeça curiosa, E inclina o seio ao bôrdo; e nos espreitas Assim como alvoreça, a luz da aurora, E vós, madrugadoras andorinhas, Para o campo acordado heis de acordar-nos. Correremos as candidas cortinas, E veremos de subito, encantados, Sobre nós a verdura estar pendente, Do pranto da manhã ja rociada. Não tarda o Sol momentos em sumir-se; No mais vivo escarlate ensopa os campos, Tinge a folhage, os rostos nos accende, Por montes e olivaes dos ceos oppostos Começa a desdobrar seu manto a noite. Busca o rustico azilo o boi tardio; Por toda a parte os gados vão passando. Sustenhamos o halito, escutemos Esta distante musica toada Que assim transporta os animos em gôstos: He toda feminil, toda feitiços, Vem toda ao coração; oh se a conheço! Pastoras são, que ao longe no arvoredo, Vão para a aldea recolhendo em chusma O tropel dos rebanhos misturados. Cantão, porque he sazão de primavera, E peito de mulher, como avezinha, Desfaz-se em canto e amor em vendo flores: Cantão, porque de um dia assim formoso Serão formoso as toma, e o fuso leve Que andou por solidões um dia inteiro, Vai girar no conchego da fogueira; E cantão, porque flautas de pastores Que vão na companhia, as desafião. Mas tantos sons confunde-os a distancia, Figura-se uma voz de tantas vozes; Como que uma só boca a manda aos ares, Exprime um só afféto, um só deseja. Oh Natureza! oh Tarde! oh Primavera!... Lagrimas de prazer vertem meus olhos! Somos em bosques de propícias Fadas? Ou vaguêo ja Sombra, e vós comigo, Na semi-vida e semi-luz do Elisio? Ja tudo se esvaío, tudo he silencio: Por campo e campo ao largo impera a Noite. Erguida a lua nova o horror lhe troca Em saudosa tristeza, e o mocho alerta La do alto a ajuda com o piar carpido: Ja ouço o estrepitar das frescas aguas. Vem barquinha da noite, perguiçosa, Vem, toma o rosmaninho, e a nós recebe, Oh que ameno he pousar passada a lida, Em meio de aguas tantas, rodeado De amigos bons, e triste, não de proprias Tristezas, sim das mansas do Universo! Ouvi, amigos meus, os meus dezejos, Quaes mos ora no seio estão brotando A hora, o sítio, a lua, aquelles pios; Relevai que ao folgar vos furte instantes. Seios Deozes minhas supplicas ouvissem, Um torrão fertil, rústica vivenda, Houvérão de abrigar-me a vida pura: La minhas ambições se fartarião De nobre, de quieta obscuridade. Mas pois que de outra sorte aprouve aos Deozes, E o fio, não de lã grosseira e nívea, Me torcem, mas de ferro as trez do Averno, Guardai vós na memoria o meu dezejo. Depois que entre os abraços delirantes De todos os que amei, findar meus dias, Sepultai-me n’um valle ignoto e fertil[10]. Para marcar da sepultura o sítio, Sôbre o cadaver, que vos foi tão caro, Mangeronas plantai, cuja verdura Em roda fechem variados lirios. Na raiz funda de soberba olaia Pouze a minha cabeça, e o tronco amigo Sobre mim curve a cópa florecente. Mil piteiras unidas, ostentando Na hastea vaidosa as flores amarellas, Em quadrado não grande me defendão Das incursões das cabras roedoras. Em meu tronco se escreva este epitafio: _Foi poeta amador da Natureza:_ _D’entre as sombras ancioso a procurava,_ _Qual terno amante a bella fugitiva._ Sôbre isto pendurai sonora flauta, Que se revolva á discrição do vento. Não cerque os ossos meus, não mos ensombre Nem teixo nem cipreste; arvores quatro Quizéra só no meu jardim de morte. N’um canto a larangeira graciosa, Que mescla util e doce, a flor e o fruto: N’outro a figueira sob as amplas folhas Modesta occulte seus nectareos mimos: Defronte um pecegueiro em frutos mostre Que amavel he pudor, quando enche faces De penugem subtil inda cobertas: No ultimo canto ... (a escolha me confunde) Plantai no ultimo canto uma ginjeira, He a arvore da infancia, até na altura; D’esta por sua mão colhe um menino A mui ridente baga, e ri de ufano. Alguns tempos depois que a fria terra Meus restos encerrar, á minha olaia Vós, meus amigos, vós dareis meu nome, Pois de mim se nutrio, e eu serei n’ella. Dos guerreiros nos tumulos afiem Faminta espada os barbaros guerreiros: No sepulchro do sabio o sabio estude; E dos reis nos marmoreos monumentos Vá sonhar a ambição, grandeza e pompas: Vós soltos de freneticas loucuras Aqui vireis mil vezes vizitar-me, Na amizade pensar que nos uníra, E unir-nos deverá transposto o Lethes. Porque me interrompeis com taes suspiros? Ah! deixai-me acabar. Quando sentados Emtorno a mim na flórida alcatifa, Guardardes meditando alto silencio, Se d’entre as mangeronas que me cobrem, Saír acaso a borboleta errante, ¿Não vereis n’ella o espirito do amigo Que vem gozar do sol a claridade? Quando o suave rouxinol de noite Da minha olaia gorgear nos ramos, Não pensareis, de santo horror tranzidos, Que feito rouxinol, meus cantos sólto? Sim pensareis, e erguendo-se inspirado Algum lhe ha de bradar “Ó meu Amigo!” Responderáõ “Ó meu Amigo” os bosques; E vós direis que o meu fantasma errante Da argentea lua á muda claridade, Á conhecida voz d’alem responde, E em tudo encontrareis a imagem minha. Se inda então meus costumes vos lembrarem, Se vos lembrar meu coração piedoso, Velai que em meu retiro as bellas aves De caçador cruel cantem seguras: Amor, o leve Amor, com arco d’oiro, Só elle e mais ninguem, logre atirar-lhes; Careço de amorosa melodia Que me poetize o sono derrabeiro: Morto que nada tem preciza d’estas Pobres delicias rusticas, se folga Que a namorada moça, o terno amante Juntos ou sós, a vizitá-lo acudão. Então ao som de languidos suspiros, De alegres cantos, de amorosos versos, De ternas queixas, de perdões suaves, Muitas vezes contente a minha Sombra; Formando ao pôr do sol vermelha nuvem, Girará n’estes ares, revolvendo Da passada existencia almas lembranças. FIM DO POEMETTO NOTAS AO POEMETTO ANTECEDENTE. _Pag. 109. verso 10._ Com seus trovões, com seus coriscos _horridos_. Trazia este verso na primeira edição a seguinte Nota—_Eis àhi os primeiros esdruxolos que fiz em minha vida, e espero que sejão os ultimos, ainda que por isso que fique excluido da communhão de certa Seita moderna._—Supprimi-a, e no declarar o porque, vou dar não equivoca prova da minha candura. Prezar-se um escritor de mais amigo da verdade que de Platão e de Aristoteles, alguma couza he; mostrar porem que mais do que a si proprio a ama, certo que não he vulgar o exemplo, e esse tenho eu dado, e não raro, ja fallando ja escrevendo limpa e rasgadamente o que de minhas Obras me parece. He um bom propozito que eu fiz em meu interior, e espero não quebrantar nunca, não só porque de si he honesto e nobre, senão que por este meio, o qual não custa mais do que algum suspiro á nossa vaidade que sempre se torce e confrange de ser mostrada nua, me estremarei da manada dos charlatães literarios, de quem nem o estomago me consente fallar. E porque chegue por direito caminho á questão dos esdruxolos, recordarei com vénia e boa paz dos leitores, o que ja no Prologo da terceira Edição das minhas _Cartas de Echo_ deixei tocado; com a differença, que d’esta vez o farei mais explicitamente. No tempo em que eu cursava meus estudos na Universidade de Coimbra, florecia ella com muitos e bons engenhos de mancebos dados ás Bellas-letras. E porque ainda então se não tinhão accendido os desastradissimos odios das parcialidades políticas, a Hobbesiana propensão de guerrear se exercia nas letras. Duas seitas de escrever se contavão; a cada uma das quaes não faltavão admiradores, apostolos e evangelistas, assim como por isso mesmo inimigos, escarnecedores e parodiadores. Os Livros em que uma juramentava os seus adeptos, erão Gessner e Bocage; Filinto era o Alcorão da outra. Gessner quanto ás couzas e affétos, e Bocage quanto ao térso e lustroso de estilo e metro, erão os idolos de uma; os da outra erão, quanto a couzas e affétos Filinto, quanto a estilo e metro Filinto, e Filinto quanto a tudo em que Filinto podesse bem ou mal ser imitado. Tinha cada uma d’ellas suas vantagens e seus descontos, como agora claramente diviso, quando as considero com animo livro e desassombrado de preoccupações. Não fallarei aqui de Gessner, porque ja no Prologo o fiz; confrontarei somente, e de corrida, Elmano e Filinto. A ambos dotára natureza de talentos, bem que entre si diversissimos, assaz fortes todavia que podessem cunhar á sua feição a poesia do seus tempos. Elmano, que talvez em seu genero nos ficará sendo unico, de fôrça devia deslumbrar e encantar pelo caudal inexhaurivel, brilhante e estrepitoso de sua vêa, que eu appellidarei, e ria quem rir, um Niagara de talento: e assim como, os que pasmão deante d’essa grande catarata de puro embevecidos em sua cópia e magnificencia, não tem olhos para notar o esteril do seu curso, o assolador do seu ímpeto, e os penedos que rója envoltos e desfarçados com suas aguas, assim os que presentes assistirão ao poetar de Bocage, ou da tradição o receberão, fascinados com os seus estrondos, espumas e iris, mal se podem lembrar de lhe desejar afféto, sizo, e exatidão, que muitas vezes lhe fallecem. Cinco couzas, pelo menos, para o bom poeta se requerem: _faculdade inventiva_—_faculdade sensitiva_—_sciencia_—_lingua_—_e ouvido_; e ainda com estas cinco outra, que talvez resultará rempre de sua união, e sem a qual todas as mais seráõ baldadas; fallo d’aquelle discernimento pronto, que a muitos erradamente pafeceo instinto, e a que se costuma dar nome de _gôsto_. Em raros sujeitos concorrem tantos predicados; por isso só de longe a longe apparecem os maximos poetas, e ja se dão por grandes aquelles a quem menos faltou d’estes requisitos. — _Faculdade inventiva_ ou não a tinha, ou apenas a tinha Manoel Maria; a sua queda para tradutor bastaria para indicio, se de indicios te carecesse aonde claras reluzem as provas: um _Fado_, um _Jove_, _Eternidade_, _Natureza_, _Sóes_ e _Caos_ são o _index rerum notabilium_ da maior parte de seus escritos; e tanto abunda n’estes bordões sustedores e disfarçadores de sua fraqueza, como Ferreira (e quem descobrirá os meus?) na cançada repetição do _esprito_, Jorge de Montemayor na de _hermoso_ e _hermosura_, Pina e Mello na de _alento_ e _impulso_, Alfeno Cynthio na de _santo_ (epítheto, que por mais não ter onde o pegue, até o poem, se bem me lembro, como arrebique na cara de suas pastoras e namoradas): com a differença que os particulares bordões d’estes poetas, e ainda outros de outros muitos, não são em suas Obras senão meras circunstancias e accidentes, e os de Bocage menos são estribilhos do que fundo o substancia de inteiros e repetidos periodos. De _faculdade sensitiva_ talvez o houvesse menos escaçamente dotado a natureza, mas outras qualidades que lhe ella mesma deo em maior auge, taes como volubilidade de fantasia, aspereza de condição, espirito sobranceiro e satírico, e coração, como elle mesmo confessa. _Mais propenso ao furor do que á ternura,_ lhe entibiarão os affétos benignos, de que sé a longes distancias lhe sáe, como a descuido, algum reflexo. A estes máos e naturaes elementos accrescêrão desvarios da fortuna ou do acaso, bem valentes para de todo lhe seccarem a fonte das branduras. Vida mal preparada de educação, nua dos amoraveis habitos domesticos, desalumiada de doutrina e estudo, aturdida de applausos contínuos e encarecidos, amargurada amiude de pobreza, vagabunda entre amigos não amados e por terras não suas, vida, porque tudo diga, corrida á ventura e sem norte conhecido, desenfreada de todas as leis, sôlta por todos os vicios, cínica por timbre, e por indole silvestre e bravia, como podia ser que lhe não tisnasse no germen os affétos maviosos? Isso foi, e isso conhece quem bem attento o ler e meditar. Mas em desconto, as paixões fortes como o ciume, a colera, a vingança, sente-as e pinta-as vigoroso, assim como todos os objétos grandiosos, remontados, encarecidos, ou terriveis. Não vos debuxará um mendigo, avergado de annos, estendido n’umas palhas esquecidas, junto do cão seu ultimo companheiro, e orando no desamparo da noute, por quem, sem o convidar para a sua fogueira do inverno, lhe deo fóra da porta meia fatia de pão; nem ainda as carícias de uma mãi a seu filho: mas dir-vos-ha, rico e altisono, os impetos de uma tempestade, a sanha de uma batalha, as iras de uma madrasta, ou as furias de um infeliz que pragueja sua má ventura. Os affétos e a invenção póde a _sciencia_ por álgum modo suppri-los, opulentando-nos com os affétos e invenção de melhores autores, uma vez que por nós tenhamos a arte de bem escolher, bem digerir, e bem converter esses literarios alimentos em substancia nossa, em nosso proprio ser: ainda mui boa estrella he essa, e não poucos dos afamados desde Virgilio até ós nossos dias, só á sciencia, e a essa arte de a aproveitar, haverão devido a melhor parte do seu credito. He o saber, princípio e fonte de bem escrever, dizia o Mestre dos poetas; e dizia o dos oradores, que uns e outros era mister entenderem de tudo. E se ja isso foi nos tempos antigos conselho e quasi preceito, preceito absoluto se tornou, e necessidade, para quem escreve n’estes tempos, em que a luz se derramou mais ampla, em que as sciencias, cançadas de viver sobre si, se congregarão como boas irmãs em uma só familia, juntarão os seus patrimonios em commum, e cada uma ajudando a todas as outras, vem a por todas ellas receber um infinito accrescimo em seu peculio. Limitadissima era a instrução de Bocage: o latim e o francez, na primeira de cujas linguas mormente era primoroso sabedor, segundo referem, podérão ter-lha dado copiosissima: mas nem a viveza de seu animo, os prazeres e os divertimentos que em seu cerrado círculo o trazião como enfeitiçado, lhe permittião estudos, nem são elles facil couza para pobres e viciosos, nem o que era saudado por divino, como quer que _desatasse na voz o acceso turbilhão_ de suas ideas, carecia de ir excavar em livros o suado cabedal, com que outros negocêão veneração. Quanto á _linguagem_, não será pêjo dizer, que a usava limpa e sã, não se podendo taxar a sua de mendiga e remendada, como a ja muitos de seus contemporaneos vinha acontecendo, nem encarecer de rica e ambiciosa: pouco tinha lido do portuguez, mas esse pouco com aproveitamento: só d’isso ajudado, e do latim la se foi remindo e esteando a sua Musa sem emprestimos do francez; e este carecer de vicios ja então era grande virtude. Para lhe darem, como a texto, cabimento em nosso Diccionario[11], não vejo eu razão sufficiente, assim como a não ha para o desprezo e esquecimento, em que os havidos por puritanos o deixárão cair. Uma couza he porem verdade irrefragavel, e he, que em nenhum escritor, antigo nem moderno, apparece a lingua portugueza mais senhoril e polida, mais igual e ao meio entre o usual e o sublime, entre a penuria e a prodigalidade. Somos chegados á _harmonia_, o mais eminente merito de Bocage, e no qual nem antecessor teve, nem ainda até hoje successor. De todas as partes que em Bocage concorrião para poeta, nenhuma havia tão delicada, e em que tanto se houvesse a natureza esmerado como o ouvido. A verdadeira musica dos nossos metros, particularmente do hendecassíllabo, não só a desempenhou e ensinou elle, senão que a inventou; e com felicidade tão rara, que não cuido se possa a pontar hespanhol, e nem por ventura italiano que o iguale, e mais he o italiano pela abundancia de suas brandas e variadas vogaes, pelo moderado e macio de suas consoantes, pelas licenças e elasticidade de seus vocabulos, muito mais pronto e domavel para todo o uso métrico do que o portuguez. Poucos estafárão tanto os consoantes como Bocage (e ainda ahi he grande o seu louvor, que não he dado rimar mais primorosamente); mas a ninguem erão os consoantes mais escuzados: são esses para o verso uns arrebiques e sinaes com que os mal assombrados se disfarção, para poderem apparecer, mas de que os graciosos e bellos não carecem, nem os devem consentir, por não parecerem menos do que são. Porque não ouzarei eu dizer, que mais são os seus versos poeticos, do que era poeta elle proprio? Como simples cantilena agradão, agradão ainda quando por vãos os engeita o juizo e o coração por frios: um estrangeiro que ignorante d’esta lingua os ouvisse bem e devidamente ler, recrear-se-hia como com a toada de um bem tangido instrumento. Grande excellencia por certo he esta, á qual principalmente deveo levar traz si suspensos e encantados os animos, e por onde logrou ser, sem o cuidar, fundador de uma escola, que se me não engano, ainda de todo não passou. Toda a gloria de engenho he oiro em que nunca faltão fezes: o produzir pela mágica de sua versificação uma seita de versificadores, por honroso se podéra haver, se aos discipulos podesse ter transmittido, juntamente com as normas, o talento, a fôrça, a graça e o gôsto com que as produzia e aperfeiçoava: porem quiz algum Genio máo, para lhe humilhar a vaidade e descontar a vitoria, que a maior parte de seus sectarios menos lhe tomassem a melodia do que os escarcéos, as empollas, os trocadilhos, as apóstrofes, as redundancias, e os versos que ja se hoje chamão de dobrar, _Seu mais doce penhor, seu bem mais doce.—_ _Vio n’ella os risos, vio as graças n’ella.—_ _Um Deos não he perjuro, um Deos não mente._ _Que não paga de um Deos, de um Ceo não paga,_ _Ouzaste pregoar mais Ceos, mais Deozes.—_ versos, que parcamente lançados, como nas Obras de Virgilio, tem graça; semeados a frouxo são affeites e desdoiros do estilo. Do seu _gôsto_ ja me julgo dispensado de fallar, porque me parece que o que d’isso podéra dizer por si mesmo está nascendo do que fica dito. Concluamos: o que de Bocage digo em geral, com suas exceções se ha de entender, porque por uma parte muitas paginas ha suas, mormente em algumas traduções do francez, onde parece lhe esqueceo pôr o tal verniz de dicção e sons que para si inventára, e de que a ninguem deixou a verdadeira receita: e por outra parte tambem, obras ternos suas, mormente sonetos e traduções latinas, cabaes e redondissimamente perfeitas.—Passemo-nos já a tomar iguaes contas a Filinto. Muito mais melindroso he este processo, até porque ja o querer tomar-lhas será para seus apaniguados um crime de leso Apollo, e primeira cabeça. Valha-me porem a declaração que faço, de que em tudo quanto disser, não seguirei outras partes que as de minha razão, declarando previamente que muito pouco dou eu mesmo por ella; mais são consultas que faço que sentenças que profiro, e antes exercicios de imparcialidade do que acintei de inimigo: de ninguem o sou, quanto mais de poetas, de perseguidos, de velhos, de mortos. Foi tempo em que eu, obscuro poetastre do Mondego, ria e vazava epigrammas contra o tradutor dos _Martyres_: hoje se me afigure muito mais valioso. He elle o mesmo, mudei eu; Deos sabe quantas vezes mudarei ainda com os annos: do mudar não he nossa a culpa; nossa he porem, e feíssima a de persistir no erro conhecido; se a republica literaria tivesse inquisidores, por heresia e contumacia que não havião relaxar ao braço secular. Ha por ahi muito homem do meu officio que possa dizer de si outro tanto? Mas deixemos esses que estão vivos, e vamo-nos a Filinto. Se he ou não _creador_, ja vi ser renhida questão entre ociosos: para mim tenho que semelhante titulo mal lhe pode caber. O frequente verter ha pouco disse eu que denunciava esterilidade; e podéra accrescentar uma sentença ainda mais desabrida, que ha muito encontrei, cuido que nas Lições literarias do Doutor inglez Blair, e que muito me caío; a saber, que o costume de traduzir, bem que olhado pela rama pareça dever ser frutífero, sempre ao cabo vem a desgastar-nos a faculdade inventiva. Compara-lo hei com o linho, que apezar de tão precizo no mundo e de tão agradavel aos lavradores depois de colhido, por isto só desgosta a muitos d’elles, que a terra onde se criou fica magra, e como elles dizem queimada para outras novidades. Muito mais de metade dos tomos de Filinto trazem no titulo os nomes de autores estranhos, devendo-se ainda lançar a este rol por boa restituição, bastantes Obras, que talvez por descuido, imprimio sem nenhuma menção de serem, como erão, vertidas. As imitações são no merito e inconvenientes meias traduções, e as do nosso poeta são numerosissimas, disfarçadas umas, outras manhosamente dissimuladas. No resto que he de sua lavra, apenas se nos depara couza que abone talento original e produtivo a: são os chamados lugares communs de poesia filosofica, que ja por safados custão a passar, e as tão esfalfadas visões e apparecimentos de Apollos, de Musas, de Amores, de Pégasos, e de outros mil defuntos, a quem o tempo ja comeo o balsamo, e que todavia são ainda a unica povoação de quasi todos seus poemas, tanto jocosos como sérios. Algumas vezes me vem desconfianças de que n’aquelle passo da Sátira do _Bilhar_, em que o nosso Tolentino parece rir de certas Odes, contra Filinto hia tirada a seta de sua crítica: _Co’as verdes mãos o serpeado Tejo_ _Alça o trilingue, mádido tridente;_ _Mas que Górgona filtra? eu vejo, eu vejo ..._ Em dizendo isto he Ode certamente. Em _affétos_ porem sobreleva a Bocage, e não abunda. A espaços lhe vislumbrão assomos d’aquella sismadora melancolia, que mais ou menos respira em todos os bons poetas. As amarguras e saudades, que em tão larga vida e desterro lhe não faltárão, alguma, e não rara vez, lhe soprárão versos amoraveis, e deliciosos de tristeza. He este de todos os dotes de poeta o mais caramente comprado; sendo assim que Deos sabe quantas vezes em applaudir um verso que nos toca, batemos por ventura palmas a calados infortunios de quem no-lo escreveo. Não nos assuntos ditos _sentimentaes_ se conhece tanto o verdadeiro sentimento, como nos de indole mais fria e izenta; porque, se n’estes ultimos apparece inesperada uma palavra maviosa, n’uma flor de festa uma nôdoa de lagrima a descuido, ahi vem o infallivel documento de ternura e suavidade: e d’estas sombras de lagrimas, d’estas palavras, maviosas achamo-las em Filinto. Na _sciencia_ he que elle mais notoriamente leva a palma ao seu contendor. Que muito? com o dôbro de vida, com precizáõ de estudar para se divertir das mágoas e ganhar pão, com o ar e tráfico de Paris onde todos inspirão e expirão letras, e com tão espaçosa velhice, pingue quadra em que as paixões quietando nos deixão todo o silencio, remanso e curiosidade necessarios para o estudo! Tornarão-se-lhe familiares os classicos portuguezes e latinos, de uns e outros dos quaes talvez Bocage não tivesse acabado dois ou trez volumes; familiares os classicos francezes, hespanhoes e italianos, e ainda as versões dos inglezes e allemães. Á roda d’elle chovião de dia a dia, e de hora a hora, os frutos novos de todos os ramos das Sciencias, de que he impossivel a quem por lá vive não provar, até sem querer, e ao cabo não se nutrir e fortificar. Entretanto repararia eu, se o ousasse, que para quem logrou concurso de tão favoraveis circunstancias, como as que a sua má estrella lhe deparou, não saío Filinto o que se podéra esperar de noticioso e culto; e ou desaproveitou o maná que ás mãos do espirito lhe chovia, ou se o tomou lhe não luzio. Á primeira d’estas duas conjéturas me inclino, porque segundo o que de seu natural alcanço por suas Obras, parece-me que na lição das estranhas mais se hia á caça de vocabulos e frases curiosas, insolentes e atrevidas, do que de doutrinas e filosofia. A sua era meã e usual: cançados louvores á Liberdade, á Amisade e á sã Virtude, ao estudo, ao descanço e ao deleite, alguns arremeços de encontro aos Bonzos e Naires, eis ahi sondado até ao lastro o seu poço de saber moral: alguma historia não rara antiga e moderna, eis todo o seu saber positivo; e todo o seu saber natural, alguns dos principios geraes e diarios das Sciencias fisicas. E certo, que se mais avultados fossem estes seus cabedaes, e vêa mais fecunda lhe consentisse anciar mais altas couzas do que palavras e frases, não se deixára ficar tanto atraz no meio de um seculo novo e alado de poesia; não se contentára o seu estro abstémio com a agua do Parnaso até á ultima hora da vida; e não nos deixára seus volumes pejados quasi só de fabula, como armarios de muzeu antiquario, onde se não vai procurar qual he o mundo em que vivemos, mas deduzir de troncados e desluzidos fragmentos, o que em tal ou tal parte da terra houve lá n’outros tempos, com os quaes e com a qual só pouco ou nada temos. Diz um Escritor insigne[12], que a poesia assim como ontr’ora viveo de fabula, revive hoje e se apascenta de verdade. Melhor dissera que de verdade viveo em todos os tempos a nobre poesia, pois que o que para nós se descubrio fabula, era nos dias em que appareceo e florio, verdade de factos, ou capa allegórica de verdades, mui crida e sincera.—Resumamos; Filinto soube mais que Bocage, menos do que podéra, e diverso do que devêra saber. A _linguagem_, de que pela ordem se me segue fallar, mais requeria n’este caso um tratado, do que uma nota de fugida. Algum dia o tentarei, quando me achar mais de assento e sobre mão do que agora, que as justas raias d’este escrito me estão tolhendo. He a linguagem e elocução a principal feição caraterística de Francisco Manoel, como de Manoel Maria o he a harmoniosa elegancia. A torrente das hipérboles e conceitos hia arrazando e engolindo todo o nosso Parnaso, quando para lhe pôr a ella diques, e a elle salva-lo, e repovoa-lo de natureza, appareceo a Arcadia. Detençosa e ardua se representava a obra, como aquella em que a razão nua tinha de lutar com a imaginação delirante. Para anteparar ímpetos de vêa tão engrossada com as contínuas nascentes e tão copiosas de Italia, Hespanha e Portugal, ja tão senhora do leito e dominadora das margens, era mister que braços fortes lhe levantassem muralhas solidas de grossa e pezada cantaria. Virão os Arcades como lhes estavão á mão as obras, não todas primorosas, mas quasi todas massiças dos nossos quinhentistas e dos romanos classieos: erão accommodadas ao intento, dizião com seu gôsto e costume; valerão-se d’ellas, accrescentarão-lhes as suas proprias, levantarão o muro; bramio, quebrou e escoou-se a inundação. Raro he o bem, que só porque o he, não traga outros comsigo: dos trabalhos, que havião tido por fim acabar com os nojos e puerilidades do falso engenho, nasceo um conhecimento mais profundo da linguagem, mais extremoso amor á sua pureza, e o comêço do encarniçado e ainda não findo pleito, entre a puridade e o gallicismo. Verdade he que n’este segundo campo se não guerreou com tão favoravel marte como no primeiro, porque se as maravilhas da _Fenix Renascida_ passárão, os gallicismos fôrão em successivo crescimento, sendo ja hoje tão caudaes e trasbordados, que princípio a desconfiar não haverá remedio senão rendermo-nos, encruzar os braços, e deicharmo-nos ir ao fundo: tanto estou convencido de que nem a propria razão he poderosa contra o espirito de um povo: e a final de contas, Deos sabe, até n’isto, o que he razão! Era Filinto, por sua amizade e commercio íntimo com os sujeitos de maior credito na Arcadia, e por motivos de sua propria conveniencia, homem que de necessidade devia entrar na pendencia, e sustenta-la até á ultima: n’isso assentou, e o cumprio mui pontualmente. Entendeu desde todo o princípio, como aquelle a quem não fallecia bom juizo, em se prover das armas seguras e bem temperadas, sem que lhe não conviria arriscar-se no combate: e se as defensivas que vestio lhe podessem ter saído tão impenetraveis ás setas do ridiculo como as offensivas que meneou erão fortes e penetrantes, guapissimo Cavalleiro houvéra apparecido, e invencivel. Do antigo portuguez e do latim instituio concertar toda sua armadura: com diurna e nóturna mão versou pois os monumentos de ambas estas linguas; e quanto do portuguez ja feito se podia enthezourar, ou se lhe podia accrescentar por derivação, por composição, por analogia, por translação, ou por qualquer outra licença poetica, sem embargo de desenvolta e extrema, tudo ouzou com ardimento verdadeiramente admiravel. Fez estranheza a novidade, offenderão-se os mimosos com o escabroso e difficil de tal estilo, arripiarão-se os pusillanimes com o arrôjo, os ignorantes e priguiçosos com a immensa fadiga que bem vião seria necessaria para entender, não só imitar e seguir, quem tão por fóra caminhava das veredas batidas e vulgares. Todos estes, e com elles os invejosos, saírão em campo, combaterão, e apuparão, e quanto mais apupavão e combatião, mais recrescia em Filinto o acintoso proposito de se não descer do começado, antes encarecê-lo sempre até o ultimo ponto. Outra causa havia que para isto lhe fazia fôrça, e era conhecer como sem estes bordados, recamos e relêvos de frase, o cabedal de suas galas poeticas appareceria, qual em realidade era, grosso, commum e de mui baixa valia. Mas quer o movesse esta causa bem perdoavel, quer fosse generosidade com que se offerecia aos motejos, e desapreço de muitos, com o só intuito de restaurar, e avantajado, o edificio do idioma portuguez, sempre fica certo que n’este particular mereceo mui bem de sua patria, e a deixou muito mais medrada do que a achára. Oxalá que dois ou trez mais, dotados de igual credito, pozessem como elle peito á empreza; e muito embora demaziassem como elle: cunhassem a flux tudo quanto dão as minas portugueza e romana; ainda muito oiro puro de dicção viria enriquecer-nos, e facilitar-nos o tracto; pôsto que tambem como elle lá cunhassem á mistura oiro enfezado, não de lei, nem de receber: o juizo público estremaria umas de outras moedas, e as engeitadas a ninguem farião mal, se não fosse ao credito de seu autor. Assim crescêra cabedal, que ainda mingoa para as obras do engenho patrio. Nossa lingua, qual por ora a temos, e até restituindo-lhe todos seus fóros caídos, todas suas joias enterradas, não supre as hodiernas precizões do espirito. Quando a esfera do saber, sentir e pensar se está de hora para hora dilatando no mundo, do qual nós outros (ainda que o não pareçâmos) somos tambem parte, forçado hé que a esféra da expressão ao mesmo compasso se dilate, e engrandeça. Repôr ao idioma quanto ja teve será louvavel consciencia, porem não bastará, se apoz isso se lhe não dér com mão liberal, mas prudente, quanta substancia nova elle possa receber e commutar, para que na apostada carreira que os entendimentos das nações agora levão para o infinito desconhecido, o da nossa, por fraco e sem azas, se não deixe ficar atraz. Uma reflexão quero eu aqui fazer, mais que a taxem de digressão; não será nova para os que escrevem, mas servirá para que os que lem se abstenhão mais de acoimar pobrezas em nossos poetas. Ja das palavras se averiguou serem ellas fio e arrimo de que a mente se vale para melhor ir seguindo por suas ideas sem queda nem tropêço. Pois se as palavras, que não passão de reflexos e retratos do pensamento, tem virtude para o fecundar, menos ainda se duvidará precizar a imaginação poetica de uma abundante linguagem, para se manifestar por obras, assim como o pintor de finas e variadas tintas para seus paineis, e o musico de instrumento pronto e copiosamente registado, para enlevar os animos. O poeta francez, porque tem uma lingua que á fôrça de bem cultivada por muitos e differentes engenhos, se accommoda préstes e serviçal aos pensamentos mais subtis e novos, e aos affétos mais delicados e passageiros, d’ella se ajuda para inventar, e com ella exprime completamente o que inventou. Não assim nós, que em pertendendo alçar-nos por cima das communs ideas do nosso paiz, nos achâmos, sem o cuidar, pensando em francez; e se isso, que bem ou mal nos apparece na alma, tentâmos passa-lo para o papel, suâmos, bramimos, aqui nos faltão de todo as expressões, ali só tibias nos acodem, outras mal determinadas e mal entendidas, outras estiradas em perífrases. Dai-me o proprio Lamartine nascido nas margens do Tejo, e pedi-lhe uma só _Meditação_, uma só epocha de _Jocelyn_; grande será o acêrto se as conceber, quasi impossivel que as escreva. Ponderou Condillac mui avizadamente, que a razão porque apparecião em certo povo e tempo maior numero de varões abalisados em letras, era o ponto de crescimento e sufficiencia abastada a que chegou n’esse tempo a lingua d’esse povo. Melhor será que o deixemos por sua boca doutrinar-nos, que bom missionario he em couzas d’estas. “Acontece com as linguas (diz elle) o mesmo que com os algarismos dos geómetras: quanto mais perfeitas são, mais vistas novas nos offerecem, e mais nos dilatão o espirito. Os bons acertos de Newton de antemão havião sido preparados pela escolha dos sinaes que antes d’elle se fizera, e pelos methodos de calculo ja imaginados. Se mais cedo nascesse, podéra ter sido homem grande para o seu seculo, mas não fôra agora maravilha d’este nosso. Outro tanto vai pelos demais generos. A boa fortuna dos engenhos mais bem aparelhados inteiramente depende dos progressos da lingua no seculo em que vivem, porque os vocabulos correspondem aos algarismos dos geómetras, e o modo de empregar os vocabulos corresponde aos methodos do calculo. Por tanto, em uma lingua aonde ha penuria de palavras ou de construções bem azadas, ha os mesmos obstaculos em que a geometria topava antes do invento da algebra. O idioma francez foi por largo discurso de tempo tão pouco ageitado aos progressos do espirito, que se imaginarmos Corneille em cada um dos seculos ascendentes da monarchia franceza, quanto mais ao remontar nos fôrmos afastando do em que viveo, tanto mais, e gradualmente, irá mingoando o seu engenho, e chegar-se-hia por ultimo a um Corneille que nenhuma prova poderia dar de talento.” Voltemos a Filinto. Não decedirei se houve ou não bom fundamento para o allegarem por autor e texto, como o fizerão na quarta edição do Diccionario de Moraes: nem ouzaria eu pôr mão no fogo pela infallibilidade de sua pureza, porque (mas a medo e sommisso vai o dito, que por dito e não sentença merece vénia) aqui ou acolá se me figura enxergar por suas paginas algumas nódoas d’aquella mesma côr a que nunca perdoou odio. Mas se as ha, são manchas, no passo que o geral de sua escritura he recheado de muitas preciosidades para quem poz peito a bem escrever esta lingua. Por toda a parte lhe estão pullullando lusitanismos em vocabulos, frases, collocação, inversões, geito e feição de períodos, que se houver gôsto em quem lê para os joeirar e limpar de alguma mistura chôcha ou sédiça, farão muito bom sustento para poetas e prozadores. Se houver gôsto, puz eu, e muito que o puz de indústria, porque, os que d’elle carecerem, lição tal só os fará mais ridiculos; os que ainda o não houverem formado, e se metterem por esses onze e mais volumes sem bom e constante Mentor, não sei se em linguagem e em poesia viráõ nunca a dar fruto que bem saiba e se abençoe. Em summa, Francisco Manoel do Nascimento foi um martyr da religião de nossa lingua: para lhe lançar mais gloria cerceou a sua propria: com o excessivo das joias com que a arreou, deixou-a affétada, e menos matrona grave do que bailarina de corda; sim habilidosa e leve, mas dengosa e presumida: mostrou-lhe o como e por onde devia subir á perfeição, a que por outros, porem tarde e mui tarde, será levada: foi, porque tudo diga, um destemperado despertador, que nos poz a pé para o dia das letras.—Quero repetir, fez serviço talvez maior que nenhum dos classicos, mas he de todos o menos para seguir ás cegas. Bem haja elle que tocou a alvorada para nos acordar, mas mal haja quem quizer ficar com trombeta tão rouca e dissonante a tocar alvoradas todo o dia: ja estamos acordados, cabe agora aproveitar o tempo, como gente de juizo. Se da lingua passâmos em Filinto á _harmonia métrica_, damos maior salto que o de Léucade, e como cumprindo igual oraculo, ou nos afogamos em um mar bravo, ou de lá surdimos curados de todo o amor a tal poeta. Em nenhuma das quatro ou cinco partes do globo, e em nenhuma era se metrificou jamais lão dura, desleixada e insolentemente. Se alguma vez se esquece com dois ou trez versos bons, logo se vinga com duas ou trez duzias, que se os reduzissem a linhas iguaes, não serião mais nem menos que desaceiada proza. E ainda he para agradecer quando só lhe falta melodia, porque algumas vezes nos dispara versos, em que as pauzas vem todas desconjuntadas, e outros, em que sobejão síllabas, por mais que a maço as procuremos entalar e embeber umas por outras.—A sua rima he por via de regra desnatural a pobre: os seus sonetos e toda sua lírica de consoantes, enxabimentos ou arripíos. Bem se alcança como erão arrufos de maltratado, as injurias que em muitas partes vomitou contra a rima, e não como as de Boileau, vozes só de um juizo rigoroso, que de dentro das letras as media. Nos defeitos de versificador fez de idade para idade successivos enotados progressos, sendo assim que ou por desleixo, ou por certa petulancia, em que engenhos grandes muitas vezes cáem, tomando por timbre o escarnecer do Publico, quanto mais hia usando do officio, tanto mais desprimoroso se foi mostrando, até ganhar tão duro callo na consciencia, que nem a deliciosa harmonia dos versos de Racine lhe podia ja ao cabo inspirar, um só verso toleravel de tradução. Do muito que só deixo apontado se deduz a idea que para mim tenho do seu _gôsto_; melhor será do que só deixa-la deduzir, declara-la. Parece-me pois ser o seu gôsto pouco e máo; e n’isto estribo o parecer: 1.º que para suas Obras originaes costumava de escolher fracos sujeitos—2.º que as pejava de taes invenções que ja em tempo de Romanos o não erão—3.º que por vida se repete, e por costume redunda—4.º que na ordem desordenadissima em que seus escritos pôz, anda o peor tão travado com o melhor, e as puerilidades vergonhosas com as Odes que lhe lucrárão nome, que sem que o lustre do bom disfarce o máo, o esqualor e nojo d’este deturpa e estraga aquelle—5.º que se para traduzir elegeo ás vezes bons originaes, taes como o Oberon e os Martyres, outras os escolheo desenganadamente incapazes, taes como a triste historia em verso da Guerra Púnica: outras vezes, escolhendo originaes optimos, nem antevio, nem pelo discurso do trabalho conheceo, nem sequer sentio depois de findo (porque talvez se o sentisse nos houvéra poupado a ler a versão), que havia n’essas Obras exclusivos e essencialidades, quer da lingua em que estavão feitas, quer do engenho que as fizera; haja vista ás tão graciosas e admiraveis fabulas de Lafontaine, que em Filinto parecem tanto as mesmas, como a estampa de Bertoldo se podéra julgar retrato do Apollo de Belveder. etc. etc. etc. etc. Taes são hoje para mim Filinto e Bocage: mui outros dos que ja me parecêrão, e talvez dos que me hão de parecer quando novos livros, novas couzas, e o rodear dos annos me houverem feito sou ordinario e incontrastavel officio. N’aquellas eras pois, que ja eras antigas se me representão aquelles meus tempos, caía todo com o meu Gessner em braços, para a parte de Bocage, mancebo e lustrozo; e se me figurava que se lograsse trava-los, fundi-los em um, faria obra de se me agradecer. Os partidarios de Filinto, que não sei porque, trazião guerra declarada com Bocage, vierão saindo de seus montes escarpados, empeçados e tenebrosos, para dar váias e tirar remêssos de epigrammas ao nosso bando: cerrámo-nos com a bandeira, démos sobre elles com iguaes armas, foi batalha campal, rôta e sem misericordia: não houve mórtos nem cativos, poucos transfugas, feridos muitos. Recolhidos nas trincheiras, cantámos uns e outros, como he costume, o _Te deum_ da vitoria; dobrámos a altura aos vallos, e profundez aos fossos que nos estremavão; jurámos não acceitar nunca pazes, quanto menos commette-las, nem consentir em alguma couza que ás dos inimigos se parecesse. Eu que fôra dos mal feridos e ainda palpava as costuras, como havia de faltar a nenhum ponto da conjuração? Muitos d’elles merecerião tratados, mas porque não fazem para o fim d’esta Nota, venho aos esdruxolos, e só libarei a materia. Da natureza, como quer que seja, nos vem sempre o gôsto; mas sendo que a moda, que muitas vezes se gera de um acaso, introduz o uso, e este chega a mudar ou alterar a natureza, vem a ser o gôsto em muitos casos enleada materia e muito esquiva para questão, abonando-se talvez por ahi o proverbio, que sobre gôstos prohibe disputar. Dir-me-hão, que nada tem a natureza com os métros, que só a moda a seu talante os cria e os acaba: he e não he verdade; mas tambem isso deixaremos de parte, por pedir digressão larga e mui sobida filosofia. Em breve, parece-me que a fantasia ou o acaso inventa os métros, a moda os espalha e rege, a nossa natureza se lhes affaz, mas deve quanto podér afeiçoa-los e conchega-los comsigo. Das dez, onze ou doze síllabas de que pode constar o nosso verso heroico, quiz a moda que o numero de onze fosse em Portugal, Hespanha e Italia o usual e corrente; moda que estribou no ser d’estas linguas, em que a quantia de vozes graves excede á das agudas e dactílicas. Costumou-se o ouvido com a igualdade da queda, criou uma certa natureza, e todas as vezes que inopinadamente o obrigão a outra queda maior ou menor, como que se espanta e sobresalta: porei exemplo nos que sobem ou descem ás escuras e ja pelo tino uma escada; se lhes falta no subir um degráo com que ainda contavão, o pé que no ar pôz firmeza cáe em falso, e comsigo leva todo o corpo estremecido; se lhes sobeja um no descer, o pé que ja se dava por assente, não desce mas atropella e traspoem. Por tanto, regra geral, o verso grave, que he o da moda e tambem o da nossa natureza, he o de que nos deveremos servir: como porem entre as couzas sujeitas á poesia, se nos deparem algumas, cuja indole póde ser esse mesmo estremeçáõ, ou atropellamento, razão será que em taes casos bem averiguados e por via de excéção, acudamos á idea com o verso que melhor lhe condiz: os exemplos são faceis de colher nos autores, não gastaremos com elles papel. Ora para se consentir n’esta excéção, não deixa de haver outro motivo de algum momento, e verdadeiramente he elle o mesmo em que a regra geral se fundou; porque as estranhezas, que por desagradaveis persuadírão á regra, por uteis nos conformão com a excéção, sendo que tem virtude para nos espertarem, quando o embalar da monotonia nos vai adormecendo. Não por outra causa, vierão os melhores metrificadores latinos em variar, ainda que rarissima vez, os seus hexámetros perfeitos com o espondaico ou com um monosíllabo final: ambos nos abalão; os primeiros em certo modo como os esdruxolos, os segundos como os agudos; e abalando-nos a propozito, por exemplo para sentirmos a queda do animal no famoso _procumbit humi bos_, deixão-nos afiados para proseguir com attenção, e melhor tomar o gôsto ao caminho, que outra vez continúa lizo e macio, passado o tropêço. Assentámos o princípio, vejamos se o uso lhe tem sido conforme. A Italia, attenta a prontidão, e musica de sua lingua, devêra ser d’estes trez povos do sul o mais aprimorado em toda a qualidade de metrificação, e todavia he o contrario no hendecasíllabo sôlto, podendo dizer por si o que o seu Ovidio poz na boca de Narciso, que a sua riqueza a fez pobre: os seus poetas, ainda os modernissimos, sôbre não curarem dos sons que recheão o verso, e quantas vezes nem das pauzas, sôbre estirarem desmesuradamente os seus períodos, consentindo que os versos se travem e encadêem de contínuo, misturão sem nenhum motivo de effeito, os versos agudos e esdrúxolos com os graves, segundo o acaso lhos vai deparando. He o mesmo que succede a quem possue terra de sobejo fertil e facil: ella que supra por si ás primeiras precizões; trabalhe-se o necessario para que não falte, o resto, que bastaria para a fazer paraizo, dê-se á priguiça. Os francezes, que tão menos poetica lingua tinhão, obrigados por essa mesma pobreza a cultiva-la, esmerados e incançaveis, ¡quanto a não levão ja por arte, adeante do que por natureza podéra ser a italiana! são n’uma parte os paúes de Hollanda a produzir; na outra, terras pingues e dobradas de Otaiti a regalar com pão e frutos espontaneos aos semi-nus e ociosos naturaes. D’este versejar de italianos, me dizia uma vez José Agostinho de Macedo, que a maior parte de taes poesias lhe dava a lembrar as récuas de mulos de almocreve, que enfiados e prezos uns a outros, ao som dos chocalhos enfadosos, la se vão, ora tropeçando ora erguendo-se, continuando o caminho, e sempre chegão com a carga onde tem de ir. Quando assim fallo, quero que se entenda que me não refiro a todos sem excéção, mas só ao geral d’aquelles poetas. Bem pode ser que os haja agora primorosissimos que eu não conheça, e dos conheçidos alguns ha com quem não serei tão severo taes como Monti na tradução da Illiada, Fóscolo se me não engana a lembrança que d’elle me ficou, Alexandre Manzoni, e Felice Romani. Em Portugal, pois que a lingua era tambem préstes e serviçal, e os que n’ella poeta vão se comprazião de se irem sempre na pista dos Toscanos, sente-se nos poetas antigos o mesmo desmazelo. La andão com os versos graves os esdruxolos inuteis, ainda que não frequentes e os agudos aos cardumes. Camões, que de todos elles foi por ventura o de mais delicado ouvido, rimando hendecasíllabos, até na epopea não duvidou em os pôr, quando acaso lhe apparecião, e sem nenhuma intenção ou fito poetico; o que a Vasco Mauzinho de Quebedo seu inferior em poesia, mas superior, se he lícito dizê-lo, em metrificar, por tal arte desagradou, que em todo o poema de Affonso Africano nunca interpolou com elles versos graves, e d’isso faz alarde em seu prologo. N’esta incerteza correo a couza até os nossos tempos, em que dois homens de fôrça, dois athletas da poesia, representando cada um uma das encontradas opiniões, devião ter perante os olhos publicos um calado e rijo certame, para decisão ultima da contenda. Foi Bocage o mancebo, cavalleiro da metrificação liza e uniforme; o velho Filinto da mista e libérrima. Todo o empenho de Bocage era a harmonia constante, todos os seus versos forão graves, e de compasso batido. Nascimento queria por cima de todas as outras couzas dar todas suas ideas, boas ou más, graudas ou miudas, mui bem pintadas e repintadas, que ainda quando insignificantes, não deixassem de ferir na vista. Servia Bocage ao metro como a senhor: Nascimento, como de escravo se servia d’elle, trazia-o rôto, contrafeito, demudado, e por todas as ilhargas estalando com o pezo da carga. Se he lícito comparar estes dois poetas com outros dois romanos, de muito mais subidos quilates, digo, que são na metrificação hendecasíllaba, o que nos dístichos elegíacos eróticos forão Ovidio e Propercio. O dísticho de Ovidio he sempre torneado por medida, nada lhe falta nem sóbra, reluz de polido, e algumas vezes pouco péza: nos de Propercio ha sempre mais succo de couzas (bastante espremeo d’elles Ovidio para seu remedio); mas o hexámetro sáe amiude desalinhado, o pentámetro dissonante da sua usual toada, acabando não em dissíllabo, como para bem o requer o geito de tal metro, mas em trissílabos e quadrissíllabos á moda de Catullo; partem-se menos apuradamente os hemistíchios, embebe-se e embrulha-se em demazia o pentámetro no hexámetro, e, o que mais rijo he, o hexámetro de um dísticho no pentámetro do anterior; o que não tira ser Propercio, em meu conceito, um poeta de mui alta valia (e não sei se diga que o unico amante apaixonado dos antigos, com licença dos grammaticos e dos priguiçosos que o engeitão por escuro), e Ovidio um dos mais bem assombrados engenhos do mundo. Do que levo ponderado, se he exáto como cuido que he, segue-se que nem Bocage, nem Filinto erão para modellos absolutos, e que tão desacordado andava quem não consentia em verso que grave não fosse, como quem esdruxolava por vida e fóra d’aquelles casos em que o esdruxolar traz em si mesmo a desculpa e o louvor. Entendi que ja por acinte o fazião, e por acinte contra acinte escrevi essa Nota da primeira edição, que atraz deixo trasladada. Fôra o voto pueril, conheci-o assim como o sangue alvoraçado da batalha me esfriou, mas tão sobre maneira se oppunha a vergonha a uma retratação, que permaneci até hoje sem um esdruxolo em tantos versos soltos como tenho impresso, e tantos mais que ainda não saírão á luz. Quantas vezes, compondo a _Noite do Castello_ e o _Bardo_, não senti tentações e ímpetos de romper e acabar por uma vez com uma prizão imaginária, que a olhos vistos me estava tolhendo mui bons effeitos poeticos; e comtudo confrangia-me, esquivava-me, escrupuleava, e não podia acabar comigo que me resolvesse, podendo dizer como aquelle rei de França _La se vai tudo, menos a honra_. Os passos d’esses poemas em que tal me acontecia, por si se estão indo agora denunciando, póstos os dactílicos imitativos nos lugares, que abaixo do final se podem reputar pelos mais autorizados e distintos do verso, que são o ponto do hemistíchio ou pauza do meio verso, e o comêço do seguinte, quando fica bem cortado e estremado. — D’este livro ao deante me dou por desobrigado do voto; e eis aqui, me parece, o como lã para os outros me hei de haver: nunca porer só por pôr ou por me forrar trabalho, verso dactílico; nunca o engeitarei quando a fôrça, graça ou qualquer outra vantagem da poesia o requererem. Bem quizera dizer outro tanto dos agudos, mas ahi ainda o meu antojo he forte; sei que a razão não está menos por elles, e não ouzo segui-la: veremos o que o tempo, grande causador de mudanças, poderá trazer comsigo. NOTA _de Augusto Frederico de Castilho._ _Pag. 118. verso 6._ Vejamos, meu Irmão, a tua escolha. &c. Quando um autor, para publicar os seus pensamentos se entrega á nossa boa fé o lealdade, os nossos olhos e mãos para logo mudão de dono, ficão seus; tem de vigiar e selar o depósito confiado, para que nada se lhe accrescente nem cercêe: qualquer palavra, qualquer vírgula de mais ou de menos, por muito que as pareção estar pedindo este ou aquelle passo do texto, são mais que violação de testamento, porque ideas são propriedade mais real e sagrada do que bens da fortuna. Assim he, mas cumpre que não seja assim na presente occasião: faltarei ao direito do autor e á minha obrigação de secretario, para cumprir com outra mais santa lei, a do amor fraterno, alliviando aqui, e em mais de uma maneira, o meu coração, ás escondidas do mesmo autor, para quem serão grande novidade estas linhas, quando de alguem (que não de mim) as chegar a ouvir ler. Direi em primeiro lugar, que na Festa da Primavera, cujas honras forão na maior parte a meu Irmão, os versos a que esta Nota vai lançada tanto abalo fizerão em mim, que pela primeira vez os lia, que eu me vi necessitado a interrompê-los coberto de lagrimas e afogado em soluços, para me ir lançar no seio d’elle, protestando-lhe assim, com um silencio que eu não tive palavras para romper, que os seus dezejos de vivermos para sempre unidos, ja em mim erão necessidade, e que o pensamento de separação se me representava tão _atroz_ e _impossivel_ como a elle. Eu o vi profundamente commovido entre os meus braços, e foi esta a primeira vez em que nos-fizemos uma declaração tão expressa e amor, nós que semelhantes aos _Dois amigos_ de Gessner, sempre tinhamos vivido e contávamos com viver um para o outro, sem ainda uma só vez nos havermos dado o nome de amigos. O meu voto, ufano-me de o dizer, tem sido santamente cumprido: ja la vão quinze annos, e eis-me aqui ao lado d’elle, eis-me tão inseparavel como tinha sido desde menino até áquella hora! que digo? ainda mais, porque para reparar a perda horrivel que elle acaba de experimentar; eu carecia de ter agora em mim, em vez de um, dois ou mais corações para lhe offerecer. Agora cumpre-me preencher o principal fim d’esta Nota, transcrevendo para aqui alguns versos parallelos a estes, de um meu Poemetto, que com o titulo de _Primavera_ recitei n’aquelle mesmo Dia. Os elogios que o leitor vai achar, não mos inspirou só a amizade fraternal, mas a convicção em que ainda hoje estou, e hoje muito mais, do subido mérito do elogiado. Aqui era o lugar de desmentir um grande numero, talvez a maior parte das sentenças, que sôbre a valia d’estes poemas a sua modestia (em tudo excessiva) lhe dictou no Ante-Prologo, e principalmente no Prologo d’este Livro: mas não cuido que a minha licença possa chegar tanto adeante: calar-me-hei, bastando-me agora ter desabafado, por algum modo, nos versos que se vão ler. E tu, meu caro Irmão, tu me arrabatas, Quando magico attráes aos sons da lira, As Musas da Danubio á foz do Tejo. Oh dize-me onde has visto a Natureza, Virgem tão bella para ti sorrindo? La na idade infantil, quando teus olhos Inda na luz formosos se espraiavão, ¿Veio ella mesma perfumar-te o berço, Tingir-te em rósea côr dos ceos o espaço, Encher-te o ar de ignotas harmonias, De affétos orvalhar-te o brando seio, E com magas visões doirar teus sonhos? Sim veio; e quaes na mente que as afaga As maternas feições impressas ficão, Taes seu olhar, e voz, e graça, e tudo Te vivem, te reluzem pela mente, Doirão-te a escuridão, compõem-te um mundo, Em silencio te admiro ha longo tempo; E até (que fui tão louco) ouzei co’as tuas Minhas fôrças medir, tentar-te a gloria. Não somos nós irmãos, me disse eu mesmo? Não corremos iguaes no longo estudo? Pois ha de a lira d’elle ousar prodigios, Sem que, para a imitar, desperte a minha? Mas que vale o dezejo, o sangue, o estudo! Tu sabes remontar-te aos ceos n’um vôo: Eu tento, eu me debato, ergo-me, cáio, No inglorio chão cançado me adormeço: Será pois d’elle só a eternidade. Só d’elle? a sua gloria aos dois nos basta; Qual nossos corações amor vincula, Tal has de unir, ó fama, os nomes d’ambos. Com todo o eterno sôpro enchendo a tuba, “Este o maior, dirás dos lusos vates!” Dirás depois mais baixo: “Este com os olhos “Leo e estudou do Irmão, do terno amigo.” OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO. _O mais deslavado e insôsso Poemetto na primeira edição, erão Os Cantos de Abril. Só a invenção fôra boa; na execução e estilo revia um tão contínuo desprimor, que me foi necessario demolir e reedificar. Por tanto, com o mesmo titulo he obra diversa, muito melhor, mas não perfeita, porque ja para a emenda da emenda não chegou a paciencia._ DEDICATORIA A MEU PAI. _He a educação o maior prezente que de homem se pode haver. Vós, meu Pai, fizestes mais do que educar-me: superior a uma preoccupação tão geral quão perniciosa, vistes nascer o meu engenho poetico e não o destruistes, viste-lo crescer e não o contrastastes, senão que antes lhe déstes amparo, bafo e desvelos. Eis aqui por tanto um reconhecimento da minha gratidão._ _Oxalá possão estes versos, que me afouto a vos offerecer, agradar-vos tanto, como os Cantos de Abril, no silencio da noite e debaixo do parreiral da cabana, agradárão ao bom Menalca._ ADVERTENCIA. Notar-se-ha que por todos os Poemettos d’este livro se dão sempre versos á infancia, e n’este Idillio tem ella não uma parte, nem a principal, senão o todo: se o porque, pode importar a alguem, agora lho direi brevemente. Parece-me um Menino, de todas as couzas graciosas que Deos fez u graciosissima. Aquelle ajuntamento e consonancia de tantos dotes; formosura, d’elle proprio nem buscada nem sabida; graças que lhe ninguem ensinou; singeleza e candura; alegria, fraqueza, innocencia; e muito afféto, e muito mostra-lo; e total descuido do porvir; e não o temer nada; e a poesia particular do seu dizer; e a sua grammaticazinha natural que a nó nos faz rir, couzas são estas que apoz si me levão esquecido e encantado. No trato d’estes botões da humanidade, que vem abrindo, parece-me, e ja pareceo a muitos, poderem-se lucrar boas vantagens: ja não fallo em seu bondoso contentamento que talvez se pega, e na felicidade de recobrarmos horas de meninice, imitando-os, sem saber, a elles, como elles nos imitão a nós; fallo porem no muito que o nosso espirito se acostuma então a estremar o bom do máo, e a joeirar cá dentro o puro do impuro, para nem por sonhos profanar o que das mãos da natureza saío e se conserva santo. E demais, um Menino não sabe nada, quer saber tudo, e por tudo nos pergunta: ¿não he isso estar-nos pondo a caminho de muitos descobrimentos de verdades e relações das couzas, que nunca aliás por nossa preguiça ou descuido fariamos?—Muitas pessoas vejo, e faz-me pena, desamarem as creanças, despreza-las, havê-las por menos de gente, tolher-lhes as fallas, as obras de sua idade, e Deos sabe se tambem o entendimento: eu por mim, quero-lhes muito, porque entendo que excedem em valia aos seus desprezadores, e sinto que a mim me levão grande vantagem em bondade e ventura. De um ajuntamento esplendido mil vezes tenho fugido para elles: no campo, melhor que em nenhuma outra parte, saboreio esta doçura a meu contento. Todos os pequenos das aldeas em que tenho estado me conhecem, e sei que são meus amigos: apinhão-se-me ao redor em me vendo; invento jogos, historias ou conversas para elles; divirto-os, divertem-me; uns com outros, e uns de outros aprendemos. Erão horas bem doiradas essas de minha vida, como as ja tivéra João Jaques, como as terão tido muitos, e como as poderáõ ter quantos as dezejarem. _Lisboa: 7 de Janeiro de 1837._ OS CANTOS DE ABRIL IDILLIO. Por um serão de Abril suave e ameno, Menalca, a bella Dafne, e seus trez filhos, Estavão-se a folgar ante a cabana. Por entre as parras do sonoro alpendre A mansa lua chêa se enlevava, Espreitando esta rústica familia. Menalca erà ja velho: os justos Deozes, Querendo premiar lhe a larga vida Passada em os amar e amar aos homens, De Citheréa ao Filho havião dito: “Filho de Citheréa, entrega Dafne Por esposa na Menalca, a fim que o velho Remoce, vendo ao lar a mocidade, E a virtude que tem o alegre em outrem.” Amor nem sempre aos Deozes obedece, Porem amava a Dafne; entrançou logo A florente cadêa, e vendo-os prezos, Tanto a si mesmo do que fez se aprouve, Que ficou sempre entre elles na cabana. “Filho de Citheréa, accrescentárão Depois os Deozes, da-lhe o teu retrato Em filhos, e uma filha irmã das Graças, A fim que em seu crepúsculo da tarde. O velho inda se alegre, e abrace esp’ranças: Da-lhe prole, o fada-la a nós pertence.” E Amor lhe déra prole, dois meninos Seu retrato, e uma filha irmã das Graças. Ja rosas de abril decimo florecem No semblante de Silvia; um anno a vence Titiro; e vence a este um anno Alexis. Menalca, em juncos molles estendido, Tem da esposa no candido regaço Como em ninho amoroso a branca fronte: Pelas feições transpira-lhe bondade; O mistico luar o diviniza. Dafne o contempla muda, e niveos dedos De afagar umas cãs sentem vaidade. Elle a querida mão colhe entre as suas, Beijada a achêga ao rosto, os fracos olhos Derrama pelos céos alumiados, E fitando-os na lua “Olhai, meus filhos, Olhai, disse elle, como brilha a lua! Que suavidade e paz não côa ao largo O astro das noites! como attráe da terra Nosso espirito humilde a pensamentos De outro mundo melhor, mansão de Deozes! Que esp’ranças, de saudades misturadas, Não traz a pura noite ás almas puras! Dias que em vão suspiro, amenos dias Da minha mocidade...! agora jazo Como arvore das folhas despedida, Que mais não florirá, porque o machado Ja lhe abrio marca para se ir ao fogo. Então era eu cantor chamado ás festas, E afamado por longe entre os cantores Na frauta e no rabil, porque os meus cantos Erão sempre á Virtude e á Natureza. Por uns serões assim, como acodião Todos a ouvir-me! As Ninfas era fama Que descião do bosque, e pelas sarças Vinhão pôr mais de perto o ouvido á escuta: E os ventos se detinhão, recostados Aos duros troncos, sem bolir co’os ramos. Té dizião que a frauta, em que eu tangia, O benevolo Pan ma déra em sonhos. E ora jaz, annos ha, de pó coberta! Em tôrno ao meu fogão ja não se apinhão Os pegureiros a aprender-me os cantos, Meu cabello nevou, nevou minha alma. Ah! se não fosseis vós, Dafne, meus filhos, Vivido tenho assaz, pedíra aos Numes Tornar a ver meus pais n’outras cabanas, Onde he perpetua a luz, e a eternidade Uma estação de musicas e flores. Quando eu la renascer á vossa espera, Á tua espera ó Dafne, á vossa ó filhos, Resurgirá comigo a minha frauta; E com ella enganando aquella ausencia, Penosa até no Elisio, em versos novos Louvando os Immortaes, e eterno eu mesmo, Pedir-lhes-hei comtudo que só tarde Vos levem para mim; que vos derramem De virtudes e bens copiosas bençãos Sempre n’esta cabana, onde hei nascido; E que no meu sepulchro o passageiro Diga parando—Ó bom pastor Menales, Leve te seja a terra, e tu contente Porque os teus filhos te excedêrão todos.” Aqui sentio caír na fronte calva Uma calada lagrima, e doeo-lhe Ter nublado o prazer de seus Penates. Senta-se, alegra o rosto, enchuga os olhos; E unindo ao seio a esposa “Ouvi meus filhos:” O cantar diz co’a noite, agrada á lua, Contenta á vossa mãi. Cantai louvores D’este suave Abril; nunca em meus versos Deixei de o celebrar, quando era moço. Os pastores de outr’ora Abril sagrarão A Venus, graciosa Mãi de tudo. Vede-a n’aquella estrella estar sorrindo; As glorias do seu mez são glorias d’ella. Alexis, principia, eu te acompanho Co’a tua mesma frauta; os sons da frauta Dão como vida ás solidões da noite. Seja a toada a que inventei (quão lédo!) No dia que nasceste, e a nossos olhos Se doirou de alegria esta cabana: Bem a sabes, começa, e Pan te ajude. ALEXIS. Eu amo o verde Abril, porque he formoso, Todo está chêo de arvores vestidas. TITIRO. Eu amo o alegre Abril, porque he sonoro; Vem cantado por bandos de avesinhas. SILVIA. Eu amo o rico Abril porque he cheiroso, Espalha em cada prado um mar de flores. ALEXIS. A folhagem traz sombra, as sombras trazem: Seus folgares da sésta á gente grande, E a nós para brincar franca licença. TITIRO. As aves são dos ares alegria; Chamão na madrugada os preguiçosos, E divertem na lida aos lavradores. SILVIA. Flores dão côr á terra, e cheiro ás auras; Flores são mãis da fruta; os Deozes rindo As crearão, e rindo acceitão flores. ALEXIS. O Pan que está na gruta do arvoredo Não pára senão lá, por mais que o mudem; Sinal que um bosque e a sombra apraz aos Deozes. Tudo ali he formoso á maravilha! Por baixo a fresquidão, por cima o verde; A terra de reflexos variada; O této sonoroso e movediço; Mais alto, o ceo azul, dado ás amostras. E que direis do rio entre arvoredos? ¿Como se pintão na agua aquellas folhas, E o vento que as revolve, e as pombas alvas Pelos ramos, e um sol desfeito em muitos? Parece que no fundo do remanso Tem Pan outro arvoredo, igual em tudo. Quando hoje eu lá passava, a Pan dei graças, Porque achei que um tal sítio encantaria Ó meu Pai, teus passeios solitarios. TITIRO. Fonte como a das Náiades nenhuma: Cantão-lhe em volta passaros sem conto; Sinal que o bando alado apraz ás Ninfas. Por ali me regala ir espreitando Tantos ninhos por entre tantas folhas. Admiro a perfeição d’aquelles berços, E o tino com que os pobres de uns brutinhos Os souberão livrar a soes e a chuvas: Aqui uma avezinha inda sem pennas, Outra a romper da casca; alem uns ovos Branquejão d’entre o musgo, e ja palpitão; Se os tóco, sinto dentro o passarinho, E fujo com temor que a mãi o engeite. ¡Ver as mãis vir do pasto alvoraçadas, Darem o almoço aos filhos que pipilão, E co’as azas e peito agazalha-los! E ver logo os maridos tão contentes A gorgear-lhe á roda! o porque o fazem Mal sabeis vós; cuidais que he diverti-las! Oh que não: he ja dar lições e exemplos De canto aos filhos seus: não de outra sorte O nosso pai nos ensinou seus versos. SILVIA. C’roas frescas de rosas cada dia De Citheréa ás portas amanhecem; Sinal que a Citheréa aprazem flores. Todo o anno era Abril se eu fôra a Deoza! Nunca no meu altar e ás minhas portas Faltarião montões de flores frescas. Todas só para ti as cobiçava, Ó minha mãi: com ellas te enfeitára Cada hora do dia; cada noite As renovára ao leito onde tu dormes; Não porias teus pés senão em flores. Se o passageiro ás vezes me pergunta, Quando me encontra á borda do caminho, “Quem he a tua mãi?” eu lhe respondo Chêa de gloria “A minha mãi he Dafne!” Hontem de tarde o graciosa Amintas, O pobre guardador das duas cabras, Quando o meu pão lhe dei pedio-me um beijo, Chamou-me bella, e disse que o meu rosto Era como o de Dafne, ou como as rosas. Sendo assim, bella sou, que outra pastora Igual a minha mãi não ha na aldea, Nem flor em todo o mundo irmã da rosa. ALEXIS. O vizinho Milão, que hoje he tão rico, Não tinha mais que uma arvore, e de terra Só quanto aquella sombra lhe cobria. “Corta-a Milão, dizião-lhe os pastores, Alegras teu campinho, e terás lenha Para aquecer a choça um meio inverno”— —“Eu? respondia o triste, eu pôr machado Na boa da minha arvore? primeiro Me falte lume alheio o inverno todo, Que eu mate a que a meu pai ja dava séstas; A que de meu avô me foi mandada, Que a não poz para si; e a que nos braços Me embalou tanta vez sendo menino. Os Deozes a existencia lhe dilatem, Que assim lhe quero eu muito, e o meu campinho Produza o que podér, que eu sou contente.”— Sorrião-se os pastores; o carvalho Cada vez mais as sombras estendia, E Milão de anno em anno hia a mais pobre. Lembrou-lhe um dia, em bem, que uma videira Plantada a par com o tronco, o enfeitaria, E os cachos pendurados pela cópa Lhe darião tambem sua vindima: E eis que ao abrir a cova, acha um thesouro! Desde então ficou rico, e diz-me sempre, Que os Deozes immortaes lhe hão dado em prémio Por amar suas arvores. He elle Quem mas ensina a amar, são d’elle os versos, Com que ao bosque de Pan cantei louvores. TITIRO Deozes, tocai o peito de Mirtilo Porque não sáia máu quando fôr grande. Hoje, entrando na mata, o vi la dentro Andar armando aos passaros. Que pena, Disse em mim; não ser passaro um momento; Não poder ir correndo o bosque aos pios, E dizendo em cada arvore “Cautella Meus irmãozinhos do ar; vejo inimigo; Não saiaes; o inimigo anda no bosque...!” Paciencia, assim mesmo hei de acudir-lhes. Vou-me por entre as moutas rastejando Até ao ouco e immenso castanheiro, Que abre em seu tronco uma portada de heras, E se nomêa a casa de Silvano. Trepo, e dentro me escondo: os meus vizinhos Lá por cima na cópa papeavão, Cuido que adivinhando o que eu faria. Encósto a boca á fresta carcomida, Que está fronteira ao portico da entrada, E clamo em rouca voz “Pára Mirtilo.” Parou, ergueo-se, e poz-se a olhar em roda; Vendo tudo em socego ás redes torna. Com voz mais estrondosa e mais horrenda, Torno-lhe eu a bradar “Mirtilo pára.” Não esperou terceira: arroja tudo, Salta, vôa; oh que riso! uns echos fêos Lhe hião gritando apoz “Mirtilo pára.” Somio-se; á terra pulo, espreito o mato, Acho as redes, os presos sólto, os mortos Levo-os onde ôlho de ave os não descubra: Encho-as de pedras, na torrente as lanço, E corro a procura-lo—“Oh tu não sabes, Lhe digo, de que morte escapo agora! Não te engano, era um Deos, vi-o eu, rangia Os dentes, bracejava uma alta fouce, Vinha a saír das sombras do arvoredo; Vio-me e gritou me “Pára” eu páro e chóro. —“Es tu que andas armando ás minhas aves? Pois eu vou dar-te o ensino; as tuas redes Ja te lá vão por esse rio abaixo, E agora has de ir tu morto á caça d’ellas.”— E então vem para mim, co’a fouce aos lanços Cortando pelo ar—“Bom Deos, perdoa, Lhe grito a soluçar co’as mãos erguidas, Eu sou Titiro, o filho de Menalca, As tuas aves amo, e temo os Deozes: Eu redes, eu caçar!”—“Estou perdido! Disseste que eu ... Mirtilo me interrompe.” —“Não, Mirtilo, socega, eu não lho disse, Nem sabia que tu ... fallemos baixo Que nos não ouça o Deos. Olha, este p’rigo Passou, mas outra vez não te aventures, Que eu bem sei como o vi, não te perdoa. Deixa ás pobres das aves innocentes Divertir-te e cantar; nada mais querem; Não tens razão, não teus de as perseguires. Quanto ás redes, eu quero consolar-te: Ouve Mirtilo, acceita este cestinho De cana entretecida em juncos verdes, E este meu cajadinho em boa altura Liso, airoso, e sem nós.”—Assim dizendo, Enfiei-lhe no braço o meu cestinho De cana entretecida em verdes juncos, E entreguei-lhe o cajado. Então Mirtilo Me abraçou, e saltando de contente, Jurou-me nunca mais armar ás aves. SILVIA. Glicera por vaidosa he que ama as flôres: Apanha-as para si não para os Deozes, Não lhas merece a Mãi e alcança-as Mopso. Quando em nosso jardim vejo Glicera, Ja me eu ponho a tremer: corta as melhores, He seu costume; enfado-me, sorri-se; Chóro, ri-se; e enfeixando-as, me repete: “Que te servem por ora estas floritas? Deixa passar mais cinco primaveras, E então sim, nem mais uma hei de furtar-te; Pois sei te hão de servir quaes me hoje servem.” Coitado de quem he como eu menina, Que se manda esperar por primaveras! Que podia eu fazer? queixei-me ás Ninfas. Hontem, ja pôsto o sol, quando erão horas De logo vir Glicera, a presumida, Que furta e vai cantando; ajoelhei-me Co’as mãos póstas por entre as minhas flôres. E disse: “Como as arvores tem ninfas, Que lhes morão la dentro e as aviventão, Ha ninfazinhas a velar nas flores. Ninfazinhas das flores, escutai-me: Se a rega, com que as folhas aquecidas Vos refresquei ha pouco, vos foi grata, Olhai por vós, fazei com que Glicera, Como eu vos vi e ouvi, vos veja e ouça; Apparecei-lhe como a mim, por sonhos, Vestidas de mil côres, perfumadas, Pequenas, mui mimosas, e só outras Em não mostrar-lhe a ella um ar festivo. Dizei-lhe como os Deozes vos crearão Para amores de zefiros, recreio De borboletas e olhos, e formosas Copeiras do formoso mel doirado: Dizei-lhe que tão bella e curta vida Não se deve encurtar, que as deshumanas Tem máo fim, que apezar de passageiras, Ninfas sois, e o Destino ha de vingar-vos: Que se tornar sacrílega a colher-vos, Vossos fragrantes ultimos suspiros Seráõ de queixa aos ceos, e antes de tempo As rosas no seu rôsto hão de murchar-se.” Como eu isto dizia, entrou Glicera: Murchas trazia as rosas de seu rôsto, Não rio, nem colheo nada, e suspiráva. Penada de a assim ver, beijei-a, e disse: “Se alguma d’estas flores te contenta, Eu mesma a vou cortar.”—“Não (me responde) Ja não quero mais flores, Mopso ingrato As que ultimas lhe dei deo-as a outrem: Como as flores me engeita hei de engeita-lo.” Ao que eu logo acudi—“Vês tu, Glicera, Fallei verdade ou não? nascem as flores Só para as nossas mãis, e para os Deozes, Da-lhas tu, e verás se hão de engeitar-tas.” MENALCA. Basta meus filhos, basta; não ha sombras Tão gratas no verão, cheiro de flores Tão suave, ou tão ledo canto de aves, Que me recrêem como os vossos versos. Vinde, vinde, abracemo-nos, ó filhos: Dei-vos eu a doutrina; engenho os Fados; Mas os Deozes virtude: alcatifais-me De bem viçosa esp’rança o meu declivio: Dais-me o que nem pedir ouzava aos Deozes. Antevejo a florir-me a sepultura ... DAFNE. Entremos na cabana: aquella nuvem Quer encobrir a lua; ergueo-se o vento, Não tarda muito algum ligeiro orvalho. NOTA AO IDILLIO. Na muita rama que ao Idillio decotei para esta segunda edição, ninguem, por mais que a cate, poderá achar fruto, nem sequer uma triste flôr, se a não he o passo que para aqui traslado, da falla de Alexis pag. 96 na primeira edição; ácerca do qual e de tudo o mais quanto supprimi ou accrescentei, releva reclamar pela maior indulgencia dos leitores. Não ma negará quem ja alguma vez houver experimentado como de todas as couzas, que parecendo tenues, são agras e laboriosas, a mais agra, laboriosa, e não sei se diga impossivel, he poetar e metrificar as fallas da infancia: caminho he esse que estreitissimo corre por entre precipicios, sendo maravilha que ahi os maiores engenhos se tenhão, e sigão sem caír ou para a direita ou para a esquerda. O primeiro e melhor juiz do homem candido he a sua consciencia: a minha me diz que os trez filhos de Menalca nem sempre, antes poucas vezes, fallão como conviria: de sobejo são poetas para meninos e rusticos; e tanto, que se não fôra a resalva, que logo do comêço lhes vai lançada, de serem filhos de improvizador, e por elle doutrinados no canto, não haveria perdão que de ridiculos os salvasse. Segue-se o excerpto, com todos seus defeitos e aleijões de nascença: O MENINO ALEXIS. Ver-me no bosque de prazer me enchia; Quando Amintas, chamando-me da gruta, Aonde estão de musgo revestidas As imagens das Náiades da fonte, Assim me disse, dando-me uma rosa: —“Eu te darei uma pequena ovelha, Toda branca, na testa só malhada, Se fores ter com Egle, e lhe entregares A rosa, que te dou, se lhe disseres “Egle, Amintas por ti morre de amores.” Beija-a depois na face, e continúa; “Egle, este beijo é do extremoso Amintas.” ¿Não a vês la ao longe entre os salgueiros, Apascentando as candidas novilhas? Corre; e não tardes a buscar a ovelha.”— Eu fui correndo a ella, dei-lhe a rosa, Beijei-lhe a face, e disse-lhe: “Este beijo, Egle, este beijo é do extremoso Amintas.” Nada me respondeo, sorrio-se, e as faces Como a rosa encarnadas lhe ficárão. Abraçando-a depois, lhe disse alegre, “Egle, Amintas por ti morre de amores.” Rio-se outra vez, e dando-me na face, “Oh como tu és máo! vai-te, me-disse, Não posso ... não, não quero acreditar-te.” Nada lhe respondi, voltei á gruta, Onde o Pastor contente e alvoraçado Me deo sem custo uma pequena ovelha Toda branca, na testa só malhada. ¡Como a minha ovelhinha é bella, e mansa! Andei com ella todo o dia ao pasto Pela relva do bosque, etc. A FESTA DE MAIO POEMETTO EM DOIS CANTOS. _Se nos trez Poemettos precedentes pude fazer muito mais do promettido no Prologo, n’este último fica a minha palavra empenhada. Pouquissimos de seus defeitos mais palpaveis cheguei a apagar, e esses quasi só de linguagem. Receoso de me vir a faltar o tempo ou o animo, se desde a primeira pagina do Livro me começasse a esmerar seguidamente, fôra minha primeira occupação ir por todo elle despontando, á ventura e sem ordem, o que me apparecia pessimo, justamente como no Prologo deixára promettido. Conheci logo que este trabalho era insufficiente: entrei no outro mais miudo e ordenado; refundi a cito_ a Epistola, o Dia da Primavera, os Cantos de Abril, _nenhuma das quaes Obras cheguei com tudo a lustrar. A_ Festa de Maio, _por ser a derradeira, quasi ficou, e até nova edição (se algum dia se fizer) ficará, como era. O maior bem que lhe pude fazer, foi abri-la em dois Cantos, para que o leitor achasse marco onde descançar em tão enfadonha e comprida estrada._ DEDICATORIA ÁS SENHORAS DA LAPA DOS ESTEIOS. SENHORAS, _A segunda tarde, que passámos em Festa na vossa Lapa, não tem jamais de nos esquecer. O vosso gracioso e cortez descer a ouvir-nos, as carícias com que amimastes o nosso Maiozinho, dando-lhe entre vós assento, detendo-o nos regaços, beijando-o, ¿como he que nos não havião de cativar, a nós, que o cingíramos de suas galas, o sentáramos em throno, pôsto que menos para apetecer, e o levantáramos por Divindade em nossos Cantos? Finalmente aquelle vosso generoso trocar de nome á Lapa, querendo que por nosso respeito se ficasse chamando_ dos Poetas, _em tamanhos obrigações nos pozerão, que as Musas nos acodiráõ para um dia vos provarmos que nós, Sacerdotes seus, não somos ingratos. A minha, de mais atrevida que he, me envia adeante, a tributar-vos este Poema, que pois o approvastes, ja não he de vós indigno. He prezente de uma Deoza do Parnaso, não podem as trez Graças rejeita-lo._ HISTORIA DA FESTA DE MAIO. Pelas trez horas da tarde do primeiro dia de Maio de 1822 ja nós, a Sociedade dos poetas _Amigos da Primavera_, nos achávamos á sombra das arvores, pelo Encanamento do Mondego, esperando anciosamente o batel, que nos havia de tornar á Lapa dos Esteios, para celebrarmos a Festa de Maio: de tantos que lá fôramos no Dia da Primavera, só faltava _Anfrizo_, em cuja vez recebêramos _Antíono_, mancebo mui dado a bons estudos, versado na lingua e poesia allemã, e autor ja então de Anacreonticas e Idillios de muito preço. O suspirado batel acudio cedo á nossa ancia: todo toldado, alcatifado e cingido com mui curiosas invenções de verdes e flores, vinha parecendo o naviozinho do _Primeiro Navegante_. Abica, saltâmos-lhe dentro todos juntos; larga, vogâmos contentes e cantando. Quem bem quizesse pintar com a penna affétos do coração, não achára bastante um volume para historiar esta só tarde. Dezejára eu muito convidar cortezmente meus leitores a nos acompanharem, tomando seu quinhão em nosso folgar; mas não o posso, e ainda mal, que o de maior valia fica-lo-hão perdendo. Hiamos todos tão unidos em vontade, conformes em gôsto, feriados de cuidados, crentes na ventura, chêos e cercados de poesia, e namorados da natureza, que os todos só parecião um, um só moço, transportado em bemaventurança. Ora cantando, ora encarecendo, quasi adorando as varias gentilezas que a perto e a longe, e por toda a parte se presentavão e renovavão de contínuo, aportámos apoz uma hora, na formosa Lapa dos Esteios. Erguemo-nos, vozeâmos, voão do barco para o ceo foguetes que todo o ar estrugem, e para a margem os hinos de uma orchestra que comnosco hia. Diz a musica muito com todos os affétos da alma, mas do contentamento, onde o ha, faz alvorôço, que muitas vezes prorompe em lagrimas. D’esta maneira triunfal saltámos para o cáes, voámos ao alto da Lapa. Conhecia-nos o sítio pelos mesmos, desconheciamo-lo nós por melhorado: obrados erão sobre a natureza milagres de Maio. Ja as arvores alardeavão ás virações montes de folhagem, que pelo ar se embalavão ao sol; era agora o rio ainda mais puro, os ares mais temperados e benignos. ¿Quereis haver alguma idea da habitação das almas felizes? quereis pintar os lugares onde as Ninfas, os Faunos e Pan apparecião aos pastores innocentes na idade de oiro? entrai a Lapa dos Esteios pelos graciosos dias de Maio. He a Primavera nos princípios uma linda menina; mas não sabe firmar o passo, balbucia, tudo teme, não se decide em nada, suas graças ja se annuncião claramente mas ainda se não desenvolverão; em Maio he moça toda viçosa de mocidade, a quem ledos cortejão Amores e Prazeres, cujo sorrir endoidece o pensamento, e vai entender com os corações. Tinha a Natureza dado a segunda mão e ultima ao lugar; mas a Arte quizera entrar com ella á competencia, sem comtudo lhe desacatar a primazia: tudo estava varrido e puro e concertado de um sem numero de vasos de muitas, e finissimas flores. No alto assentámos o altar do Deozinho Maio: todo elle era verdura; duas colunas, artificiosamente fabricadas de flores, e rematadas em umas maçanêtas de igual marmore, se alevantavão dos dois cantos da frente, e communicando-se no cimo por um semicirculo, que na materia e primor não desdizia do resto, ajudavão a formar um genero de portico bem vistoso e engraçado; os lados, fundo e abobada do recinto erão de ramos verdes de todas as qualidades, bem entrelaçados e bordados de frescas e vermelhas rosas; no meio estava um assento pequeno, á feição de poial rústico, tecido de lustrosas heras, onde se via recostado o Maio em acto mui gentil, e com um geito todo seu. Era um Menino de cinco annos, louro como o sol, e alvo como a neve, cabellos crespos e annelados, caídos por um e outro hombro: de roupagem, não tinha outra de seu que um aventalinho, que debaixo dos peitos lhe descia aos joelhos; o qual, assim como os listões que de cima dos hombros lho vinhão tomar encruzando-se por deante e pelas costas, estava recamado de cedro e buxo, com sua orla mui accesa de flores de romeira, cravos, e rosas: calçava cothurnos de seda escarlate; na cabeça ostentava corôa de verdura, e do braço esquerdo como que acenava ás vontades com um cabazinho, farto dos frutos do seu tempo; e tudo por modo tal, que a bôca se não sabia determinar se o diria nu ou vestido, nem a fantasia dos poetas se o quereria simples Menino, ou verdadeira Divindade. Mandámos por dois dos nossos vizitar e convidar para a Festa as amaveis Senhoras, cuja he a Lapa, as quaes na quinta que por cima fica tem seu perpétuo domicilio. Não tardarão: recebemo-las como convinha, nós com a festa dos nossos musicos, e com muitos seus abraços as Senhoras, que abaladas dos annuncios de tão bôa tarde, nos tinhão feito a honra de acudir ao sítio. Ja era crescido o auditorio, e muito para contentar e accender engenhos: fomo-nos uns a outros seguindo com os poemas que levavamos, os quaes em fórma de rito religioso, se recitavão em pé deante do altar, fazendo a nossa orchestra uma harmoniosa ráia de poema a poema, que para tudo as tardes de Maio deixão tempo. Poz-se-lhe remate com os vinhos e saudes d’uma saborosa merenda, como á primeira tarde da Primavera se havia feito. Passou-se o serão parte pelas salas, outra parte pelo jardim das nossas hospedeiras. A noite era uma das mais bellas de tal mez: a lua brilhantissima despedia até os horisontes um clarão quasi diurno, não se enxergando nuvem por todo o descampado do seu céo; refletia-se, e desenrolava sua alcatifa de movediça prata ao longo d’esse Mondego tão digno de seus amores; o ar era tão manso e quêdo, que as luzes, curiosamente distribuidas por entre os vasos de flores, nem de leve estremecião; suave era de ver sair por toda a parte d’entre planta e planta uns reflexos verdejantes mui amigos dos olhos, muito mais da fantasia de poetas. Prazeres que o coração estriou por uma noite assim enfeitiçada, não são para se poderem pintar. Pouco tardou que a sociedade, como acontece, se não soltasse e dispartisse em ranchos pequenos: a musica errante e fóra dos olhos, umas vezes folgando, suspirando outras, e outras como quem sismava algumas amorosas mágoas, hia-se ja pelos arvoredos da quinta, ja ribeiras do rio acima e abaixo, tão grata, que ainda não sei couza que mais quizesse. Muitos e muitas baillavão arcadicamente sob a abobada do céo, em quanto nós outros, os que das Musas só fôramos fadados para versos, os estudavamos e repetiamos á porfia. Algumas semelhantes horas devia ter passado o primeiro que escreveo Elisios. Era a noite crescida para muito alem do meio, quando nos despedimos; e la foi caír na eternidade um dia, que ainda agora me persegue saudoso, e apoz o qual nenhum outro veio semelhante. A FESTA DE MAIO. POEMETTO CANTO I. Eia, amigos, ao campo! ha ja trez horas, Que os Tindáreos Irmãos no aéreo espaço Vírão do meio dia o rôsto ardente: Eia, amigos, ao campo! as horas vôão, E o Maio alegre ás féstas nos convida: Os Zéfiros ligeiros, embalando Do parreiral a trémula folhagem, Ao rio, ao barco estão chamando a turba. ¿O Deos Menino, o gracioso Maio Não vamos celebrar na fresca Lapa? Pois que se tarda? os Numes não consentem No culto seu ministros preguiçosos. Chamai á pressa as pastorís Camenas, Tomai as flautas, coroai as frontes Co’as grinaldas, que em premio vos cingírão Da Primavera no primeira tarde. Como! o tempo ... (ai da flor da mocidade!) O tempo as destruio! de graças tantas Que existe pois? um pó. Jazem desfeitas, Sem perfume, sem côr as lindas flores, E as verdes folhas se enrolárão murchas! Ah! corramos; o pezo, que as esmaga, Róla tambem sôbre a existencia nossa: Nossas grinaldas nos festins vivêrão, Morrêrão no prazer; e nós, como ellas, Devemos esperar, brincando, a morte. Cedo nos hombros do nervoso Atlante O eixo voluvel em perpétuo giro Ha de erguer ante o Sol novas esferas: O Touro ja fugio: Castor, e Pollux Succedêrão-lhe agora: hão de apoz elles Os astros scintillar, que nos conduzão Da estiva calma os importunos tempos. Então fenecem pelo campo as flores, Tépidas correm na planicie as fontes, Calão-se as aves nos cavados troncos, E fallece a frescura ás proprias noites. Vamos, emquanto as flores não perecem, Emquanto soprão lisongeiras auras, Emquanto um doce frio as ondas levão, Emquanto as aves pelos ares cantão, E as claras noites co’a frescura aprazem; Vamos correndo: de vergonha córe Quem último chegar do rio á margem. ¡Graças aos ceos, que a suspirada arêa Ja pizâmos emfim! mas pelas faces Abrazado suor me está caindo. Inda o barco não chega: eia, sentai-vos. D’esta aura carinhosa ao fresco sôpro Quanto he doce voltar o rosto ardente, E ora uma face, ora outra offerecer-lhe! Ella as beija brincando, e espalha em ondas Os escuros anneis, que lhas roubavão. Verde canavial, salve trez vezes! Co’as boliçosas, arqueadas folhas Nos escondes a rir de Febo aos olhos. Ninfa adorada pelo Deos da Arcadia, (Deos dos pastores, inventor da flauta) Sacrilego furor não nos incita: Não te offendas se agora as nossas dextras De tuas canas adornadas vires: Sua altiveza airosa nos agrada, Vates somos, os trémulos seus cumes Ondulando, os lascivos seus abraços A cada viração que vai fugindo, Tudo isso nos namora, e diz poesia. Não te offendas ó Ninfa, ei-las colhidas! Gravai com ellas n’esta arêa os nomes Das vossas bellas, imprimi-lhe um beijo, E partamos, que o barco ahi fere a margem. Bem: eu lancei da Primavera o nome Em caratéres taes, que ao longe possa Lê-los o pescador no fim da tarde. Eis-nos emfim nas transparentes ondas! Agora cumpre diligencia, esfôrço, Para vencer as fugitivas aguas. Ferva o trabalho, as varas não descancem; No fundo leito redobrai os golpes, E suavisai com musica a fadiga. Eu deitado na pôpa, eu dicto os versos; Cantai, e o echo em baixa voz aprenda. Ouvi Ninfas do placido Mondego, Ouvi com ledo rôsto as preces nossas. Saí correndo das limosas grutas: Occultas no cristal do patrio rio, Vós podeis impellir co’as mãos de neve, E fazer que o batel, qual aguia, vôe. Bellas Filhas do lúcido Mondego, Vamos passar a tarde á grata sombra, Das lindas Graças na famosa Lapa. Ali, se acaso não me illude o estro, Vós, Ninfas, vós com ellas muitas vezes As noites do luar passais em danças: Sôbre um tronco musgoso Amor sentado, Para acertar as rápidas choréas Com saudosa flauta a Noite acorda, E Venus compassiva lhe desata Dos olhos entretanto a escura venda. Mil Amorinhos sem farpões, sem facho, (Nem onde vós estais carecem d’elles) Vôão aqui e ali por entre os ramos. Ouvi Ninfas do placido Mondego, Ouvi com ledo rôsto as preces nossas. Dai-nos breve chegar, sereis cantadas; E iremos outro dia erguer altares De cada vosso chôpo á sombra amiga, Pondo-lhe em roda uma vistosa grade D’aureas canas com murtas revestidas: Em vossas ondas lançaremos rosas, E puro leite, e saboroso vinho. Porque tardais, ó Náiades esquivas? Turba innocente de mancebos rindo Bem merece o favor dos sacros Numes. Nós não vamos em lenhos alterosos, Roçando as nuvens com soberbas velas, C’o ferro a lampejar nas bravas dextras, Levar da guerra a furia aos outros povos, Lançar em fogo os bosques, e as cidades, Para voltar aos mares tormentosos Co’um pouco do metal, que gera os crimes: Nós vamos procurar vizinha praia Para rir, e beber de Maio em honra; Vamos c’roar-nos de verdura, e lirios, Cantar ao som da flauta a Natureza, Dançar no meio de innocentes gostos, E longe dos mortaes, viver ditosos, Poucas horas sequer, na paz dos campos. Ouvi, Ninfas do placido Mondego, Ouvi com ledo rôsto as preces nossas. Terra, terra: éstas árvores das margens, Que ora nos vão passando sôbre as frontes, Convidão a colher sua folhagem: Saltai, colhei os mais viçosos ramos, Teça-se um tôldo, que nos roube á calma. Ávante! adeos, ó Driades, ficai-vos Em doce paz; o orvalho vos fecunde; Ache vossa raiz no estio as aguas Tão abundantes, como as tendes hoje. Nós vamos celebrar o mez das flores, Quando voltarmos vos daremos graças. Ávante! não cesseis, alegres nautas! Cantai: eu voas ensino um canto novo. Das Filhas de Nereo a mais formosa Foi Galatéa candida, e rosada. Por seus olhos azues morreo de inveja Aglaia, irmã de Amor; a curta boca Ciumes acendeo no peito d’Egle, Bem que da boca d’Egle um doce beijo O scetro pagaria ao rei dos Numes; E Eufrosina, entre os Deozes celebrada Pelos aureos anneis da longa trança, De Galatéa a trança cobiçava. E o seio! o seio túrgido e nevado, Mais nevado que a espuma em que se tornão Na frente de um cachopo as crespas vagas, O seio era melhor que o teu, ó Cípria! Treze vezes floríra a primavera, Depois que aura vital gozava a Ninfa, E ja no mar, no ceo, no mundo inteiro Das bellas todas triunfava a bella, E ais e louvores a seguião sempre. Nereo, chamando-a á funda gruta um-dia, Assentou-a nos trémulos joelhos, Ao hombro lhe lançou paterna dextra, E beijando-a lhe diz.—“Assaz he tempo, “Filha, de rematar da infancia os brincos. “Tu conheces teu rôsto, ¿e não conheces “Que he preciso fugir á turba insana, “Que te rodêa, que te chama bella? “Crê tu nas cãs de um pai, de um pai no afféto; “Quanto mais suas fallas te agradarem, “E mais seus modos lisongeiros vires, “Mais pérfidos serão. Cabe a meus annos “Dar prudente conselho á tenra idade; “Perdoa-me, acautello-te a innocencia. “De meus delfias o lúbrico rebanho, “Desde hoje apascentar he teu cuidado: “Não convem á belleza ociosa vida.”— Disse, e poz-lhe na mão, como a pastora, Cajado de coral com ponta d’oiro; Entregou-lhe a rebanho, e conduzindo-a De seus mares a um placido retivo, —“Fica, pastora, aqui, lhe-disse o Velho, “Vir-te-hei vêr muita vez.”—Rio-se, e deixou-a. Alguns dias ali viveo contente Com seu rebanho a equorea pegureira. Ora entre as moutas dos coraes ramosos O levava a pascer os brandos limos, Ora ao marinho cão deixando-o entregue, Hia colher das perolas as conchas. Uma tarde de Maio, quando aos braços De Thetis vio que o sol hia descendo, Ouzou sair do fundo, e foi sentar-se A gozar do espétaculo dos bosques Na alegre entrada de uma verde gruta. Nas ondas por acaso então nadava Acis gentil de encantadores olhos: Vio-o, e visto, calou seu canto alegre; Sólta um suspiro, e se perturba, e córa. Do paternal preceito inda lembrada, Quer na gruta esconder-se até que parta Das ondas o mancebo: eis se arrepende, Ja não quer occultar-se, e quer que a veja. D’entre o verde do mar o níveo corpo, Que os olhos cega, e o coração cativa, As proporções, a ligeireza, a graça, Com que agora se occulta, agora assoma, E em modos mil as posições varía, Tudo, tudo a detem. De quando em quando, Sem conhecer que o faz, se lhe aproxima; As tranças, que trazia ao vento sôltas, Sem saber o porque, reparte e lança Sôbre os hombros de neve, e cobre o seio: Consulta no mar lizo a propria imagem; Quer mais bella tornar-se, e mais não póde. Cançado de banhar-se o Moço emtanto Vinha a praia ganhando: ella assustada Corre á gruta; ali cora, ali desmaia, Quando o mancebo, quando o pai lhe lembra. O bello nadador não tarda muito, Entra na gruta, onde largára as vestes ... Amigos, vós parais como esquecidos? Deixais que o lenho na corrente desça? Ah! voltai ao trabalho; e por castigo Não ouvirèis do alegre canto o resto. Novo me inspira agora esse murmúrio, Com que a Fonte das lagrimas se lança Da serpeada varzea ao rio aberto. Junto á fresca matriz d’este ribeiro, Onde gozou em seculo remoto O mais ditoso par de amor os mimos, Meu estro agora placido voltêa Por entre os cedros, e os feraes ciprestes; E ora ao lago pacífico se arroja, Ora da fonte nos penedos pouza. Comvosco não existe o vosso amigo; Gira fóra d’aqui no sítio umbroso, La conversa co’a Musa, aprende, e canta Gratas histórias dos passados tempos. Uma noite de Maio Inez formosa, Ao pallido clarão da argentea lua, Com seu Pedro fiel aqui vagava. De seu candido amor primeiro fruto, Lindo, qual dos Amores o mais lindo, Um tenro filho, que a fallar começa, Co’a pequenina mão á mãi seguro, A passos desiguaes a acompanhava. No dextro braço do gentil consorte O alvo braço despido entrelaçando, Languidamente a bella se apoiava. Traja da côr da neve, ornão-lhe as tranças Rúbidas rosas que reveste o musgo: Sob um véo raro e sôlto arfão dois peitos, Que estrema, que matiza, e que perfuma A flor, que he d’entre mil só digna d’elles, O amor perfeito em fresco ramalhete. Pelo silencio, e paz da noite amiga, Nos extasis de amor arrebatados, Ebrios ambos do nectar da ternura, Vagueando em seu ermo, respiravão Todo quanto prazer nas almas cabe. —“Inez, dizia Pedro, olha estes cedros, “Que doce murmurando agita o vento! “Olha as aguas do tanque, onde tão clara “Se está dos Ceos a Lua retratando! “Ouve o rumor das ondas transparentes, “Que vem brotando da cavada penha! “Cara Inez ... ah! calemo-nos; escuta “O amante rouxinol como gorgeia! “Não o sentes mui proximo? quem sabe! “Talvez que em teu jardim celébre agora “Ao lado de uma esposa os seus prazeres: “Se assim he, refinai perfume, ó flores, “E vós levai-lho, zefiros da noite, “No instante em que Himeneo tem de ajuntal-los. “Ó minha Inez, não ser inda possivel “Confiarmos á luz nossa ventura, “E eu dizer, sou de Inez!...”—N’isto o mancebo, Apertando a seu peito o braço d’ella, De beijos lhe inundava a mão mimosa. Em silencio e cuidosa a linda Castro Parava contemplando os ceos, o esposo, E unindo a regia dextra ao seio oppresso, Dava a resposta n’um fiel suspiro. —“Oh! (dizia depois) que Deos contrário “Ao terno amor, á candída innocencia, “Poz peito, ó doce encanto, a separar-nos? “Quão melhor fôra haver nascido em choças! “La, tendo por imperio um só rebanho, “Lãs por purpura, e flores por diadema, “Pedro fôra pastor e Inez pastora. “Teu solio quantas lagrimas nos custa! “Mas se fosse teu solio um manso outeiro, “Docel um parreiral firme em colunas “Das que dão fruto e flor, saude, e agrados, “Não cortíra em meus sonhos o remorso, “Teu coração ninguem mo disputára, “Não se encobríra o meu amor ...”—“Oh cessa, “Cessa (Pedro lhe diz interrompendo-a): “De que servem, querida, essas lembranças! “Se te adoro, que temes? se me adoras, “Que posso eu mais querer! Virtudes tantas, “Raros dons quaes os ceos em ti resumem, “Não são para jazer na escuridade; “Dos reis, de teus avós te poem no estrada, “Para luzires nos corrutos dias, “Como astro de bondade entre os humanos. “Gozemos do prazer. Olha esta noite “Como he formosa, minha Inez; não tornes, “Eu to peço por mim, por ti, por esse “Fruto do nosso amor que te he tão caro, “Não tornes a acordar taes pensamentos. “Queres tu, minha amada, á curta noite “Dar emprego melhor, mais proprio d’ella? “O assento ao pé da fonte nos convida, “Vem-me outra vez cantar os magos versos, “Onde quasi exprimiste o enlevo d’ambos, “Quando a primeira vez nos vimos juntos “Tambem de noite, e n’este sítio mesmo.” Disse, e Inez imprimindo-lhe nos labios Co’a meiga curta boca um longo beijo, —“Vamos, responde, apraz-me esse meu canto, “E agradar-te, inda mais; partamos logo.”— Diz, e ja leva ao collo o seu filhinho. Forceja o pai furtar-lhe o doce pezo, Ella a ninguem o cede:—“O meu menino “He meu, lhe diz; quando eu tiver meninas, “Dar-tas-hei, desde ja chama-lhe tuas; “Pertence o filho á mãi, e ao pai a filha.”— Sorrindo com ternura o ledo Amante, —“Ser-me-ha dado, lhe diz, que de teu filho “Ao menos colha uns beijos que me deve, “Ou hei de só com os teus ficar contente”?— —“Se tos deve meu filho, eu vou pagar-tos” Inez responde, e lhe pagou mil beijos. Chegados são aos bancos do rochedo. —“Ja do sol o calor morreo na pedra; “Para assento, he mister ser estufada. “Não rias, o brocado hão de ser ramos; “Para a pastora Inez, nenhum mais proprio”— Voa ao proximo cedro, os ramos corta, Alastra-os sobre o marmore, e reclina O infantinho, que pósta a loira fronte No maternal joelho, eis adormece. Absorto no painel delicioso, Não podendo parar nem desviar-se, Como homem, que formosa feiticeira Prende e agita n’um círculo encantado, Vaga o Principe á luz voluptuosa De lua por entre arvores. Desponta No ermo silencio o canto namorado! O suave da voz, o doce estilo, A musica tocante, a frase meiga Alhêão-no de si, todo elle he fogo: Não conhece onde está, quem he não sabe: No cahos do prazer, em que se abisma, Só vê brilhar Inez, Inez só ouve; E qual se nunca em braços a apertára, E virgem melindrosa o ceo benigno Lha houvéra ali chovido aquella noite, Arde e delira em sofregos dezejos. Já não sabe conter-se, o fim do canto Já não póde esperar; “Ó minha, exclama, “Ó minha ...” e sem findar, pois não encontra Nome que exprima o que lhe ferve na alma, Voa a abraça-la sem poder fallar-lhe; A voz com loucos beijos lhe interrompe, Quer dos labios sorver-lhe os sons divinos; Mas ella rindo, e a boca desviando, Que a deixe terminar lhe pede a custo. —“Sim, acaba (responde), Inez, acaba”— E emtanto hia beijando o collo, o seio. Depois, como ante Nume, ajoelhando, Suspenso a contemplava espaço longo; E depois no regaço o rôsto acceso Lhe punha, como em ninho de delicias, E no certo esperar crescia o fogo. Só vós caladas arvores no emtanto A canção namorada ouvindo estaveis Da mui ditosa Inez! Como expirava A derradeira nota, estremecendo Acorda o moço, alvoraçado surge, E tomando á cantora a mão submissa, —“Vamos, lhe diz, a lua vai descendo, “O tácito poente a chama ao sono: “Oh quão leve entre nós foge esta noite! “As auras pela relva estão dormindo, “Pendem com sono as arvores seus cumes, “Do largo tanque as aguas nem se encrespão. “O rouxinol que ha pouco gorgeava ... “Ja tambem se calou: sabes a causa?”— —“Talvez lhe empeça a voz, responde a bella, “Teimoso furto de continuos beijos.”— —“Não, não, responde o amante, agora occulto “Co’a docil companheira em quente abrigo, “Aperta o rouxinol de amor os laços. “E nós Inez? ah toma o teu menino, “Talvez não tarde a aurora, ao leito vamos, “E do fresco da noite ali zombemos.” Emfim chegámos! c’o ligeiro impulso Bate a proa no cáes, o lenho treme, Tremem com elle de seu tôldo as folhas. Salve ameno lugar, que as Graças pizão! Glória ao sacro arvoredo, que diffunde Sôbre a calma do vate a sombra fria! Glória ás auras, que prêzas n’este sítio, Das Dríades por mão aos troncos d’ellas, Agitão com susurro a massa enorme Da folhagem suspensa! honra aos que brincão Puros raios do sol sôbre o terreno, Mal que um favonio lhes descobre a entrada! Eterno amor ás aves, que em seus ramos A vinda nossa a gorgear celebrão! Paz ao dezerto, onde comnosco as Musas, Esquecidas de Pimpla, se contentão De encher de alegres canticos os ares! Á festa, á festa! Reuni-vos todos, Vinde colhêr as fugitivas horas: Como vaga que passa, ou flôr que murcha, Para mais não voltar, se escoa o tempo. Á festa, amigos! Oh! n’esta eminencia Eis ja pronto um altar! ei-lo cingido Com largas fitas de pintadas flores! Ante elle o rosmaninho, a murta, as rosas Té não curta distancia o chão tapizão; Heras, e lirios candidos o toldão: De heras e lirios adornai as frontes. Ajoelhai: lá sobe a Divindade! Silencio! paz!... Retumbe pelos echos, Sem mistura de voz, o som das flautas. No coração, no espirito me chovem D’estro divino eléctricas centelhas. Ja me sinto mudado em branco cisne! Cercai-me: eu vou cantar; calam-se os ventos! Voa invisivel das Hemonias serras, Tu que no Xantho as aureas tranças lavas: E se he tua, qual Roma suppozera, Ésta a melhor porção da florea quadra, Do cantor de teu mez protege a audacia. D’entre os filhos da immensa eternidade, D’entre esses doze Irmãos, que repartido Tem por sua influencia o anho inteiro, Maio foi sempre o mais gentil de todos: Qual dos cachos o Deos, e o Deos das setas, Goza brincando eterna mocidade. As Graças infantis, e a Formosura O creárão nos ceos com o proprio leite. Mal que o mundo surgio do horrendo cáhos, Veio formar-lhe os seus primeiros dias, E Maio foi da terra a fresca aurora. Em mimos escondendo a magestade, He Maio o pai, e o rei da Natureza: Qual em soberbo paço, anda nos bosques; Ou, qual em solio, nos outeiros verdes Se assenta, ao lado da risonha Flora. Compõe-lhe o seu cortejo Auras, Favonios, Que das plumas azues fragrancia espargem Furtada ha pouco ás pudibundas rosas. Em seu reinado insolita doçura Exhala o canto dos volateis bandos, E canoro parece o bosque inteiro. Em seu reinado os prados florecentes Só curão de ostentar perfume e cores: E a Ninfa ás vezes longas horas fica A meditar na escolha dos ornatos. Co’a folhagem densissima susurra O bosque annoso a celebrar-te, ó Maio; Susurra a celebrar-te o rio, a fonte. Com serena alegria o sol derrama Vasto oceano de luz no aereo espaço. A pompa da manhã, da tarde o brilho Tem não visto matiz d’oiro e de rosas, E côr de fogo sôbre um ceo de leite. Toda patente a abobada de estrellas, Toda brilhante a prateada lua, Te dão, como as do Elisio, alegres noites, De importuno calor desafrontadas, Chêias de encanto, da saudade amigas, Gratas a um tempo ao coração, e ao estro. Aqui, e ali os rouxinoes se escutão Longas horas c’os echos porfiando. Gira, vaguêa pelas fracas trevas Dos pirilampos o lustroso bando: Resoa em cada aldêa alguma frauta, E emtôrno d’ella as camponezas danção: Bala no aprisco impaciente o gado As poucas horas, que á manhã precedem. Como he doce o teu mez, benigno Maio! Alegra-se o viandante ao ver nos campos Do verde trigo as trémulas searas Iguaes a um vasto lago, onde os favonios, Nascidos inda ha pouco entre as florestas, Aprendem a encrespar as verdes aguas. Aqui a par de um campo, onde começa O milho a despontar, desprega aos ares Com vaidosa soberba altas bandeiras De outros milhos o exército infinito. Ostentando riqueza alem menêão, Entre a argentea folhagem pendurados Cachos de flor, os olivaes fecundos. Os pomares de frutos se carregão, Que ja sem medo aos furacões, e ás chuvas, Com áncia a côr, e a madureza esperão. As aves da manhã, quando revôão Com longo canto pela immensa altura, Se aprazem de os olhar; e ás vezes descem, E vem pouzar nos encurvados ramos, O futuro sustento ali festejão: Tal de annos onze uma pequena virgem De adoradores mil se vê cercada; Bem que á sua belleza inda lhe faltem Terno expressivo olhar, globos de neve, Voluptuoso dezejo entre suspiros, Buscado enfeite, graciosas fallas, Rodêão-na comtudo, adivinhando Pelo botáõ fechado a flor aberta. Mas, ó Maio, o teu mez não brilha esteril! La se ergue o laranjal c’os frutos d’oiro; Doces limões, e saborosas limas, D’entre a larga folhagem descobrindo A amarellada tez e o forte aroma, Prendem sentidos convidando ao furto; Ri-se entre as mais a alegre cerejeira, Que ainda que no gôsto a muitas cede, Mais que todas seduz co’as vivas bagas; A ginjeira com ella aposta encantos, Mas apenas gostada, a palma he sua; Iguaes a um coração em côr, em fórma Os suaves morangos ja maduros, Contentes da humildade, estão dormindo No fresco seio da materna planta: D’ali, se vem um zefiro acorda-los, Olhão em roda as pampinosas vinhas; E vendo como os pequeninos cachos, Que a fronte cingem do celeste Bromio, E um dia gratos brilharáõ nas mezas Mudados no licor, que gera os risos, Do nativo terreno apenas se erguem, Zombando riem da vaidosa audacia, Com que somem no ceo pomposo cume Árvores tantas menos uteis que elles. Por toda a parte as desveladas hortas C’o verde alegre das crescidas plantas O suor do colono estão pagando; Seu terreno sulcado está coberto De immensas produções, que vão nas mesas Ser preciso sustento, ou grato mimo, E ora entrar na choupana, ora nos Paços. Em teus dias, ó Maio, as vélas sólta Sem medo o nauta pelo vasto oceano, E olhando puro o ceo, de leite as ondas, A cujas furias escapou nadando, Sobre a pôpa da náo regendo o leme, Pensa na esposa, nos filhinhos pensa; Prometteu-lhes voltar; nem ja receia, Maio, fiado em ti, ser-lhes perjuro: Sobre a cana do leme encosta os braços, E ou sólta em grande voz grosseiros versos, Ou costumada musica assobia Olhando a estrada de alvejante espuma, Que d’um e d’outro lado á prôa foge. Brinca nas aguas, e ou se esconde, ou salta De vagos peixes prateada turba; Na verde superficie as Ninfas danção, Da tarda noite nas caladas horas, Das estrellas á doce claridade. Mas eu quero soltar mais altos vôos, Trazer ao mundo incognitas verdades. Em teus dias, ó Maio, os Páfios bosques Vírão nascer os trêfegos Amores! N’um valle opaco, onde buscando o fresco Costumavas dormir entre mil flores, La teve a Deoza o seu fecundo parto. Apenas sobre a attonita verdura Cípria depunha um pequenino alado, Logo o via nos ceos voar, sumir-se: Tal dos Amores o soberbo genio! Quando cançados de brincar nos ares, Um passatempo á terna Mãi pedião, Tu lhes foste ensinar pelas florestas A formar arcos de flexiveis ramos, E despedir, sem nunca errar, seus golpes. Tu lhes mostraste os rezinosos troncos, De que havião formar brilhantes fachos. Tu mesmo entre elles companheiro e mestre, Pelos campos as flores procuravas, Com que doces prizões tecer devião. Tudo em teus dias no universo adora; O sexo, a idade, as condições não livrão. Entre o rebanho, que amoroso bala, Amoroso pastor canta ou suspira; Ternas gorgêão no arvoredo as aves; Ragem ardendo de dezejo as feras; Suspiros ouço ás arvores, e aos ventos; Abrem o seio as virgemzinhas flores, E Venus as fecunda, e mãis se tornão. Em cada gruta, em cada bosque ás Ninfas Uma emboscada os Sátiros aprestão. Em bellezas mortaes embevecido, Canta em rustica voz novos amores C’roado de pinheiro o Deos da Arcadia, E ante a Ninfa gentil mudada em canas Pelas canas da flauta os sons varía Com ar alegre, que perjuro o torna. Sensivel para o Sol se volta Clície; O Sol na terra outras bellezas busca, E outras acha, que o peito lhe cativão, E fazem que mais tarde a Thetis desça. Entre os astros as Pléiades luzentes Com saudade seus thalamos recordão: Junto d’ellas o Touro inda parece Mugir lembrado da formosa Europa. Mais placida refulge a Cípria estrella; Dissereis que saudosa indaga os sitios, Onde comtigo, venturoso Adonis, Passava as noites do formoso Maio: E quando foge, a Aurora se envergonha, E cora por voltar tão cedo ao mundo; Pois quem ha que não saiba os seus segredos? Quem de Céfalo a história não repete? Em cada tronco um dísticho de amores, Ou dois nomes se lem, como enlaçados. Uma sombra, uma só não ha nos campos, Onde Amor não recorde, ou não prepare, Ou não veja presente uma vitoria. Foi, Maio, foi teu mez que ao Rei das sombras Fez que deixasse o sempiterno cáhos, Para roubar a encantadora esquiva, Do flóreo campo de Enna ornato, e Deoza. Foi, Maio, foi teu mez que ouviu primeiro Diana a suspirar, arrepender-se De ser das virgens tutelar Deidade. Graças ao teu poder, e ao teu influxo! És tu que a rir convidas gracioso Minerva um pouco a abandonar seus livros[13]. Quem póde resistir-te? emfim te cede, Toma-te pela mão, para que a leves A divagar em teus vistosos campos; O ar de meditação troca em agrados, E vê contente abandonar-lhe a côrte De seus alunos juvenil caterva, Que alvoraçada aos patrios lares vôa. Sim, Maio, eu voarei aos patrios lares! Mas cuidas que jamais distancia ou tempo D’este dia a memoria hão de apagar-me? Não: onde quer que os fados me conduzão Sempre te hei de cantar, sempre c’roado De teus altares me verás ministro: Mas d’esta sociedade, e d’estes brincos, Em quanto a noite se adornar de estrellas, Nunca a lembrança volverei sem mágoa. De generoso vinho enchei-me o copo, Que de mírtea grinalda ornado quero. Imitai-me tambem. Por este, ó Maio, Suavissimo licor, pai da alegria, Por este, digo, cuja taça empunho, Juro ante o ceo, de teu altar em frente, Que um anno só não deixará meu estro De exaltar tua glória, e a minha amada, A Deoza tua mãi, a Primavera. Reformai-me outra vez a funda taça. Em honra a vós, formosas moradoras D’este ameno lugar, esta se esgote. Aguardai, cabe agora o sacrificio; Vou-me a buscar a vítima, que a trouxe Occulta e prêza do batel na pôpa. Eis-me, abri-me caminho! eu volto ás aras: Para a santa ablução trazei-me um vaso. Silencio! fallo ao Deos!—“Sejão-te acceitos A vida, e leve espirito do prezo Que vem n’esta gaiola, o qual eu vate Por todos nós agora te dedico, E dedicado entrego ás livres Parcas. Digna he de ti formoso ave formosa Como esta; pintasilgo ativo em canto, Garrido em côres, no brincar esperto, Mestre em tirar do cristalino poço Com o balde de avelã sua bebida: Outro melhor nunca girou nos bosques. D’esta estação n’um dos primeiros dias, Segundo o meu costume antes da aurora Saí a espairecer nos campos verdes, Ouvir das aves os primeiros cantos, E aquecer-me sentado sobre a relva Ao primeiro calor do sol nascente. Banhei o rôsto n’um remanso puro, Colhi as flores inda ha pouco abertas; E co’a mente serena, e possuido Do amor do campo, e dos campestres gostos, Voltei de novo ao lar. Junto á janella Por onde largo sol ja vinha entrando, Fui sentar-me a pascer em vãs delicias. Eu sonhava acordado! ah nos meus sonhos Não via mais que bosques e pastores, Rebanhos, fontes, rusticas choupanas! Dono me cria d’um torrão pequeno Mas pingue, de uma choça pequenina Mas alva, entre nogueiras, rodeada De alvos cordeiros nédeos e alvas pombas. Eis que afoitando um vôo, esta avezinha Me entra por casa; ao seu gorgeio acórdo, Pois junto a mim pouzava gorgeando. Ouves, Maio, este som, com que parece Approvar adejando o que te conto? Ouves? repara bem: tal modulava Quando amoroso a vizitar-me veio. Ganhando confiança a pouco e pouco, Saltou-me para o hombro, e de improvizo Prêzo se vio na minha mão fechado. Quiz debater-se, emvão; piou, carpio-se, O bom coraçãozinho lhe batia. Beijei-o, puz-lhe mesa; o sem ventura Nada acceitava, anciando só fugir-me. “Conheces-me bem mal, pobre innocente, Lhe digo; essa gaiola he teu palacio Não carcere, eu teu servo e não tirano. Servo e palacio um dia de experiencia Talvez tos faça amar: se não, prometto Abrir-te a porta e libertar-te os vôos.” Á janella da minha a estancia d’elle Penduro; os aureos grãos e a clara linfa, Cama fôfa entre ramos florecentes, Vista de campo e céo por toda a parte, Mas livres um de açôr, outro do tiros, Manso, mansinho ás grades o affizerão: Comeo, bebeo, cantou. “Pois que tu cantas, Vatezinho silvestre, em nossa casa, Juntos e amigos ficaremos sempre. Tu serás de meus dias a harmonia, Eu tua providencia; a fonte e a messe Te viráõ procurar, dar-te-hei florestas La dentro em teus penates de cortiça, E porque logres tudo, uma consorte Virgem, bella, fagueira, e cujos filhos Seráõ só teus, e como tu formosos.” Desde então ledo vive, e tanto aos mimos Se acostumou domesticos, e tanto A amizade entendeo, que lhe abro a grade Fronteira aos ceos da aurora, aos bosques amplos, E nem bosques nem ceos lhe dizem—foge.— Da liberdade que lhe acena á porta Se despede cantando, e empoleirado, Reizinho em casa sua, a mim e a ella Nos compara, e lhe diz: “Aquelle humano Deos foi que para mim creou taes ocios!” “He esta, ó Maio, a vítima que trago Ao sacrificio teu! perco um amigo!” Com esta mimosissima grinalda De sensitiva lhe circundo o collo, Para sinal da dor que me comprime. Vamos, venha o punhal, que eu limpo o pranto. Ó ceos!... quanto me custa! He sacrilegio Qualquer demora mais: ânimo agora, Saudoso coração!... Venceste, ó Maio! Venceste! consumou-se o sacrificio! O fio prêzo ao pé cortei de um golpe, Lancei-o ao ar; voou; nem ja o ouvimos. Foi rever seus antigos companheiros, Sua amada, seu bosque, e o seu alvergue. Oh! como será doce emtôrno ao sócio Que julgárão perdido, apinhoada Papear parabens a alada tribu! Oh tu lhes dize então do amigo o nome, Que vezes te beijei de madrugada Por me acordares co’o suave canto, Para trocar o leito pelo grato Passeio da manhã, d’onde trazia Pera a tua gaiola hastes de flores. Ouvirá leda a esposa a leda historia, E a contará depois aos tenros filhos. Talvez que em meu passeio inda algum dia, A festejar-me, emtôrno a mim se junte Chêa de gratidão toda a familia, Tu meu amigo, a tua esposa, e prole. Dispersai-vos, bebei, cantai, amigos, Ride, e dançai, porque invejoso o tempo, Co’as cãs na fronte, e o coração gelado, As horas do prazer furta aos mancebos. Mas ai de nós, que o perfido voando Ja nos fugio co’a encantadora tarde! Desçamos ao batel: adeos ó Lapa, Adeos, fica-te em paz; e cedo espera Ver de novo juntar-se á sombra tua Da Natureza os candidos Amigos. Deixai as varas, gracejemos antes, Não cumpre trabalhar, para fugirmos De um bosque sacro a Maio, e sacro ás Musas. FIM DO CANTO PRIMEIRO. A FESTA DE MAIO. POEMETTO CANTO II. D’essa garrafa de cristal doirado Duas taças me enchei. Venha a primeira: Esta se esgote da amizade em honra. Ó divino licor! se o puro nectar, Que Hebes formosa a Jove ministrava, Comtigo competir podesse ao menos, Jove lhe perdoára o seu descuido, Nem dos bosques Ideos arrebatado Ganimedes gentil voára aos Numes. Dai-me, dai-me a segunda. Em honra agora Do celeste prazer, que nos encende, Este liquido fogo ao peito envio. Graças ás mãos, que á terra afortunada Derão em hora boa éstas videiras! Graças a Baccho, ao protétor, que tanto Desvelo lhes prestou! Graças á turba De alegres raparigas, que levárão Os cachos ao lagar em largos cestos! A vós mancebos rusticos e alegres, Que aos pés calcastes as cheirosas uvas! E a ti, lenho feliz, em cujo seio Os sagrados toneis se transportárão Desde os campos de Chipre aos campos nossos! Do celeste perfume ébrias as Ninfas Te acompanhárão na veloz carreira; Continuamente as velas te enfunárão Com halito propício os frescos ventos, Que lá brincavão pelas ferteis vinhas, Faceis criando, e colorindo as uvas: E o mesmo Baccho (eu não vos minto, amigos: Ah! dai-me a taça, os labios se me seccão); Baccho em pessoa, o vencedor das Indias, Invisivel na pôpa revirava O leme dirétor co’a mão divina. Dai-me á pressa outro copo: outro: mais cinco: Mais um que eu vote a Febo, e nove ás Musas. Sinto o meu coração desfeito em gôsto! Ah! por piedade rodeai-me todos; Quando entre amigos bebo, um só não basta Para me encher atropelados copos. A cada qual de vós uma saude Quero fazer; mais uma a cada Ninfa; Aos Numes todos, que na terra habitão, Aos Numes todos, que dos ceos nos olhão, A todos que no Elisio nos esperão; Farei uma saude a cada vaga, Que desde a Herminea Serra[14] aos mares corre, Álua, a cada estrella, a quanto existe. Do mais vivo prazer me volvo em braços! Rio, e respiro magicas delicias! Gelos, que em serras coroais as fontes, D’onde as urnas as Náiades inclinão Para mandar-nos de tão longe as aguas, Derretei-vos em subitas correntes: Brami de roda dos Hermineos lagos, Ventos da tempestade; as átras nuvens Reuní, condensai: retumbe ao longe O ronco do trovão pelas florestas, E o monte enorme em seus abismos trema. Todo em chuveiros se desate o polo: E cedo (oh! praza aos ceos!) e cedo o rio Vença o leito, e com impeto revolva Tropel ruidoso de espumosas vagas. Sem poder contrastar-lhe a furia immensa, Perto da margem sem poder ganha-la, No escuro turbilhão de rôjo iremos. Quando a aurora assomar, ja muito longe Nos verá pelo Atlantico engolfados. Do enfeitado batel voltando a prôa Contra as vagas austraes, candidas velas Presentaremos ao ligeiro Boreas. Em dia bonançoso, e mar de rosas Iremos sem temor, chêos de assombro, Gozando entre as equoreas Divindades Scenas de Maio no ceruleo campo. Cedo veremos verdejando e rindo O alto Cabo surgir na extrema ponta Da Lusitana terra: erguendo aos astros A nautica celeuma, alvoraçados. Poremos no occidente o vago leme Para afrontarmos as Titóneas plagas. Entre o Barbaro solo, e o solo Hispano Passaremos cantando o Estreito, aonde As Colunas ergueo famoso Alcides. Pelos ventos Hesperios ajudados, Movendo assombro ás cérulas Nereidas, Cortaremos, voando, em curtos dias, Mediterraneo, tua longa estrada. Nossos astros serão por entre as ondas O astro de Venus luminoso, e claro, Ariadne, a esposa do contente Bromio, E os Tindáreos Irmãos, cuja concordia, Cuja amizade nos será de exemplo. Eolo prenderá com mil cadêas Euro o nosso contrario: as verdes ondas, Ouvindo de Tritão troar o buzio, Sem furia, sem fragor do barco emtôrno, Chêas por cima de alvejante espuma, Saltaráõ quaes no prado os cordeirinhos. Que, meus amigos! receais procellas? Procellas contra nós! Assáz os Numes Nas almas sabem ler; nós demandâmos Chipre, votada aos candidos prazeres: Do vinho a Deoza, a Deoza dos amores, Os Numes da amizade, eis nossos astros; Que havemos de temer? Não, não me importa Que o ar, que o pégo em furias se revolva: Por entre a serração, por entre a morte, Voaremos a rir de Chipre aos campos, Quaes na barca da Estige um dia iremos Dos lagos avernaes ao grato Elisio. Não ha que recear. Dai-me outro copo; Outro bebei, e ouvi-me. Amigos fados Da Ilha encantadora ao melhor sítio Nos hão de conduzir: ja cuido vê-la! Um cáes em meia lua, um cáes não grande, Ja nos hospeda na conchosa arêa: Unidas penhas de elegante aspéto O anfitheatro deleitoso fórmão: Todas se vestem de verdura, e flores, Todas tem fria gruta, ou doce fonte. D’estas fontes, que emtôrno enchem os ares De um desigual, suavissimo murmúrio, Umas descem chovendo entre os penedos, Outras em larga enchente se arremeção, Sem o musgo occultar, de rocha em rocha, Té que ás bacias espumosas saltão. Aqui um mirto, alem uma roseira Coroa a entrada das pequenas grutas, Ou lhes fórma seu tôldo, ou quasi as cobre. Por toda a parte melindrosos ninhos Se ouvem piar; por toda a parte adejão Co’o sustento no bico as ternas aves. D’esta folhagem se levanta o melro, E vai pouzar na proxima folhagem: Queixa-se n’uma gruta Filomela Quando Progne sentida eleva o canto. Prezos aos troncos Zéfiros murmurão; Auras, dos valles proximos correndo, Das invisiveis azas nos derramão Almos efluvios de cheirosas flores. Vede assentos, que a mão da Natureza Nos rochedos abrio, que a mão do Tempo Cobrio, amaciou com verde estofo; Aqui se tem as Ninfas assentado Pelas tardes de Maio muitas vezes, Para gozar os brincos dos Amores, Que ora lutão na arêa, ora apostando, Se arrojão de mergulho aos verdes mares, E apparecem depois nadando e rindo. Vamos: por esta parte o cáes nos deixa Na Ilha penetrar: commoda entrada Nos off’rece este portico de murtas. Deozes! que vamos vêr! Salve cem vezes, Bosque sombrio, magestoso, immenso! Do desmedido Atlante a espadoa enorme Não, não he quem sustem o eterno Olimpo, És tu, sagrado bosque; a vista humana Chegar não póde a teus soberbos cumes! Serras, diluvios de ondeantes folhas Sôbre colunas mil, que o raio assustão, Se agitão sôbre nós. Longe, ó profanos! Vates, erremos pelas frescas trevas! Alem, se não me engano, o sol penetra. Corramos. Oh prazer! oh maravilha! Eis um retiro aos Numes consagrado, Incognito aos mortaes, de encantos fertil! Tu que vizitas cada dia o mundo, Ó Sol, ¿que outro lugar no mundo encontras, Onde com mais prazer teus raios lances? Vede este prado, cujo fundo escondem De Hibleas flores animadas nuvens: Olhai sem guardador pingues rebanhos Livres saltando nos outeiros verdes: Vêde encostas de pampanos cobertas; Fontes á sombra de arvores sagradas; Jardins fechados de cheirosos muros De altos lilazes, de azareiro e cedro; Tanques no meio, onde em repuxo aos ares Voão do bico de marmoreos cisnes Argenteas linfas, que no ar se cruzão, Mil arcos, mil abobadas formando, E em fresca chuva vem mover os lagos! Que ditoso paiz! não sei que sinto No meio agora d’estes sons campestres, Respirando balsamicos vapores, Em sacra habitação, entre os amigos, Longe dos homens, da innocencia ao lado! Abraçemo-nos. Sim: desde hoje unidos, Seremos d’este sítio os habitantes. D’esse ribeiro na fecunda varzea, Ali, onde hospedagem graciosa Presta ás aves do ceo pequena selva; Ali, onde estendidos pela grama Junto ás novilhas candidas, repouzão, Co’a cornígera fronte entre as papoulas, Mansos touros, que o jugo inda não vírão, Ali se vos apraz, se apraz aos Deozes, Vamos pois construir nossas moradas. Do Genio do lugar primeiro em honra Cumpre fazer as libações, e os votos; Venerar, depois d’isto, a turba agreste Das Ninfas do paiz; e culto, e nome Dar ás fontes, aos campos, e ás collinas D’estas gentis, incognitas paragens. Vede faias aqui, pinheiros, chôpos; Abatei-os, tecei nossas cabanas. Formemos uma aldêa: a cada alvergue Juntemos um jardim, que ao fundo banhem Do claro rio as fugitivas aguas. Não falte o culto ás sacras Divindades. Á obra, á obra! o templo se levante Nobre, proprio de nós, digno dos Deozes, Com paredes de cedro á luz vedadas. Deixamos á vaidade altas colunas, Cúpulas d’oiro, abobadas suspensas Em meia altura da extensão dos ares; De trémula parreira um této basta. Ponde no tôpo o altar da Natureza, De nossa adoração primeiro objéto: Firmada sôbre um globo, como o nosso, Uma estatua gentil figure a Deoza, Virgem, bella, risonha, affavel, nua, Guardando-lhe o pudor sendal ligeiro: Colar de flores lhe atavie o collo, C’roa de frutos lhe circunde a fronte, Diversos ramos as madeixas ornem: Tenha n’uma das mãos celeste chama; Penda da outra, e por seguro fio, O Genio do prazer, que as azas bata Para voar-lhe ao cobiçado seio: Cerquem-lhe o pedestal em turba immensa Homens, feras, volateis, nadadores, E quanto emfim por seu influxo existe: Vejão-se á volta os poderosos Genios, Que a seu sabor os elementos movem, Salamandras, Ondins, Silfos, e Gnomos. D’esta ara ao lado se verão pendentes As flautas nossas, pois lhe são votadas. Sôbre outro altar a Deoza de Cithéra, Não de marfim, nem marmore talhada, Mas de alva cera das abelhas nossas, Feita por nossas mãos encante a vista. Quero-a nua de todo: ao seio amime Entre os braços de neve o filho alado; E co’a ternura languida nos olhos, Como para o beijar lhe estenda os labios, Curta tornando, como a d’elle, a boca. As trez Irmãs de Amor pequenas, bellas, Como invejando do menino a sorte, Forcejem por trepar da Mãi ao collo, Emquanto o Irmão travêsso a rir pretende Co’as delicadas mãos lança-las fôra. Duas turbas de Amores apinhados Se ergão d’aqui d’ali: tenhão por terra Os arcos, e os farpões; na dextra empunhem Fachos, que hão de brilhar nos festos dias, Por nossas mãos com sacro lume accesos. Defronte d’esta, na parede opposta, Outro brilhe votado á Primavera. Ali se mostre a Deoza, cuja veste Um manto seja de tecidas flores; De flores o toucado; a planta nua Sôbre floreo torráõ firmada alveje: Durma a seus pés o aurígero carneiro; O Maio, filho seu, tenha em seus braços, Igual em perfeições á Mãi formosa, Alado como os Zéfiros e Amores, Que os Amores, que os Zéfiros mais lindo. Tenha na dextra um ramo florecente, Onde pouzem pintadas borboletas: No esquerdo braço um cabazinho grave, C’os doces frutos, que em seu mez se colhem, E a rir pareça á Deoza appresenta-los; Mas a Deoza, estendendo a mão de neve, Como que busque o grávido cestinho Tirar de sôbre o seio, onde elle o punha. De Favonios um bando se reparta Aos dois lados do altar, em cujas dextras Ponhamos bem fingidas cornucopias Chêas d’agua, onde flores se conservam. Atrio cercado de sombrios louros Haja na frente do sagrado alcaçar. Por trez frondosos porticos se passe Do templo ao atrio: emtôrno d’elle avultem, Dos loureiros á sombra, as Deozas nove, E o Nume protétor do equorea Delos. Um de nós cada mez será por sorte Da sacra estancia o sacerdote, e o guarda. Ficaráõ a seu cargo os festos dias, Dos altares o culto, os hinos sacros, E a protéção dos ninhos melindrosos, Que as aves formaráõ do této em volta; Para que nunca violados sejão, Santa hospitalidade, os teus direitos. Da nossa aldêa ás proximas campinas Daremos de cultura uteis desvelos. Vertumno, e Ceres, e Pomona, e Flora Hão de favonear trabalhos nossos, E em sustento pagar nossas fadigas. Ricas hortas, dulcissimos pomares, Doiradas messes, pampinosas vinhas O celleiro commum nos terão chêo. Da ociosidade vã não será filha Nossa innocente e solida riqueza. Algum de nós ao trato dos rebanhos Seus cuidados dará: que importa o mundo? Vida de nossos pais! vida dos campos! Quem te nomeia humilde, e vergonhosa? Vive o pastor no seio da innocencia; No meio da pobreza he rico, e folga. Emquanto os grandes entre escravos gemem, Canta o pastor entre o rebanho, ou dorme, Fiado em seu amigo, em seu rafeiro: Nem ao menos que ha leis sabe nos campos. São seus dias cadêas de prazeres, E seus prazeres innocencia todos. Não cala seu amor, canta-o nos bosques Em alta voz, ou goza-lhe as delicias. Ao transmontar do sol volta a seus lares; Conta á porta o rebanho, e junto ao fogo Vai co’a cêa frugal entre os amigos Restaurar o vigor para o trabalho. Repouza em paz sobre o macio feno Emquanto alguma luz no ceo não raia: Não ha cuidado, que lhe rompa o sono; Se acaso sonha, os sonhos não lhe pezão, Pintão passados bens, ou bens futuros, E volta ao mesmo quando nasce a aurora. Vergonhosa ésta vida! ó desgraçados, Corai no meio das grandezas vossas: Se o pastor conhecesse o vosso estado, Nem de olhar-vos sequer nem se dignava. No regaço feliz da natureza, Ao lado da ventura, os dias nossos Serão a imagem dos doirados dias. Como os primeiros pais da especie humana, Viveremos frugaes entre a abundancia, Ricos sem pompa, sem vaidade sabios, Socegados sem leis, sem armas fortes. Hão de mil vezes os campestres Numes, E o sacro Povo, morador do Olimpo, Compràzer-se de olhar a nossa aldêa. Ao romper da manhã, ser-lhes-ha doce Ver-nos todos sair dos proprios lares Co’a alegria na face: uns diligentes C’os instrumentos rusticos nas dextras, Ou seguindo seus bois, tornar-se aos campos; Outros guiando para os ferteis pastos Longa tropa lanígera balante. Ser-lhes-ha doce o ver como trabalhão Todos no bem commum, sem que se escutem Do _meu_ e _teu_ os nomes perigosos. Quando o gallo doméstico no aldêa Soltar ao meiodia o canto agodo, Correremos á mesa: unidos todos De um bosque á sombra nos calmosos tempos E junto ao fogo quando reine o frio, Não veremos deante a rica prata Com vivo resplendor cegando os olhos; Nem dourados cristaes, nem porcelanas, Cuja louca ambição furiosa arrasta Tantos loucos mortaes, dignos de pranto, D’entre os braços dos seus aos torvos mares, E em fragil pinho, que rodêa a morte, De longinquo paiz os leva aos portos. De facil construção vermelho barro Fará nossa baixella; e cavos troncos Fundos, polidos, de jasmins c’roados, Servir-nos hão de o rúbido falerno. De nossas hortas vegetaes gostosos, Os teus dons, ó Pomona, e os teus, ó Ceres, O mel puro e doirado, e o branco leite Bastão assaz da Natureza aos filhos. E que? algum de nós contra o que vive Ouzaria vibrar da morte a fouce! O touro soffredor, cuja fereza Para servir-nos se abateo ao jugo, O touro, o nosso amigo, e o nosso escravo, Que sem ter parte alguma em nossos gostos Tomava parte nas fadigas nossas; Que armado pelas mãos da Natureza Podia, se quizesse, oppôr-se aos fracos, Que a paz, que a liberdade ouzão roubar-lhe, Depois de longo, aviltador serviço Deve ... (oh pejo! oh furor! oh sacrilegio!) Caír ás mãos do barbaro assassino, Para quem só viveo! por quem mil vezes Coberto de suor, chêo de espuma, Co’a fronte baixa, sem mugir ao menos, Queimado pelo sol, até soffria Duro, ferreo aguilhão se fraquejava! Qual ouzaria ensanguentar a dextra Na mansa ovelha, da innocencia imagem; Que incapaz de offender, nunca rebelde Aos brados do pastor, seu proprio leite Entre seus filhos e elle repartia, E até para cobri-lo as lãs lhe dava! Lindos filhos do ar, ternos cantores, Que innocentes voais pelas florestas, Nos prazeres, no Amor gastando a vida, Filhos do ceo, modelos, que adorâmos, Não temais habitar nos campos nossos. Se o açor, se o falcão por estes sítios Passar alguma vez, vinde, eu vos peço, Vinde-vos esconder em nossos lares, De vossa timidez sacra guarida: Se nos virdes passar nos sitios, onde Entre os ramos, á sombra vos agrada Divertir gorgeando a terna esposa, Que muda, e carinhosa esconde, e aquece Entre as azas seus filhos pipilando, Se nos virdes passar ... oh! por piedade Não fujais, prosegui vossas cantigas; Sois como nós da Natureza filhos; A Mãi commum vos deo a liberdade, Sustenta-vos, bem como nos sustenta: Sois fracos, tanta basta; e nós não somos Nem tiranos, nem perfidos, nem baixos Para abusar da fôrça: he jus terrivel! Se para vos matar compete ao homem, Para o homem matar compete ao tigre. Não: vivei entre nós, como entre amigos: Somos todos irmãos: arcos, e setas, Redes, e visco, passatempos torpes, Não usa quem adora a Natureza: Serião entre nós nefandos crimes. Se um dia á caça algum de nós (os Deozes Affastem para longe o agouro horrendo), Se um dia á caça algum de nós corresse; Coberto de suor, de sede extinto Praza aos ceos que discorra os duros campos; Curve-o das armas o terrivel pezo; Não ache onde empregar da morte as furias; Seus proprios cães os membros lhe lacerem Té que as entranhas vis ao sol descubrão, E rôto arqueje o coração perverso: Semivivo, rugindo, ardendo em raiva, Entre penedos se revolva, e espume, C’os olhos ja sem luz, chêos da morte, Pallido o rosto, ensanguentada a coma; Té que, mugindo em subita voragem, Se rasgue a terra ao detestavel pezo, E ao fundo o arroje dos sulfureos lagos. E se o malvado consummar seu crime, Se as mãos tingir no sangue do innocente, O rio onde correr para banha-las As ondas atropelle, e volte á fonte, Fique attonito o monstro, e o leito sêcco; E quando sôbre o fogo os miseraveis Membros pozer, que o sangue inda gotejão, Que inda tem no tremor de vida um resto, Chêas de horror e de piedade as chamas, Deixando intáto o funebre cadaver, Com medonho estampido abandonando N’um momento seu lar, se ergão aos ares Para chover no algoz, torna-lo em cinzas. Mas vá longe de nós o quadro infame! Somos frugaes, e simplices; e basta Olhar-nos para ver nossa virtude. Sim: que a lavrada seda, o oiro, as telas, E dos insanos cortezãos a pompa Não nos ha de cubrir. No inverno algente, Contra os rigores da estação nublosa Usaremos da lã que nos revista, Sem que do artista a dextra insultadora Lhe desfigure a côr, lhe mude o aspéto: Se no outono reinar do inverno o frio Voltaremos á lã: na primavera Basta o candido linho: emfim no estio, (Deixe-me em paz, ou seus ouvidos serre Quem no corruto coração fomenta De prejuizos vãos caterva impura!) No estio, amigos meus, com vosco fallo, Seremos todos nus: rião-se embora Os perversos, que ao vício costumados, Até na natureza encontrão vício. Sim, andaremos nus; nus se mostrárão Os pais, e as mãis do mundo em tempos d’oiro, Nos vaguêão da America nos bosques Da Natureza não corrutos filhos, Nem os tinge o rubor, a côr do pejo, Que o pejo nasce se a innocencia morre: A Innocencia, a Verdade, as Graças bellas Pintão-se nuas: nuas pelos bosques Errão as Ninfas: d’entre as ondas nua Venus saío de encantos rodeada: Seu Filho, qual nasceo, se mostra ainda: E todos nós, dizei, como nascemos? Quando, depois de trabalhosas dores, Nos cingem nossas mãis aos ternos peitos, Tecidas vestes sobre nós encontrão? Não: se o tempo o exigir cubra-se o corpo; Se o tempo o não requer, porque insensatos, Vãos, inuteis incommodos buscâmos? Prazeres me pédis, dou-vos prazeres: A musica suave, a dança, os versos, Dos bons ditos o sal, carreiras, lutas, Tecer grinaldas de campestres flores, Fresco, e murmúrio de favonios, e aguas, Os ternos sons de aligeros cantores, Da natureza o estudo, as graças d’ella, As formosas manhãs, as bellas tardes. Iremos navegar pelo ribeiro N’este mesmo batel; a branca lua Deante nos irá para guiar-nos: Os ventos dormiráõ pelos outeiros: De um, d’outro lado as arvores ao longo Das socegadas margens, docemente Se ouviráõ susurar de quando em quando: O astro da noite ledo e scintillante Se verá na corrente em longa estrada: Echos repetiráõ nossas cantigas: D’entre um canavial a Filomela Se ouvirá gorgeando convidar-nos: Com mil olhos de luz o ceo da noite De ver nossa alegria ha de alegrar-se. Algum campestre Fauno, que aturdindo Com voz immensa a silenciosa margem, Seus amores contar da fonte ás Ninfas, O canto estrugidor alguns momentos Suspenderá, de assombro arrebatado. Se tivermos calor volta-se a proa Sobre uma ilhota de vermelha arêa, E encalhando o batel salta-se ás ondas: N’uma noite encalmada um banho fresco Nos consola, e refaz: ali se julga Acima estar da natureza o homem; Vive em novo elemento, em cujo seio Revestido se crê de essencia nova. Ao brando frio os membros pouco a pouco Se conformão, se affazem, se contentão; Dissipa-se o tremor, e a voz anciada Um momento depois se resserena. Todo o vivo prazer então começa: Ora apraz o nadar contra a corrente, Ora girar nas aguas escondido, Ou c’os olhos na lua ir descançado Em parte occulto, em parte descoberto, De costas, ao som d’agua, escorregando. De quando em quando um toma pé no fundo, Assemelhando o busto de uma estatua De marmore polido, que se eleva Fronteira á lua, e solitaria brilha; Os companheiros de redor o cercão, E com muito clamor sobre elle atirão Co’as plantas, e co’as mãos ondas sobre ondas. Elle grita, elle ri, jura, e promette De os punir, de vingar-se; então se arroja Ás ondas outra vez, e os segue, e os urge, Chove sobre elles desmedidas vagas. C’o festival combate o rio ferve, Perturba-se a corrente, os echos bradão Oh como he doce um banho entre mancebos! Um ri contando uma engraçada história, Outro grita, outro canta, e todos folgão. No fundo desigual talvez se encontre Dormindo alguma Náiade entre as conchas. Sois mortaes? e que importa? humano he Páris, He Páris um pastor, goza entretanto Ternos abraços de immortal Enone, Que deixa por goza-lo a propria fonte, E vem sentar-se entre um rebanho humilde; E ai de vós, se das Ninfas não moverdes Os puros corações para a ternura! Mulheres não as ha nos campos nossos, E vazia de amor a vida he nada. Redobrai a attenção, pois devo agora Fallar em baixa voz, porque receio Que as formosas Mondágides me escutem. O mesmo coração, dezejos, gostos, Que tem nossas mortaes no peito occultos, Tem as Ninfas tambem: de exemplos quantos Se não póde cingir ésta verdade! Sobre as aras de Amor todas off’recem: Os ais do adorador nenhuma offendem, Comprazem-se de ouvir que as chamão bellas, E a gloria prezão de enxugar o pranto, O pranto que ellas sós nos arrancárão. Se nos ouvem crueis, se esquivas fogem, He porque insana lei de atroz costume Lhes ordena o fugir, lhes insinua Que he delito em seu sexo a natureza: Mas contra a natureza em vão combatem De cega educação fataes abúsos! A mãi universal ou cedo ou tarde Vence, triunfa, e no triunfo leva O sexo encantador ja maniatado. Todas oppõe sabida resistencia, Mas cumpre não ceder: por nós combatem Seu mesmo coração e a natureza, Que auxilio inefficaz jamais nos farão. ¿E não sabeis que emquanto desdenhosas De nossos ais parecem offendidas, Quaes se as mordesse venenosa serpe, Tremem, recêão que ao temor cedamos, E frouxa timidez nos furte as armas? Inda que ostentem ríspida esquivança, Agrada-lhes a guerra, e occultos votos Fazem a Amor para ficar vencidas. Implorar-lhes perdão he ultraja-las; Contra ellas ser audaz he ser-lhes caro, He dar-lhes bens, poupando-lhe a vergonha. Mas a regra primeira, a grande, o tudo Entre as regras de amor, he o artificio. He vasta a gradação de sentimentos Da innocencia á ternura. Em cume altivo De alta montanha, cujo aspéto assombra, Tem seu templo a Ternura, onde cercada Das Graças, dos Prazeres, dos Amores, Encanta os corações benigna Venus: He forçoso galgar toda a montanha, Subir de rocha em rocha, e p’rigo em p’rigo Para se entrar no deleitoso alcaçar. Quem pretender poupar um passo ao menos, Quem saltar pretender, perde o ja ganho, Para mais não surgir baquêa em terra. Amor azas não tem, como se pinta; A curtos passos, devagar só anda. Começaremos offertando ás Ninfas Sôbre altares campestres, levantados Das arvores á sombra, ao pé das fontes, Ou nas grutas do fresco, ou sôbre outeiros, Festões, grinaldas, passarinhos, frutos, E capellas de búzios e de conchas, Mais brilhantes, mais bellas do que o Iris. Formaremos cantigas, em que aos echos Dos campos entre a lida repitamos As perfeições, os méritos, os nomes Das Napéas, das Dríades formosas, Hamadríades, Náiades, e quantas Filhas da Natureza a terra habitão, Para formar com dextra occulta e sábia Do rústico o prazer, do vate o encanto. Isto, e a nossa virtude, e a vida nossa Laboriosa, honrada, alegre, e quasi Igual á vida dos campestres Deozes, Disporáõ para nós seu terno peito. Talvez qué pouco a pouco minorado O custo susto de encontrar humanos, Não fujão de mostrar-se a seus cantores. Se eu descançar junto de um cedro antigo, Ou de uma faia, ou reclinar a fronte Sôbre a raiz em parte descoberta De uma oliveira, ou castanheiro antigo, Darei graças á Dríade, que habita No tronco bemfeitor, que me faz sombra; E d’elle a amavel Dríade saindo Virá sentar-se ao lado meu na relva. Depois que pouco e pouco transformado Se houver em confiança o pejo, o susto, Mudaremos de estilo: em nossos versos, E só, e de contínuo a formosura Em fogo nos porá do estro as azas. Hão de sorrir-se e comprazer-se, e muitas Suspenderáõ em seu caminho os passos. He lei sem excéção; domina em todas A sêde, a gloria de chamar-se bellas. Mas bellas tão somente heis de chama-las, Sem falar-lhes de amar: depois de affeitas A ouvir a narração de seus encantos, Dizei-lhes que por certo as rochas mesmas, Os troncos, e o cristal das frias aguas Ardem cativos de bellezas tantas; Que o sol com mais prazer detem seus olhos Nos campos d’ellas, só por ver seus rostos. Se virdes que um sorriso gracioso Vos recompensa o canto, audacia, amigos! Avante um passo, e n’este passo cumpre O segredo buscar. Desde esse instante Não lhes falleis deante das mais Ninfas; Buscai até que os socios vos não oução. Suppõe tu, caro Antíeno, encontrar-te (Esta supposição perdoe Alcippe) N’um bosque solitario, onde vaguêa Quem te faz delirar em novo incendio. Se ella está pensativa, “Oh venturoso O objéto, lhe dirás, em que se occupa Tua imaginação, formosa Ninfa! Se eu o fosse!... ai de mim! porque revolve Loucas esp’ranças, se chorar só devo?” Se a vires sôbre o espelho do cascata Com brancas rosas concertando as tranças, Qual sôbre o teu ribeiro o faz Alcippe, “Feliz rainha das mimosas flores, Feliz rosa, dirás, inda que perdes Ao pé das graças d’ella as graças tuas!” Se pozer sôbre o seio as melindrosas Roxas flores de amor, dirás: “Que inveja! Por ser vós um momento eu dera a vida!” Mas isto em meia voz, para que julgue Que não he por te ouvir que assim fallaste. Não se irritou? prosegue, e de mais perto, “Permitte-me, (dirás com ar ingenuo, Chêo de timidez) permitte, ó Ninfa, Que eu te torne mais bella, e te componha Essas flores, que um pouco se desmandão.” Se ella o permitte, a occasião não percas: Se ella hesita e se cala, não recusa; Compõe-lhe o ornato no formoso seio, E sorrindo, lhe dize: “Alguem no mundo Existe que não ame as proprias obras? E’sta obra, que findei, me agrada tanto!...” N’isto beija-lhe o seio, e deixa as flores. D’aqui avante o mar he ja tranquillo, Propício o vento, e mui vizinho o porto: Ja de piloto o lenho não carece; Quanto offerece amor tudo he ja vosso. Ja vejo sôbre os ceos dos nossos campos Todo o dia brincando em roseo coche Pelas pombas tirada a amavel Cípria: Coroado de louro, ei-la contente Entre palmas, que sombra lhe derramão! Ei-la por toda a parte sacodindo Do misterioso cinto encantos, gostos, Delicias, tudo emfim que obriga a Jove Mudado em branco cisne, ou chuva d’oiro, A trocar pela terra o sacro Olimpo! Desde então mais ditosa he nossa aldêa, Mais risonhos seus bellos arrabaldes: Ha misterios de amor em qualquer gruta, Em qualquer solidão brincão prazeres. Eis os frutos de amor, que desabrochão! Ja os vejo das bellas entre os braços, Qual pequeno botáõ nascido apenas Da rosa ja perfeita ao lado brilha. Ei-las co’o proprio leite a sustenta-los; Taes como descreveo nos magos versos Francilia; Musa de meu patrio rio, A doce amiga sustentando o filho, _Igual a Venus com Amor nos braços._ Eu as vejo, depois de afagos ternos, Soltar de si os cintos azulados, Em dois troncos prender as pontas ambas, Abri-los, deitar dentro entre mil flores, Depois de o ter beijado, o tenro infante, Para ser dos favonios embalado. Eu as vejo nos troncos encostar-se Co’as mãos na face, e os olhos no innocente, Juntando aos sons das aves em seu ninho Ternos cantos, que os filhos adormeção. Ja co’a turba infantil recresce a aldêa: Succedem ao silencio alegres brincos, Gostosos passatempos se preparão, De nossos bens o número se aumenta. Vai crescendo em razão, crescendo em fôrça Ésta prole feliz, que os Cíprios valles Como os Amores, como as Graças, honra. Creados longe do tropel das côrtes, Puros no coração, que ninguem busca Semear de illusões, de prejuizos, Educados na paz, sem ver tiranos, Sem ouvir discorrer pedantes sabios, Té das Sciencias ignorando os nomes, Terão destinos, que excedendo os nossos, Não hajão que invejar os puros dias, Que cegamente se nomêão d’oiro. D’oiro! ai d’elles se o oiro então se visse! Mais nocivo que o ferro, a bemfazeja Terra o sumio nas maternaes entranhas, Sôbre leitos de pallido veneno. Quando o Genio do mal o trouxe ao dia, Chêas de assombro, de tropel correndo, Fugírão co’a Justiça almas Virtudes; E pelas fundas minas, que o guardavão, Surgio do patrio inferno a perseguir-nos Chusma de Vicios, e raivosas Furias, Que os Vicios inspirando, os Vicios punem. Se alguma vez os descendentes nossos, Quando a terra pacificos romperem, Encontraram com oiro, um grito soltem; A aldêa se reuna ardendo em raiva, Qual se dos bosques férvido saisse, Igual ao raio, o bruto d’Erimantho; E o pallido fulgor da massa infesta Vão longe sepultar nos verdes mares. “Monstro contrário a nós, sê devorado Pelo monstro do mar, que em furia vences” Dirão todos em chusma; e socegados Tornaráõ a lavrar seus ferteis campos. Que idea pelo espirito me adeja Chêa de luz, de encantos rodeada! Ja vejo pelos ares scintillando Os fachos de Himeneo. Ja pelas ruas Vestidos de alvo linho, e coroados De fresca mangerona os moços correm, “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” gritando. “Ó Himeneo! Vem Himeneo!” respondem Os campos d’echo em echo; e pelas casas, Chêas de gôsto, e de esperança as virgens “Vem Himeneo, ó Himeneo!” repetem. As ruas de verdura estão juncadas, Listões de flores coroando as portas Enchem os ares de composto cheiro: E os meninos, que as causas não percebem Do confuso prazer, vão transportados Correndo em chusmas, e batendo as palmas, Gritando, “Ó Himeneo!” La desce, e pouza O Nume sôbre o altar da Cípria Deoza! O venturoso par la vai sobindo Por entre a multidão, que attenta o mede. La chega ao sítio destinado aos votos. Sacerdotes não ha: da aldêa os velhos Os cercão de redor. La se abraçárão!... He curto o voto seu. “Juro adorar-te Emquanto o doce amor tiver no peito.” Unindo o seio ao seio, e face á face, Depois se beijaráõ por largo tempo; E o Nume da alliança, o carinhoso Filho de Urania os cingirá dos mirtos, Que de Venus, e Amor as frontes ornão. Depois algum de nós se erga c’roado, Para fallar d’ésta maneira ao povo. “Nasceo Amor para encantar os homens, Não para ser dos corações tirano. Menino ama o brincar, e quer ser livre. Cura o tempo as feridas que elle fórma: Depois de alto clarão, que cega os olhos, Seu facho, pouco e pouco enfraquecendo, Vem por fim a apagar-se: a Natureza, Nada produz que não succumba á morte. Os animaes, as flores, os arbustos Tem curta duração: vai manso, e manso O tempo destruindo altas montanhas, Gasta-se o escolho c’o bater das ondas; Succede a lua ao sol, á noite o dia, Uma estação perece, outra renasce: Tudo he mortal na terra, e mais que tudo As humanas paixões insulta a morte: Succede ao riso o pranto; á dor prazeres; Ao odio amor; ao terno amor a raiva. Eu vi moraes affétos n’um só dia Nascer e terminar, qual nasce e murcha N’um só dia de abril a rubra rosa. Ditoso par! amai-vos extremosos Emquanto a natureza vos consinta, E oxalá que o consinta em largos annos! E oxalá que de vós o que entre os mortos Primeiro descançar, sinta regadas Pelos olhos do sócio as mudas cinzas. Feliz quem n’um só fogo arde constante; Feliz, mas raro como os negros cisnes! E ha loucos, e ha perversos, que ante as aras Jurem guardar uma constancia eterna? Cegos, que a natureza desconhecem, Ou zombão d’ella escarnecendo os votos. Jurão-se amar sem fim, e ou tarde ou cedo, Sem fim, e sem remorsos se detestão! Jurão-se amar sem fim! Mal que resoa Debaixo das abobadas o voto, Calcando o arco aos pés com ar maligno O pobre Amor retira-se chorando D’ésta afronta cruel; pois sua glória, Seu prazer, e seu timbre he ser voluvel. Crepitando em faiscas derradeiras Se apaga o facho, que debalde agita, E emtôrno espalha venenoso fumo, Fumo, que obriga a lágrimas eternas. Entre pios e agouros desgraçados, Ao leito nupcial os acompanha Entre alegre e assustada a meiga Venus. Co’as serpes do cabello desgrenhadas, Mas inda sem silvar, detraz os segue Impaciente a rabida Discordia. De flores se coroa a lauta mesa, Voão-lhe em roda as graças, e o falerno, E riso, e confusão de encantos chêa. Mas ah! cedo os pezares, e os suspiros, A desesperação, e as vãs querellas, E a desordem, e as lágrimas rodêão Os lares do prazer; a scena infausta Não rara vez negro punhal termina, A viuvez, o luto envolve o leito! Mas vós, ditoso par, vós, cujos labios Não proferírão temerario voto, Folgai, vivei, nos braços da ternura, Melindrosa ternura, que não morre Se lhe não lanção vergonhoso jugo. Para amar-vos fieis por largo tempo Sede amaveis, ou sede virtuosos Porque a doce virtude he sempre amavel. Se o fogo se acabar, voltai ao templo, A prender novo objéto em novos laços.” Ouvindo este discurso o povo inteiro O applaude em baixa voz, e á Mãi das Graças Se canta o hino, que remata a festa. O resto d’este dia he dado aos jogos, Gasta-se a noite á roda das fogueiras Em musicas e em danças variadas. Engano-me, ou queixosa a Natureza Escuto suspirar? não, não me engano! Ella suspira, e pede-nos vingança D’outra injustiça, que lhe faz o mundo. Ouvi, e concordai: sabeis que muito Em número nos vence o amavel sexo. Se a Mãi universal não gera um ente, Que não consagre a amor; e a lei sagrada, Que obriga a propagar a propria especie, He lei universal, que abrange a todos, ¿Com que jus, por que horrenda tirania Privadas d’Himeneo suspirão tantas? Não: cada esposo esposas enumere, Té que uma só sem thalamo não fique; Todas d’est’arte viveráõ contentes; A honra de ser mãi pertence a todas: Cresce a aldêa, não brada a Natureza; Infamadas não são as que procurão Os prazeres de amar, de ser amadas: Não se ouvirá que um barbaro veneno Dera a mãi a seu filho inda no ventre; Ou que um férreo punhal, ou laço infame Logo ao nascer lhe terminára os dias: Nem Venus corará vendo offertar-se De ternura venal corsutos mimos. Quão bellos correráõ nossos momentos, Longo, e tão longe dos polidos povos! Quasi Numes na vida encantadora, Até na duração quasi seremos Rivaes do povo habitador do Elisio. O fio d’oiro da existencia nossa Inteiro volveráõ no fuso as Parcas. Com pé tardío a inevitavel Deoza, Que o Mundo despovoa, e bebe o pranto, E acompanha a saudade entre os ciprestes, Sem terror, e sem fouce, e até sorrindo, Sem que a precedão seus fataes ministros, Nos levará de manso e a curtos passos, Coroados do cãs para o sepulcro. Mas, amigos, quem sabe! as Cíprias Ninfas, Se o fado o não tolher, talvez nos mostrem A verde planta, que ao cerúleo reino Deo mais um Nume, transformando a Glauco. Semideozes então, nos tornaremos De nossa aldêa os sacros protétores! Mas não: a lei da morte he lei terrivel, Que rara vez os Numes quebrantárão. He forçoso morrer!... Longe os temores! He forçoso morrer, morra-se embora. Não faltaráõ dulcissimos transportes, Prazeres e ternura ao lance extremo! Sôbre o funereo leito o moribundo, Ja sem côr, ja sem fôrça, e quasi extinta Em seus olhos a luz, e a voz nos labios, Erguendo a fraca dextra acena, e chama Cadaum junto a si; vai despedir-se Para o sono sem fim! Sôbre as heranças Que ha de recommendar se não tem nada? Nada excéto a virtude, e os instrumentos Com que a terra lavrou. Sua cabana Vai ter outro senhor; as flores suas Implorão no jardim desde este instante D’outro cultor a próvida tutella: D’outro, sim; cuja mão todos os dias Irá de madrugada aos sacros manes, Pendurar sôbre o tumulo orvalhado Uma grinalda de orvalhadas flores. Elle abre inda uma vez seus frouxos olhos, Onde começa a derramar-se a noite, E de seus labios tremulos, por onde Ja põe a occulta morte a mão gelada, Sólta chêo de afféto a voz, que expira, E seus amigos, e seus filhos chama: Os seus amigos mudamente o cercão, E não mostrar-lhe as lágrimas procurão: Áluz da tibia alampada contemplão Quanto a hora fatal ja se aproxima. E seus pobres filhinhos entretanto N’um canto da cabana estão sentados; Dos amigos no gesto, e nas maneiras Ler seu destino impacientes buscão, E attonitos, e tristes nem se atrevem A fallar, a fazer qualquer pergunta, Porque os não lancem d’este sítio fóra: Mas olhão-se entre si co’um ar tão meigo, Lastimoso, innocente, que podéra Desfazer de piedade a propria morte, Se o fado não contasse os nossos dias. Seu Pai, que os adorou, quer inda vê-los, Lançar-lhes a sagrada, última benção, Ver seu pranto, gozar dos seus afagos, Quer chama-los. A voz faltou de todo! E deixando caír de lado o rôsto, Soltou da vida o derradeiro arranco. Ao profundo silencio altos clamores Succedem n’um momento; e o pranto, e os gritos Por toda a parte na cabana sôão. Os meninos confusos se levantão, Ouvem a nova, attentão no cadaver: Ouriçado o cabello, o sangue frio, Pallido o rosto, e vacillante o passo, Fogem para o jardim, por onde os segue A imagem de seu Pai, no susto envolta. Qual o vírão ha pouco, o tem comsigo! Dos parreiraes as sombras os perturbão, Vem nos troncos das árvores fantasmas. Vão buscar o luar do rio á borda; Mas lembrão-se que ali todas as noites Passeavão com elle: ésta lembrança Os torna a perseguir; e em tudo encontrão De um Pai tão caro o aspéto, que os assusta, Pela aldêa se espalha a infausta nova, E parece que a morte em cada casa Arvorára um trofeo! Domina em todos A dor, que se desfaz em pranto e gritos! Dir-se-hia que furioso, insuperavel, Hia de této em této um vasto incendio. Depois que um pouco em lúgubres transportes A dor se evaporou, por toda a parte Sôão louvores do chorado amigo. Cadaum lhe encarece uma virtude, E de cada virtude exemplos contão. O Justo dorme em paz: mas entretanto Ninguem dorme na aldêa. Ouvio-se o gallo Cantar, quando expirou da noite em meio: Torna o gallo a cantar na madrugada; E em contínua vigilia discorrêrão As longas horas, que á manhã precedem! Torna o gallo a cantar na madrugada, A aurora quer nascer; enchem-se os ares De uma luz, que ao luar excede um pouco. Do ninho suspendido em nossos tétos A andorinha ja sáe; vôa cantando Defronte agora das janellas nossas Para nos saudar, pois entra o dia. Ja dos ceos pelos flúidos espaços Circula a cotovía, que não cança No longo canto, ou desmedido vôo: Ja o rumor das arvores e fontes, Que da noite na paz costuma ouvir-se, Vai fugindo com as trémulas estrellas; Torna a alegria ao mundo, e ao campo as cores: Mas a alegria d’entre nós he longe, Os campos todos para nós tem luto. Ja se ouvem resoar da aldêa as portas; Ja sáe, ja se reune o povo inteiro. O ar de meditação domina em todos, Todos trazem de pranto rociadas As recentes grinaldas, que tecêrão. Em plantas aromaticas envolto, Do alvergue, ha pouco seu, la vem saindo O deplorado amigo: ao caro pêzo Submettem quatro os hombros vigorosos. Bençãos, bençãos ao Justo, em cujo aspéto Por entre a pallidez inda ressumbrão Mansa innocencia, affétos generosos! A lenta marcha á turba consternada Rompem com baixo tom sonoras flautas, Que de triste alverôço o peito agitão. Apôz ellas, o funebre cadaver Dos Anciãos vai precedendo á chusma. Estes, fronte inclinada, olhos em terra, Vão suspirando, e a vista lacrimosa Lanção de quando em quando ao doce amigo, Que os precedeo na regiáõ da morte. Em seguida, modestos se confundem Os mancebos, de teixo coroados, Co’as bellas raparigas, que parecem Mais formosas co’a languida tristeza: Elles cantão em côro aos longos echos O como a quanto existe abrange a morte; Ellas em tom mais doce a voz levantão, Para mostrar como a existencia curta De prazeres doirar-se ao menos deve. Vão depois os meninos innocentes De ambos os sexos em confuso bando: Levão em suas mãos para o sepulcro Pequenas oblações; pomos, e flores, Taças de leite e mel, de vinho e d’agua Tomada em fonte viva antes da aurora, E de barro thuribulos não grandes. Ja se chega ao lugar sagrado á morte: He um valle sombrio, onde se abração Mil arvores diversas, onde habitão Meigas filhas do ceo, canoras aves: Reveste fresca relva a terra fria, Pallido musgo os carcomidos troncos. Aqui frescos favonios adejando Pelas folhudas grimpas, docemente Só se ouvem suspirar: aqui mais terna Derrama a aurora o pranto matutino; Mais terna geme e rôla; e mais delirios Na alma gera o luar por estes campos. He fechado o lugar de mil rochedos, Por onde algumas fontes se derivão Com tacito rumor, que inspira os sonos: Pelas profundas, tenebrosas grutas, E sôbre os agudissimos rochedos Crê-se ver e escutar sagrados manes, Em frouxa voz, que as auras assemelha, Cantando os gostos da passada vida. La não geme a coruja, ou pia o mocho: Reina em vez do terror branda saudade, Terna melancolia, encanto, enlêvo Dos corações, das almas bem nascidas. Que estrondo he este pelo chão de morte? São as férreas enchadas, que se alternão Para formar do eterno sono o leito. Agora cresce a dor na despedida. La chega, la se arroja, la se esconde Da Mãi universal no seio um filho! “Paz ao homem de bem!” dizem de roda Os velhos, e retirão-se chorando. “Leve te seja a terra!” os moços gritão, E partem derramando-lhe folhagem. Chega a turba infantil, seus dons off’rece, E vai juntar-se á multidão, que torna Aos trabalhos de novo á sua aldêa. Mas ah! qual d’entre nós terá primeiro, Caros amigos, de fechar seus dias? Quaes choraráõ no tumulo silvestre! Talvez eu vos preceda, e vá saudoso Ver na Tenárea porta o Cão trifauce, Na Estige nebulosa a barca horrenda, E do Elisio paiz os gratos campos, La onde os vates do universo inteiro, Ja Numes, em republica se unírão. Mas não pensemos n’isto: he Maio agora Que devemos cantar: nós o jurámos. Recomponde na fronte as vossas c’roas; Ergamo-nos, enchei de vinho as taças; E ante o Ceo, ante a Lua, que nos ouve, Entre os Favonios, e as formosas Ninfas, Que escondidas nas ondas nos rodêão, Saudemos novamente o alegre Maio, Jurando que desde hoje em nossas liras Ha de escutar cada anno os seus louvores. Ó Maio, eu fallo; escuta-me. “Por este Licor de Bassareo, que me arrebata; Pelos Filhos gentís da branca Leda, Que pela mão a nós te conduzírão; Por tuas flores, com que estou soberbo; Por tuas fontes, zéfiros e bosques; Por teu ceo graciosa; e por ti mesmo; E pela tua amiga, a minha Musa, Juro de consagrar emquanto viva, Todo o teu mez ao teu louvor, e ás festas.” FIM DA FESTA DE MAIO. NOTAS Á FESTA DE MAIO. CANTO I. _Pag. 204. verso 4.º_ Das Filhas de Nereo a mais formosa Foi Galatéa candida e rosada. Como das bagatelas que forçadamente tenho semeado por alguns d’esses Jornaes, que he o mesmo que escrever em folhas e atira-las ao ar, algumas haja que não mereção de todo perder-se, estas me pareceo i-las recolhendo a meus livros, por qualquer modo que fossem achando cabida, para não ser como a Sibilla de Cumas, que em uma vez se lhe desmandando com os ventos as folhas que tinha escritas, ja para sempre tirava d’ellas o sentido: _neo ponere in ordine curat_. Por isso traslado do Num. 3 do _Jornal dos Amigos das Letras_, todo o seguinte Artigo[15]. _Antonii Feliciani de Castilho_, GALATEA: CARMEN. ADVERTENCIA PRELIMINAR O fragmento latino que se vos offerece, sob o titulo de Galatea, he huma tentativa e nada mais: e quem mo quisesse haver a ostentação, não só mostrára quam pouco me conhece, mas ainda com atrocissima injúria me aggravaria. Discorridos são hoje mais de dez annos, depois que, desejoso de refrescar lembranças de conhecido com as Romanas Musas companheiras e alegria de minha infancia, me dei ao passatempo de metrificar em latim, ja os pensamentos que primeiros me occorrião, ja algum episodio de minhas proprias obrinhas; sendo assim, que esta fabula de Galatea a trasladei do Poema da _Festa de Maio_, no meu livro da _Primavera_. Sei bem que não ha hoje, e especialmente por cá, leitores para o latim, sendo a final chegado o prazo de, com razão e sem o mínimo escrupulo, se poder chamar tal lingua morta e enterrada: sei mais que, inda mal, não respondem estes meus versos ao que eu anciára que elles fossem, e nem valem mais que uma boa parte dos ahi impressos na custosa Coléção de Poetas do nosso Padre Reis; e com tudo, a despeito d’estas duas tão fortes razões, e tão valentes para me deverem dissuadir, convim em que tão pobre couza se désse á estampa. Será, segundo muitas vezes se escreve em Prologos, para incitar engenhos a fazerem melhor? não. Pois será, como tambem em Prologos se usa de escrever, para que os Aristarchos me ensinem o que, o como, e o por onde devo corrigir e melhorar? menos; que não sei eu de um só que se hoje occupe com semelhantes vaidades. Como por tanto me livrarei da desmerecida taxa de presunçoso? confessando, como tambem em Prologos se costuma, mas d’esta vez com verdade, que o faço por obedecer a dezejos de pessoa, com quem muito me importa estar em tudo bem. GALATEA _Carmen, ex Lusitano Latine redditum._ Assiduis, juvenes, proscindite flumina remis, Dum vacat et picto lœtos juvat ire phaselo; Intereaque meo vestrum fallente laborem Carmine, Romanas percurram pollice chordas. Nereidas inter quondam pulcherrima Nymphas Nympha fuit Galatea maris: cui lilia mixtis Ore rosis, flavæque comæ, roseique labelli, Cæruleoque oculi placido fulgore micantes, Et sinus albenti in scopulis albentior unda, Qualem nec Paphiis habuit quæ regnat in arvis. Tertia postdecimam vernantia tempora brumam Floruerant, postquam vitali vescitur aura Nympha; nec in terris, aut cœlo, aut æquore toto Est quæ formosis ausit contendere formis. Multi illam juvenes, multi petiere deorum, Undique blanditiis et laudibus insidiantes, Nulli illi juvenes, nulli placuere deorum. Hanc pater undisono sub gurgite in antra vocavit, Amplexumque dedit, tremulisque sedere coegit In genibus, tales fundens post oscula voces: “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos. “Non te pulchra latet, qua subjicis omnia, forma; “Tene latet quantis fugiendi viribus, instant “Qui toties, laudesque ferunt, gressusque sequuntur? “Crede patris canis et amori crede paterno; “Quò plus obsequiis, quò plus sermone placebunt “(Parce seni juvenem patri non grata monenti) “Hóc magis incautæ protendent retia formæ. “Filia, tempus adest pueriles linquere ludos: “Sit tibi cura meos posthac delphinas in undis “Pascere, perque salum deformes ducere phocas; “Non bene pigra tuis ignavia convenit annis.” Dixit: et e patrio discerpta coralia ponto, Cuspide inaurata, pastoria munera, virgam Tradidit, atque pecus natæ commisit habendum. Est virides inter, Nereus quibus imperat, undas Valle locus tuta, nec divo pervius ulli, “Hic maneas, dixit, te sæpe deinde revisam.” Arrisit, natamque pater sine teste reliquit. Haud semel ignifero radiarant lumine currus, Phæbe tui, dum lœta pecus Galatea marinum, Gurgitis inter opes, viridanti paverat alga. Interdum æquoreis linquens armenta molossis Ibat, et in calathos modo tinctas murice conchas, Et modo lucentes baccas contenta legebat. Ver erat, et pictos zephyris mulcentibus agros, Mense renidebat tellus lætissima Majo; Aureus in liquidæ Sol brachia Thetidos ibat. Deserere ima maris, solum conscendere littus Ausa fuit virgo, non sic reditura sub undas. Summa petens scopuli viridi sub rupe recessit, Unde fretum, terrasque lubens circumspicit omnes. Hic sedet, et pascens animos novitate locorum, Miratur, facilesque oculos fert omnia circum. Ut mediis vidit formosum fluctibus Acin Æquora jactatis tranantem cana lacertis, Versibus abstinuit, versus nam forte canebat; Erubuit, turbata silet, suspiria ducit; Nunc subeunt jussus, subeunt hortamina patris; Jam cupiat tutis fugiendo immergier undis, Nec potis est cupiens, et littore perdita inhæret: Nunc libet et tacito cautæ latuisse sub antro, Donec arenoso mutarit littore fluctus Discedensque puer securam liquerit oram; Pænitet inde fugæ, sistit, mavultque videri. Corpora, cæruleas inter candentia lymphas, Quam numeris perfecta suis! quam fortia pulsis Devectantur aquis! quam multa est gratia nanti! Quam bene suffuso sua membra liquore teguntur, Quam bene disperso nudantur eburnea ponto! Cuncta tenent oculos, in cunctis Nympha moratur. Interdum propius sensim vestigia ponit, Nec propiora tamen fieri vestigia sentit. Queisque prins sparsis volitaverat aura capillis, Nescia cur fingat, vel collo dividat apte, Dividit illa tamen, studioque indulget inani. Hinc littus petit, ac vultus speculatur in unda, Et quanquam ipsa sibi pulcherruma tota videtur, Pulchrior exoptat fieri, frustraque laborat. Interea juvenis, jam fessus nasse, redibat, Et prope jam fulvas manibus tangebat arenas: Illa fugit, trepidatque, et rupe reconditur ima. Hic latet, et votis contraria vota rependens, Nunc patris hortatus, et nunc reminiscitur Acin, Et rubet, et pallet, nec vultibus hæret in isdem. Haud mora: nudus adest, antrumque Simethius intrat Acis, ut abjectas repetat sub tegmine vestes. Quid remi cecidere, quid ó cessatis amici? Nonne retro refugisse ratem, dumque ora tenetis, Aversam in portus sentitis abire relictos? Instaurate opus, ac totis incumbite remis: Quó pœnas detis, dictis nihil amplius addam. CANTO II. _Pag. 237. versos 15 e 16._ E que? algum de nós contra o que vive A questão, se sim ou não se ha de o homem alimentar de substancias animaes, tem sido muitas vezes, e com oppostas sentenças, debatida por filosofos, poetas, naturalistas e medicos. A affirmação e a negação achárão para argumentos ja uso e consenso de povos em todos os tempos, ja razões intrinsecas tiradas de nossa propria conveniencia. He assunto que requeria larga escritura, e em que a qualquer seria facil dissertar eruditamente. Voar-lhe-hei pelas summidades. Aquella vaga tradição, que em toda a parte permanece, de uma primitiva idade do mundo innocente e felicissima, entre as couzas de que reza, aponta sempre o não se comer de animal algum, senão só de frutas, hervas, leite e mel. De outro modo se não podião sustentar, conforme parece pelo ancianíssimo Genesis, os moradores do Paraizo, não só homens, porem todos os viventes. Quadrava o preceito e toava o uso pelo menos á humana natureza, que ainda agora, se a bem espreitarmos na infancia, ou antes de alterada por contrarios habitos, se afflige e revolve com o aspéto do sangue e morte. Verdade he, que depois da queda de nossos primeiros pais, nem o Testamento velho nem o novo, tornão a prohibir as carnes; mas toques da mesma nativa compaixão para com os animaes não lhes faltão, dos quaes pelo menos se deduz por bom discurso, que se os tivermos de comer, ainda ahi nos devemos haver com a possivel mansidão, poupando cruezas escuzadas, como são, e se costuma, atormenta-los na agonia por lhes refinar o sabor, caçar, montear e pescar por passatempo e pelo mero gôsto de malfazer. Lê-se nos Proverbios, segundo as versão dos Setenta: _Justus miseretur animas jumentorum suorum; viscera autem impiorum crudelia._—O que justo fôr ha de se apiedar da condição dos seus brutos; mas as entranhas dos impios não se apiedão da nenhuma couza.—No Exodo: _Non coques hædum in lacte matris suæ._—Não cozas o cabrito no leite de sua mãi.—He dito para ser ruminado, pelo mimoso do afféto que recende. No Deuteronomio: _Si ambulans per viam, in arbore vel in terra nidum avis inveneris, et matrem pullis vel ovis desuper incubantem, non tenebis eam cum filiis sed abire palicris, ut bene sit tibi, et longo vivas tempore._—Se o acaso te deparar no caminho, quer em arvore quer no chão, um ninho de ave, e a mãi estiver a agazalhar os filhos ou os ovos, não a tomes com os filhos, senão que em boa hora a deixes ir, para que boa estrêa te venha, e vivas largos annos.— Entre os Santos Padres, que são os depositarios e dispenseiros do espirito christão, alguma couza se podéra citar que autorizasse este genero de piedade. Sabida he a de que usou S. Anselmo, uma vez para com uma lebre, outra para com um passarinho. Tertulliano se maravilha de que entre christãos, os haja que se accommodem a ser carniceiros: _nescio an dolendum an erubescendumn sit_;—não sei, diz elle, se mais he para se haver lástima, se vergonha. S. João Chrisosthomo escreva, que se não podia ser santo sem uma estremada suavidade de affétos, e muita vehemencia de bem querer, não só aos nossos, mas ainda aos estranhos, em tanta maneira que até aos brutos animaes abranja essa mansidão. (_Homil. 29. na Epist. ad Rom._) E dizia bem, que nas vidas de não poucos santos resplandecem as provas. S. Francisco de Assiz resgatava os cordeiros que hião para o córte, pagava e soltava as redadas dos peixes e os viveiros das aves. Mas não apontemos mais, por não enjoar filosofos, digo filosofos de nossa terra, dos que nos assoalhão filosofia de torna viagem, porque os lá de fóra ja deixarão muito para traz a impiedade. Não he porem necessario ser christão, senão que basta ser homem, para repartir com os brutos do thesouro da charidade, de que muitos d’elles usão a seu modo, não só para com os seus, mas para comnosco. Sendo assim que onde os não maltratão, são elles de indole muito mais benigna: em Inglaterra, segundo se diz, nem ha cão que ladre, nem besta que escoucinhe: em não sei que ilha dezerta, acharão os primeiros descobridores, em aportando, (segundo encontrei na Escolha de Viagens por John Adams) serem tão cortezes as aves de que toda era chêa, que não fogião dos novos hospedes, antes os festejavão e se deixavão pôr a mão; semelhantemente ao que da ilha das Garças aponta João de Barros _Dec. 1 Liv. 1 Cap. 7_, aonde “como não erão traquejadas de gente (as garças e outras aves), ás mãos tomarão (os marinheiros de Nuno Tristão) tanta quantidade d’ellas, que ficou por refresco ao navio.” Dos leões he corrente entre os naturalistas não perseguirem, mas esquivarem-se dos perseguidores, embrenhando-se cada vez mais pelos seus sertões adentro, sendo alias mui leves de domesticar, e folgando de acompanhar, como rafeiros innocentes, a trôco de qualquer esmola de pão, por largo espaço de leguas. Muitas são em toda a parte, mormente em Africa, as serpentes, que namoradas do bom gazalhado, trocão seus matos pelas pouzadas humanas, e n’ellas se hão como boas comadres da familia. O cavallo do Arabe he o contubernal e primeiro amigo de seu dono: um bom Arabe na morte do seu cavallo deveria de se expressar pouco mais ou menos como Millevoye o suppoem na Elegia. Muitos prezos tem logrado domesticar aranhas e ratos, até o ponto de, no meio das asperezas de um segredo, se poderem esquecer por muitas horas do seu desamparo, crueldades e injustiças humanas. No páteo da rezidencia parochial de S. Mamede da Castanheira do Vouga, todos os dias a horas certas viamos acudir ao almoço e cêa que ás nossas pombas desparriamos, todos os passarinhos da vizinhança, que ja traziamos tão correntes, que nos vinhão comer aos pés, por saberem (porque os brutinhos sabem muito mais do que nós outros cuidâmos) que n’aquella cazinha da solidão moravão amigos seus, e nunca terem ouvido tiro, nem enxergado rede no pequeno arredor do templo e passaes solitarios.[16] Se a tudo isto e a muitos outros exemplos se lançar conta, alguma verdade se achará no affirmarem poetas, que no discaír da idade de oiro, ao mesmo tempo que se os homens corromperão degenerando em crueis, se forão as feras tornando bravias e desabridas. Em todos os tempos, e até por fóra e mui longe d’esta religião charidosa, houve quem bem entendesse como entes nossos conterraneos n’este orbe, irmãos nossos em viver, sentir, padecer e acabar, com sangue e coração como nós, com amor, prazeres e filhos como nós, bebendo como nós no immenso vaso do pai commum o mesmo ar, a mesma luz, as mesmas aguas, e comendo comnosco á mesma mesa do universal banquete, poderião quando muito servir-nos de pasto; mas fóra d’ahi, qualquer injúria que se lhes accrescentasse, seria hortorosa profanação e violação da natureza. Plutarcho e Quintiliano referem, que os Athenienses castigarão severamente algumas sevicias commettidas contra animaes. O Alcorão espalhou por todos os povos, que largamente senhorea, muita d’esta benignidade: raro Mahometano deixará de matar a fome ao cão de seu inimigo. Na China passa esta beneficencia muito adeante. Que no-lo diga em seu estilo chão o nosso Fernão Mendes, ou talvez o Jesuita que em seu nome, e por um modo tão rijo de crer, compilou tantas e tão preciosas noticias do Oriente, mui desacreditadas em tempo, ja hoje em parte mui abonadas de verdadeiras. Padre ou marinheiro, diz assim: (falla de uma feira que no rio de Batampina, em caminho de Nanquim para Pequim, se faz com mais da duas mil ruas de barcaças, nas quaes ha para vender tudo a que no mundo se pode pôr nome.) “Ha tambem outras embarcações em que os homens trazem grande soma de gayolas com passarinhos viuos e tangendo com instrumentos musicos dizem em voz alta á gente que os ouve, que libertem aquelles cativos que são criaturas de Deos, a que muita gente acede a lhes dar esmola com que resgata daquelles cativos os que cada um quer e os lança logo a avoar, e toda a gente dando hũa grande grita lhe diz, _pichau pitanel catão vocaxi_, que quer dizer, _dize lá a Deos como cá o servimos_. Ha outros homens que noutras embarcações trazem grandes panellas cheyas de agoa, em que trazem muitos peixinhos viuos que tomão nos rios nũas redes de malha muyto miudas, tambem pela mesma maneira vem bradando que libertem aquelles cativos por seruiço de Deos que são innocentes que nunca peccarão, a que tambem a gente dando sua esmola, comprão daquelles peixinhos os que querem e os tornão logo a lançar no rio, dizendo, _vayte embora, e lá dize de mym este bem que te fiz por seruiço de Deos_. E estas embarcações em que estas cousas se trazem a vender não se hão de contar por menos soma que de cento e duzentas para cima.” Na India são n’esta virtude extremosissimos. Alguns viajantes tanto encarecem a couza, que chegão a affirmar haverem por lá, ainda no seculo passado, hospitaes para as mais asquerosas sevandijas, como piolhos, pulgas e persovejos. Pôsto que tudo quanto até aqui tenho trazido, possa parecer uma diversão do principal propozito, não o he, por quanto d’estes misericordiosos affétos he que se tem em parte derivado a abstinencia de carnes, observada por muitas pessoas, communidades, seitas e povos: em parte digo, porque em outros diversos fundamentos tem tambem estribado, como veremos. E pois que a ultima que tocámos foi a India, a ella tornemos, levando por explorador e lingua, não algum estrangeiro, de que outros se contentão mais, mas um patricio nosso, dos varios que para tal officio se podérão tomar: he Duarte Barbosa, e diz: “Ha neste regno (de Guzarate) outra sorte de Gentios, que chamaom Bramanes, estes nom comem carne, nem pescado, nem nenhũa cousa que mora, nem mataom, nem menos querem uer matar, por asy lho defender sua idolatria; e guardaom isto em tamanho estremo que he cousa espantosa, porque muytas uezes acontece leuarem-lhe hos Mouros bichos, e pasarinhos uiuos, e fazerem que hos querem matar perante eles, e estes Bramanes lhos compraom e resgataom, dando-lhe por eles muyto mais do que ualem, por lhe saluarem has uidas, e soltalos. Se tambem El Rey, ou ho gouernador da tera, tem algũu homem, porculpas que cometese, julgado ha morte; ajuntamse eles, e compramno ha justiça, se lho quer uender, pera que nom mora; e tambem algũus Mouros pedintes, quando querem auer esmola destes, tomaom muy grandes pedras, e daom com elas emsima dos ombros e barigas, como que se querem matar perante eles, e porque ho nom façaom, lhe daom muytas esmolas, e que se uaom em pas; outros trazem faquas, e daom-se cõelas cutiladas pelos braços e pernas, e pera se nom matarem lhes daom muytas esmolas; outros lhe uem has portas ha querer lhe degolar ratos e cobras, ha hos quaes eles daom muyto dinheiro por ho nom fazerem, e desta maneira saom dos Mouros muy apreciados: estes Bramanes se achaom no caminho algũu golpe de formiguas, aredam-se buscando por honde pasem sem bas pisarem. E em suas casas de dia çeaom; de dia nem de noyte acendem candea, per caso de algũs mosquitos nom irem morer no lume da candea; e se todauia tem grande necesidade de acenderem de noyte, tem hũa alenterna de papel ou de pano agomado, pera cousa nenhũa uiua poder ir morer dentro no fogo; se estes criaom muytos piolhos, nom hos mataom, e quando hos muyto aqueixaom mandaom chamar hũs homeins que antre eles uiuem, que tambem saom gentios, e eles hos haom por de santa uida, e saom come irmytães, uiuendo em muyta abstinença por reuerencia dos seus Deoses; estes hos cataom, e quantos piolhos lhe tiraom poemnos em suas cabeças, e hos criaom com suas carnes, em que dizem fazerem muy grande seruiço ha seu Idolo, e asy guardaom hũus e outros com muyta temperança ha ley de nom matarem: estes Gentios saom muy delicados e temperados em seu comer; seus manjares saom leites, manteiga, açuquar, e aros, e muytas conseruas de diuersas maneiras; seruem-se muyto de cousas de fruyta e ortaliça, e deruas de campo pera seus manjares; honde quer que uiuem tem muytas ortas e pomares.” Na _Historia de Mysore_, lê-se que em Bengala, quando a violencia da fome a devastou em 1774, consumindo-lhe obra de trez milhões d’almas, forão em muito grande numero os Indios que antes quizerão deixar-se morrer á mingoa, do que acabar comsigo comer carne de animaes. Frequente e antigo he na India este antojo, e tão notorio, que não ha porque afogar o discurso com mais exemplos. Bem podia proceder isso em parte da vegetavel abundancia e espantosa cultura d’aquellas terras, e de alguma especial compleição do clima, ou natureza ou costumes dos moradores, ou algumas outras circunstancias, segundo as quaes os corpos se dessem melhor com os pastos leves e frugaes: viria depois a religião consagrar por dogmas seus os conselhos da higiene, como com vinho, toucinho e abluções aconteceo em muito oriente á conta da lepra: para melhor incutir o preceito, cerca-lo-hia de fabulas amigas da imaginação do vulgo, como a encarnação dos Deozes em corpos de brutos, e a transmigração das almas humanas por differentes sortes de viventes até parar na vacca; materias estas de que as historias e perigrinações fazem larga menção. Dos Indios podérão tomar por mão a crença os Egipcios, os quaes, sendo moradores de solo não menos liberal, devião tambem perdoar grandemente aos animaes, em quem reverenciavão suas Divindades, ou santuarios ambulantes que d’ellas forão: e confirma-me na suspeita a conveniencia, que ja de alguem deverá ter sido notada, do boi Apis do Egito com a vacca ainda hoje sagrada dos Indios. Do Egito provavelmente trouxe Pithagoras para a Italia, em tempos de Numa ou Servio Tullio, a sua metempsícosa com a defensão do uso das carnes. Não pegou a invenção, se não foi em alguns escolares fanaticos de tamanho mestre; e nem filosofos pelo tempo adeante a sustentarão, nem poetas se valerão d’ella, afóra Ovidio nas metamorfoses, e só como narrador; e mais não deixava de ser fecunda e bem assombrada crença para poesias. Não pegou, porque não vinha propria á indole do solo ou ao temperamento dos Italos, ou, o que he mais certo, porque encontrava os antiquissimos usos de umas gentes, que primeiro tinhão sido pastoras e depois guerreiras. Na Ilha da Palma, acharão os nossos, quando descobrião, conquistavão e amansavão aquelle archipelago, (senhorio traspassado depois em Castella, mas padrão glorioso do nosso Infante D. Henrique) serem mantimento dos moradores hervas, leite e mel.—Com este particular exemplo me acóde a memoria, mas alguns outros semelhantes de outras ilhas me parece ter achado pelas historias, de que me não ficou nem fiz a lembrança preciza. Com a propagação da fé christã renasceo religiosa a abstinencia na Europa, por motivo não de brandura, mas de mortificação. Apparecerão Ordens numerosas de religiosos, primeiro só de homens, logo tambem de mulheres, que renunciando todos os carnaes deleites para melhor apurarem os do espirito, tomando o exemplo dos primitivos eremitas que se abastavão com as hervas, raizes, frutas silvestres, e aguas dos montes, não só cortarão pelas demazias na quantidade do sustento, não só o estreitarão com regra de jejuns, mas em varios de seus institutos o expurgarão de todo animal terrestre ou volatil, não consentindo, quando muito, senão em algum marisco secco e fraco, para regalo das festas. E he para notar como ainda os mais rígidos observantes logravão saude inteira e robusta, e chegavão ao ultimo fio da velhice: _mens sana in corpore sano_. Annos ha que me recordo de ter achado em uma Gazeta de Lisboa, estar-se creando em Manchester uma seita, que por filosofica defendia tomar qualquer sustento animal. Era noticia de Gazeta, não affirmarei que tivesse pé, e se o teve, não sei em que parou. Ja que estamos com Inglezes, fallemos de Franklin. Este homem, a quem a probidade e o juizo fizerão filosofo e liberal, e não a devassidão e o estouvamento, tendo lido, di-lo elle, o livro em que Tryon recommenda a dieta vegetal, determinou-se em a observar. Pô-lo por obra, e limitando-se em arroz e batatas, e ás vezes ainda em menos, como passas, bolaxa ou pão, com uma gota de agua, não só forrou do seu salario (era ainda então compositor de imprensa) com que poder comprar livros, mas do seu tempo acerescentou para estudos o que as refeições e digestões lhe podérão consumir: fez progressos proporcionados á clareza de ideas e fortaleza de percepção, que são o fruto da temperança no comer e beber. Seguio constante por algum tempo, não pouco, até que chega á ilha de Block, assiste a uma pesca, revolvem-se-lhe nas entranhas as maximas do seu Tryon, dá por genero de assassinio aquelle matar viventes, que nem tinhão feito nem erão capazes de fazer o mínimo mal. Poem-se os mortos ao lume, recende o guizado; o filosofo no seu tempo gostára apaixonadamente de peixe; entra pelo nariz a tentação, estremece a filosofia, e em boa hora lhe acode com uma bulla de composição, lembrando-lhe como ao abrir e limpar d’aquelles peixes, lhes víra dentro do buxo outros peixinhos mais pequenos. “Pois que he isto, diz elle entre si, se vós uns a outros vos comeis, porque não hei de eu tambem comer-vos a vós?” N’essa hora e com esta palavra se lhe quebrou o fadario; o que muito bem prova, acrescenta o bom homem, sermos nós _animaes racionaes_, sabendo, como sabemos, achar pretextos plausiveis para quanto nos póde dar gôsto. Outro autor muito afamado de nossos dias, Raynal, era igualmente sobrio. A Senhora Marqueza d’Alorna, que muitas vezes o teve a jantar, me contou, que nunca o víra comer mais que algumas poucas hervas e fruta, nem beber senão agua. Era, observava ella, como um conviva das Ninfas, custando a crer como com aquellas refeições de idillio se podessem sustentar tantos nervos d’alma e de pensamento. Se depois de autores de livros se póde citar quem não sabe ler, em Grada, lugarejo da Bairrada, vivia um moço que eu conheci, o qual nunca provára vacca. Perguntado a causa, não era religião, nem filosofia, nem tedio natural, mas effeito de um vehementissimo e entranhado amor que tinha aos bois, com quem se creára, com quem vivia, lavrava, e dormia paredes meias. Rústico era, e sem o cuidar discorria e fallava como o Sabio de Cheronea, quando dizia, que por tudo quanto o mundo tinha, não venderia nunca o boi que em seu serviço envelhecêra. Afóra os monges, filosofos e amigos dos bois, ha ainda uma grande quantia de homens, puro comedores de vegetaes em quasi todo o anno: são os moradores das serras e aldêas pobres, a quem a estreiteza de sua fortuna mal dá licença para chegarem á carne por entrudo e paschoa, e poucas mais vezes e só escassissimamente, ao pescado, vizita mui rara em terras mesquinhas do sertão. De choupanas sei eu, e quasi de inteiros lugares, pelas abas da Serra do Caramulo, onde oito annos vivi, que de pouco mais se sustentão que do pão de centeio e milho, batatas e alguns legumes: e estes asperissimos banquetes, em que até pelo demais fallece o agro vinho verde de seus montes, trazem-os comtudo mais rijos e sãos no trabalho, do que as grandes ucharias aos mimosos das cidades. Acabarei estes exemplos com o que melhor conheço, que he o meu. Quando eu compuz estes versos da _Festa de Maio_, era como ja no Ante-Prologo disse, todo Gessnérico: trazia a alma toda a nadar no coração empapado com os mais brandos affétos do mundo, como rosa a boiar em vaso de leite: amava as plantas e tratava com ellas como com entes sensitivos; todos os entes sensitivos amava-os como amigos e companheiros: tinha fantasia pronta, que muito ajuda em todo o genero de bem querer; esta me revelava de contínuo e me ataviava de suas fabulas e côres a particular vida e cheíssimo mundo de cada inséto; e porque esse seu mundo e vida dizia tanto com o meu, e o commum de seus substanciaes interesses com o commum dos substanciaes interesses dos homens, acontecia que imaginando-me ora grilo, ora passaro, ora borboleta, tinha aprendido uma perfeita, e se dizè-lo posso, egoista charidade para com todos elles. Ouvi debater a questão do uso das carnes: as razões affirmativas podião ter mais fôrça, mas as negativas dizião com o meu gôsto; he meia persuasão; caírão-me tão bem, que logo me dei, se não por convencido, por persuadido: e como persuadido e convencido escrevi os versos, que por isso aos indifferentes se de contrária sentença, devem parecer, como em verdade são, sobejos, exagerados e declamatorios. Era o escrito fruto de minha opinião; mas esta, como accontece, se roborou por elle, e até tal ponto se confirmou, que do que até alí não passára de poetica theoria, instituí fazer prática minha em toda a vida, renunciando qualquer genero de alimento animal. Por duas vias se fazia de mal o tenta-lo, ja porque em couza tão excetuada do geral não deixarias de caír estranhezas e zombarias, ja porque tanta sobriedade entre quem a não usava, era genero de martirio continuamente renovado. Mas contra estes dois contrastes prevalecião outros dois argumentos: primeiro, minha consciencia, que repugnava banquetes de sangue: segundo, o presuposto em que estava, de que as faculdades da alma se havião de adelgaçar e crescer onde o corpo fosse favorecido da parcimonia. Metti-me Pithagorico aos vinte e trez d’Agosto do anno de 1822, tendo sido gastos os mezes, que desde a feitura do poema decorrerão até esse, em acabar de me resolver e aparelhar para tão grande façanha; e permaneci na observancia do voto até vinte e trez d’Agosto do seguinte anno. Acabei o noviciado, e em lugar de professar, despedi-me. Tive minhas razões; e ainda que pouco se me havia de dar agora do que se podesse dizer ácerca de um indivíduo, que n’esse tempo tinha o nome que eu hoje tenho, e do qual, segundo as theorias dos medicos, não conservo hoje uma só particula, sendo eu um, vivo e junto; elle outro, morto e disperso por todo esse mundo: todavia, porque ainda temos commum um leve som, que he o nome, quero lançar pontualmente na balança do juizo dos meus leitores os seus porques; e bons ou máos, forão estes.—Primeiro: que a abstinencia de uma só pessoa não poupava uma unica existencia de animal. Segundo: que era presunção ridicula o desquitar-se um sujeito, por alguns argumentos, de uma opinião e uso quasi universal, sendo assim que todos os homens, guerreando-se entre si por crenças religiosas, por sisthemas filosoficos, por principios de política e sciencias, por modas e gostos, todos se conformavão no comer das carnes. Terceiro: que realmente era obstinação o desconhecer como a natureza nos não aparelhára só para comer e digerir vegetaes. Quarto: estar-nos ella dando nos proprios animaes, que uns de outros se sustentão, uma prova de ser menos escrupulosa do que Pithagoras e a poesia. Quinto: que ella propria os multiplica á proporção do que uns a outros devem tragar. Sexto: que se ella faz com que cada passada, cada pedra que movemos, cada gota de agua que engolimos, cada fruto ou folha que aproveitamos, cada sôpro que inspiramos ou expiramos, cada movimento emfim que fazemos, ainda dos mais indispensaveis para a vida, a destrua a milhões e milhões de entes conhecidos, e a numero talvez ainda maior de desconhecidos, não ha porque nos tenha a grande peccado, o aumentar-mos por nosso bem a lista com mais algumas unidades. Setimo: que o adelgaçamento e crescimento de minhas faculdades intelletuaes que eu esperára d’aquella mais leve nutrição, não só se não tinha verificado, mas antes o contrário succedêra, pôsto que de diversas causas podésse pender o successo: e por muito tempo me ficou o costume de, quando via versos fracos e desengraçados, dizer: Devião estes de ser compostos por quem não comia senão hervas. Outavo, ultimo, e não leve motivo: que ainda que pouco dado ás delicias da gula, o cheiro e presença de melhores iguarias do que as minhas, de dia em dia me tentava mais, e quando succedia achar-me entre gente alegre e em mesa de festa, as ondas de tentação, que eu forcejava dissimular o melhor que podia, crescião e redobravão com os motejos dos circunstantes, que bem poderião ter sal, mas não que adubasse as minhas insôssas hervas. De todos os varios antecedentes deduzo, que sem embargo das objeções, autoridades e exemplos, o uso das carnes se ha de ter por licito, e por dithirambico o que lá fica no texto: mas que fóra do caso de necessidade ou clara utilidade, e alem do ponto em que essa necessidade ou utilidade pararem, toda a sevicia contra viventes he immoral, injusta, insensata, e digna de muito grande castigo. E tanto isto assim he, que, porque todo o carniceiro de officio contrahe na alma e nos modos alguma couza de cruento e de tigre, em muitas partes se tem por infame. Em Portugal, nenhum mechanico honrado e de conta acceitaria um tal para sogro ou genro, ainda com grosso cabedal de renda; nem de boca plebea pode saír mais afrontosa injúria que o nome de magarefe. Em Inglaterra não os admittem jurados em causa crime. Na principal ilha das Canarias encontrárão seus descobridores, que os naturaes, com viverem á lei de sua rudeza silvestre, “havião por couza mui torpe esfolar alguem gado, e n’este mister de magarefes lhes servião os cativos que tomavão; e quando lhe estes falecião, buscavão homens dos mais baixos do povo para este officio, os quaes vivião apartados da outra gente e não os communicavão em aquelle mister” (_Barr. Dec. 1. L. 1. C. 12._)—Bem hajão os inglezes, que formão sociedades para proteger animaes, e abençoado seja o inglez Deputado Martin, que para lhes fazer bem, se arrosta com os escarneos dos praguentos. Bem hajão os allemães, que em seus campos não perdoão multa municipal aos que, no levar rezes pelos caminhos, as atravessão deante de si na albardadura, ou tolhidamente as apinhoão dentro em carros. E bem haja a nossa Camara, quando conseguir desterrar o escandalo do afrontoso trato que nossos carreiros dão a seus bois, como ja desterrou a atroz e immoral matança dos porcos perante os olhos do povo. Quero rematar com uma reflexão, que ja acima podéra ter cabido, mas que por dezejar da-la por conselho, e pô-la onde melhor se recommendasse, muito de industria deixei para o fecho. Vai o dito a pais e educadores, a quem toca. Nada importa mais, do que affazer cedo os meninos a uma grande suavidade de costumes: assim foi creado o bom Montaigne. Se os eu tivesse, parece-me que tambem assim os crearia, e bem bons frutos lhes havia de colher na minha velhice. Primeiro que tudo, parece-me que me conformaria com Rousseau em os não alimentar desde o leite senão com vegetaes, por entender como elle, serem estes mais accommodados a suas naturezas, e mais proprios para fisicamente os suavizar e humanar. Mas não quero agora averiguar isto que pertence a medicos; outro he o meu alvo. Não consentíra jamais que presenceassem espetaculos de atrocidades ou injustiça; e quando a minha má estrella lhos presentasse, procuraria afea-los com boas razões, mais de affétos e lagrimas que de raciocinios. As urbanas corridas de touros e as aldeanas festas de alanceamento de pombos, frangos e patos, como couzas antiquissimas e nacional feição, as respeito; mas não levára la os meus tenrinhos, que são mui branda cera para qualquer bom ou máo cunho. Se de alguem lhes fosse insinuada a correntissima abusão de nossos provincianos, de que em casa que devasta ou maltrata os ninhos do seu beirado, tudo vai para traz e de fôrça se ha de aguardar por enterramento, calára-me, porque acho razão a Fontenelle em dizer, que se na mão tivesse fechadas todas as verdades do mundo, Deos o defendesse de a abrir. _Magnànima menzogna, or quando è il vero_ _Si bello, che si possa a te preporre?_ Dar-lhes-hia, da Historia natural poetizada, tanta luz, quanta bastasse para levarem grande interesse nos fados de cada individuozinho que respira: um raio de tal luz póde bastar para pôr fim a muita dureza que provenha de cegueira. Conheci e tratei com um parocho de fóra da terra, que desgostoso de que uma sua fregueza, rapariga nova, não pozesse reparo em maltratar animaes, a chamou brandamente, explicou-lhe como tudo que era nascido devia ter algum entendimento, capacidade para dores e prazeres, parentes, amigos e affeições. Com isto só a fez outra, e tão outra desde essa hora, que onde depois se lhe fazia de mister dar morte a uma pomba ou gallinha, ainda que em seu páteo não forão creadas, ja o coração se lhe confrangia, tremião-lhe os pulsos, e chegada á execução, não corria mais sangue da ferida, que mal acertava, do que lagrimas de seus olhos.—De mim mesmo me parece agora, que se escrevi os versos a que me refiro, e em commenta-los me alargo tanto, e uma e outra couza de tão boa mente, de tudo deve ter sido raiz a creação, em tudo excellente e n’esta parte bem empregada, que meu pai se esmerou em dar a todos seus filhos. Outra couza fizera eu principalmente; era commetter-lhes o trato e tutela de alguns animaes caseiros, a quem podessem chamar seus. N’este exercicio aprenderião a ser observadores, vigilantes, serviçaes; tomarião com o gôsto da propriedade o amor do trabalho, havendo-se ja por algum modo como pais de familias; costumar-se-hião a acautelar, previnir e amar; tomarião para toda a vida o geito de amparar fracos e desvalidos, e de não ver um qualquer indivíduo, sem logo compor na imaginação a historia completa do seu viver, do seu padecer, do seu precizar. Da efficacia de tal methodo, e tão simples, e tão formoso, tenho eu uma muito amavel prova de minhas portas a dentro. Uma mulher, toda boa, toda extremosa, tomou unicamente a peito o vingar-me da natureza; cerca-me de contínuo, como um anjo, de amor e de luz; empresta-me olhos para eu ver o mundo e as obras dos seculos; tira deante dos meus passos todos os espinhos no caminho da vida; inventa-me um encantamento novo para cada minuto; diz-me e faz-me entender como a verdadeira felicidade se não compoem de grandes pedaços, mas sim de atomozinhos que de longe se não podem perceber; repete-me e persuade-me que nasci para as Musas e para o amor, e não para a política, nem para os odios, serve-me, vela-me e defende-me como a filho, ama-me como a esposo, zela o meu nome como o de irmão; lançou a sua vida na minha vida, o seu pensamento no meu pensamento; existe pelo meu amor, morreria se lhe elle faltasse. Quem lhe ensinou tão generosa, tão nova benevolencia? quem lhe deo tantos segredos de fazer feliz? as suas aves e pombas, a sua amiga, e alguns livros, unica sociedade da cella, onde desde seus annos verdes a Providencia ma estava guardando e aperfeiçoando[17]. _Pag. 243. verso 18 e seguintes_ O mesmo coração, dezejos, gostos, Que tem nossas mortaes no peito occultos, Tem as Ninfas tambem &c. Por estes versos começa uma torrente caudal de couzas vãs e doidas ácerca das mulheres, e relações dos dois sexos, que ora mais, ora menos turva, se vai alongando até pag. 254. A pezar de se devolver por leito de quasi proza, e por entre margens para meu gôsto mal assombradas, bom seria que por ellas nos podéramos ir detendo a pescar, e a examinar algumas das couzas mais graúdas que vão na chêa: serião questões apraziveis de ociosa filosofia, mas prometti no prologo despreza-las; perdoar-lhes-hemos, deixa-las ir seu caminho. Passem a seu salvo as regras de namorar á antiga; a arte não de amar mas de enredar e colher, como o são quantas com titulo de amar se tem escrito; a poligamia, menos de Mahometano do que de Tupinamba; o divorcio e ulteriores nupcias dos divorciados e divorciadas; a botecuda nudez dos sexos &c. La se avenhão como poderem todas essas puerilidades com seus inimigos, que se de minha Musa nascêrão, muito ha que eu e ella as desherdámos. O meu ponto agora he assentar boas pazes para sempre com as damas. Todas minhas Obras, não só esta, _Cartas de Echo_, _Amor e Melancolia_, _Noite do Castello_, _Ciumes do Bardo_, me devem ter perante ellas representado cavalleiro descortez de desleal poesia. Tempo he de mudar de cores, abjurar o erro, e para merecer o perdão, que ellas de puro boas concedem antes de pedido, romper lanças em favor de sua fama, não só contra inimigos, se os podem ter, mas contra mim proprio, pelas ter aggravado. He uma Nota estreita arena para tão singular duello: mas embora, que para outro dia e campo desafiado fica o eu mancebo desatinado e altivo d’outro tempo por mim grave, reflexivo e respeitoso; o eu versejador por mim pensador; o eu academico e solteiro por mim cazado e recolhido: emfim por mim conhecedor do terreno do combate o eu ignorante d’elle, a cuja face ja n’esta hora arremésso a luva, e lhe digo “Mentiste, e mercê de Deos e de minha Dama, provar-to-hei.” Mas pois que he forçado ficar para outro dia a pendencia, aqui não farei mais do que um pouco ensaiar-me para ella, campeando soltamente e esgremindo nos ares. Nenhuma couza tem sido mais experimentada no mundo e mais vezes definida que o amor, nenhuma ha tão mal e imperfeitamente comprehendida como o amor. Fallo do amor dos homens, unico de que os homens podem fallar: o das mulheres he ainda mais incomprehensivel, e certamente muito mais espantoso, quando verdadeiro. O que pretende dar regras de amar, como alguns outros fizerão antes de mim, e como eu proprio supponho que pretendi, assemelha-se ao astronomo, que tendo endoidecido á força de ter velado as noites a observar os astros, presumisse, riscando órbitas com o lapis, constrangê-los a segui-las: as esferas e os affétos saem do nada ao sôpro de Deos, resplandecem com a sua luz propria e misteriosa, vão-se ora afastando ora aproximando de seus centros pelo caminho que sua natureza lhes ordena, eclipsão-se na hora prescrita, desappareceráõ quando Deos fôr servido; sem que em tudo isso haja querer, escolha, presciencia, ou conhecimento de nossa parte. Amamos uma mulher, e certa mulher; porque temos de a amar; porque he necessidade sua e nossa que a amemos; amamo-la pelo modo que a natureza quer e não outro, não he uma acção mas uma paixão: se a premião o premio he gratuito, se a punem he injusto o castigo, porque não recáem sôbre um effeito de eleição. Ama-se uma mulher, repito, sem o procurar, sem o cuidar, sem arbitrio, a despeito da razão, da vontade e dos votos, como á rosa, como á lua, como á harmonia, como aos sabores dos frutos deliciosos. Para ellas se vai como os rios dos montes para os valles, como a chamma para o ceo, como a pedra do ar para a terra, como o menino para os peitos da ama, como o coração para o prazer. N’estas occasioẽs todo em nós he extraordinario, e se o posso dizer, sobre-natural: sentimo-nos fôrças que não possuiamos para querer, seguir, abraçar e reter: o pensamento se torna infinito, porque o objéto que procurâmos, como uma metade nossa que nos foge, nos apparece infinito. Por dentro d’aquellas graças fisicas, de que os sentidos se namorão, imagina-se um mundo estranho e illimitado de perfeições, de que se namora a alma: ahi se dezeja tudo quanto he capaz de embellezar a vida; o dezejo he logo esperança, a esperança certeza, a certeza delirio, e novamente dezejos; e quem porá limites a dezejos, a delirios, a esperanças? O abrangimento do infinito da Divindade em um corpo humano não he misterio que o amor não saiba muito bem entender. He aqui o lugar de confessar que a este sobre-humano conceito, que da mulher amada se faz, mil vezes corresponde plenissima realidade. Por mais que a natureza se aprimore em modelar, tornear, corar, amaciar, brunir, bafejar e endeozar o fisico da mulher, as suas graças, o seu merito, o seu ser de mulher não são esses dotes, sujeitos ao tempo e dependentes de um ar, assim como nas flores não são mel as pétalas vistosas e coradas, o cheiro suave e attrátivo, que o sol e o vento attenuão e desbaratão. Diz-se que as feiticeiras tem o seu encantamento em um novêlo; o novêlo do feitiço das mulheres está no seu coração e no seu espirito, que n’ellas he tambem coração. O coração da mulher não mora descançadamente reclinado no peito como o nosso, por toda sua alma esvoaça perdido de amor, gemendo de amor, como uma ave mãi e feliz por todos os ramos de um bosque de primavera: sente-se-lhe o frémito das azas, ouve-se-lhe a harmonia em tudo quanto diz, em tudo quanto cala, no que faz como no que deixa de fazer, no que pensa, recorda ou espera, nas lagrimas e no riso, no enfado e no contentamento, na vigilia e no sono. O coração lhe está á porta interior de cada sentido recebendo as impressões; para elle e por elle veẽm, para elle e por elle ouvem, para elle e por elle presencêão a natureza, communicão com ella e comnosco. Um sôpro divino formou a alma do homem, a da mulher de um beijo delicioso deveo ser formada. Este afféto, esta doçura, esta, quero eu dizê-lo, feminidade da mulher são de tão alta natureza, tão estremes de liga, tão independentes do fim mesmo para que a providencia a destinou, que me parece ainda despojada de sentidos, poderia amar vehementemente como os espiritos angelicos. Que será quando os sentidos confluem, para atear com sua materia inflammavel este fogo celeste? ¿quando a Vestal, afrontando todo o futuro, deixa apagar no altar da Deoza de sua infancia a luz virginal que velou por tantos dias e noites? ¿quando na turbação insólita d’estas trevas desconhecidas, se entregou toda e com todo seu futuro ao ente que a implorou como Divindade, e que ella sabe e sente em si tornará feliz por cima de todas as felicidades? ¿quando uma vez encetou prazeres, cujo maior encanto para ella se da-los recebendo-os, e não os receber sem ao mesmo tempo consummar mais de um doloroso sacrificio? Oh então he o amar do amar! o afféto, que ja em profundeza não podia crescer, cresce em superficie, e trasborda todo e para toda a parte, como um perfume abundante; então he que sem voz pronunciou o _sempre_; que sentio apertar-se-lhe nas entranhas a indissolubilidade do consorcio, porque o amor de fantasia se fez realidade, de dezejo destino, de suspiro occulto gloria; a tudo tem ja direito porque ja deo tudo, não póde dezejar ser de outrem porque a outrem não teria tanto que dar. E he esta a grande differença da mulher ao homem, e do amor ao amor: o d’ella tem um abono e côr de eternidade, o nosso um elemento e uma côr de tempo. Podéra ser emblema do nosso, uma náo alterosa e possante, surta em uma bahia aprazivel, mercadejando e folgando com a terra, empavezando ufania de flammulas e galhardetes, aferrada ao fundo do mar com uma unha de ferro, mas podendo de uma hora para outra arranca-la ou picar a amarra, desfraldar as velas que sempre estão prestes, e vogar atravez de todas as ondas, por cima de todos os abismos, a mercadejar e folgar no extremo opposto do mundo: emquanto a feminil affeição, como barquinha contente e desambiciosa, feita para os ocios de sua enseada, coroada a pôpa ora de flores abertas ora de esperançosos verdes, sem deitar nenhuma ancora, não foge nunca d’entre aquellas margens conhecidas; por entre ellas vai e vem avoejando de contínuo, levando e trazendo sempre commodos e alegrias, sem curar que de sua barra em fóra haja outros mares, n’esses mares outras bahias; delicia-se na sua, onde tudo a festeja e saúda por seu nome, onde se entende com todos os ventos, todos os refugios conhece para o dia da tempestade. O amor do homem, com os sentidos satisfeitos muita vez se satisfaz e adormece; como o frizão dos Jogos Olímpicos, que chegado apoz violenta carreira a tocar na meta, surdo até ás vozes da gloria que esporeou, se estirava para repouzar ou para morrer. O amor da mulher, satisfeitos os sentidos, se restaura, resurge mais puro e extremoso, mais vivaz e promettedor; semelhante ás plantas, quando desfallecidas nos afrontamentos do verão se dessedentão com a chuva de uma nuvem que passsou, e viçosas reverdecem para embalsamar os ares de seu valle. Uma de muitas razões que para esta differença podem concorrer, he que n’essa hora adquirio a mulher direitos, o homem contrahio obrigações; as obrigações pezão, os direitos agradão, as obrigações limitão e apoucão, os direitos accrescentão e engrandecem. Trocarão-se os papeis na scena, o seguidor esquiva-se, a perseguida segue. O amor do homem he só amor, o amor da mulher he amor e amizade: elle, porque pertence ao mundo, á gloria e a tantas outras paixões, só tem meio coração, meia vontade, meio tempo para dar á sua companheira; esta, separada do mundo pelo mesmo mundo e pela natureza, por isso mesmo mais raramente accessivel a outras paixões, dá ao seu amigo todo o coração, toda a vontade e toda a vida; dar-lhe-hia se podesse mais vida, e mais coração, mas não mais vontade: com elle, por elle, e para elle existe, na propria ausencia o tem presente; e quando cessa de abraça-lo, he para se gozar de o ter abraçado, e cuidar como logo o abraçará de novo, e volverá a ser d’elle amado, fazendo-o feliz. Tal he o theor da natureza: tem excéções e numerosas. Corações ha de homens, que sem ser effeminados, não desdirião n’um peito feminino; e corações de mulheres, que talvez bem nascidos e bem fadados, mas torcidos depois pela educação, quebrados pela sociedade, corrutos pelos exemplos, merecem as satiras, demaziadamente geraes, com que os autores de sua degeneração todos os dias lhe poem ferrete: mas essas, mais infelizes do que culpadas, os desgraçados que as pintem e condenem, eu pinto a mulher amante, a mulher perfeita, a mulher mulher, a mulher como a concebi, como a conheço, como a adoro. Foi esta a que Deos fez e temperou de poesia e harmonia lá na origem do mundo, quando vio que não era bom que o homem vivesse só. Esta he a que depois de nos dar a vida, no-la suaviza e apura; no-la multiplica em entes novos; no-la adoça nos momentos derradeiros; nos ama ainda, quando ja não somos; dá seus beijos amorosos a uma pedra, porque do nosso nome lhe conserva uma letra; e consummando o seu destino de amar, felicitar, sacrificar-se, ajoelhada na terra, nos vizita no mundo das sombras; estreitando o seu commercio com os ceos que a esperão, para nós só os invoca, e depois de no-los ter dado em amostra no tempo á fôrça de amor, á fôrça de amor no-los grangêa na eternidade. Custa a crer como um ente, que he metade da nossa especie, que das duas he a mais amavel metade, a mais carinhosa, em tantas couzas nosso igual para nos attraír, mas com tantas differenças de nós para se nos unir ainda mais, que se tem defeitos de nós os recebe, e nos dá em troca, sem o cuidar, tantas das virtudes que possuimos, custa, digo, a crer como um talento, a quem sua propria fraqueza devêra tornar inviolavel, pôde ver-se em todos os tempos, e provavelmente continuará a ser até ao fim dos seculos, alvo e emprego das críticas mais desabridas, e mais grosseiras calúnias. Divindade extraordinaria, a quem seus proprios ministros e sacrificadores insultão adorando-a, e que de cima de seu altar, fragil mas eterno, inalteravel em sua mansidão, derrama sôbre bons e máos a felicidade! Que a filosofia as injuriasse não espantára. La Bruyere foi cruel para com ellas, Larochefoucault furioso, nenhum d’elles justo, nem sequer francez: a filosofia não anda sem os filosofos, e todos sabem como os dados a esse triste officio, são pelo demais almas seccas e incapazes de avaliar branduras, entendimentos sem olhos de imaginação, unicos proprios para julgar da verdadeira belleza; homens emfim eremiticos, rusticos e ignorantes no meio da sociedade; e para remate de suspeição, ja alongados pelo inverno da vida: da-se á filosofia o que as mulheres ja não querem. A poesia não tem sido menos descomedida: a poesia, que d’ellas e para ellas nasceo, cujas Divindades forão com razão pelos antigos fabuladas em fórma feminil, como as Graças, como os Genios de tudo quanto ha amavel na natureza, a poesia, a seu máo grado, lhes tem sido rebelde todas quantas vezes os poetas, por de sobejo amantes e zelosos, precizárão desabafar desgraças verdadeiras ou fantásticas: a lira acostumada a lhes entoar seraficamente não louvores senão hinos, resoou execrações, ás quaes respondêrão numerosos echos; porque onde o numero dos ingratos e indignos era grande, não podia o dos maltratados e queixosos ser pequeno: e d’ahi nascêrão essas civis guerras da literatura a favor e contra o sexo, guerras batalhadas nas salas e saráos, nos passeios em romagens, nas merendas das comadres e nas academias, desde o Japão até Portugal, desde os serões da arca diluviana até os nossos dias, em que o amor cedeo á política, e as questões das mulheres ás questões dos ministerios: _Factus est repente de cœlo sonus, tamquam advenientis spiritus vehementer_.... Ahi vinha ja querendo-se intrometter o meu demonio meridiano: ápage! Para as grandes pelejas de que fallava, se despejárão todos os arsenaes da mística theologia, da methafísica, da historia sagrada e profana, das fabulas e anecdotas, da fisiologia e novellas. Ficou largamente juncado o campo de cadaveres em folio, em quarto, em outavo, em doze, em dezeseis, em trinta e dois, em sessenta e quatro; de pergaminho, de marroquim, de seda, de taboa, de papelão, de carneira, de papel: defuntos quasi todos sem amenta, e cujos nomes, se os houvesse de compilar, encherião maior livro do que este. Depois do derramamento de tantos rios de tinta, ainda pende a mesma questão; ainda até ao fim do mundo se tem de trazer para ella couzas que pareção novas; e as cinzas de Lucrecia, Dido, Phryne, Sapho, Aspasia, Arria, Cornelia, Osmia, Heloiza; Christina, Catharina, Maria Thereza; as cinzas das que habitárão cazaes, harens, palacios, mosteiros; as cinzas de Ninivitas, Gomorritas, Babilonicas, Espartanas, Atticas, Romanas, Africanas, Botecudas, Amazonas bellicosas, Indicas Bailladeiras, Viuvas Indostanicas, continuárão a ser revolvidas, pizadas e adoradas por modos sempre differentes, e quasi sempre cegamente, até á consummação dos seculos. A mulher fisica principia a ser conhecida, a mulher intellétual sê-lo-ha, a mulher moral he o infinito. A mocidade, quadra da vida em que reinão os mais encontrados ventos, em obras a maior vassalla e tributária do sexo, he, fallando, escrevendo, e talvez pensando, a sua maior detrátora. Uma conversação de mancebos, embora amantes, não se detem senão em rebaixar o merito das mulheres: nascidos os disséreis das pedras de Deucalião e criados ás tetas das lobas. Qual pode ser a causa d’esta mais que montezinha ferocidade? Será inveja á superioridade modesta? será despeito de vencidos? não; essas vitorias, e ainda essas superioridades em virtudes, que não são as distintivas do nosso sexo, facilmente se perdoão. He a causa o mesmo natural instinto, que faz que os soldados em tempo de guerra, seroando entre as armas á fogueira ociosa do seu rancho, encareção as derrotas do inimigo, e lhe assaquem fraquezas que não tem, para a si proprios accrescentarem animos e determinação para as futuras pelejas. Facil he carecer das loucuras da idade que ja não temos, ou que ainda não temos; blazona-se d’isso, mas não he virtude: carecer porem dos vicios proprios dos nossos annos seria virtude, mas tão rara he, que o despossui-la deve merecer vénia dos sizudos. Era eu em toda a fôrça de minha adolescencia, quando entre coetâneos e a seu contento, cantava em meus versos destinados os fracos e imperfeições de algumas mulheres, como fracos e imperfeições de todas ou da maior parte. Da falsidade que n’isso havia me corro, mas muito mais do pouco delicado tom do meu cantar, porque se me figura agora delito ainda muito mais grave, do que attribuir-lhes defeitos, o pintar-lhos inamavelmente: a graça he o seu primeiro mérito, injuria-las graciosamente ainda não he de todo injuria-las. De muita nuvem se desaffronta, e de mui grande carga respira um coração confessando suas culpas, mormente quando pelas confessar se torna a entrar absolto e regenerado na estima e benevolencia das dominadoras do mundo: quasi se folga, como me está succedendo, de ter tido a culpa, para merecer a vénia e saborear a reconciliação. Transfuga dos arraiaes dos levantados, ás trincheiras d’ellas me recolho, não só com as armas com que as guerriei, para as defender, mas com uma bandeira para chamamento e reunião de outros. Ressuscitaria, se podesse, para o meu novo campo todos os bem nascidos espiritos das idades cavalleiras e cortezes, para procurarmos salvar da ultima ruina o feminil imperio, que de dia para dia vai sendo entrado, talado e engolido da Política; fero monstro em que tão mal assenta feminino! E se o conseguissemos, se os moços que deixárão os affétos pelos debates, as sociedades pelos _clubs_, os versos e cartas apaixonadas pelos jornaes frios e praguentos, quizessem volver a seu natural officio de amar, de agradar e divertir-se, ¡como se não amaciaria esta bruteza quasi, cínica de nosso tempo illuminado, em que se não sabe ler! A propria Liberdade lucraria, porque os seus nervos e verdadeiros espiritos vitaes não são outros senão as virtudes e as bondades: ¿e quem como as mulheres, nos poderia ainda attrair da praça onde se briga, odêa e persegue, para a casa onde se quer bem e se folga, para a cosa onde até á ultima velhice nos educâmos, para a casa onde de bondades e virtudes nos dão ellas a todos os momentos exemplos vivos e formosissimos? _Tellus, et domus, et placens uxor!_ Oh se eu podesse mostrar este meu pensamento, como me está florejando na alma! dizer com palavras a mulher como a sei no meu coração!... mas feminina he a mão com que escrevo, ¿como dezenharia ella o seu retrato? _Pag. 261._ FIM DA FESTA DE MAIO. Se o fim de qualquer obra he a sua coroa, custará a achar obra tão mal coroada como esta _Primavera_. Dos quatro Poemas he a _Festa de Maio_ o ínfimo, não contribuindo pouco para isso o seu estirado comprimento: e da _Festa de Maio_ a ínfima parte he sem nenhuma dúvida a segunda e última. Boa e mui fertil era a idea primitiva, na qual, mas só na qual, mui casualmente me encontrára com o allemão Gerstenberg no dithirambo que traz titulo _Chipre_. Desenvolveo elle a sua, pôsto que em prosa, como poeta mui valente: derramei eu, e enfraqueci a minha em pobrissimos versos (era tempo que na maior parte dos dias compunha trezentos e mais) que bem podérão, sem detrimento de pensamentos, ser reduzidos ao terço do seu numero. Ja poderei parecer importuno com tanto repetir confissão das minhas faltas; mas antes isso, do que se diga que eu as córo ou tapo, ou com tantos annos ainda não caí em as conhecer cabalmente. Quem a este meu cortar pelas proprias roupas chamasse affétação, muito se enganára comigo: censuro-me, não para atalhar alhêas censuras; menos para provocar defezas aos que sempre folgão, quer em bem quer em mal, de encontrar as opiniões dos que escrevem; mas censuro-me e em todas minhas couzas marco seu preço, para que os agora principiantes lá ao deante se não queixem de mim, como eu podéra agora queixar-me de outros, com cujos livros me criei. Consciencia e Verdade, ainda em mesquinhas letras, devem de ser escrupulosamente servidas: tem uma e outra alguma couza de tão divinas, que por mais dolorosos sacrificios que de nós lhes façamos, no-los pagão com íntima satisfação. Certo he que fazendo o que eu faço, se corre perigo de vir a um grande dissabor, como he, depois de sinceramente confessados os defeitos, saírem os nescios na arte de criticar, e que nunca uma só linha escrevêrão, aproveitarem-se cobardemente de taes revelações, vozea-las como descobrimentos seus, e vingando-se de sua propria esterilidade, triunfar miseravelmente dos descuidos, sem nenhuma menção das boas partes. Ja isso por mim passou depois que dissertei ácerca da invenção da _Noite do Castello_. Onde tal se escreveo, quem o escreveo, e como o escreveo não o direi, que não quero em livros meus andar carreando dementes para a posteridade, se he que meus livros tem de la chegar, como cá chegárão alguns bem ruins dos tempos atraz. E a final, que valem semelhantes pregoẽs e taes pregoeiros, comparados com as suas duas maiores inimigas que são a verdade e a consciencia? podéra accrescentar a vergonha. Em meu conceito nada. Por tanto sigão elles por seu caminho, onde se afogão em lodo, e todos lhes cospem na face; e eu, que nem sequer os tenho em assaz de conta para os odiar, continue o dar documentos do unico merito de que me prézo, que he a candura. Para dar culto á Verdade e á Consciencia, não sacrificarei alhêas famas, que me não pertencem, mas pela minha rasgarei afoito: far-lhes-hei de meu sujeito intellétual, o que de seus corpos diz Fernão Mendes que fazião la em Tinagoogoo certos penitentes, que em procissões públicas se hião espedaçando ante os carros triunfaes dos seus idolos, e por fim se arremessavão por deante das rodas, para serem talhados e esmagados: _a que toda a gente_, como refere o bom perigrino, _com uma grande grita dezia: pachiloo a furão; que quer dizer: a minha alma com a tua. E decendo logo de cima do carro um sacerdote ... se chegava áquelles bemaventurados ou malaventurados ... e ajuntando os pedaços e as cabeças ... os mostravão ao povo de cima do mais alto sobrado do carro onde hia o idolo, dezendo n’um tom muito sentido:_ “_Rogai peccadores todos a Deos, que vos faça dignos de serdes santos como este que agora morreo em sacrificio de cheiro suave._” FIM. MAIS PRIMAVERA. ADVERTENCIA. Os trez seguintes Artigos vem, _mutatis mutandis_, trasladados da _Guarda Avançada_, Jornal campeão da CARTA e da RAINHA, como todos os d’esse tempo, sem excétuar um unico; Jornal exagerado, e muitas vezes injusto sem querer, como o serão sempre os redigidos por almas novas e ardentes, sinceras e poeticas, inexpertas e temerarias, que presumem que uma revolução póde realizar os filantrópicos sonhos de um solitario; Jornal emfim de que eu fui collaborador, quando vivia para a política, ainda que não da política, e do qual perante minha consciencia me recordo com pezar mas sem peijo, porque talvez fez males e grandes males, não aspirando senão ao bem. Tanto he verdade, que só a moderação he capaz de dar frutos abençoados! Relêa-se o meu Prologo do _Tributo Portuguez_. Aqui não quero accrescentar mais nada sobre materias, sim importantissimas, mas que eu ja dou todas por um malmequerzinho dos campos. — Sáem pois os Artigos substancialmente os mesmos. Pena será, se passado agora tanto tempo depois de escritos, os que por la estão espectadores das couzas públicas os acharem muito mais applicaveis aos presentes dias; e ainda maior lástima, se para o deante não vierem a perder boa parte de sua verdade. Remato com o louvor, que no Prologo deixei promettido, de meu mestre e amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos Santos: fragmento copiado do _Num. 2_ do _Jornal dos Amigos das Letras_. Se a alguem parecer que não cáe este sob o titulo de _Primavera_, paciencia; recebão-no como Nota, agazalhem-no como filho de gratidão. Para mim recende elle muita primavera de puericia, e de um jardim das Musas. MARÇO (PRINCÍPIO DA PRIMAVERA) Eis aqui os primeiros dias da graciosa estação. Das flores lhe chamárão os poetas; melhor podérão chamar-lhe flor do anno. A terra, como viuva ainda verde que se enfeita para novas bodas, a terra pelo sol repassada de amorosa quentura, vendo-o volver a afaga-la, depois de lhe haver por tanto tempo fugido, arrêa-se de todas suas galas, esperançosa sorrí por entre a sua grinalda florída, embebe-se em perfumes, acerca-se de musicas voluptuosas, e suspira brandamente dentro nos arvoredos recem vestidos, nos valles alcatifados, pelas margens dos rios outra vez serenos. Com razão foi a Primavera consagrada dos antigos ás Musas e Graças: com razão se escolhião as suas vésperas para o Pontifice Maximo accender o novo fogo, que devia durar todo o anno: com razão os pais de nossa lingua derão a esta parte do anno um nome feminino, e os pintores apparencias de formosa moça; emquanto Estio, Outono e Inverno pela aspereza, pela fôrça, pela gravidade, pertencião a outro sexo. Cada fonte se aliza em um espelho; cada pedra se veste em assento aveludado; cada haste nua se desaperta n’um ramalhete: tornão-se os bosques outras tantas republicas populosas, cujos cidadãos, livres como as virações, voão, cantão, brincão, acaricião-se, desposão-se, educão a sua prole bafejada do ceo, e parecem não respirar senão o prazer da independencia, da ternura e da melodia. A natureza revoca á vida innumeraveis especies de animaes de que o Inverno só continha o germen; ás outras infunde, como aos passaros, um contentamento, uma ligeireza, uma attráção, que o Inverno lhes havia roubado ou amortecido. Do ceo chove fecundidade sôbre tudo que he vivo; e tudo o que he vivo sáe trajado de festa, e por toda a parte encontra mesa que Deos lhe assoalha, carregada de sua abundancia com luxo, magnificencia e formusura. A humana especie não podia em tão geral favor ser esquecida, antes foi o seu quinhão de todos o mais largo. O amor, que para nós não tem uma estação exclusiva, n’esta entretanto se nos desenvolve com recrescida atividade: he porque o proprio ar, empregnado de elementos vitaes, nos está coando aos peitos uma extraordinaria energia: he porque tudo em de redor exemplos são que nos cativão: he porque o alvoroço e festa do universo convidão o coração a gozar: he porque ao florir da rosa dos jardins, muita e muita rosa esmorecida se reanima nas faces da belleza: he porque a voz da mulher então sáe, não sei como, ainda mais doce; e tanto ellas mesmas sem o saber o sentem, que em toda a parte em que as horas e circunstancias do seu canto não andão assentadas nas tarifas da moda, insensivelmente se achão a cantar, e este novo attrátivo parece n’ellas uma necessidade, como he nas aves da primavera. Dir-se-hia que a natureza nos manda as flores nos dias em que o amor nos instiga a offerecê-las. Mas os feitiços da Primavera não se limitão nos da recreação e amor. Um medico vos dirá que he ella a estação da saude; um sabio a do vigor mental; um navegante a do princípio de confiança nos seus mares: o artífice a saúda como a que abre a porta a longos dias; o pastor como a mãi da abundancia; o agrícola vê as esperanças do anno desparzidas por suas terras, por suas vinhas, por seus pomares. Ah! só os homens das cidades, tristemente condenados á fadiga e ao luxo, quasi não encontrão a primavera no seu anno! Para esses reduz-se a mais algumas horas de luz, e a uma pouca mais serenidade em um ceo sem horizontes. Se ao menos se podesse esta serenidade reflétir nas nossas almas!... mas os redemoinhos das novidades, os raios das intrigas ambiciosas, o frio do desalento e carregadas nuvens ao longe esterilizão tudo, e se uma ou outra flor de esperança nos desabrocha a medo, lá está logo a reflexão, filha do conhecimento dos homens, que a faz com um sôpro desapparecer. O anno dos nossos destinos teve um inverno bem longo e rigoroso: n’elle sulcámos a terra para semear liberdade e ventura, adubámo-la com o nosso sangue e corpos de nossos irmãos, regámo-la com o nosso suor e lágrimas; e agora que nós e nossos filhos esperavamos ao menos a florescencia que nos augurasse frutos para o futuro, a Deos approuve de outro modo, e uma torrente de iniquidades, que não quer parar, continúa a assolar a terra de nossos avós. ABRIL Este mez, assim chamado por abrir o seio da terra á fecundidade; consagrado desde a infancia de Roma á Deoza da formosura, á Mãi das Graças, Amores, e Jogos, he o primeiro que ouza, por debaixo ainda das últimas nuvens chuvosas do inverno, sair e folgar com seu manto verde, e bordado de flores. O dia da sua entrada era para os nossos antepassados uma festa popular, menos estrepitosa que o Carnaval, de que parecia imitação, mas tambem mais innocente e serena. Ignoro se esse costume o herdárão elles de nações mais antigas, com quanto dos Romanos o não houvessem, de quem tantos outros lhes vierão. Tão pouco me recordo de haver lido alguma origem historica aos brinquedos rituaes do primeiro de Abril; mas sabido he que elles existírão em nossa terra, e inda hoje se lhes conservão os restos, mormente pelas Provincias. O dinheiro pregado nas ruas, as cartas, e prezentes de lôgro, a pedra que chamavão das agulhas, a fôrca de Judas, e outras quejandas bagatelas para rir, estão entretendo n’esta hora bastantes dos nossos aldeões do norte. As lembranças velhas tem para mim muito grande saudade, e doçura; doe-me o coração quando vejo ir-se perdendo estas seculares tradições que a ninguem fazião mal, ainda que nascidas em berço de superstição, e que de bom tinhão o transportar-nos a tempos sabidos, e remotos, ou a tempos mais remotos ainda, e ignorados. E que he o que as apaga, e fica em seu lugar? odios, pobreza, e desgraças. Oh! aonde estará um poeta amigo dos serões e da innocencia, que se apresse em nos escrever os Fastos do nosso bom Portugal? No meio da confusão desconsolada do presente, nós beijariamos essa obra como santa reliquia em terra de infieis: veriamos um iris vão mas brilhante, entre nuvens de tormenta. Para excitar algum bom engenho a no-lo dar, he que eu coméço, e continuarei sempre a recordar nos seus dias proprios as nossas antiguãlhas: o que farei com muita avidez, porque d’aqui a alguns annos, o investiga-las será ja tarde. Assim os pintores Italianos se deleitão copiando os restos amortecidos das pinturas a fresco que sobre-vivem ao grande Imperio, e os antiquarios trasladão avidamente os enrolados livros das cidades soterradas, antes que de todo se desfação em pó. MAIO. He a apparição d’este mez uma festa da natureza, em que sempre os homens se alegrárão: quizeramos poder tributar-lhe algumas flores pelas tantas que nos elle concede. Não teçamos o seu encomio d’aquillo que sendo sensivel a todos não carece de ser descrito. Zéfiros e rosas, rolas e rouxinoes, abelhas e borboletas, a terra toda verde, o ceo todo azul, as noites começando a fugir como envergonhadas de esconder as alegrias da natureza, objétos são que ainda que desde a origem do mundo se apresentem sempre novos, já se tornárão lugares communs nas descrições da poesia. Voltemo-nos para as recordações; embalemos e adormeçamos com ellas por um pouco o espirito martirisado dos absurdos e crueldades d’estes máos tempos, em que ja se não crião fabulas risonhas e innocentes, coloridas pela imaginação, animadas pelo amor. Forão os homens antigos os que idolatras da concordia, para melhor a insinuarem á terra, collocárão nos astros a sua imagem brilhante, e ao signo de Maio chamarão o signo dos Gémeos. Elles forão os que sensiveis aos encantos das Artes, consagrarão este mez a um Deos, que vivificando a natureza pela luz e calor, presidia com a Lira na mão aos prestigiosos artificios que a embellezão. Almas petrificadas ha ahi, para quem estas saudades do mundo antigo são frivolas, comparadas com um artigo de gazeta; para nós he delicioso andar mergulhando pelo oceano dos seculos, e não voltar a assentar-nos na nossa Ilhota escabrosa e esteril, senão carregados dos coraes, das pérolas, das riquezas formosissimas, que se cá não produzem. O fundador de Roma dedicou aos mancebos (_Juvenes_) o mez de Junho; era essa a idade que lhe fazia ganhar vitorias, mas ja primeiro havia consagrado o Maio aos velhos (_Majores_), porque feroz como era, Romulo experimentava o afféto que nos attráe para com o antigo. Passemos por alto Festas misteriosas da Deoza Bona, celebradas pelas Romanas no primeiro de Maio, em todo o segredo dos Penates e sem testemunha de varão; visitas das Vestaes ao Pontifice Maximo e principaes Magistrados da Republica; contemplemos a expiação dos Lémures, pois que usos nossos me parecem ter d’ahi recebido origem. Á meia noite levantava-se o pai de familias, hia-se descalço, calado, e chêo de terror santo, á fonte, dando por todo o caminho amiudados estalos com os dedos para afugentar os genios máos. Lavava trez vezes as mãos, e tornando-se para casa, vinha atirando uma a uma, por cima da cabeça e para traz de si, favas negras, de que trazia chêa a boca, e articulando taes palavras—_com estas favas me resgato a mim e aos meus_:—o que por nove vezes repetia, sem olhar para traz, para não espantar o espétro que vinha apanhando as favas negras. Tomava agua por uma ou duas vezes, batia n’um vaso de bronze, e para conjurar a sombra a lhe largar a casa, por nove vezes repetia—_Sahi, ó manes paternos_.—Eis provavelmente d’onde provierão estes sustos vagos que ainda se dão a sentir aos homens rusticos no princípio de Maio; este uso de se repartirem e comerem castanhas seccas para evitar que o Maio se apodere de nós. A imaginação do bom povo perdeo de vista essas larvas, mas o medo que ellas produzírão lhe ficou: he uma especie de moeda, que safada como está de passar de mãos em mãos, ainda conserva a sua valia. Outros costumes de Maio tem o nosso Portugal, a que folgáramos que alguem escavasse e descobrisse a raiz, sendo certo que na historia a devem ter. O Maio pequenino, que seguido de todas as crianças do bairro, corre enfeitado de flores, as ruas da cidade, ao som de um cantar antigo e uniforme; aquellas mimosas Maias tão arraiadas e donosas, que á orla dos caminhos se encontrão comprimentando os passageiros; aquell’outro estilo, ja talvez hoje passado, de se deitarem n’um mesmo leito um casal de creanças innocentes, para se lhes cantar em roda um como epithalamio, ou trova de suas bodas; os descantes amorosos dados com a viola n’esta occasião pelos aldeões ás suas escolhidas; não provirá tudo isto de alguma ja perdida lembrança de cultos da Deoza Maia? E a usança de ornar com flores Maias as portas e interior das casas, não será reflexo distante dos festejos Romanos á Deoza Bona? A religião, que para si tomou ornato de tantas joias ao Paganismo, não se desdenhou tambem de perfilhar este mez. Em muitas freguezias, pelas nossas provincias do norte, o bom Parocho vai benzer no princípio de Maio a bandeja de rosas que entre os devotos se distribuem e se commungão, porque esta flor abençoada traz felicidade.—Vem depois aquellas tão esperançosas, tão cantadas e tão sabidas Ladainhas de Maio.—Hoje os camponezes de França vão plantar o seu Maio á porta das pessoas honradas da sua freguezia: os Inglezes renovão de certo modo as antigas _Vigilias de Venus_: os Gregos, como se os seus poetas d’outro tempo os inspirassem ainda, e a era das Elegias tornasse a reviver, vão descantar amores e pendurar grinaldas aos umbraes das suas inclinações: e os moradores de Roma, segundo nos foi dito por quem lá foi a essa terra de saudades, ainda agora se reunem na fonte de Egeria a respirar as delicias da natureza, debaixo d’aquelle ceo de tanto amor, que não a pensar em Numa e na grandeza antiga dos Romanos, de que a elles só veio em herança a terra coberta de muitas ruinas. ¿Para que servem todas estas memorias, nos estão perguntando os insaciaveis de Politica? e nós não lhes sabemos responder senão que a nós estes pensamentos nos fazem muito bem, e que aos amigos de passatempos innocentes se não ha de prohibir o que a ninguem faz mal. Deixai-nos ser algum dia do anno semi-pagãos. São as superstições da Politica ambiciosa as que empecem á felicidade, mas estes graciosos prejuisos de nossos pais a nenhuma couza do mundo danão. E de mais, se havemos de dizer toda a verdade, a fé, que a estes pobres erros acompanha, costuma trazer comsigo muita piedade religiosa, e n’ella alguma doçura moral, que nem sempre vai por onde vai a desenganada Filosofia. Ditoso d’aquelle engenho que podesse trazer outra vez ao mundo a innocencia que nos lá ficou no paiz das fabulas! mas interromper um sonho de poesia quando se julga que a felicidade vem apoz os nossos passos, voltarmo-nos, como Orfeo, para a abraçar, e vermo-la fugir e desapparecer n’um ai, e um mundo de realidades dolorosas estender-se immenso deante de nós, oh! isto he muito triste! _ÁCERCA DA PESSOA DO Sr. Antonio Ribeiro dos Santos._ Pôsto que o escrever de Varão tão conhecido dentro e fóra d’este Reino, qual foi o Sr. Antonio Ribeiro dos Santos, já possa a muitos parecer escusado, o deixar de o fazer, mais que seja por alto, nem a opportunidade da occasião mo consente, nem menos mo consentiria o gôsto, que sempre do refrescar essas memorias me resulta; por quanto na primavera de minha vida, e primeira manhã de minha poesia, foi que a boa de minha fortuna me deu conhecer este Nestor de nossa Literatura, que já então, ao cabo da sua longa e proveitosa carreira, ornado de muitos méritos de sciencias e virtudes, respeitado e apontado de longe, pouzava sereno e magestoso, aguardando pela sua hora, á beira da eternidade. Que fosse nascido nas terras do Douro, d’onde lhe prouve tomar nome de Elpino Duriense; que fizesse com bons mestres seus estudos; que se tornasse, lendo na Universidade de Coimbra, um de seus mais lustrosos luminares; que na Igreja e no Estado occupasse mui subidos empregos; que fosse o amigo e centro de quantos bons engenhos em seu tempo florecerão, não faltará quem o escreva entre seus outros muitos louvores. Tão pouco me deterei dispartindo entre a Jurisprudencia, a Historia, as Antiguidades, a Literatura, e a Poesia o opulentissimo cathalogo de suas Obras, cuja maxima, e por ventura optima parte, ainda até agora não viu a luz. Não hão de ser mãos tão debeis como as minhas as que revolvão tamanhos trofeos, nem em tão pequeno espaço como este coubéra retratar completo Homem que abrangeu duas idades, bem fazendo-lhes mutuamente a uma pela outra; anticipando em meio do seculo passado o gôsto, o apuro, a filosofia d’este nosso; transplantando para o presente o estudo, a boa fé, o saber do passado; e legando ao futuro thesouros que andou desencantando das antiguidades remotissimas. Menos arremessados são meus dezejos, e mais seguros, que só quero levar meus leitores a com este bom velho encetarem conhecimento. Corre a primavera do anno de 1814 ou 15, que eu certo o não sei. A morada de Elpino, que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa está formosamente situada, longe do bolicio, como bem cabia á sua indole pacifica e genio estudioso, he um templo de Musas, religiosamente vedado aos olhos e vozes de profanos, isto he dos máos e ignorantes, unicos de todos os entes para quem sua porta e animo não erão hospedeiros. Por aquellas salas, gravemente ataviadas á laia dos nossos antigos, de sedas e arrazes, alcatifas, tremós, espaldares e soberbos quadros dos mais perigrinos pintores, reina o silencio, e uma lembrança dos antigos e abundosos tempos de nossos avós, que tanto conforma com os nobres e portuguezes pensamentos de suas poesias, as quaes se raras vezes voão sublimes, nunca, nem por sombras, desmentem da boa moral e sã filosofia. Aqui o bom Elpino nos recebe cordialmente, a meus irmãos e a mim; os filhos do seu amigo são seus amigos, os estudiosos das Musas portuguezas e romanas são os seus amores. O ancião, que ainda entre sabios podéra ser ouvido como oraculo, remoça-se conversando com meninos, apouca-se para que o melhor comprehendão, orna-lhes a moral e o estudo com quantas flores sabe; do centro da gloria lhes ensina por onde se abre o caminho que para lá conduz; e pelo grande espirito e persuasão com que falla, talvez consegue crear algumas vehementes vocações literarias. Outras vezes nos convida para a bibliotheca, suas delicias, e nos acompanha com a alegria na boca. Os seus olhos, como que ao fim de tanto lêr ja quizessem descançar para sempre, não lhe alumião o caminho; e semilhante áquelle grande Bardo Ossian, a quem velho e cego, piedosa conduzia a moça Malvina para os logares usados de sua inspiração, no hombro de uma menina, sua afilhada e leitora, segurava o bom de Elpino uma das mãos, emquanto com a outra arrimada a um bordão, palpava o caminho, e se ajudava em seu quebrado andar. Era a bibliotheca o íntimo retiro d’este ermitão do Parnaso, fugida para longe das casas, pôsto que tão quietas, e frescamente assentada em meio de muitas sombras, verduras e aromas de seu jardim, hortas e pomares. Grandissima cópia de livros, longamente procurados e custosamente juntos, e entre os quaes se estremavão no numero e riqueza os Gregos, os Romanos, e os antigos Portuguezes, alí estavão juntos, entre o susurro estudioso das ramas e os cantares descuidosos dos passaros. Um Apollo de marmore com a sua lira em punho, parecia estar-se mui bem cabido e contente no meio d’aquelle seu alcaçar, cercado de tantos seus cultores, servido por tão venerando Sacerdote. Lembranças são estas que trago colhidas de minha infancia, e que transplanto para aqui, por não querer que se percão. Áquelle Homem, n’aquellas tardes, e debaixo d’aquelle této, devo a grande veneração que ainda hoje consagro aos meus livros latinos, não poucos dos quaes mos deu elle proprio; e tocados de suas mãos poeticas, me inspirão ainda agora poesia e virtude, até cerrados, e n’elles confio que me hajão de servir de pranchas, com que n’este pélago de freneticas e descompostas innovações, me não deixe, como tantos que mais valião do que eu, totalmente sossobrar. Nos seus ouvidos indulgentes lançava não só as primicias dos meus versos, mas ainda as traças e esperanças de obras que borbulhavão de uma seiba virgem de quatorze annos. Escutava elle tudo com desvellada benevolencia, umas vezes apontando-me melhores caminhos ou mais faceis, outras desviando-me de commettimentos maiores que meus annos e forças; agora revelando-me regras, logo insinuando-mas com exemplos, com que sempre fiel e muito a ponto lhe acudia a memoria. Não he verdade que ha em tudo isto um não sei que, por onde o que o pratíca não póde menos ser de um grande homem? Oxalá meus esforços melhor houvessem respondido a suas diligencias, ou me não houvesse elle desamparado no começo da carreira, para a qual apenas me aparelhou! Sim, porque embora me hajão a vaidade, a gratidão péde que eu publique, foi este Pontifice das Musas que me iniciou no seu culto, e no seu paternal enthusiasmo me disse—Tu serás poeta.—Scena digna de um pincel eloquente: um ancião coroado de louros, e cego como Homero, sagrando ao culto da mais bella das Artes, um menino cego como elle! NOTAS [1] Alguma vez publicarei o que acerca d’isto disputamos por Cartas, de Lisboa para Coimbra, o Padre José Agostinho de Macedo e eu. Negava aquelle escriptor, de incontrastavel talento, que a Poesia Allemã e Suissa mais fosse do que a nossa rica em graças naturaes, e amena frescura, antes affirmava que a nossa a excedia grandemente. Ou não escrevia elle deveras, ou se convenceo do erro, como será de ver das Cartas, quando ellas aparecerem. O motivo porque até hoje as tenho dos publicos olhos resguardadas, outro não foi senão recêo de que se me attribuisse a vãgloria a publicação de uma disputa em que tamanho sujeito me cedeo, principalmente sendo notorio que o favor que em seus escritos deu ás minhas primeiras tentativas poeticas e infantis, jamais o denegou com o andar do tempo, antes o reforçou com mui graciosos louvores. [2] Conceder-lha-heis, se ja não tiverdes determinado emprega-la em outro uso, ou fundar nesse sitio alguma caza de Commissão que nada faça, ou algum quartel de guarda que legisle sobre os destinos publicos. [3] O Livro _Le mie Prigione_, quanto á utilidade prática leva, me parece, a palma á _Imitação_ de Kempis. Em Kempis apparece a descrição da caridade e piedade, em Silvio a applicação d’ellas aos successos da vida. Kempis aconselha, Silvio ensina a perdoar, a amar, e a ser feliz, em despeito da fortuna: dá o exemplo d’isso, he elle proprio o exemplo. [4] Quem bem reparar na justiça rigorosa (de cruel a taxaráõ alguns) com que eu proprio trato a minha Musa, perdoar-me-ha quando por amor ás nossas letras, aponto um defeito em meu mestre e amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos Santos. Inda assim, porque me não fique remordendo a consciencia, como expiação, e mui suave, porei no fim do volume um penhor do meu respeito e grato animo a tão grande varão; capitulo ja impresso no _Jornal dos Amigos das Letras_, mas por isso mesmo apenas conhecido. [5] Meu irmão Augusto Frederico de Castilho. [6] Meu irmão Adriano Ernesto de Castilho. [7] As Senhoras Mellos, a quem pertence a Lapa e a Quinta das Canas. [8] Na _Primavera_ de meu Irmão Augusto Frederico de Castilho ha um lugar parallelo, não quanto á expressão, mas quanto ao pensamento principal. Releva porem que em duas couzas se advirta: a uma, que nenhum de nós foi plagiario, nem o podiamos ser, porque todos compunhamos em segredo; a outra, que o passo do poema, em que elle descreve Nize a figurar de Primavera, leva grande vantagem de valia a estes versos! [9] Augusto Frederico de Castilho. [10] O meu amigo Jose Vitorino Freire Cardozo da Fonseca (_Etmiro_) tinha começado em uma sua quinta na Beira um jardim, tal como o descrevo aos seguintes versos, e que pretendia consagrar á minha memoria. Mal haja aquelle, a quem semelhante penhor de amizade não enternece! [11] Veja-se a Quarta Edição do Diccionario chamado de Moraes. [12] Lamartine no Prologo de _Jocelyn_ [13] Em Maio se poem o ponto aos Estudos da Universidade, que eu n’aquelles tempos cursava. Só os que por ahi tem passado, podem entender o alvoroço com que he recebido. [14] Antigo nome da Serra de Estrella d’onde nasce o Mondego. [15] Por esta occazião me importa fazer um annuncio ao Publico. Ei-lo: declaro que se esse Jornal inexperadamente acabou, não foi minha a culpa, assim como de nenhum dos sócios, mas somente dos acontecimentos, assim publicos como privados da Sociedade: com elle nunca tive outras algumas relações senão as onerosas e de trabalho, que eu tomava comtudo com muito gôsto. Todos os sócios o sabem, mas interessa-me que o saiba toda a gente, para me salvar de quaesquer desasizadas reclamações. [16] Em podendo ser, publicarei um volume de poesias, que lá compuz acerca d’aquella bemaventurada solidão, onde annos vivi ignorado e contente, na residencia de meu Irmão Augusto Frederico. [17] Tudo isto, que eu julgava para sempre meu, passou! Aprouve a Deos mostrar-me só de relance a felicidade! Pouco mais de dois annos a illustre e digna sobrinha de Nicolau Tolentino de Almeida, a Senhora D. Maria Izabel de Baenna Coimbra Portugal, se sacrificou toda a felicitar-me: o Pai de todo o amor e de toda a virtude a chamou logo para o seu seio: era aquelle um Anjo que faltava no ceo. Esta Nota ao poema, vai como se achava feita quando ella ja me não escrevia, senão a espaços, mas ainda se comprazia de me ouvir dictar. Quando o seu fim era ja inevitavel, todos o sabião e talvez ella mesma, e eu contava ainda com largos annos de fortuna. O mesmo advirto quanto ás mais Notas e accrescentamentos d’este Livro, que tudo estava pronto (faltando só algumas poucas notas que não fiz nem ja farei) antes do fatal dia um de Fevereiro passado: dois se imprimio erradamente no Post Scriptum do Prologo. Se outrem não tivesse conservado essa data, e me não advertisse da inexatidão em que mal informado caí, ainda agora a podéra eu ignorar: esse dia, as vesperas e os seguintes não tiverão para mim nenhuma ráia nem de luz, nem do sôno, nem de alguma outra das couzas que estremão os dias.—_12 de Maio de 1837._ INDEX. Pag. Ante-Prologo 5 Prologo 25 _Post-Scriptum_ 47 Epistola á Primavera 49 Dedicatoria a minha Irmã 51 Duas Palavras de Introdução 53 Epistola 57 O Dia da Primavera Poemetto 75 Dedicatoria a minha Mãi 77 Historia da Festa da Primavera 79 O Dia da Primavera Canto I _A Manhã_ 95 O Dia da Primavera Canto II _A Tarde_ 111 Notas ao Poemetto antecedente 131 Nota 1.ª (_Elmano e Filinto—versificação esdruxola e aguda_ &c.) 131 Nota 2.ª de Augusto Frederico de Castilho 162 Os Cantos de Abril Idillio 167 Dedicatoria a meu Pai 169 Advertencia 171 Os Cantos de Abril 173 Nota ao Idillio (_Excerpto de alguns versos da primeira Edição do Idillio, rejeitados n’esta segunda_) 186 A Festa de Maio Poemetto 189 Dedicatoria ás Senhoras da Lapa dos Esteios 191 Historia da Festa de Maio 193 A Festa de Maio Canto I 199 —— Canto II 225 Notas á Festa de Maio 263 Nota 1.ª (_Com a tradução para latim dos amores de Galatea no Cant. 1 da Festa de Maio_) 263 Nota 2.ª (_Piedade para com os animaes—alimento animal_ &c.) 269 Nota 3.ª (_Em desaggravo das mulheres_) 291 Nota 4.ª (_Sôbre o 2.º Canto da Festa de Maio_) 305 Mais Primavera 309 Advertencia 311 Março (_Princípio da Primavera_) 313 Abril 317 Maio 319 Ácerca da Pessoa do Sr. Antonio Ribeiro dos Santos 324 FIM Lista de Assignantes. S. M. F. A RAINHA D. MARIA II. S. M. I. A DUQUEZA DE BRAGANÇA. S. A. R. O PRINCIPE D. FERNANDO AUGUSTO. A. A. A. Moreira. Ab. M.ᵃ J. Paiva Manso. Abrahão Weelhause. A. Carneiro. Achilles de Pereira. A. Eustaquio da Silva. Ag.ᵗᵒ de Castro da Gama Lobo. —— José Pereira. —— Roïz da F. Soares. A. J. R. Leitão. Albino F. de Figueiredo. Conselh.ᵒ Alexandre Alb. de Serpa Pinto. _4 Ex._ Alexandre Lahmeyer. D. Alvaro. Amaro Coutinho Pereira. Anacleto José da Silva. André Joaquim Ramalho. —— Perez. A. Neves de Sequeira. Angelo Augusto Martins. D. Anna C. Guimarães. —— Ifig. do Valle de S. e Menezes. —— Lucinda Mont.ʳᵒ —— Ludovina. —— Margar.ᵈᵃ Fructuoso de Ar.ᵒ —— Victoria da Rocha Torres. Anonimo. _2 Exempl._ Anselmo J.ᵉ Braamcamp. Ant.ᵒ Adolfo Ferr.ᵃ Sarmento. _15 Exempl._ —— Adriano da Mata P.ᵗᵃ —— Ag.ᵒ Per.ᵃ Lacerda. —— Alves Souto. —— Aluisio Jervis d’Atouguia. —— Augusto Gonsalves. —— B. de Brito e Cunha. —— Cardoso e Silva. —— C. da Costa e Sousa. —— Coelho Bragante. —— da Costa Paiva. 130 _Exempl._ —— Dias d’Azevedo. —— —— Monteiro. —— —— Rodão. —— Diniz Couto Valente —— Ezequiel d’Aguiar. —— F. Mag.ᵃᵉˢ Coutᵒ —— F. Mendonça Arraes. —— Frz. Alves Fortuna. —— Florencio Reixa. —— Fr. Alv. Guimarães. —— Freire Castello Br.ᶜᵒ —— de Freitas. —— Gaud. S.ᵃ Monteiro. —— G. Barreto de Pina. —— Gomes Lima. —— Glz. d’Alm.ᵈᵃ Rino. —— Gueifão Bello Per.ᵃ —— Guilherme da Costa. —— Henriques Doria. —— Jacinto Santarem. —— Joaquim de Abreu. —— Cons.ᵒ Antᵒ Joaq.ᵐ da Costa Carv.ᵒ 6 _Ex._ —— Joaq.ᵐ Reis Junior. —— —— da Silva. —— —— Teix.ᵃ S.ᵃ —— J. d’Oliveira Lima. —— José d’Avila. —— J.ᵉ Bot.ᵒ da Cunha. —— —— Ferr.ᵃ de Sousa. —— —— Glz. Basto. —— —— —— Duarte. —— —— de Oliveira. —— J.ᵉ de Oliveira e S.ᵃ —— —— R. Guim.ᵃᵉˢ 3 _Ex._ —— —— de Sá Camello. —— —— da S.ᵃ Milheiros. —— —— de Sousa Martins. —— —— Teixeira Leal. —— —— de Vasc.ᵒˢ 20 _Ex._ —— Leite Pereira Lobo. —— Lopes de C. Alm.ᵈᵃ —— Lour. Coelho. 5 Ex. —— Luiz Nogᵃ e Freitas. —— M.ᵉˡ R. Abranches. —— —— Vargas. —— M.ᵃ d’Almeida e S.ᵃ —— —— de Campos. —— —— Ferreira. —— —— L. M. Queiroz. —— —— Machado. —— —— Thovar Lemos. —— Martins dos Santos. —— de Mello Breyner. —— N. Roïz. Cancella. —— Nunes dos Reis. —— Pedro de Carvalho. —— P. X. O. B. Leite. —— Pereira de Faria. —— Porfirio de Freitas. —— Ramos Azev.ᵒ Maia. —— Rib. Azev.ᵒ Bastos. —— Ribeiro de Faria. —— Sald.ᵃ R. Albuq.ᵉ —— Samp. X. Casqueiro. —— dos Santos Monteiro. —— de Sá Per.ᵃ Samp. —— da Silva Bastos. —— da Silva Leitão. —— S.ᵃ Monteiro. 2 _Ex._ —— Sotero Sz.ᵃ Falcão. —— Thomaz Aquino S.ᵃ —— Vicente de Sousa. —— Vieira de Carvalho. A. P. Ardisson. A. P. B. de Saldanha. A. R. Sealy. Assemblea Lisbonense. —— Portuense. Associação Civilisadora. Augusto. —— Frederico Ferr.ᵃ Dr. Augusto Lavit. 2 _Ex._ Augusto Maria Dermott. —— Victor Sabbo. Aureliano J.ᵉ de Moraes. Ayres Sá Nogueira. 3 _Ex._ —— da Silva Coelho. Balthesar Lopes do Calheiros e Menezes. Bandeira—Ex-Governador do Castello. 4 _Ex._ Barão d’Argamaça. —— de Ruivoz. Barnabé F. Paula Ataide. Bartholomeu dos Martires. Bento Alão. —— de Almeida. —— G. Brito Taborda. —— Guilherme Klingleofer. 3 _Exempl._ —— J.ᵉ Teixeira Penna. —— de Moura Portugal. —— Pereira. Bernardino J.ᵉ dos Santos. Bernardo José de Miranda. Busch. Dr. Cabral Teix.ᵃ Moraes. Caet.ᵒ Alberto Orlandi. —— J.ᵉ Alves d’Araujo. —— José M.ᵃ de Sena. —— Xavier Diniz. C. Almeida. Camillo da Silva Ferraz. Candido José Roïz Vieira. Cap.ᵃᵒ Engenheiro Carv.ᵒ Carlos Augusto Poppe. —— Gould. 5 _Exempl._ —— de Sá. —— Vieira da Silva. Carneiro. Castro Almeida. C. F. Altavilla. Christovão M.ᵃ dos Santos. Cipriano A. Rib. Freire. Cipriano Dom. Vianna. C. Lagrange. D. Clara Clorinda Lopes Pereira de Vasconcellos. Clem.ᵉ A. O. M. Alm.ᵈᵃ —— Augusto Bolonha. D. Clementina Adelaide da Silva Monteiro. C. Massa. C. M. Caula. Conde da Cunha. —— de Lumiares. —— de Mello. 6 _Ex._ —— de Villa Real. Condeça de Belmonte D. Jeronima. —— de Mello. 2 _Ex._ —— de Villa Real. Cosme José Dias. 10 _Ex._ Daniel Cesar S.ᵃ Ferraz. —— Sotero Caio dos S.ᵗᵒˢ D. A. R. Varella. David Ubaldo S.ᵃ Leitão. Diogo Ant.ᵒ de Sequeira. —— Aug. C. Constancio. —— P. Mtr.ᵒ Bandeira. Domingo Garcia Peres. Domingos Fr. Santos Lim. —— Monteiro de Albuquerque e Amaral. —— Ribeiro de Faria. —— —— dos S.ᵗᵒˢ Duque da Terceira. Duqueza da Terceira. C.ᵉˡ E. C. C. F. Furtado. Eduardo Frederico Lour.ᵒ Emilia C. de Figueiredo. D. Emilia Martinini. Epifanio Fr. de Miranda. Ernesto Adolfo de Freitas. —— M. V. Montenegro. —— José Ferreira. D. Faustina M.ᵃ das Dominações Simões. F. C. de M. Feliciano Alm.ᵈᵃ Vidal. Fernando Affonso Giraldes de Mello e Sampaio. Fernando Theod. Arnaut. F. L. Bettencourt. Figueiredo. 13 _Exempl._ Filippe Folque. Fortunato José Barreiros. —— —— N. M. e Mello. D. Francisca de Noronha. Fran.ᶜᵒ Abrantes. —— Adrião Pereira. —— Affonso da Costa Chaves e Mello. 12 _Ex._ —— Alves Souto. —— —— Alm.ᵈᵃ Reixa. —— Ant.ᵒ de Pinho. —— —— Cerqueira S.ᵃ —— —— F. S.ᵃ Ferrão. —— —— dos Santos. —— de Assis Almeida. —— —— —— Alm.ᵈᵃ C.ᵗᵉ Real. P. Francisco d’Assis Biga. Fran.ᶜᵒ Brito P. Almeida. —— Candido Mend.ᵃ —— de Castro Freire. —— C. Judice Samora. —— da Conc.ᵃᵒ Soares. —— Dias Brandão. —— Eduardo Andrade. —— Fabião de Mend.ᶜᵃ —— Gaspar Lahmeyer. —— Gomes Loureiro. —— Joaq.ᵐ da Cunha Travassos Cast.ᵒ Branco. —— —— da Fonseca. —— —— dos Santos. —— J.ᵉ de Freitas. —— J.ᵉ de Sousa Nunes. —— —— Tavares Junior. —— Luiz de Sousa. —— da Mãi dos Homens Annes de Carvalho. —— M.ᵉˡ C. Pimenta. —— —— de Negreiros. —— M. Silvr.ᵃ Menezes. —— —— de S.ˢᵃ Brandão. —— —— de Maris Coelho. —— M. Walsh. 4 _Ex._ —— Nunes da Silva. —— Paula Costa Feio. —— —— Seg. Lemos. —— —— S.ˢᵃ V. Boas. —— —— V. Campos. —— —— Zuzarte. —— P. Taboada Junior. —— P.ᵗᵒ de Magalhães. —— Raim. d’Andrade. —— da Silva Falcão. —— Vieira S. Barradas. Frederico Aug.ᵗᵒ Martha. Fructuoso Dias Mendes. —— —— de Paiva Card.ᵒ F. Z. Fer.ᵃ d’Ar.ᵒ 5 _Ex._ Dr. G. Centazzi. Gabriel Fran.ᶜᵒ Ribeiro. —— Lopes de Lima. G. A. Pereira de Sousa. Gaspar dos Reis e Sousa. —— Schindler. D. Genoveva Victoria da Rocha Farinho. D. Gervasia Joaquina de Sousa Falcão. Greg.ᵒ Mag.ᵃᵉˢ Collaço. Guilherme Ignacio Basto. H. D. Wems. Henriq. J. Passos Chaves. Hermano Estanisláo Orlandi. H. Hodgson. 10 _Exempl._ H. J. Moser. H. O. Maya. 2 _Exempl._ Honorio Ces. Mendonça. Ignacio Cabral Arez da Silveira Barros. Vice Almirante Ignacio da Costa Quintella. —— José de Sá. —— P. Qt.ᵃ Emaus. D. Ignez Raim. Prado. D. Ildefonso Olheiro. Isidoro H. C. Semmedo. Izidro Costa. Jacinto de Freitas Oliv.ʳᵃ —— José de Mattos. —— José de Sá Lima. —— de Sousa Falcão. —— —— —— —— 2 _Exempl._ Jacomo Pereira de Carv.ᵒ J. Bento Pereira. J. B. Massa. J. B. S. L. de Almeida Garrett. J. C. Bastos. Jeronimo José da Silva. —— Perᵃ Vasconc.ᵒˢ —— —— da S.ᵃ Cardoso. J. F. Danin. J. F. Passos. J. F. R. S. de Azevedo. J. F. Thomaz. J. G. Toussaint. J. J. A. Redondo. J. J. da C. J. J. J. Loureiro. J. J. Manitti. J. M. Chaves. J. M. F. Dias. J. M. S. Freire. João A. de S.ˢᵃ Queiroga. —— A. Lobo de Moira. —— Anastacio Simões. —— Antonio Biga Nunes. —— —— Colasso da S.ᵃ 2 _Exempl._ —— —— Marques. —— —— Pereira. —— Bap.ᵗᵃ da Costa. —— —— da Cunha Fer.ᵃ —— —— e Mafaos. —— —— Sabo Junior. P.ᵉ João Baptista da S.ᵃ João Bpt.ᵃ S.ᵃ Malafaia. —— Bento da Costa. —— Bonifacio Guimarães. D. João da Camara. João Coelho de Gibraltar. —— —— da Silva. —— Dias X. do Loureiro. —— Ferr.ᵃ Azev.ᵈᵒ Junior. —— —— Camp. 10 _Ex._ —— —— dos S.ᵗᵒˢ S.ᵃ J. P. João Franc.ᵒ B. Lança. João Gomes Roldão. —— —— dos Santos. Dr. João Gonç. Miranda. Dr. João Gonç. M. Robalo. João Guilherme Caldeira. —— Ignacio Curvo. —— Januario V. Rezende. —— José da Assumpção. —— —— Ferr.ᵃ de Sousa. —— —— Freitas Aragão. —— —— Machado Ferr.ᵃ —— Lameira M. V. Lobos. —— Lourenço Ferr.ᵃ Braga. 4 _Exempl._ —— Luiz de Sousa Falcão. —— —— Talone. —— Manoel de Aral. P.ᵉ João Maria Cardeira. João Maria Feijó. D. João Martins Falcão. João da Matta e Silva. —— Mend. A. Barbarino. —— Neves Gomes Eliseu. —— Nogueira Gandra. —— Nunes da Silva. —— Pedro Coelho. —— —— Heitor Alcant.ᵃ —— —— Nol. Cunha. —— Per.ᵃ Queiroz Basto. 20 _Exempl._ —— Silva Fonseca. —— Procopio Tavares. —— Saecadura Botte Corte Real. 2 _Exempl._ —— da Silva Falcão. D. João Silva Pessanha. João da Silva Serrão. —— de Sousa Falcão. —— Vic.ᵗᵉ P.ᵗᵉˡ Mald.ᵈᵒ —— de V.ˡᵃ N.ᵛᵃ de Vasc.ˡᵒˢ Correia de Barros. Joaq.ᵐ Xavier da Maia. —— Ant.ᵒ Aguiar. 5 _Ex._ —— —— Barbosa Torres. —— —— da Costa. —— —— da Fonseca. —— —— Tenreiro. —— —— Vidal da Gama. —— Augusto Burlamaqui Marecos. —— Barreto de Castilho. —— Corrêa Moreira. —— Felix Moreira 6 _Ex._ —— Francisco Danim. —— G.ᵐᵉˢ V.ʳᵃ Gaio. —— José Bernardes. —— —— Costa Macedo. —— —— Costa Portugal. —— —— da Cunha. —— —— Dias Lopes de Vasconcellos. 3 _Exemp._ —— —— Figueira. —— —— Gião. —— —— Lobo. —— —— Marques Cald.ᵃ —— Julio da S.ᵛᵃ Ferraz. Cons.ʳᵒ Joaq. Larcher. Joaq. Lucio Arbues M.ʳᵃ —— das Neves Franco. —— Pedro Abreu Lima. —— Romão Lob.ᵗᵒ Pires. —— da Silva Cordeiro. —— da Silva Machado. —— Torquato Alvares Ribeiro. _6 Exemp._ —— Victor S.ᵃ Gosmão. —— Urbano de Sampaio. D. Joaq.ⁿᵃ Carlota Fons.ᶜᵃ Jorge Oom. José Anastasio Pereira. —— Antonio de Almeida. —— —— de Castro. —— —— Cob.ʳᵒ d’Azevedo Gentil. —— —— Mello Ar.ʲᵒ —— —— da Silveira. —— —— Soares M.ᵈᵉˢ —— d’Ar.ʲᵒ Coutinho V.ⁿᵃ —— —— Machado. —— Aug.ᵗᵒ Correa Leal. —— Bernardino Frazão. —— de Brito. —— Caetano Rebello. —— Candido Alz. Torres Barata Araujo e Lima. —— Carlos Cerveira Val.ᵗᵉ —— —— da Costa P.ʳᵃ —— —— Guimarães. B.ᵉˡ José Cesar da Silveira. José C. M. —— do Coração de Jesus. —— Crispim da Cunha. —— Ricardo P.ʳᵃ Cabral. —— Roïz. da S.ᵃ Vianna. —— dos Santos Nazareth. —— Servulo Costa e S.ᵃˢ —— Silverio da Fonseca. —— Silvestre de Andrade. —— Sousa Falcão Senior. —— —— —— Junior. —— Tello Mag.ᵃᵉˢ Collaço. —— Vaz Araujo Veiga. José Victorino Freire da Fonseca Cardoso. —— —— Zuzarte Coelho da Silveira. Jovencio Pedroso Oliv.ʳᵃ J. Paulo da Silva. J. P. N. X. de L. Brito. J. P. R. G. J. R. Blanco. J. R. Manco. J. R. Pinto. K. Pinto. L. A. M. Brandão. L. J. de Gouvea. Leandro Capistrano d’Almeida Figueiredo. Lourenço de Almeida. —— Justiniano Lima. —— M. Telles Mattos. L. T. H. de Brederode. Luciano S. Carv.ᵒ para si e seus amigos 40 _Ex._ Luiza Mathey. Luiz A. Bello Reis Junior. —— Antonio de Freitas. —— B. Ribeiro Vianna. —— Caet.ᵒ Guerra Santos. —— C. Alm.ᵈᵃ Botelho. —— da Costa Pereira. —— —— —— Pinto. —— Joaquim de Sampaio. —— José da Silva. D. Luiz M.ᵃ da Camara. Luiz de Mello Breyner. —— —— —— Corrêa. —— Miguel d’Azevedo. —— O. da Costa. M.ᵉˡ Alves do Rio Junior. —— Antonio Rodrigues. —— —— Vianna. —— Bento Rodrigues. D. Manoel da Camara. M.ᵉˡ de Castro Pereira. —— —— —— e Silva. —— Coelho Bragante. —— Felix Oliv. Pinheiro. —— Ferreira Borges. —— Francisco Dias. —— —— —— das Neves. —— Gonçalves Pombo. —— I. Cunha Menezes. —— I. Moreira Freire. —— Joaq.ᵐ Cardoso Castello Branco. 2 _Ex._ —— —— Fortes. —— —— Freire. —— —— Moreira. —— —— Pereira Silva. —— —— Santiago. —— José Cordeiro Galão. —— —— Esteves Campos. —— —— da Motta. —— Maria da Rocha. D. M.ᵉˡ M. Sousa Falcão. M.ᵉˡ Per.ᵃ Lima Tavares. —— Ramos. —— Roïz Costa Salgado. —— dos Santos. —— Thomaz S.ˢᵃ Menezes. —— de Vasconcellos. —— Urbano. Marcellino Ant.ᵒ Moraes. D. M.ᵃ B. C. Vilella. —— —— C. S.ˢᵃ Falcão. —— —— Carlota Vidal Gama Lobo. —— —— Carmo Guimarães. —— —— C. Guimarães. —— —— Clara Braamcamp. —— —— F. Paes de Mattos. —— —— H. Sousa Falcão. —— —— José Ozorio. —— —— J. Sanches Brito. —— —— Luiza d’Albuquerque. 2 _Exempl._ —— —— Magdalena Sousa. —— —— Manoel Vidal da Gama Lobo. —— —— M. Silva Falcão. —— —— R. Sousa Falcão Ferreri. —— —— Vicencia de Mello. —— —— Xavier Falcão. D. Margarida Silva Machado Figueiredo. D. Marianna C. Ribeiro. —— —— G. Pereira de Beça. —— —— Noronha. —— —— da Silva Machado Figueiredo. Marquez de Fronteira. —— de Saldanha. M. F. da Costa. Miguel Ferreira da Costa. —— Fran.ᶜᵒ Saldanha. —— João Coelho. —— Joaquim Pires. —— J.ᵉ Okeeffe. 2 _Ex._ —— M.ᵃ Gomes de Andrade e Leiros. M. J. M. Dantas. 2 _Ex._ M. T. H. de Brederode. N. H. Klingelhoufer. 3 _Exempl._ D. Nicasio Canete y Moral. Nicoláo Maria Nobre. Nicoláo C. P.ᵗᵒ Queiros. —— S. James. Nuno José Gonçalves. Pedro A. N. Domingues. D. Pedro Cunha Menezes. Pedro Jacome de Calheiros e Menezes. —— José de Oliveira. —— M.ᵃ Costa Almeida. —— Paulo Ferr.ᵃ Sousa. —— —— Vasconcellos. —— P.ᵗᵒ Moraes Sarm.ᵗᵒ Bacharel Pedro dos Santos Freire. Pedro da Silva Ferraz. —— de Sousa Cardoso. P. G. Toussaint. P. M. Lagan. 4 _Exempl._ Prior da Magdalena. —— de Marv.ᵃ de Sant.ᵉᵐ —— do Milagre de Sant.ᵉᵐ Quintino Teixeira Carv.ᵒ D. Quiteria da Silva Machado Figueiredo. Rafael Antonio de Brito Pimenta d’Almeida. —— Archanjo de Carv.ᵒ Reis e Irmão. Roberto Wanzeller. Rodrigo de Azevedo Sousa da Camara. —— José Dias Lopes de Vasconcellos. —— Limpo Rav.ᶜᵒ Pereira de Lacerda. Rosa Coelho de Gibraltar. D. Rosa Dioguina Lopes Pereira de Vasconcellos. Sebastião André Xavier. —— Casqueiro Vieira Gago. —— de Gargamala. —— J. Villaça Gama. —— Xavier Botelho. Servulo M.ᵃ de Carvalho. S. J. de Gouvea. Silencio Christão Barros. Simplicio Moura Mach.ᵈᵒ Tertuliano Turibio Lobato Pinto Ferreira. D. Ther.ᵃ Hedeviges Leite de Moraes Castilho. —— —— Maria Botelho. —— —— Miquelina Alves de Sousa. —— —— Theodora da Soledade Martins. —— —— Xavier Botelho. Thomaz Aq.ᵒ S.ˢᵃ 2 _Ex._ —— Pinto Saavedra. —— Rufino Monteiro. Thomé A. Frnz. Roxo. Torcato Francisco Carn.ʳᵒ D. Vasco Guterre Cunha. Vicente Altavilla. —— Pires da Gama. D. Vic.ᵗᵉ Segur. Menezes. Victorino José Gomes. —— Manoel de Oliveira Mascarenhas. Visconde do Porto Covo. 2 _Exempl._ Vital Jorge Maia Canhão. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A PRIMAVERA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. 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The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. 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Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. 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Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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