The Project Gutenberg eBook of A Mãe This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A Mãe Author: Maksim Gorky Translator: Augusto de Lacerda Serge Persky Release date: April 3, 2022 [eBook #67767] Language: Portuguese Original publication: Portugal: ANTIGA CASA BERTRAND Credits: Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A MÃE *** MAXIMO GORKI A MÃE Romance traduzido do manuscripto por S. PERSKY VERSÃO PORTUGUEZA DE AUGUSTO DE LACERDA 1907 ANTIGA CASA BERTRAND José Bastos & C.ᵃ 73, RUA GARRETT, 75 LISBOA PREFÁCIO _A Mãe_ não é uma obra de pura imaginação. É, antes de tudo, uma pintura exacta--poderia até dizer-se uma vista cinematographica--do movimento revolucionario na Russia. Este bello livro introduz na litteratura russa typos que faltavam n’ella quasi por completo: os revolucionarios operarios e camponezes, cujo papel tem sido tão importante nas ultimas tempestades politicas do paiz dos tsars. Graças aos escriptores que se teem succedido de Tourguenev a Leão Tolstoi, o revoltado sahido da classe intellectualmente cultivada é mais ou menos conhecido. Por que motivo não havia ainda um retrato completo do seu irmão oriundo das obscuras camadas do povo? Principalmente porque os revolucionarios d’esta categoria são de recente data. Prepararam-se durante muito tempo nas mysteriosas profundezas das massas, recrutando-se em silencio, multiplicando-se pouco a pouco, até ao dia em que, na sequencia dos acontecimentos de que a Russia acaba de ser o theatro, os viram surgir de chofre por toda a parte, tanto nas aldeias as mais reconditas da provincia, como nas grandes cidades. O povo desperta do seu somno secular, como de sobresalto, e este despertar abre uma era nova na historia do movimento da libertação russa. Entre os intellectuaes e os illettrados, até hoje distanciados uns dos outros, forma-se um laço solido, e um mesmo ideal inflamma o exercito dos que marcham á conquista da liberdade. Descrever esta nova fase da revolução russa, evocar os heroes obscuros que se votaram á grande tarefa da emancipação, analisar nas suas manifestações as mais variadas, e até as mais inesperadas, esta resurreição da consciencia popular,--eis o que Maximo Gorki se propoz nas paginas que ides lêr. Tarefa ardua como poucas, mas de molde a tentar a alma ardente do auctor. Raras vezes Gorki attingiu tal acuidade de observação, uma variedade mais completa no descriptivo, uma tão perfeita certeza d’analyse psichologica. Mais do que nunca, foi o homem identificado com a sua obra. Filho do povo, ascendendo das mais sordidas camadas sociaes, revolucionario unicamente dedicado ao seu puro ideal de justiça (sempre protestou contra a violencia, viesse ella d’onde viesse) Gorki tinha, mais do que outrem, os requisitos para escrever esta pagina tragica da historia contemporanea. No personagem tão profundamente humano da mãe, Gorki mostra como uma mulher cheia de doçura e de timidez, espancada pelo pae, pelo marido, esmagada impiedosamente pela sorte, immersa na ignorancia e no desbragamento, vae adquirindo pouco a pouco a consciencia da sua misera situação, se alevanta sob a influencia do seu filho, até tornar-se como elle revolucionaria enthusiastica, sacrificando por fim as suas mais queridas affeições, a propria vida mesmo, á causa do povo. Em torno da mãe e do filho--os dois heroes principaes--agita-se um amontoado de outros personagens. D’uma parte, os amigos: um russo-menor--alma d’abnegação e de commovente simplicidade,--raparigas sacrificando felicidade e riqueza para soffrerem a prisão e as provações de toda a especie; operarios robustos e safados reclamando, com o direito á vida, algumas liberdades; camponezes que, depois de seculos de cega submissão, se recusam finalmente a considerar os representantes das auctoridades como enviados do céo. D’outra parte, os inimigos: officiaes de policia, guardas e espiões, instrumentos doceis do poder. Toda esta gente, tão estranha e tão viva, estas luctas, estes julgamentos, estes martyrios, episodios d’uma guerra cruel e sem clemencia movida contra os apostolos do ideal novo, tudo isto é a realidade, a realidade de hontem, de hoje, de ámanhã, tudo isto existe e existirá, emquanto na Russia durar a lucta libertadora. De muitas paginas d’este livro emana uma emmoção profunda. No decurso de uma conversa com os seus companheiros, André, o russo-menor, exclama: --Que importam os meus soffrimentos, as minhas desgraças! Quando penso em que um dia a patria será livre, o meu coração dilata-se de jubilo... tenho vontade de chorar, tão feliz me sinto! E quando Pavel diz, falando de um seu amigo desgraçado mas sempre bem disposto d’espirito: --Sabes? aquelles que mais riem são aquelles cujo coração soffre incessantemente. Um companheiro responde: --Qual historia! Se assim fôsse, toda a Russia morreria de riso! * * * * * O principe Ouroussof, antigo ministro adjunto do Interior, na Russia, conta nas suas _Memorias_ que a rainha da Rumania, falando-lhe dos escriptores russos contemporaneos, collocava a muito alto a obra de Gorki, que ella conhecia perfeitamente. «Sabe captar a attenção do leitor, declarava ella, e introduziu processos absolutamente novos na litteratura moderna.» Carmen Sylva alludia provavelmente ao dom que Gorki possue de fascinar o leitor com o poder das scenas que descreve. Taes são, n’este romance, a morte do revolucionario Iégor, a prisão do camponez Rybine, a audiencia do tribunal a que comparecem Pavel e os seus amigos, a scena final em que as mãos dos guardas espancam a pobre mãe. Quantas passagens poderiamos citar ainda! Por exemplo, aquella em que Sophia toca uma symphonia de Grieg. O auctor não diz o nome d’aquelle trecho, mas qualquer musico o reconhecerá immediatamente pela rapida e flagrante descripção que d’elle faz Gorki. * * * * * O governo russo entendeu dever apprehender _A Mãe_ em todo o imperio. Poucos dias depois da apparição da obra, a policia fazia buscas em todas as livrarias tanto de S. Petersburgo como da provincia. Chegou muito tarde e só poude apprehender poucos exemplares, por estar já vendida a parte maxima de uma larga edição. Ao mesmo tempo, as auctoridades entregavam aos tribunaes Gorki e o seu editor, sob a accusação de «excitação á revolta» e de «achincalhamento das coisas santas», crimes que ellas dizem existirem n’este romance. Segundo a lei russa, sob os culpados impende a pena de trez a cinco annos de prisão ou de exilio na Siberia. Ha trez annos somente, Gorki foi encarcerado na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, por motivos analogos. A opinião publica sentiu-se abalada em todo o mundo: de todos os paizes civilisados affluiram petições colossaes, reclamando a libertação do mestre. Gorki foi posto em liberdade. Soffrendo do peito, o auctor da _Mãe_ está desde ha muitos mezes em Capri. Regressará em breve ao seu paiz. A prisão estará esperando novamente um dos melhores filhos da Russia? * * * * * París, novembro, 1907. S. PERSKY A Mãe PRIMEIRA PARTE I Todos os dias, na atmosphera esfumaçada e grave do bairro operario, o apito da fabrica lançava aos ares o seu grito estridulo. Então, creaturas toscas, com os musculos ainda fatigados, sahiam rapidamente das pequenas casas pardacentas e corriam como baratas assustadas. Na fria meia-luz, iam pela rua estreita em direcção aos altos muros da fabrica que os esperava implacavel e cujos inumeros olhos quadrados, amarellos e viscosos illuminavam a calçada lamacenta. A lama estalava sob os seus pés. Vozes estremunhadas resoavam com roucas exclamações; pragas cortavam o ar; e uma onda de ruidos vagos acolhia os operarios: a pesada traquinada das maquinas, o regougar do vapor. Sombrias e mal encaradas como sentinellas, as altas chaminés negras prefilavam-se acima do bairro, semelhantes a grossos bastões. Á tarde, quando o sol ia no poente, os seus raios vermelhos illuminavam as vidraças das casarias, a officina vomitava das suas entranhas de pedra todas as escorias humanas, e os operarios enegrecidos pelo fumo, espalhavam-se novamente pelas ruas, deixando atraz de si exhalações lentas da gordura das maquinas; os seus dentes esfaimados reluziam. Então havia na sua voz animação e até alegria: os trabalhos forçados tinham concluido por algumas horas; em casa aguardava-os a refeição e o descanço. A fabrica absorvia o dia, as maquinas sugavam nos musculos dos homens todas as forças de que ellas precisavam. O dia fôra riscado do computo da vida, sem deixar vestigios; o homem tinha dado mais um passo para o tumulo, sem d’isso se aperceber; mas podia entregar-se ao goso do descanço, aos prazeres da sordida taverna, e estava satisfeito. Nos dias santificados, dormia-se até quasi ás dez horas da manhã; depois a gente séria e casada vestia o seu melhor fato e ia á missa, censurando aos novos a sua indifferença em materia religiosa. Ao regressarem da egreja, comiam tortas de massa, e deitavam-se de novo até á tarde. A fadiga accumulada durante longos annos tirava o appetite; para poderem comer, era preciso beberem muito, excitarem o estomago preguiçoso com a ardencia do alcool. Pela tarde, passeavam indolentemente pelas ruas; os que possuiam capas de borracha punham-nas, ainda que o tempo estivesse secco; os que tinham um guarda-chuva, com elle sahiam, ainda que fizesse sol. Não é dado a toda a gente possuir um impermeavel ou um guarda-chuva, mas cada qual ambiciona superiorisar-se ao seu visinho, seja de que maneira fôr. Quando se formavam grupos, conversava-se acerca da fabrica, das maquinas, dizia-se mal dos contramestres. As palavras e os pensamentos não se referiam a mais do que a coisas relacionadas ao trabalho. A intelligencia desastrada e impotente lançava apenas umas scentelhas isoladas, um tenue clarão na monotonia dos dias. Ao voltarem para casa os maridos buscavam questões para discutirem com as mulheres, batendo-lhes muitas vezes, sem pouparem as suas forças. Os novos ficavam na taverna ou organisavam pequenas reuniões em casa d’um ou d’outro, tocavam harmonio, cantavam canções estupidas e ignobeis, dançavam, contavam historias obscenas e bebiam em excesso. Extenuados pelo trabalho, estes homens embriagavam-se facilmente, e em cada peito desenvolvia-se uma excitação doentia, incompreensivel que precisava de encontrar sahida. Então, pelo mais futil pretexto, atiravam-se uns aos outros como animaes selvagens. Havia contendas sangrentas. Nas relações dos operarios entre si, dominava este mesmo sentimento d’animosidade encubada; inveterara-se n’elles, tanto como a fadiga dos musculos. Estes seres nasciam com a doença da alma, herança de seus paes; e como uma sombra negra acompanhava-os até ao tumulo, impellindo-os á realisação de actos repellentes pela sua inutil crueldade. Nos dias santificados, os novos regressavam tarde a casa, com os fatos esfarrapados, cobertos de lama e de poeira; com as caras esmurradas, gabavam-se dos murros que tinham dado nos companheiros; as injurias soffridas encolerisavam-nos ou faziam-nos chorar; eram lastimaveis na sua embriaguez, desgraçados e repugnantes. Por vezes, os paes levavam para casa os filhos que haviam encontrado a cahir de bêbedos na rua ou na taverna; as injurias e os murros choviam nos rapazes embrutecidos ou excitados pela aguardente; depois mettiam-nos na cama com tal ou qual precaução, e pela manhã accordavam-nos, apenas o silvo do apito da fabrica cortava os ares. Embora repreendessem os rapazes e lhes batessem, a sua embriaguez e as suas contendas eram coisas naturaes para a familia; quando os paes eram ainda novos tinham bebido tambem e entrado em desordens, sendo egualmente castigados pelos paes e pelas mães. A vida decorria sempre assim; continuava a decorrer, não se sabia até onde, regular e lenta como um rio lodoso. Appareciam por vezes no bairro creaturas estranhas, que a principio despertavam a attenção, simplesmente porque eram desconhecidas; mas dentro em pouco habituavam-se a ellas, e acabavam por passar despercebidas. Das suas conversas concluia-se que a vida do operario era em toda a parte a mesma coisa. E desde que era assim, para que falar sobre tal assumpto? Havia porem alguns que diziam coisas novas para o bairro. Não discutiam com elles, não prestavam mais do que uma attenção incredula ás suas palavras extravagantes, que excitavam n’uns uma irritação cega, n’outros uma especie d’inquietação, ao passo que outros ainda sentiam-se perturbados por uma vaga esperança, e desatavam a beber ainda mais que de costume para afastarem tal impressão. Se o recemchegado apresentava algum traço caracteristico extraordinario, os moradores do bairro punham-no em rigorosa quarentena, tratavam-no com instinctiva repulsão, como se receassem vel-o trazer para a existencia de todos o que quer que fosse perturbador do rame-rame penoso, mas tranquillo. Acostumados a serem opprimidos pela vida, aquella gente considerava todas as transformações possiveis como proprias somente a tornarem o seu jugo ainda mais pezado. Resignados, faziam o vacuo em torno d’aquelles que pronunciavam palavras estranhas. Então estes desappareciam não se sabe para onde; se ficavam na fabrica, viviam á parte, não conseguindo confundir-se na multidão uniforme dos operarios. Depois de ter vivido assim uns cincoenta annos, o homem morria. II D’esta maneira vivia o serralheiro Mikhaíl Vlassof, homem sombrio, de pequeninos olhos desconfiados e maus, protegidos por espessas sobrancelhas. Era o melhor serralheiro da fabrica e o hercules do bairro. Tinha porem modos grosseiros para o chefe; por isto ganhava pouco; todos os domingos sovava algum; todos o temiam e ninguem o estimava. Por varias vezes, haviam tentado dar-lhe uma tareia, mas nunca conseguiram. Quando Vlassof previa uma agressão, agarrava n’uma pedra, n’uma taboa, n’um bocado de ferro, e, solidamente firme nas pernas abertas, esperava em silencio o inimigo. Com a cara coberta, desde as orelhas até ao pescoço d’uma barba negra, as suas mãos pelludas despertavam um terror geral. Principalmente tinham medo dos seus olhos penetrantes que atravessavam o proximo como pontas d’aço; quando lhe encontravam o olhar, sentiam-se em presença d’uma força selvagem, inaccessivel ao terror, prestes ao ataque impiedoso. --Eh lá! Vá d’aqui, canalha! dizia elle roucamente. Na espessa tez do seu rosto, os dentes amarellos brilhavam ferozes. Os seus adversarios recuavam, invectivando-o. --Canalha! gritava elle ainda, e os seus olhos disparavam sarcasmos acerados como sovelas. Depois, erguendo a cabeça com ares provocadores, seguia os seus inimigos, berrando de quando em quando: --Então! quem quer morrer? Ninguem queria. Falava pouco. A sua expressão favorita era: «canalha». Qualificava assim os chefes da fabrica e da policia; empregava o mesmo epitheto quando se dirigia á mulher. --Ó canalha, não vês que as minhas calças estão rôtas? Quando o seu filho Pavel tinha quatorze annos, Vlassof sentiu ainda uma vez o desejo de levantal-o ao ar pelos cabellos. Mas Pavel, deitando a mão a um martello, disse resumidamente: --Não me toques! --O quê? perguntou o pae, encaminhando-se para o pequeno de fôrmas esbeltas e delicadas. Dir-se-ia uma sombra cahindo sobre uma betula. --Basta! exclamou Pavel. Não te deixarei continuar... E agitou o martello, abrindo desmedidamente os grandes olhos negros. O pae olhou para elle, pôz as mãos pelludas atraz nas costas, e disse em ar de troça: --Está bem... Depois accrescentou com um profundo sorriso: --Ah! canalha! Logo declarou á mulher: --Nunca me peças mais dinheiro para os sustentar, a ti e ao Pavel. --Vaes gastar tudo na bebida? ousou ella perguntar. Deu um murro na meza, exclamando: --Que tens tu com isso, canalha? Vou arranjar uma amante! Não a arranjou; mas a partir d’aquelle dia até á morte, durante cerca de dois annos, nunca mais olhou para o filho nem lhe dirigiu palavra. Tinha um cão tão forte e pelludo como elle. Todas as manhãs o animal o acompanhava até á porta da fabrica, onde o esperava á tarde. Nos dias santificados, Vlassof ia para a taverna. Andava sem dizer palavra, e como se procurasse o que quer que fosse, lançando olhares furtivos aos que passavam. Durante todo o dia, o cão seguia-o, com a espessa cauda descahida. Quando Vlassof, bêbedo, entrava em casa, ceava e dava de comer ao cão no seu proprio prato. Nunca batia no animal, assim como não lhe ralhava nem o acariciava. Depois da refeição, se a mulher não conseguia levantar a meza no momento opportuno, atirava com a louça ao chão, punha na sua frente uma garrafa de aguardente e, com as costas contra a parede, com a bôca muito aberta e os olhos fechados, cantava em voz roufenha uma canção melancólica. Os sons discordantes baralhavam-se-lhe no bigode, do qual cahiam migalhas de pão; os seus dedos grossos alizavam os pellos da barba. As palavras da canção eram incompreensiveis, arrastadas, a melodia recordava os urros dos lobos no inverno. Cantava emquanto durava a aguardente; depois estirava-se no banco ou encostava a cabeça á meza e dormia assim até que o apito da fabrica o chamava. O cão deitava-se ao seu lado. Morreu d’uma hernia, apoz longa agonia. Durante cinco dias, enegrecido pelo soffrimento, agitou-se incessantemente no leito, com as palpebras cerradas, com a bôca em contorsões. De quando emquando, dizia para a mulher: --Dá-me arsenico. Envenena-me! Ella chamou o medico, que receitou cataplasmas, informando de que seria indispensavel uma operação, e de que era preciso levar o doente para o hospital immediatamente. --Vae para o diabo, canalha! Morro bem, sósinho! respondeu elle. Quando o medico sahiu, a mulher lavada em lagrimas, quiz resolvel-o a submetter-se á operação; Milkhaíl declarou-lhe ameaçando-a de punho cerrado: --Não experimento. Se eu ficasse bom, haverias de pagal-o caro! Uma manhã, morreu, emquanto o apito da fabrica chamava os operarios ao trabalho. Deitaram-no no caixão; tinha o sobrolho franzido e a bôca aberta. Foi levado á ultima morada pela mulher, pelo filho, pelo cão, e por Danilo Vessoftchikof, velho ladrão e bêbedo expulso da fabrica, e por alguns miseraveis do bairro. A mulher chorou um pouco. Pavel tinha os olhos sêccos. Os que encontraram o prestito funebre pararam e persignaram-se, dizendo: --Com certeza que Pélagué está satisfeita com a morte do marido. Alguem emendou: --Não morreu: rebentou. Depois do caixão descer á terra, os que o acompanharam voltaram para casa; o cão ficou deitado na terra humida, farejando por muito tempo. Decorridos alguns dias, mataram-no; não se soube quem. III Certo domingo, uns quinze dias depois da morte do pae, Pavel entrou em casa embriagado. Parou cambaleando na primeira divisão, e gritou para a mãe, dando um murro na meza, como fazia Mikhaíl: --A ceia! Pélagué approximou-se, assentou-se ao seu lado; enlaçando-o com os braços, puxou para o peito a cabeça do filho. Elle repelliu-a, pondo-lhe o braço no hombro, e disse: --Depressa, mamã! --Patetinha! respondeu ella com voz triste e carinhosa. --Tambem quero fumar! Dá-me o cachimbo do pae... rosnou, movendo a custo a lingua rebelde. Era a primeira vez que se embriagava. O alcool tinha enfraquecido o seu corpo, mas não lhe extinguira a consciencia; perguntava a si proprio: --Estou bêbedo?... Estarei bêbedo? As caricias da mãe vexavam-no; estava commovido pela tristeza do olhar d’ella. Tinha vontade de chorar; e para vencer este desejo fingiu-se ainda mais embriagado. E a mãe acariciava-lhe os cabellos em desordem e cobertos de suor, dizendo suavemente: --Não devias ter feito isso... Pavel começava a sentir nauseas. A seguir aos vomitos, foi levado para a cama pela mãe, que lhe collocou uma toalha humida na fronte pálida. Repoz-se um pouco; mas tudo lhe andava á roda; as palpebras pezavam-lhe; tinha na bôca um gôsto repugnante e amargo; olhava para o rosto da mãe e tinha pensamentos sem nexo. --É ainda cedo para mim... Os outros bebem sem ficarem doentes; eu tenho nauseas. A doce voz da mãe chegava-lhe aos ouvidos como se viesse de muito longe: --Como poderás sustentar-me, se te entregas á bebida? Respondeu, fechando os olhos: --Todos bebem... Pélagué suspirou profundamente. O filho tinha razão. Ella bem sabia que os homens não encontrariam outro sitio senão a taverna para se divertirem, que não tinham outro prazer senão o alcool. No entretanto, retorquiu: --Tu não precisas de beber! O teu pae bebeu á farta por ti; e bastante me atormentou... Deves ter piedade da tua mãe. Ouvindo estas palavras melancólicas e resignadas, Pavel pensou na existencia silenciosa e apagada d’aquella mulher, esperando sempre os espancamentos do marido. Nos ultimos tempos, Pavel pouco se demorava em casa, para não ver o pae; desprezava um tanto a mãe; regressando ao seu estado normal, examinava-a. Era alta e levemente corcovada; o seu corpo pesado, abatido por incessante trabalho e por maus tratos, movia-se sem ruido, obliquamente, como se ella receasse topar n’alguma cousa. O largo rosto oval, sulcado de rugas e ligeiramente empapuçado, tinha a dar-lhe brilho uns olhos negros, de uma expressão triste e inquieta como o de quasi todas as mulheres do bairro. Na testa uma cicatriz profunda fazia-lhe subir um pouco o sobrolho direito; parecia tambem que a orelha direita estava mais acima do que a outra, o que dava ao rosto um ar receoso. Tinha no cabello espesso e negro madeixas grisalhas semelhantes a nodoas resultantes de violentas pancadas. Toda ella transpirava suavidade, uma resignação dolorosa. E ao longo das faces corriam-lhe lentamente as lagrimas. --Olha! não chores! supplicou Pavel em voz baixa. Dá-me de beber! --Vou buscar agua gelada... Quando voltou, elle dormia. Ficou immovel por um instante, retendo a respiração; a bilha tremia-lhe nas mãos, os pedaços de gelo tintilavam dentro. Depois de collocal-a na meza, Pélagué ajoelhou diante das imagens santas e orou silenciosamente. Os vidros das janellas tremiam sob as ondas sonoras da vida obscura e alcoolica do exterior. Nas trevas e na humidade d’aquella noite d’outomno, ouviam-se os rangidos de um harmonio; alguem cantava de guella aberta; passavam nas ruas palavras abjectas e obscenas; vozes de mulheres vibravam, assustadiças ou irritadas. * * * * * Na pequena habitação de Vlassof, a vida decorria uniforme, mas mais tranquilla e em paz do que outrora, distinguindo-se assim da existencia geral do bairro. A casa era situada na extremidade da rua direita, no cimo d’um pequeno alto, nos baixos do qual havia um pantano. A cozinha occupava o terço da habitação; um delgado tabique, que não chegava ao tecto, separava-a de um pequeno quarto onde dormia a mãe. O resto formava uma casa quadrada, com duas janellas; a um canto, a cama de Pavel, no outro, dois bancos e uma meza. Algumas cadeiras, uma comoda onde guardavam a roupa, um pequenino espelho, uma mala para o fato, um relogio e duas imagens de santos, era tudo. Pavel tentava viver como os outros. Fazia quanto era proprio a um rapaz; comprou um harmonio, uma camisa de peitilho engomado, uma gravata vistosa, galochas e capa de borracha, e uma bengala. Na apparencia assemelhava-se a todos os adolescentes da sua idade. Ia ás reuniões, aprendia a dançar a quadrilha e a polka; ao domingo entrava em casa embriagado. Nas manhãs seguintes, doia-lhe a cabeça, a febre consumia-o, o seu rosto estava palido e desfigurado. Um dia, a mãe perguntou-lhe: --E então, divertiste-te hontem á noute? Respondeu com sombria irritação: --Aborreci-me atrozmente! Os meus companheiros são umas maquinas!... Prefiro ir á pesca ou comprar uma espingarda. Trabalhava com zelo; nunca era multado, nem gazeteava. Andava taciturno. Os seus olhos azues, grandes como os da mãe, tinham uma expressão de descontentamento. Não comprou a espingarda nem foi á pesca; mas abandonou o caminho que seguiam os companheiros, frequentava cada vez menos as reuniões, e, embora continuasse a sahir ao domingo, voltava para casa em seu juizo. Pélagué observava-o sem dizer palavra e via o rosto moreno de Pavel tornar-se dia a dia mais magro, o olhar sempre mais grave e os labios cerrarem se com aspera severidade. Parecia soffrer de qualquer doença ou de qualquer colera misteriosa. Antigamente, os companheiros visitavam-no, mas como elle deixara de permanecer em casa, não voltavam. A mãe via com prazer que o filho não imitava os rapazes da fabrica; mas quando notou aquella obstinação em afastar-se da torrente obscura da vida monotona, a sua alma foi invadida por vaga inquietação. Pavel trazia livros para casa; a principio, tentava lel-os a occultas. Por vezes, copiava alguns trechos n’um pedaço de papel. --Não andas bem, meu filho? perguntou-lhe uma vez Pélagué. --Vou bem, vou! respondeu. --Estás tão magro! suspirou ella. Ficou silencioso. Falavam pouco, e apenas se viam. Pela manhã, o rapaz tomava em silencio o chá e ia para o trabalho; ao meio-dia vinha jantar; á meza não trocavam mais do que palavras insignificantes; depois desapparecia até á tarde. Findo o dia, lavava-se cuidadosamente, ceava e lia os seus livros. Ao domingo, sahia de manhãsinha e só voltava á noite. A mãe sabia que elle passeava na cidade, que ia ao theatro; mas da cidade ninguem vinha vêl-o. Parecia-lhe que, quantos mais dias passavam, menos o seu filho lhe dirigia a palavra; e ao mesmo tempo notava que dia a dia maior era o numero de termos novos, incomprehensiveis para ella, e que Pavel empregava em substituição das expressões grosseiras, outrora habituaes no seu falar. Passára a ligar mais cuidado ao asseio do seu corpo e do seu fato; movia-se com mais ligeireza e facilidade; tornou-se mais simples na apparencia, mais docil; preoccupava-se de sua mãe. Tratava-a de uma maneira nova; ás vezes, varria o sobrado do quarto, fazia elle mesmo a sua cama, ao domingo; em geral, sem frases, sem ostentação, diligenciava auxiliar a mãe no trabalho caseiro. Ninguem fazia isto lá no bairro... Um dia, trouxe comsigo um quadro que pendurou na parede e que representava trez personagens tendo impressas nas feições a resolução, a coragem. --É o Christo ressuscitado dirigindo-se a Emmaús! explicou. O quadro agradou a Pélagué; ella pensou porem: --Respeitas o Christo e não vaes á egreja... Depois vieram mais quadros adornar as paredes, o numero de livros augmentou na prateleira ali collocada por um marceneiro, companheiro de Pavel. O quarto ia tomando um aspecto agradavel. O rapaz dizia a miudo «a sr.ᵃ» quando se dirigia á mãe, a quem tambem chamava «mamã». Era até mais prodigo em palavras, embora breves. --Mãe, não fique em cuidado, peço-lhe; esta noite venho tarde. E ao ouvil-o assim, ella sentia que se passava o que quer que fosse forte e serio, que lhe agradava. Mas a sua anciedade augmentava dia a dia, e como não entrava em explicações com Pavel, adquiria o presentimento de alguma coisa extraordinaria que lhe apertava o coração. Pensava até: --Os outros vivem como creaturas humanas, mas elle é como um frade... Tão grave!... Não é proprio da sua idade... Perguntava a si mesma: --Terá uma amiga? Mas para ser amado pelas pequenas, é preciso dinheiro, e elle entregava-lhe quasi toda a feria. Assim se passaram semanas, mezes, quasi dois annos, n’uma vida extravagante, cheia de pesares, de vagos receios cada vez maiores. IV Uma noite, á ceia, Pavel, tendo fechado as cortinas das janellas, assentou-se a um canto e pôz-se a lêr, depois de ter pendurado na parede, por cima da cabeça, uma lampada de metal. A mãe tinha acabado o serviço da cozinha; approximou-se d’elle. Pavel ergueu a fronte e fixou-a com olhar interrogador. --Não é nada... mesmo nada! disse ella rapidamente. E afastou-se, pestanejando, a modos confuza. Mas depois de ter ficado immovel por um instante, no meio da cozinha, lavou as mãos e voltou, pensativa, preoccupada. --Olha: queria perguntar-te o que andas sempre a lêr... declarou com simpleza. Elle pôz o livro nos joelhos. --Assenta-te, mamã. Pélagué sentou-se pesadamente ao seu lado, apurou o ouvido, na espectativa de alguma coisa grave. Sem olhar para ella, a meia voz, muito rudemente, Pavel falou. --Leio livros prohibidos. Prohibem a sua leitura porque dizem a verdade da nossa vida, da vida do povo. São impressos ás escondidas, e se os encontrassem em minha casa, eu seria prezo... prezo por ter querido saber a verdade. Percebeste? Ella sentiu de subito a respiração oppressa, e fixou o olhar esgazeado no filho, que lhe pareceu outro, um estranho. Tinha outra voz, mais grossa, mais cava, mais sonora. Com os dedos adelgaçados torcia as sedosas guias do bigode e para ella descia o olhar enigmatico. Pélagué teve medo, por elle. --Para que é isso, Pavel? Elle ergueu a cabeça, observou-a e respondeu tranquillamente: --Quero saber a verdade. A sua voz era em tom baixo, mas firme; brilhava-lhe no olhar um desejo obstinado. Pélagué comprehendeu que o filho se consagrára para sempre ao que quer que fôsse misterioso e terrivel. Tudo lhe parecera sempre inevitavel; estava acostumada a submetter-se sem reflectir; por isto começou de chorar baixinho, sem encontrar palavras no seu coração confrangido pela angustia e pela dôr. --Não chores! disse-lhe Pavel, carinhosamente--e á mãe parecia que elle lhe dizia um adeus--reflecte! Que vida a nossa! Tu tens quarenta annos, e, francamente, podes dizer que tenhas vivido? O pae batia-te... compreendo agora que era o seu pezar da vida o que elle desabafava assim nas pancadas que te dava... o pezar da vida que o opprimia, e que elle nem mesmo sabia d’onde lhe vinha. Trabalhou durante trinta annos; começou quando o edificio da fabrica não tinha mais do que dois predios, e hoje tem sete! As fabricas desenvolvem-se e nós morremos trabalhando para ellas... Pélagué ouvia-o, com receio e ao mesmo tempo com avidez. Os bellos olhos azues do rapaz luziam; com o peito apoiado á mesa, approximou-se da mãe, e tocando quasi no seu rosto banhado de lagrimas, dizia-lhe o seu primeiro discurso sobre a verdade, tal como elle a compreendia. Com a ingenuidade da juventude e com o ardor d’um collegial orgulhoso dos seus conhecimentos e sinceramente convicto de importancia d’elles, falava de tudo que lhe parecia tão evidente, falava tanto para se avaliar a si mesmo como para convencer sua mãe. Detinha-se por vezes quando lhe faltavam as palavras, e então via o rosto inquieto no qual brilhavam aquelles bons olhos velados pelas lagrimas, cheios de terror, de preplexidade. Apiedou-se de sua mãe e novamente falou d’ella. --Que alegrias tens tu conhecido? perguntou. Que tiveste no passado que fosse bom? Ella meneou a cabeça tristemente; invadia-a um sentimento novo, desconhecido ainda, doloroso e alegre ao mesmo tempo, que lhe acariciava deliciosamente o coração dolorido. Pela primeira vez, falavam-lhe d’ella e da sua propria existencia; vagos pensares, adormecidos havia muito, despertavam no seu ser, reanimavam os sentimentos extinctos com um vago descontentamento, as recordações, as saudades da sua mocidade longinqua. Falou da sua vida, dos seus amigos, de todo o passado; mas, como os outros, não sabia mais do que lamentar-se; ninguem explicava o motivo da sua vida tão penosa e ardua. E agora, com o filho sentado a seu lado, tudo quanto os olhos de Pavel, o seu rosto, as suas palavras lhe diziam, tudo lhe falava captivantemente ao coração, enchendo-a de altivez: era o seu filho quem compreendera a vida da mãe e quem lhe apresentava a verdade sobre os soffrimentos, quem a lamentava. Em geral, não ha quem lamente as mães. Ella bem o sabia. Não compreendia que Pavel não falava d’ella só, mas tudo o que elle dissera da vida feminina era a verdade, verdade nua e crua. Eis porque lhe parecia que no seu peito se agitava um sem-numero de sensações que a aqueciam como desconhecida caricia. --O que queres tu fazer? perguntou-lhe, interrompendo-a. --Aprender e depois ensinar aos outros. Devemos aprender, sim, devemos saber, devemos compreender a razão porque a vida nos é tão penosa. Era consolador para a mãe ver os olhos azues do seu filho, sempre serio e severo, brilharem ternamente, illuminando n’elle o que quer que fosse raro. Um sorriso de satisfação pairou nos labios de Pélagué, embora houvesse ainda lagrimas nas rugas das suas faces. Um duplo sentimento dividiu o seu ser: era uma irmã do filho que queria a felicidade de todos os homens, que os lastimava a todos e que via a dôr da vida; e ao mesmo tempo não podia esquecer que elle era um rapaz, que não falava como os seus companheiros, que resolvera entrar sósinho em lucta contra a vida rotineira que ella e os outros tinham. Sentiu desejos de dizer-lhe: --Meu querido! o que podes tu fazer? Esmagar-te-ão. E morrerás! Mas temeu deixar de admirar o rapaz que de subito se lhe revelara, tão intelligente, tão transformado... Pavel via o sorriso nos labios da mãe, a attenção que ella lhe prestava, o amor expandindo-se-lhe no olhar; julgou ter-lhe feito compreender a verdade que elle tinha descoberto, e o juvenil orgulho da força da sua palavra exhaltava a sua mesma fé. Cheio d’excitação, falava sempre, ora rindo, ora franzindo o sobrolho; por momentos o odio transparecia na sua voz, e quando Pélagué lhe ouvia estes tons rudes, meneava timidamente a cabeça, perguntando baixinho: --E tens a certeza de que isso é assim? --Tenho! respondia elle com a voz forte e firme. E falava-lhe dos que queriam o bem do povo, dos que semeavam a verdade e que por isto eram perseguidos como feras, mettidos em prisões, exilados para o degredo pelos inimigos da vida. --Tenho visto d’estas creaturas! exclamava com ardor. São as melhores almas deste mundo! Estes seres excitavam o terror da mãe, que tinha vontade de perguntar ainda: --E tens a certeza de que isso é assim? Mas não se atrevia, preferindo ouvir exhaltar creaturas que ella não compreendia e que tinham ensinado ao seu filho uma maneira de pensar e de falar tão perigosa para elle. --Pouco falta para nascer o dia. Se tu te deitasses, se dormisses... É preciso ires para o trabalho ámanhã. --Vou deitar-me, vou, concordou. E abeirando-se d’ella, perguntou-lhe: --Compreendeste-me? --Sim! suspirou a mãe. De novo lhe rebentáram as lagrimas, e acrescentou entre soluços: --Morrerás!... Elle ergueu-se e entrou de passear pelo quarto. --Bem! Sabes agora o que faço, aonde vou! Disse-te tudo! Supplico-te, mãe, que se me amas, não me detenhas! --Meu querido filho! exclamou ella. Teria sido melhor nada me haveres dito! Pavel pegou-lhe na mão, apertando-a fortemente entre as suas. Ella ficára impressionada por aquella palavra «mãe» pronunciada com ardor juvenil, e por aquelle aperto de mão tão novo e raro. --Nada farei para te contrariar, disse em tom saccudido. Recommendo-te apenas: toma cuidado! toma cuidado! E sem bem saber em que elle devia tomar cuidado, accrescentou tristemente: --Estás cada vez mais magro. E envolvendo n’um olhar caricioso o corpo robusto e harmonico do filho, disse em voz baixa: --Que Deus esteja comtigo! Vive como quizeres, não te impedirei! Só te peço uma coisa: não fales levianamente. É conveniente desconfiar dos mais, que mutuamente se odeiam! Vivem d’avidez, vivem d’inveja! Todos se sentem felizes quando fazem mal. Quando quizeres accusal-os, julgal-os, odiar-te-ão, levar-te-ão á morte! De pé, no limiar da porta, Pavel ouvia estas palavras dolorosas, ás quaes respondeu sorrindo: --O proximo é mao, sim. Mas quando aprendi que havia na terra uma verdade, o proximo pareceu-me melhor. Sorriu ainda e continuou: --Eu mesmo nem sei como isto me veio. Na minha infancia, tinha medo de todos e de tudo... Quando cresci, comecei a odiar, a uns pela sua covardia; a outros... nem sei porquê. Mas agora já não acontece o mesmo: creio que tenho piedade d’elles. Não comprehendo como, mas o meu coração tornou-se mais terno quando soube que havia uma verdade para os homens e que elles não são todos culpados da ignominia da sua vida. Calou-se por um instante, como para escutar o que quer que fosse dentro d’elle, e depois concluiu pensativo: --É assim que a verdade transpira! Ella, tendo-lhe lançado um olhar rapido, murmurou: --Transformaste-te d’uma maneira perigosa! Meu Deus! Quando elle adormeceu, Pélagué levantou-se cautelosamente e approximou-se-lhe do leito. O rosto moreno, de feições severas e obstinadas desenhava-se distinctamente sobre o travesseiro branco. Com as mãos juntas no peito, com os pés descalços, em camisa, a mãe permanecia immovel; os seus labios moviam-se em silencio, e de seus olhos desciam lentamente fartas e tôrvas lagrimas. V A vida recomeçou para elles; novamente se encontravam proximos e afastados. Uma vez, n’um dia santo, no meio da semana, Pavel disse á mãe, quando ia sahir: --No sabbado ha de vir gente cá a casa. --Que gente? --Gente d’aqui... e gente da cidade. --Da cidade...? repetiu a mãe, meneando a cabeça. E desatou a chorar. --Porque choras, mamã?! exclamou Pavel contrariado. Porquê? Respondeu com froixa voz, limpando as lagrimas: --Não sei... Porque sim. Elle deu alguns passos pelo quarto, e parando deante d’ella: --Tens medo? --Tenho! confessou. Essa gente da cidade... sabe-se lá quem é! Inclinou-se para ella e disse com a voz irritada, como o pae: --É por causa d’esse medo que todos nós morremos! E os que mandam em nós aproveitam-se d’esse medo e ainda mais nos amedrontam. Comprehenda de uma vez para sempre: emquanto houver medo, apodreceremos como as bétulas nos pantanos. Afastou-se, exclamando: --Deixal-o! Nós nos reuniremos cá em casa... A mãe atalhou, chorando: --Não me queiras mal! Como não hei de eu ter medo? Passei entre sustos toda a minha vida... tenho a alma cheia d’elles. Pavel retorquiu a meia voz, mas brandamente: --Desculpe. Não tenho outro meio ao meu alcance. E sahiu. Durante trez dias, Pélagué tremia: o coração parecia-lhe parar quando pensava em que gente extranha entraria em sua casa. Não podia fantasial-os, mas afiguravam se-lhe terriveis. Eram elles quem apontaram ao seu filho o caminho que elle seguia agora... No sabbado á tarde, Pavel voltou da fabrica, lavou-se, mudou de fato e saíu, dizendo sem olhar para a mãe: --Se alguem vier, dize que não me demoro, que me esperem. E não tenhas medo, se fazes favor... São pessoas como as outras. Ella deixou-se cahir sobre o banco. O filho contemplou-a franzindo o sobrolho, e propoz--Talvez seja melhor saíres; an? Ella offendeu-se. Disse que não com a cabeça, murmurando: --Seria o mesmo. Para que sairia eu? Estava-se no fim de novembro. Durante o dia tinha caído na terra gelada um nevão fino e secco, que Pavel triturava sob seus passos. Ás vidraças apegavam-se espessas trevas. A mãe, desalentada, ia esperando, com os olhos fixos na porta. Parecia-lhe que, na obscuridade, creaturas silenciosas, de trajos não vulgares, se dirigiam para a casa, vindos de pontos varios, que se adiantavam occultando-se, corcovados, e olhando para um e outro lado. Junto da porta, encostado á parede, havia já alguem. Ouviu-se um assobio que vibrou no silencio como um fio, melodioso e triste; errava no deserto da noite, approximava-se... De subito, calou-se mesmo junto á janella, como se tivesse penetrado atravez da parede. Soou o ruido de passos; Pélagué ergueu-se trémula, com os olhos dilatados. Abriu-se a porta. Appareceu primeiro uma cabeçôrra com um boné de pelles, depois um corpo acurvado que se esgueirou lentamente, que se endireitou, que levantou o braço direito vagarosamente, arrancando do peito em suspiro ruidoso: --Boa noite. Pélagué cumprimentou em silencio. --O Pavel ainda não veio? O homem tirou com vagar um casaco de pelles, levantou um pé, saccudiu com o boné a neve que lhe cobria as botas, atirou depois com o boné para um canto e entrou no quarto bamboleando-se nas suas altas pernas. Approximou-se d’uma cadeira, examinou-a como, para certificar-se de que era sólida, assentou-se por fim e pôz-se a bocejar, tapando a bôca com a mão. Tinha a cabeça redonda e o cabello cortado á escovinha, a barba feita, e grosso bigode de guias compridas e pendentes. Depois de ter examinado o quarto com os grandes olhos bojudos e acinzentados, cruzou as pernas e perguntou balouçando-se na cadeira: --O casebre pertence-lhes ou é alugado? Pélagué, sentada em frente delle, respondeu: --Alugamol-o. --Não é grande coisa! observou o homem. --O Pavel não se demora; queira esperar, disse froixamente. --É o que estou fazendo! replicou tranquillamente. A sua tranquillidade, a sua voz suave, a simpleza da sua fisionomia deram coragem a Pélagué. Elle contemplava-a com olhar franco, com um ar bondoso; no fundo dos seus olhos transparentes luzia um brilho alegre, e havia um tanto de divertido e de simpatico n’aquella creatura angulosa e acurvada como n’um poleiro feito das proprias pernas. Trazia vestidas calças pretas, cujas extremidades estavam mettidas quasi dentro das botas; em vez de casaco, bluza azul. Pélagué tinha vontade de perguntar-lhe quem elle era, d’onde vinha, se conhecia o seu filho de ha muito tempo, quando, de chofre, elle moveu-se e perguntou: --Ó tiasinha, quem foi que lhe abriu essa brécha na testa? Falava meigamente e sorria com o olhar. Mas a pergunta irritou-a. Mordeu os labios, e apóz curto silencio, perguntou com fria delicadeza: --E o que tem o tiosinho com isso? Elle voltou-se de todo. --Ah! não se zangue. Se lhe fiz esta pergunta, foi porque a minha mãe adoptiva tinha tambem uma brécha na testa, exactamente como a sr.ᵃ. Uma sova que lhe deu o marido, com uma fôrma de botas. Era sapateiro. Ella era lavadeira. Tinha-me adoptado já, quando, por sua desgraça, encontrou aquelle bêbedo não sei onde. O patife batia-lhe; digo-lhe só isto! Eu tinha tanto medo d’elle, que a pelle estalava-me. Pélagué sentiu-se desarmada perante aquella franqueza, e pensou de si para si que talvez Pavel não ficasse contente, se ella fosse menos delicada para com aquelle original. Por isso disse com um sorriso envergonhado: --Eu não me zango... O sr. é que me deixou surpreza com a pergunta. Foi um presente do meu marido, que Deus tenha! O sr. não é tartaro? O homem mexeu as pernas, e teve um sorriso tão aberto, que até as orelhas pareciam chegar-lhe á nuca. Depois disse gravemente: --Ainda não... ainda não sou tartaro. --É que não fala exactamente como um russo! explicou ella sorrindo, porque lhe compreendera o gracejo. --A minha lingua vale mais do que o russo! exclamou com um meneio importante. Sou russo-menor, da cidade de Kanief. --E ha muito tempo que está por cá? --Vivi na cidade, perto de um anno, e ha um mez que vim aqui para a fabrica. Travei conhecimento com excellentes pessôas... o seu filho... e mais alguns... não muitos. Quero fixar-me por cá, accrescentou, torcendo o bigode. Estava agradando a Pélagué que, para agradecer o elogio feito ao filho, lhe perguntou: --Quer chá? --O quê? sósinho? observou, encolhendo os hombros. Faça o offerecimento quando estivermos todos juntos. Ouviram-se passos outra vez, a porta abriu-se de chofre; Pélagué levantou-se. Com grande espanto seu, quem entrou na cosinha foi uma rapariga, de vestido leve e pobre, baixa, com cara de camponeza. A recemchegada, cujos cabellos eram loiros e espessos, perguntou: --Ainda venho a tempo? --Ah! vem! respondeu o russo-menor, que permanecia no quarto. Veio a pé? --Podera! A sr.ᵃ é a mãe do Pavel Mikhaílovitch? Bôa noite! Eu chamo-me Natacha. --E o seu pae? perguntou Pélagué. --Vassilievna. E a sr.ᵃ? --Pélagué Milovna. --Bello! Estamos apresentados! --Sim, estamos... concordou Pélagué, com um ligeiro suspiro. E sorrindo observou a rapariga. O russo-menor perguntou: --Faz frio? --Se faz! e muito, lá pelos campos; uma ventania!... Tinha a voz pastosa, clara; a bôca era pequena e redonda; e toda ella era gorducha e cheia de frescura. Depois de tirar a capa, esfregou energicamente as faces coradas com as mãosinhas avermelhadas pelo frio; e, passeando pelo quarto com passos rapidos, batia no sobrado com os tacões. --Não tem galochas de borracha! pensou Pélagué. --Que frio! E arrastando muito as palavras: Estou entorpecida! gelada! --Vou já, já, preparar o samovar! disse rapidamente a dona da casa. E saíu para a cozinha. Dir-se-ia que conhecia aquella rapariga de ha muito tempo e que a estimava como sua filha. Estava satisfeita por vêl-a; vindo-lhe á ideia os olhos pardos e piscos do russo-menor, sorriu satisfeita tambem; prestou attenção á conversa. --Porque está triste, André? perguntou a rapariga. --Porque sim! A viuva tem um olhar bondoso e lembra-me que talvez seja como o da minha mãe... Penso muito na minha mãe, sabe? Parece-me sempre que ella vive. --Ouvi-lhe dizer que ella tinha morrido... --Não! Falava da minha mãe adoptiva, e agora falo da minha verdadeira mãe. Imagino que ella pede esmola, algures, em Kief e que bebe aguardente... --Porquê? --Sei lá! E que quando está embriagada, os policias a esbofeteiam. --Pobre homem! pensou Pélagué, suspirando. Natacha passou a falar rapidamente, a meia-voz. Depois, tornou a ouvir-se a voz sonora do russo-menor: --É ainda nova! não tem experiencia! Todos teem mãe, e apesar d’isso quantas creaturas más!... É difficil dar á luz, mas é muito mais difficil ensinar o bem ao homem. --Isso! isso! exclamou lá de dentro Pélagué. Desejava poder responder que ella, por exemplo, se consideraria feliz ensinando o bem a seu filho, mas que não sabia d’essas coisas; a porta porem abriu-se vagarosamente dando entrada a Vessoftchikof, filho do velho ladrão Danilo, o misantropo celebre em todo o bairro. Mantinha-se sempre afastado dos outros, que por este facto chasqueavam d’elle. Pélagué perguntou admirada: --O que é que tu queres? Fitou n’ella os olhos pardos, limpou com a palma da mão a cara bexigosa e de maçãs salientes, e, sem responder ao cumprimento de Pélagué, perguntou em tom cavo. --O Pavel está em casa? --Não. Relanceou a vista pelo quarto e entrou, dizendo: --Boa noite, companheiros. --Tambem este!... Será possivel? pensou ella hostilmente. E mais se admirou vendo Natacha estender a mão ao recemchegado com modo alegre e amigavel. Vieram em seguida dois rapazes, duas creanças quasi. A dona da casa conhecia um d’elles: era o sobrinho de Fédor Sizof, velho operario da fabrica; tinha feições d’arguto, fronte elevada e cabellos encaracolados. O outro, de cabello corredio, era-lhe desconhecido, mas não a assustava, parecia modesto. Afinal Pavel chegou, acompanhado de dois amigos, que ella reconheceu logo: eram dois operarios tambem da fabrica. Amavelmente, o filho disse-lhe: --Preparaste o chá? obrigado! --Queres que vá comprar aguardente? perguntou, não sabendo como exprimir-lhe o seu reconhecimento pelo que quer que fosse que ella ainda não compreendia. --Não. Não é preciso! respondeu, tirando a capa, e sorrindo bondosamente para a mãe. De subito, veio-lhe á idéa de que o filho tinha exagerado propositadamente o perigo da reunião para brincar com ella. --É então esta a tal gente perigosa? --Esta mesma! disse Pavel entrando no quarto. --Ah! e seguiu-o com o olhar caricioso. Mas, no seu intimo: --E elle é a mesma creança!... VI Quando a agua do samovar entrou em ebolição levou-o para o quarto. As visitas estavam sentadas em de redor da meza; Natacha tinha nas mãos um livro e ficára n’uma quina da mesa sob a luz da candeia. --Para compreender por que as creaturas vivem tão mal... dizia Natacha --... e porque são tão más... interveio o russo-menor. --... é preciso ver primeiro como começaram a viver... --Então, meus filhos, então!... murmurou Pélagué, preparando o chá. Calaram-se todos. --O que diz, mamã? perguntou Pavel franzindo o sobrolho. --Eu? Vendo todos os olhares cravados n’ella, explicou, embaraçada: --Falava comigo mesmo... Dizia: então!... Natacha desatou a rir assim como Pavel; o russo-menor exclamou: --Obrigado, mãesinha, obrigado pelo chá! --Ainda não o bebeu e já agradece?! replicou ella. E, olhando para o filho: --Não os incommodo? Foi Natacha quem respondeu: --Como pode incommodar os seus hospedes, se é a dona da casa? E n’um tom infantil e lamentoso: --Boa alma! dê-me chá depressa! Estou a tremer com frio... tenho os pés gelados... --É para já! é para já! Depois de ter bebido, Natacha suspirou á larga, atirou a trança para as costas e abriu um livro volumoso, illustrado e de capa amarella. Pélagué enchia os copos, deligenciando não os fazer retenir, e, com toda a attenção de que era capaz o seu cerebro pouco acostumado a trabalhar, escutava a leitura que a rapariga fazia com a sua voz harmoniosa, que se misturava ao murmurio da agua a ferver no samovar, semelhante a longinqua canção. No quarto desenrolava-se tremente, como uma fita de côres magnificas, a historia simples e clara dos selvagens que viviam nas cavernas e atacavam com pedras os animaes. Era uma como lenda; por varias vezes, Pélagué olhava de soslaio para o filho, desejava saber o que haveria n’aquella historia de selvagens que a tornasse leitura prohibida. Mas a bréve trecho deixou de escutar e, sem que dessem por tal, começou a observar os seus hospedes. Pavel estava sentado junto de Natacha; era bello entre todos os outros. A rapariga, inclinada sobre o livro, levantava a miudo os cabellos finos e encaracolados que lhe cahiam para a testa. Por vezes, sacudia a cabeça, e, com um olhar amigo, accrescentava algumas observações, abaixando a voz. O russo-menor tinha encostado o peito ao canto da meza, torcia o bigode, cujas guias deligenciava vêr, mettendo um olho por outro. Vessoftchikof, estava sentado n’uma cadeira, empertigado como um manequim, com as mãos nos joelhos; o seu rosto bexigoso, sem sobrolhos e de bigode muito raro, era immovel como uma mascara. Sem desviar o olhar, contemplava obstinadamente a sua fisionomia reflectida no cobre brilhante do samovar; dir-se-ia que nem respirava. O pequeno Fédia escutava a leitura, movendo os beiços, repetindo para si as palavras do livro; o seu companheiro, o dos cabellos encaracolados, curvava-se, com os cotovellos nos joelhos, e sorria pensativamente, tendo a cara apoiada nas mãos. Um dos rapazes vindos com Pavel era ruivo e delgado; os olhos verdes tinham expressão alegre; parecia desejoso de dizer alguma coisa e fazia gestos de impaciencia; o outro, de cabellos loiros e curtos, passava a mão pela cabeça olhando para o sobrado, o que não permittia ver-se-lhe o rosto. O quarto estava quente, n’uma temperatura especialmente agradavel n’aquella noite. No meio do murmurio da voz de Natacha, misturada á canção tremula do samovar, Pélagué recordava as noites tumultuosas da sua mocidade, as palavras grosseiras dos rapazes que cheiravam mal a alcool, os seus gracejos cinicos. Perante taes recordações, o seu coração humilhado confrangia-se compadecido d’ella propria. Reviveu em pensamento o dia em que o marido pedira a sua mão. Foi durante uma reunião, á noite; elle detivera-a n’um corredor obscuro, obrigava-a á viva força a encostar-se á parede, dizendo-lhe n’um tom cavo e irritado: --Queres casar comigo? Ella sentira-se ultrajada; molestavam-na aquelles dedos grosseiros apertando-lhe os seios, aquella respiração offegante que lhe enviava ao rosto um hálito quente e humido. Tentou libertar-se d’aquelle abraço, fugir-lhe... --Aonde vaes? urrou elle. Responde primeiro! Ficara silenciosa, cheia de vergonha e de colera. --Não te finjas embaraçada, pateta! Conheço-as, a todas! No teu intimo, estás satisfeitissima. Porque alguem tivesse aberto uma porta, elle largara a rapariga, sem grande pressa, dizendo: --No domingo mandarei pedir a tua mão. Cumpriu. Pélagué fechou os olhos e suspirou longamente. --Não preciso saber como os homens viveram, mas sim como se deve viver! exclamou de subito Vessoftchikof num tom de surdo aborrecimento. --Tem razão! concordou o rapaz de cabello ruivo, erguendo-se. --Não estou d’acôrdo! disse Fédia. Se queremos caminhar para a frente, devemos saber tudo! --Exacto! opinou o outro, a meia voz. Veio em seguida uma discussão animada. Pélagué não comprehendia por que todos elles gritavam, com os rostos cheios de excitação. Mas ninguem estava irritado; nem mesmo se ouviam as palavras concludentes e obscenas ás quaes ella estava acostumada. --Não se sentem á vontade na presença da pequena... pensou. Sentia-se encantada pela fisionomia grave de Natacha, que parecia tomar conta em todos, como se fossem creanças para ella. --Basta, companheiros! basta! disse de subito. E todos se calaram, volvendo para ella o olhar. --Os que affirmam que devemos saber tudo affirmam uma verdade. Devemos illuminar-nos a nós mesmos com a chamma da razão, para que as creaturas obscuras nos vejam; devemos responder a tudo com honestidade, com verdade. É preciso conhecer toda a verdade e toda a mentira. O russo-menor meneava a cabeça ao rythmo das palavras de Natacha. Vessoftchikof, o rapaz ruivo e o operario que viera com Pavel formavam um grupo distincto; desagradavam a Pélagué, sem que ella soubesse porquê. Quando Natacha concluiu, Pavel ergueu-se e perguntou tranquillamente: --O que queremos nós ser? Apenas creaturas que comem e bebem? Não! queremos ser homens. Devemos mostrar aos que nos exploram e nos fecham os olhos, que vemos tudo, que não somos idiotas, nem brutos, que não queremos só comer, mas tambem viver como é proprio dos homens. Devemos mostrar aos inimigos que a vida de degredo que elles nos arranjaram não impede que possamos medir-nos com elles pela intelligencia e excedel-os pelo espirito... Pélagué ouvia, estremecendo de orgulho por ser o seu filho quem assim falava. --Ha muita gente farta, mas ninguem entre ella que seja honesto! disse o russo-menor. Construamos uma ponte que atravesse o pantano da nossa vida infecta e que nos conduza ao reino futuro da bondade sincera, eis a nossa tarefa, companheiros! --Em tempo de guerra não se limpam armas! replicou soturnamente Vessoftchikof. --Aliás fazem-nos os ossos n’um feixe, antes da batalha! exclamou alegremente o russo-menor. Tinha passado meia noite quando o grupo dispersou. O rapaz ruivo e Vessoftchikof foram os primeiros a saír, o que não agradou a Pélagué. --Como vão apressados! pensou, cumprimentando-os. --Acompanha-me, André? perguntou Natacha. --Ora essa! Emquanto Natacha se vestia na cosinha, Pélagué disse-lhe: --Tem umas meias tão finas, com um tempo d’estes!... Se me dá licença, hei de fazer-lhe um par, de lã. --Obrigado, mas as meias de lã arranham a pelle! respondeu, rindo. Descanse, que, feitas por mim, não arranharão. Natacha observou-a com os olhos semi-cerrados, e este olhar fixo embaraçou-a. --Desculpe se é tolice, mas creia ser de bôa vontade! --Sim. A sr.ᵃ é bôa! exclamou Natacha a meia voz, apertando-lhe a mão. --Bôa noite, mãesinha! disse o russo-menor encarando n’ella; saíu, depois de beijal-a, acompanhando Natacha. Pélagué olhou para o filho que no limiar da porta do quarto, sorria. --Porque sorris? perguntou, como envergonhada. --Ora! porque estou contente. --Sou velha e tôla, bem sei, mas compreendo aquillo que fica bem. --E tem razão. Vá deitar-se, vá, que são horas. --E tu tambem deves ir. Eu é n’um instante. Á roda da meza d’onde retirava os copos, sentia-se feliz: tudo se tinha passado sem novidade e terminado em paz. --Tiveste uma bôa idéa, meu filho: é uma bella gente. O russo-menor... acho-o interessante. E a rapariga... Ah! que intelligente que é! Quem é ella? --Professora de primeiras lettras, respondeu resumidamente, passeando ao comprimento do quarto. --Por isso é tão pobre! Que mal vestida!... Vae apanhar um frio!... Onde vivem os paes? Em Moscou. E Pavel, parando junto da mãe, disse em voz baixa e gravemente: --O pae é muito rico, negociante de ferro, e possue varios estabelecimentos. Expulsou-a porque ella entrou neste caminho... Foi educada no luxo, toda a familia a amimava, dando-lhe quanto queria... E n’este momento é obrigada a andar a pé, sósinha, sete kilometros. Estes pormenores impressionaram Pélagué. No meio do quarto, olhava para o filho sem dizer palavra, os sobrolhos erguidos n’uma expressão de assombro. Depois perguntou a meia voz: --Vae para a cidade? --Vae. --Ah! e não tem medo? --Não, não tem medo! respondeu, sorrindo. --Não tem?!... Poderia passar a noite cá em casa... Dormiria comigo. --Impossivel. Vêl-a iam saír ámanhã pela manhã; e devemos evitar isso... Ella primeiro ainda. Pélagué caíu em si, e tendo olhado para a janella, passeando, disse meigamente: --Não percebo o que possa haver perigoso, e que torne prohibidas estas coisas. Que mal pode haver? Ella não sentia absoluta convicção e desejava obter do filho uma resposta negativa. Elle fitou-a, sereno, e respondeu com firmeza: --Não fazemos nem faremos mal algum. Todavia, sabe que é a prisão o que nos espera. As mãos de Pélagué tremeram. Foi com a voz enfraquecida que perguntou: --Talvez... Queira Deus que tal não succeda! Pavel, carinhoso, mas resoluto: --Não! não quero enganar-te! O que te disse ha de succeder. Acrescentou, sorrindo: --Olha: vae deitar-te! Estás fatigada! Bôa noite! Sósinha, a mãe approximou-se da janella e olhou para a rua. O vento passava, varrendo a neve dos telhados das casinhas adormecidas, batendo contra as paredes, murmurando não se sabe o quê, e baixando á terra para fazer correr ao longo das ruas nuvens brancas de flócos seccos. --Jesus Christo, tende piedade de nós! supplicou baixinho. As lagrimas accumulavam-se-lhe, a espectativa da desgraça da qual o filho falava com tanta tranquilidade e certeza, agitava-se dentro d’ella como uma borboleta nocturna. Perante os seus olhos desenrolou-se uma planicie coberta de gelo. O vento levando os flócos de neve, redemoinhava assobiando. No meio da planicie, um pequenino perfil de rapariga caminhava, solitario e vacillante. O vento enrolava-se-lhe nas pernas, enchia-lhe as saias, atirava-lhe ao rosto flócos aggressivos. O caminho era difficil para aquelles pequeninos pés que se enterravam na neve. Fazia frio e as trevas eram de metter medo. A rapariga inclinava-se para a frente como debil haste sacudida pelo sopro rapido do vento do outomno. Á sua direita, no pantano, uma floresta erguia a sua sombra compacta onde as bétulas e os frageis pinheiros tremiam e gemiam tristemente. Muito ao longe, na sua frente, scintillavam as luzes da cidade. --Senhor! tende piedade de nós! disse ainda a pobre mãe, tremendo de frio e de medo. VII Os dias succediam-se; como as contas de um rosario, addiccionavam-se em semanas e em mezes. Todos os sabbados, os companheiros reuniam-se em casa de Pavel; e cada sessão era como um degrau da longa escadaria em suave declive que conduzia a muito distante, não se sabia aonde, elevando lentamente os que por ella subiam, e da qual se não via o fim. Novas caras appareciam constantemente. O pequeno quarto dos Vlassof ia-se tornando apertado. Natacha continuava a comparecer, transida de frio, fatigada, mas sempre alegre e bem disposta. Pélagué tinha-lhe feito as taes meias que ella propria lhe calçou. A principio, Natacha tinha rido, depois calou-se, e, reflectindo por um momento: --Tive uma creada, disse baixinho, que tambem me era extraordinariamente dedicada! Olhe, Pélagué Nilovna é muito para pensar este caso: o povo que tem uma vida tão ardua, tão cheia de humilhações, possue mais coração, mais bondade do que os outros! Tinha erguido o braço, designando um ponto muito afastado d’ali. --E a menina?--disse-lhe a mãe de Pavel--que sacrificou seus paes e o resto... Não chegou a concluir o seu pensamento, suspirou e calou-se olhando para Natacha. Sentia-se-lhe reconhecida, sem bem saber de quê, e deixara-se ficar sentada no chão, diante da rapariga, que sorria pensativa, com a cabeça descaída para o peito. --Sacrifiquei os meus paes... tinha repetido Natacha. Mas não é isto o peor. O meu pae é tão estupido e ordinario, o meu irmão tambem, e demais costuma beber! A minha irmã mais velha é uma desgraçada, causa compaixão. Casou com um homem muito mais idoso do que ella, muito rico, mas avarento e repugnante. De quem eu tenho mais saudades é da mamã! --Coitadinha! lamentou a mãe de Pavel, com um triste movimento de cabeça. A rapariga endireitou-se de subito e exclamou: --Ah! não! Ha momentos em que a minha alegria, a minha felicidade não tem limites! O seu rosto empallideceu, e saíam chispas de seus olhos azues. Pondo a mão no hombro de Pélagué, disse em voz profunda, n’um tom que parecia vindo do coração: --Se soubesse... se podesse compreender a obra brilhante e enorme que estamos realisando!... Havia de sentil-a! Uma impressão, não muito afastada da inveja, apoderou-se do coração de Pélagué, que disse tristemente, erguendo-se: --Estou muito velha para essas coisas... sou ignorante... estou muito velha... ... Pavel falava muito, discutia cada vez com maior ardor, e emagrecia. Pélagué julgava notar que, quando elle conversava com Natacha ou para ella olhava demoradamente, o seu olhar severo se tornava suave, que a sua voz vibrava com mais carinho, que elle se revelava ainda mais simples. --Deus o queira!... pensava. Sorria á ideia de que Natacha podesse vir a ser sua nora. Quando, nas reuniões, a discussão tomava mais calor, o russo-menor levantava-se, e bamboleando como o badalo d’um sino, soltava com a sua voz sonora palavras claras e simples que faziam voltar o socego. O taciturno Vessoftchikof levava constantemente os companheiros a actos mal definidos; era sempre elle e Samoílof, o rapaz ruivo, quem esquentava as discussões. Tinham por partidario Ivan Boukine, o rapaz de cabeça redondinha, de sobrolhos brancos, e que parecia deslavado como o sol. Jacob Somof, sempre modesto, asseado e bem penteado, falava pouco e breve, em voz baixa e grave. Como Fédia Mazine, o adolescente de fronte alta, era sempre da opinião de Pavel e do russo-menor. Por vezes, em logar de Natacha, era Nicolao Ivanovitch quem vinha da cidade. Usava occulos e tinha barbicha loira. Natural d’uma provincia distante, as inflexões da sua voz eram especiaes e cantantes, falando quasi sempre sobre themas simples, a vida em familia, as creanças, o commercio, a policia, o preço da carne e do pão, emfim a vida de todos os dias. E em tudo descobria êrros, confusão, coisas estupidas, divertidas ás vezes, mas sempre prejudiciaes para os homens. Parecia a Pélagué que Nicolao Ivanovitch viera de longe, d’outro paiz onde a existencia era facil e honesta, e que ali, onde ella vivia tudo lhe desagradava. Era de côr amarelenta; pequenas rugas lhe circumdavam os olhos, a voz era grossa, e tinha as mãos sempre quentes. Quando cumprimentava a mãe de Pavel, agarrava-lhe a mão por completo com os dedos vigorosos, e tal aperto era como um consolo para a alma d’ella. Da cidade vinham ainda outras pessôas, por exemplo uma rapariga esbelta, de olhos grandes e rosto magro e pallido. Chamavam-lhe Sachenka. Havia o que quer que fosse masculo nos seus gestos e no andar; franzia os sobr’olhos negros como irritada; quando falava, as delicadas narinas estremeciam. Foi ella que um dia disse primeiro que os outros: --Nós, socialistas... Quando Pélagué ouviu esta palavra, olhou para a rapariga com mudo terror. Sabia que os socialistas tinham assassinado um tzar. Fôra durante a sua mocidade; dissera-se então que os proprietarios ruraes, indignados contra o imperador por ter libertado os servos, haviam jurado não cortar os cabellos emquanto elle não fosse morto. Por isso não podia compreender a rasão por que o seu filho e a companheira se tinham feito socialistas. Quando todos se retiraram, perguntou a Pavel: --Pavloucha, é verdade que és socialista? --É! respondeu firme e franco como sempre. Pélagué deu um profundo suspiro e disse, baixando os olhos: --Parece-te bem, meu filho?... Elles são contra o tzar... já mataram um!... Pavel entrou de passear pelo quarto, passando a mão pela cara, até que respondeu com um sorriso: --Nós não precisamos d’isso! Falou-lhe muito tempo a serio. Ella chorava e reflectia. Depois, a terrivel palavra foi repetida cada vez mais a miudo, e tornou-se tão familiar aos ouvidos de Pélagué como um amontoado d’outros termos incompreensiveis para ella. Mas Sachenka não lhe agradava; quando a via, sentia-se pouco á vontade, anciosa... Uma noite, disse ao russo-menor, com um tregeito de mal-estar: --É muito rispida a Sachenka! Está sempre a mandar: façam isto! façam aquillo! O russo-menor riu ruidosamente. --É a pura verdade! nem mais nem menos! Não é assim, Pavel? E, piscando o olho, disse em tom escarninho: --A nobreza! Pavel replicou seccamente: --É uma rapariga decidida! E ficou-se com ar de mal disposto. --Não ha duvida tambem! concordou o russo-menor. Ha apenas uma differença: não compreende que é ella quem deve e que somos nós que queremos e podemos. Pélagué notara tambem que a severidade de Sachenka caía mais em particular sobre Pavel a quem por vezes chegava a repreender. Elle sorria, ficava silencioso, e contemplava a rapariga com o olhar suave que outrora tinha para Natacha. E isto não agradava a Pélagué. Reuniam-se duas vezes por semana; e quando a mãe de Pavel via a attenção apaixonada com que os novos escutavam as falas do filho e do russo-menor, as interessantes narrativas de Natacha, de Sachenka, de Nicolao Ivanovitch e dos outros que vinham da cidade, esquecia as suas inquietações, e recordando-se dos fastidiosos dias da sua mocidade, meneava tristemente a cabeça. Muitas vezes, Pélagué ficava surpreendida dos accessos de alegria ruidosa que os atacavam de subito. O facto dava-se geralmente quando tinham lido nos jornaes noticias da classe operaria estrangeira. Era uma alegria estravagante, como infantil; riam todos com um riso limpido e muito alegre, e batiam amigavelmente no hombro do companheiro mais proximo. --Teem trabalhado a valer, os nossos companheiros allemães! annunciava qualquer d’elles, como embriagado de extasi. --Vivam os nossos companheiros italianos! gritava outra voz. E quando enviavam estas exclamações ao longe, aos amigos desconhecidos, pareciam convencidos de que elles os ouviam e participavam do seu enthusiasmo. O russo-menor, cheio de um amor que abrangia a todos os seres, declarava: --Deveriamos escrever-lhes, não acham, para que saibam que teem na Russia, tão distante, amigos, operarios que professam a mesma religião que elles, companheiros que teem o mesmo fim, e rejubilam com as suas victorias... E, com o sorriso nos labios, falava-se durante muito tempo dos francezes, dos inglezes, dos suecos, como de entes queridos, em cujas felicidades e soffrimentos se tomava parte. No pequeno quarto nascia assim o sentimento do parentesco espiritual, unindo os operarios de aquella terra da qual elles eram ao mesmo tempo os senhores e os escravos. Esta confraternidade, que lhes dava uma só alma, impressionava Pélagué, e embora ella lhe fosse inaccessivel, fazia-a elevar se sob a influencia d’aquella força alegre, triunfante, embriagadora e cheia de mocidade, acariciadora e cheia de esperanças. --No meio de tudo, como os srs. são! disse ella um dia ao russo-menor. Para os srs., todos são companheiros: os judeus, os armenios, os austriacos... Falam d’elles como se falassem de amigos, entristecem-se e alegram-se com o mundo inteiro! --Sim, mãesinha! exclamou elle. O mundo é nosso! o mundo é dos operarios! Para nós não ha nações, nem raças! ha somente companheiros e... inimigos. Todos os operarios são nossos amigos; todos os ricos, todos os que teem auctoridade, são nossos inimigos. Quando se olha para a terra com bons olhos, quando se vê quanto nós, os operarios, somos numerosos, que poder espiritual nós representamos, sente-se o coração invadido pela alegria e pela felicidade, como na celebração de uma festa solemne. O francez e o allemão teem o mesmo sentimento, e os italianos tambem rejubilam. Somos todos nascidos da mesma mãe, da grande, da invencivel idéa da fraternidade operaria, em todos os paizes da terra. Desenvolve-se, aquece-nos com o seu calor, é o segundo sol no ceo da justiça; e este ceo está no coração do operario. Qualquer que elle seja, seja qual fôr o seu nome, o socialista é nosso irmão em espirito, agora e para sempre, por todos os seculos dos seculos! Esta exuberancia infantil, esta fé luminosa e inabalavel manifestava-se de mais em mais no pequeno grupo, n’uma força crescente. E quando Pélagué via esta alegria, sentia instinctivamente que na verdade viera ao mundo o que quer que fosse grande e resplendente, como um sol semelhante ao que via no ceo. Ás vezes, cantavam, alegremente e a plenos pulmões, canções familiares; por outras, aprendiam novas canções, tambem melodiosas, mas com musica melancólica e fóra do vulgar. Então, abaixavam a voz, as fisionomias tornavam-se graves, pensativas, como ao som de um hymno religioso. Os rostos tornavam-se pallidos, os que cantavam animavam-se, e sentia-se que uma grande força se occultava sob as palavras sonoras. Uma d’aquellas canções principalmente perturbava e inquietava Pélagué. Não traduzia os gemidos, as preplexidades da alma ultrajada que vagueia solitaria nos atalhos obscuros das incertezas dolorosas nem dos gritos da alma incolor e informe assaltada pela miseria, embrutecida pelo medo. Não repetia os languidos suspiros do ser avido de espaço, nem os gritos de provocação da audacia fogosa prestes a destruir o mal e o bem, indifferentemente. O cego sentimento da vingança e do odio, capaz de aniquilar tudo, impotente para crear, não apparecia então; não havia em taes canções qualquer vestigio do antigo mundo, do mundo dos escravos. As palavras rispidas, a melodia austera não agradavam a Pélagué, mas havia n’aquellas canções uma como força immensa que abafava o som e as palavras, despertando no coração o presentimento de alguma coisa grandiosa para o pensamento. Pélagué via isto nos rostos, no olhar dos novos, e, cedendo áquelle poder misterioso, escutava sempre a canção, duplamente attenta, com inquietação profunda. --Já é tempo de a cantarmos pelas ruas! dizia o sombrio Vessoftchikof, em principios da primavera. Quando o pae mais uma vez foi prezo, declarou tranquillamente: --Agora poderiamos reunirmo-nos em minha casa... Quasi todas as tardes, depois do trabalho, um ou outro dos companheiros ia a casa de Pavel; liam juntos, copiavam trechos das brochuras. Andavam preoccupados e nem já tinham tempo de se lavarem. Ceavam juntos e tomavam o seu chá sem pôrem de lado os livros; e as suas conversas cada vez se tornavam mais incompreensiveis para Pélagué. --Precisamos de um jornal! repetia Pavel, a miude. A vida tornava-se febril e agitada; dirigiam-se uns aos outros com mais celeridade, era com mais rapidez que passavam d’um livro a outro, como abelhas voando de flôr para flôr. --Começa-se a falar de nós! disse uma noite Vessoftchikof. Provavelmente, acabamos por ser presos, dentro em pouco. --Quem não quer ser lobo não lhe veste a pelle! observou o russo-menor. Cada vez agradava mais a Pélagué. Quando elle lhe chamava mãesinha, parecia-lhe que uma suave mão de creança lhe afagava o rosto. Ao domingo, se Pavel tinha que fazer, era elle quem rachava a lenha; um dia appareceu carregado com uma grande taboa, pegou na ferramenta e substituiu com habilidade um degrau pôdre da porta d’entrada; doutra vez, recompoz a varanda que ameaçava ruina. Emquanto trabalhava, assobiava musicas melancólicas. Pélagué disse um dia ao filho: --Se nós fizessemos do russo-menor nosso hospede? Seria mais commodo para ambos, que não precisariamos de andar sempre a correr de casa d’um para casa do outro. --Para que ha de ir arranjar mais esse trabalho? perguntou Pavel, encolhendo os hombros. --Ora! Durante toda a minha vida tenho sido atormentada com trabalho sem saber para quê; posso perfeitamente fazer isto hoje em favor de tão bom homem. --Faça o que quizer! Se elle acceitar, dar-me-á satisfação. E o russo-menor passou a viver com elles. VIII A pequena casa na extrema do bairro despertava a attenção: as suas paredes já tinham sido como que atravessadas por olhares suspeitosos. As azas do rumor publico agitavam-se por cima della; tentava-se descobrir o misterio que ali se occultava. Á noite, havia quem fosse espreitar pela janella; por vezes, alguem havia que batesse na vidraça, fugindo logo. Certo dia, na rua, o taverneiro Bégountzef fez parar a mãe de Pavel. Era um bonito velhote que tinha sempre um lenço de seda preta á roda do pescoço vermelho e enrugado. O nariz brilhante e agudo era adornado por lunetas de aro d’escama de peixe, o que lhe tinha grangeado a alcunha de «Olhos d’osso». Sem tomar a respiração nem esperar resposta, surpreendera Pélagué com uma torrente de palavras sêccas e vivissimas: --Como vae, Pélagué Nilovna? E o seu filho? Ainda não acha tempo de o casar? O rapaz já está afinal na devida idade para ter uma mulher. Quando os paes casam cedo os filhos ficam mais tranquillos. O homem que vive em familia tem mais saude, tanto de corpo como de espirito, conserva-se como um cogumello em vinagre. No seu logar, eu já o tinha casado. Os tempos que vão correndo exigem que abramos os olhos no que respeita ao ente humano; ha quem se entregue a uma vida a seu modo, deixando-se arrastar a toda a casta d’acções censuraveis. Já se não vêem os rapazes no templo de Deus; afastam-se dos logares publicos, mas reunem-se ás escondidas pelos cantos, a cochichar. Porque andam elles a cochichar? se me permitte a pergunta. Porque se occultam? O que é que um homem não póde dizer em publico, na taverna, por exemplo? Misterios! Mas o logar dos misterios é a nossa santa egreja apostolica! Todos os outros misterios, realisados a occultas, vem da desorientação do espirito. Muitos bons dias lhe desejo. E tirou o boné com um gesto pretencioso, agitou-o no ar, e foi-se, deixando Pélagué immersa na perplexidade. D’outra vez, Maria Korsounova, visinha dos Vlassof, viuva d’um ferreiro, e que vendia comestiveis na fabrica, disse a Pélagué ao encontral-a no mercado: --Não percas de vista o teu filho, Pélagué! --Porquê? --Correm uns boatos a seu respeito... segredou com ares misteriosos. Coisas feias! Diz-se que está organisando uma especie de corporação, no genero dos flagelantes. Chama-se a isto uma seita. Fustigar-se-ão uns aos outros como os flagelantes. --Não digas mais tolices, Maria! --Vae ralhar com elle que é quem as faz, e não comigo, que te dou parte do caso! replicou a vendedeira. Pélagué contou a conversa ao filho, que encolheu os hombros sem responder. Quanto ao russo-menor, desatou a rir, com as suas gargalhadas benevolas. --As raparigas tambem estão zangadas! Sois todos aptos para vos tornardes bons maridos, trabalhaes bem, não bebeis... e nem olhaes para ellas! Diz-se que da cidade vem visitar-vos pessoas de má reputação... --Já cá faltava! exclamou Pavel, fazendo uma cara de nojo. --N’um pantano tudo cheira a pôdre! disse André suspirando. Seria melhor, mãesinha, que explicasse a essas patetinhas o que é o casamento. Talvez não ficassem com a mesma pressa de caír na asneira! --Ah! exclamou Pélagué. Ellas bem sabem, mas como hão de passar sem casarem? --Falta-lhes a compreensão, aliás achariam outra coisa em que se occuparem! disse Pavel. Ella dirigiu o olhar para o rosto irritado do filho, balbuciando: --É a vós que cabe ensinal-as! Convidem para isso as mais intelligentes. --Impossivel! respondeu Pavel, seccamente. --Se tu experimentasses!... arriscou André. Depois de um silencio, Pavel respondeu: --Começariam a passear aos pares, alguns acabariam por casar, e prompto! Pélagué caíu em meditações. A austeridade monacal do filho atordoava-a. Via que elle era obedecido pelos companheiros, até pelos mais velhos, como o russo-menor, mas parecia-lhe que todos o temiam e que não gostavam da frieza dos seus modos. Uma vez que ella estava na cama e Pavel e André ainda liam, apurou o ouvido ás suas palavras que lhe chegavam atravez do tabique. --Gosto da Natacha, sabes? disse de repente o russo-menor, a meia voz. --Sim, sei. Pavel não respondera logo. Pélagué ouviu o russo-menor levantar-se, vagaroso, e começar a passear pelo quarto, com os pés descalsos. Assobiou uma triste canção; depois tornou a falar: --Ella terá notado?... Pavel ficou silencioso. --Que te parece? perguntou de novo o companheiro, baixando a voz. --Tem notado! respondeu Pavel. E é por isso que já não vem. André voltou a passear, assobiando; até que: --E se eu lho dissesse?... --O quê? --Que... --Para quê? Pélagué ouviu André rir. --Eu cá, sim, parece-me que quando se ama uma rapariga, devemos dizer-lho, se não é o mesmo que nada!... Pavel fechou o livro com ruido e perguntou: --E que resultado esperas? Estiveram calados durante alguns minutos. --E então? perguntou André. --É preciso ver claramente o que se quer... disse emfim Pavel com vagar. Supponhamos que ella tambem te ama. Não creio. Mas supponhamos. Casam. É uma união interessante, na verdade, a d’uma rapariga com um operario!... Vem os filhos... serás obrigado a trabalhar sósinho... e muito. A vossa vida será a de toda a gente, luctareis para ter com que vos sustentardes, para terdes casa onde viver com os filhos. E afinal ambos ficareis perdidos para a obra. Houve um silencio, até que Pavel concluiu: --Deixa-te d’isso, André! Cala-te. Não a perturbes. --Mas Nicolao Ivanovitch prégava a necessidade de viver a vida integral, com todas as forças da alma e do corpo... Lembras-te? --Prégava, mas não para nós. Como atingirias tu a integridade? Não existe para ti. Quando se ama o futuro, temos que renunciar a tudo no presente, a tudo, irmão! --É custoso! replicou André em voz abafada. --E como poderia não ser assim? reflecte! Houve novo silencio. Ouvia-se apenas a pendula do relogio, compassadamente, dividindo o tempo em segundos. O russo-menor disse: --Metade do coração ama; a outra odeia... E é isto coração, an? --E como poderia não ser assim? Seguiu-se o folhear d’um livro: por certo Pavel voltava á leitura. Pélagué permanecia deitada com os olhos fechados, sem se atrever a fazer nem um movimento. Sentia-se profundamente apiedada de André, mas ainda mais do seu filho. Dizia comsigo: «Meu querido filho... meu martyr! meu sacrificado!» De subito, André perguntou: --Devo então calar-me, não é isso? --É o mais honesto, André... --Bem! entrarei n’esse caminho! decidiu o outro. Mas accrescentou tristemente, decorrido um instante: --Has de soffrer, Pavel, quando chegar a tua vez. --Chegou. Já soffro... e cruelmente. --Tu tambem? Lá fóra o vento soprava em torno da casa. --Não tem nenhuma graça isto!... disse André lentamente. Pélagué metteu a cabeça debaixo da roupa para poder chorar. Na manhã seguinte, André pareceu-lhe como fisicamente amesquinhado, e sentiu-o mais proximo do seu coração. Como sempre, o filho tinha o porte secco, silencioso, rigido. Até então ella tratava o russo-menor por André Onissimovitch; d’aquelle dia em diante, sem querer, sem dar por tal, disse-lhe: --Deve concertar as suas botas, meu André, senão tem frio nos pés. --Hei de comprar outras, quando receber a féria. Depois desatou a rir e perguntou-lhe de chofre, pondo-lhe no hombro a sua pesada mão: --Talvez a senhora seja a minha verdadeira mãe, mas que não queira confessal-o, porque me ache muito feio! Será assim? Sem falar, ella deu-lhe uma pancadinha na mão. Desejaria dizer-lhe palavras carinhosas, mas o coração confrangia-se apiedado, e a sua lingua recusava-se a obedecer-lhe... IX No bairro começavam a occupar-se dos socialistas que espalhavam por toda a parte folhas de papel escriptas a tinta azul. Eram papeis que falavam malevolamente dos regulamentos impostos aos operarios, das gréves de Petersburgo e da Russia meridional; exhortavam os trabalhadores a formarem uma liga e a luctarem na defeza dos seus interesses. As pessoas de certa idade que occupavam bons logares na fabrica, irritavam-se e diziam: --Seria conveniente dar uma sova mestra n’estes agitadores! E levavam os papeis aos seus chefes. Os rapazes, enthusiasmados com taes escriptos, exclamavam ardentemente: --O que elles dizem é a verdade! A maioria dos operarios, alquebrados pelo trabalho, indifferentes a tudo, pensavam indolentemente: --Aquillo não dá nada. No entanto as folhas volantes interessavam a todos e, quando não appareciam, diziam uns para os outros: --Hoje não ha; deixaram de publical-as... Mas quando, á segunda-feira, reappareciam, os operarios de novo se agitavam ruidosamente. Na fabrica e na taverna eram vistas umas pessoas que ninguem conhecia. Interrogavam, examinavam, farejavam, e impressionavam a todos com a sua prudencia suspeita. Pélagué sabia que toda aquella agitação era obra do seu filho. Via-os cercarem-no, elle porém não era só, o que tornava o caso menos perigoso. E o orgulho de ter tal filho juntava-se n’ella á anciedade que o futuro lhe inspirava: eram os trabalhos misteriosos do rapaz a misturarem-se como um limpido ribeiro á torrente lamacenta da vida... Uma tarde, Maria Korsounova bateu á vidraça e, quando Pélagué a entreabriu, a visinha cochichou: --Que te dizia eu, Pélagué? Prepara-te! Os teus passarinhos acabaram de rir! Esta noite hão de vir fazer uma busca em tua casa, na de Mazine e na de Vessoftchikof. Não ouviu mais do que as primeiras palavras; as ultimas fundiram-se n’um rumor vago e melancolico. Os labios espessos de Maria vibravam com rapidez, o seu nariz carnudo dilatava-se, os olhos tornavam-se piscos, e moviam-se vagamente para um e outro lado, como em procura de alguem na rua. --E olha que eu não sei nada, nada te disse, minha querida, nem mesmo te vi ainda hoje... Percebes? Desappareceu. Pélagué fechou a janella e deixou-se caír n’uma cadeira, com a cabeça como vasia, sem forças. Mas a consciencia do perigo que ameaçava o seu filho fêl-a erguer de subito; vestiu-se á pressa, envolveu a cabeça n’um chale e correu a casa de Fédia Mazine, que estava doente. Quando entrou, viu-o sentado junto da janella, a lêr, e como que acalentando com a mão esquerda a direita, cujo pollegar se mantinha afastado dos outros dedos. Ao ouvir a má nova, elle pôz-se logo de pé, empallidecendo. --Que historia esta!... E eu com um abcesso n’este dedo! resmungou. --Que devemos fazer? perguntou Pélagué alimpando tremulamente o suor do rosto. --Espere... não tenha medo! respondeu passando pelos cabellos encaracolados a mão válida. --Mas se o senhor é o primeiro a ter medo!... --Eu? Córou de repente, e disse a sorrir, com embaraço: --Sim, é verdade, c’os demonios! Precisamos de prevenir o Pavel. Vou mandar-lhe alguem... Volte para casa... Isto não ha de ser nada. Então! ninguem ha de bater-nos! Apenas chegou a casa, Pélagué reuniu em monte os livros, metteu-os debaixo do braço e pôz-se á busca de um canto onde occultal-os. Olhou para o fogão, para o forno, para o canudo do samovar e até para o barril cheio d’agua. Dizia comsigo que Pavel largaria d’ali a pouco o trabalho e voltaria para casa; elle porem demorava-se. Por fim, vencida de cansaço, sentou-se n’um banco da cosinha, escondeu os livros debaixo da saia e ficou immovel até que apparecessem o filho e André. --Já sabem?! disse sem se levantar, apenas os viu. --Já sabemos! respondeu Pavel com sorriso calmo. Tens medo? --Tenho, muito! --Não deves ter medo. Não serviria de nada. Nem sequer preparaste o samovar?! Ella ergueu-se, e, mostrando os livros, explicou, embaraçadamente: --Era por causa delles... O russo-menor e Pavel desataram a rir, o que a tranquillisou em parte. Depois, o filho pegou em alguns dos volumes e saíu para ir escondel-os no pateo; André dispoz-se a accender o samovar, e foi dizendo: --Nada ha terrivel n’isto; o que faz envergonhar uma pessoa é pensar que haja quem se occupe d’estas coisas. Hão de vir por ahi uns homens vestidos de cinzento, com um sabre á cinta, esporas nos calcanhares, e rebuscarão por toda a parte. Espreitam para debaixo das camas, e do fogão; se ha adega, descem á adega; se ha sotão, sobem ao sotão. As teias d’aranha caem-lhes nos focinhos, e elles espinoteiam. Enfadam-se, envergonham-se, e por isto fingem-se muito maos e mostram-se furiosos contra a gente. O seu emprego é porco, e elles bem o sabem. Uma vez, foram dar busca á minha casa, não encontraram coisa alguma e... elles ahi vão! D’outra vez, levaram-me comsigo. Metteram-me depois na cadeia, onde estive quatro mezes. De tempos a tempos, iam buscar-me e faziam-me atravessar as ruas no meio de uma escolta de soldados. Perguntavam-me toda a casta de coisas. Não são creaturas intelligentes, não sabem falar com criterio. Depois diziam aos soldados que me levassem outra vez para a cadeia. E aqui está como fazem de nós gato sapato. Emfim, teem que ganhar os seus ordenados!... Acabaram por pôr-me na rua. E prompto! --Que maneira de falar, meu André! exclamou Pélagué mal-disposta. Ajoelhado em frente do samovar, o russo-menor soprava com toda a força pelo canudo; levantou a cabeça, mostrando a cara avermelhada pelo esforço e perguntou alisando com as duas mãos o bigode: --Como é então que eu falo? --Como se nunca o tivessem offendido. Elle ergueu-se, approximou-se de Pélagué, e, tendo abanado a cabeça, disse, sorrindo: --Ha por acaso alguem n’este mundo que não tenha sido offendido? É que tanto me ultrajaram já, que me cansei de encolerisar-me. Que fazer, se os mais não podem proceder d’outra maneira? Os ultrages incommodam-me muito, impedem-me de realisar a minha obra... mas não os podemos evitar, e, se pensamos n’isso, perdemos o nosso tempo. A vida é assim! D’antes zangava-me contra essa gente; depois, quando me veio a reflexão, vi que todos elles tinham o coração despedaçado. Cada qual tem medo de ser o primeiro a atacar. A vida é assim, mãesinha! As palavras soltavam-se-lhe tranquillamente e faziam extinguir-se a anciedade de Pélagué. Os olhos polpudos d’elle sorriam, luminosos e tristes; todo o seu corpo era flexivel, elastico, embora como desengonçado. Ella suspirou e disse com calor: --Deus o faça feliz, meu André! O russo-menor voltou para o samovar, ajoelhou-se outra vez e murmurou: --Se me derem a felicidade, não a recusarei; mas não a peço e nunca irei buscal-a. E pôz-se a assobiar. Pavel voltou do pateo. --Não encontrarão coisa alguma! affirmou, convencido. Começou a lavar-se. Depois accrescentou, limpando cuidadosamente as mãos: --Se lhes mostrar que tem medo, mamã, dirão que alguma coisa ha para despertar desconfiança. E nós nada fizemos ainda... nada! Bem o sabe, nada queremos que seja mao; a verdade e a justiça estão do nosso lado, trabalharemos por ellas toda a vida: eis o nosso crime! Porque havemos de tremer? --Terei coragem, Pavel! prometteu. Mas logo disse, angustiada: --Se ao menos «elles» viessem depressa! «Elles» porem não vieram n’aquella noite. No dia seguinte, prevendo que Pavel e André iriam chasquear dos seus terrores, foi a primeira a rir-se de si mesma. X «Elles» chegaram quando menos os esperavam, quasi um mez depois. Vessoftchikof, André e Pavel estavam reunidos e falavam do seu jornal. Era tarde, perto da meia noite. Pélagué já estava deitada, ia adormecendo e ouvia-lhes vagamente as vozes receosas e em tom baixo. André levantou-se de chofre, atravessou a cosinha nos bicos dos pés e fechou de mansinho a porta apoz elle. No corredor ouviu-se o ruido d’uma celha que tombára. André disse em voz alta: --Oiçam: é o ruido de esporas, na rua! Pélagué levantou-se de salto, pegou n’uma saia, tremula; mas Pavel appareceu no limiar e disse-lhe tranquillamente: --Fique deitada... Não está bôa... Ouviu-se depois um deslisar furtivo sob o telheiro. Pavel approximou-se da porta, e batendo nella com a mão, perguntou: --Quem está ahi? Rapido como um relampago, um corpo d’homem alto surgiu entre os umbraes; e outro ainda. Os dois guardas repelliram o rapaz, puxando-o depois para entre elles. Uma voz grave e irritada disse: --Não é quem esperavas, un? Quem falava era um official ainda novo, alto e magro, de bigode preto. Fédiakine, agente da policia do bairro, dirigiu-se para a cama de Pélagué; levando a mão ao boné, em continencia, indicou com a outra a mulher, dizendo com um olhar terrivel: --A mãe é esta, meu Senhor! Depois, apontando para Pavel: --E o filho é aquelle! --Pavel Vlassof? perguntou o official, franzindo os olhos. O rapaz respondeu affirmativamente com a cabeça. Passando a mão pelo bigode, o official informou: --Venho fazer uma busca em tua casa... A velha que se levante! Quem está ali? E, tendo olhado para o quarto, entrou n’elle a passos largos. Ouviram-no perguntar: --O seu nome? Outros dois personagens appareceram ainda: o velho fundidor Tvériakof e o seu inquilino, o fogueiro Rybine, um homem de cabelleira negra e de bom porte. Tinham sido trazidos pela policia como testemunhas: Rybine disse com voz grossa e possante: --Boa noite, Pélagué! Ella vestia-se, e, para se dar coragem, murmurava: --Esta agora! Virem de noite!... quando uma pessôa está na cama!... O quarto parecia pequeno e por elle se espalhara um cheiro activo a graxa. Os dois guardas e o commissario de policia do bairro, Riskine, tiravam da estante os livros com ruido, e empilhavam-nos diante do official. Os outros davam pancadas nas paredes, olhavam para debaixo das cadeiras; um trepou com custo ao cano do fogão. O russo-menor e Vessoftchikof, unidos um ao outro, conservavam-se a um canto; o rosto bexigoso do segundo estava coberto de manchas vermelhas, e os seus olhinhos pardos não podiam desfitar-se do official. André retorcia o bigode, e quando Pélagué entrou no quarto, fez-lhe com a cabeça um movimento amigavel. Para occultar o terror, mexia-se não de lado, como de costume, mas com o peito deitado para a frente, o que lhe dava um aspecto d’importancia affectada e risivel. Andava ruidosamente e as palpebras tremiam-lhe. O official ia pegando rapidamente nos livros com as pontas dos dedos brancos e delgados, folheava-os, saccudia-os, e rapidamente atirava-os para o lado. Alguns volumes caíram no chão. Todos estavam callados; não se ouvia mais do que o respirar dos guardas esbofados, o tintilar das suas esporas; de quando em quando um d’elles perguntava: --Já viste aqui? Pélagué collocou-se junto do filho, encostada á parede; como elle, cruzou os braços no peito e quiz observar o official. As pernas vacillaram-lhe, um nevoeiro toldava-lhe a vista. De subito, a voz de Vessoftchikof soltou-se concludente: --Para que serve deitar os livros ao chão? Pélagué estremeceu. Tvériakof abanou a cabeça como lhe tivessem batido na nuca; Rybine resmungou e fitou attentamente o audacioso. O official franziu os olhos e cravou-os no rosto bexigoso e immovel do rapaz... Depois os seus dedos folhearam o livro com mais rapidez. De quando em quando, os olhos pardos de Vessoftchikof abriam-se tanto que dir-se-ia elle estar soffrendo atrozmente e prestes a gritar, furioso e impotente contra a dôr. --Soldado! exclamou de subito. Apanha os livros! Os guardas voltaram-se para elle, e olharam depois para o official. Este levantou a cabeça, e olhando rapidamente de soslaio para o rapaz, ordenou por entre dentes: --Vá lá, apanhem os livros. Um dos guardas abaixou-se, e observando furtivamente Vessoftchikof poz-se a apanhar os livros esfarrapados. --Teria feito melhor estando calado... disse baixinho Pélagué para o filho. Elle encolheu os hombros. O russo-menor estendeu o pescoço. --Que cochichar é esse? Façam favor de estar calados! Quem é que lê aqui a Biblia? --Eu! respondeu Pavel. --Ah!... E de quem são estes livros? --Meus. --Está bem!... commentou o official apoiando-se ás costas da cadeira. Fez estalar os nós dos seus dedos finos e brancos, estendeu as pernas debaixo da meza, cofiou o bigode, e perguntou a Vessoftchikof: --És tu que te chamas André Nakhodka? --Sou eu! respondeu o bexigoso avançando. O russo-menor deitou-lhe a mão a um hombro e obrigou-o a recuar. --Enganou-se! o André sou eu. O official levantou a mão, e ameaçando Vessoftchikof com o dedo indicador erguido: --Toma cuidado!... Começou a remexer nos seus papeis. A noite luminosa e clara olhava indifferentemente pela janella. Alguem ia e vinha em frente da casa e a neve estalava sob os seus passos. --Já foste perseguido por delictos politicos, Nakhodka? perguntou o official. --Já: em Rostof e em Saratof... Com a differença de que ali as auctoridades não me tratavam por «tu.» O official franziu o olho direito, esfregou-o e disse depois, mostrando os dentitos: --N’esse caso, Nakhodka, conhece talvez... Sim... deve conhecer os scelerados que espalham pela fabrica folhetos e proclamações prohibidas?... O russo-menor teve um estremecimento, ia dizer o que quer que fosse com um sorriso aberto, quando se ouviu de novo a excitante voz de Vessoftchikof: --É a primeira vez que vemos scelerados! Houve um instante de silencio. O rosto de Pélagué tornou-se pálido até na cicatriz, emquanto o sobrolho direito lhe era repuxado para cima. A barba negra de Rybine entrou de tremer de uma maneira estupenda; baixou a cabeça e passou a mão vagarosamente pelo bigode. --Ponham fóra d’aqui essa besta! ordenou o official. Dois guardas agarraram o rapaz por debaixo dos braços e arrastaram-no para a cosinha. Quando lá chegou, conseguiu parar, e apegando-se ao chão com toda a força de que os seus pés eram susceptiveis, gritou: --Esperem! Quero pôr a minha capa! O commissario de policia, que estivera a rebuscar no pateo, appareceu dizendo: --Nada encontrámos. Vimos todos os cantos. --Está claro! exclamou o official ironicamente. Já o esperava! Estamos a contas com homens já muito experientes. Pélagué ouviu aquella voz fraca, tremula e imperiosa; e ao observar aquelle rosto amarellento sentia estar ali um inimigo, um inimigo implacavel, com o coração cheio de desprezo pelo povo. D’antes poucas pessoas assim ella tinha visto, e nos ultimos annos chegára a esquecer-se de que ellas existiam. --É a estes que nós causamos inquietações!... pensava. --Senhor André Onissimof Nakhodha, filho de pae incognito, está preso! --Porquê? perguntou tranquillo. --Depois lhe direi! respondeu o official com malevola delicadeza. E voltando-se para Pélagué, berrou-lhe: --Sabes ler e escrever? --Não! interveiu Pavel. --Não falo comtigo! disse o official com severidade. Responde, velha, sabes ler e escrever? Invadida de um sentimento de instinctivo odio contra aquelle homem, Pélagué aproximou-se de súbito, muito trémula, como se tivesse caído n’um rio gelado; a cicatriz fez-se escarlate, e o sobrolho baixou-lhe. --Não grite! exclamou, estendendo o braço para o official. É ainda novo, não sabe o que seja o soffrimento... --Socegue, mamã... interrompeu Pavel. --É melhor uma pessoa abafar o coração e calar-se! aconselhou André. --Espera, Pavel! exclamou ainda Pélagué, n’um arranco para a meza. Porque é que o sr. anda prendendo a gente? --Isso não é da sua conta. Cale-se! berrou o official, erguendo-se. Tragam cá o Vessoftchikof. E pôz-se a ler um papel que collocara á altura do rosto. Trouxeram o rapaz. --Tira o boné! disse-lhe o official, interrompendo a leitura. Rybine approximou-se de Pélagué e dando-lhe um encontrão: --Não se apoquente, tiasinha! --Como hei-de eu tirar o boné, se tenho as mãos agarradas? O official atirou com o auto para cima da meza, dizendo simplesmente: --Assignem! Pélagué viu os assistentes assignarem o documento, a sua excitação desapparecera, faltava-lhe a coragem; affluiam-lhe aos olhos amargas lagrimas de humilhação e de consciencia da sua fraqueza. Durante os vinte annos da sua vida de casada, tinha chorado lagrimas como aquellas; mas esquecera-lhe o ardor quasi por completo desde que enviuvára. O official olhou para ella e commentou com uma expansão desdenhosa: --Foi cedo para tanto alarde, minha prenda! Creia que é capaz de ficar sem lagrimas... para o futuro. Respondeu-lhe, outra vez irritada: --Ás mães nunca faltam as lagrimas!... Se tem mãe, ella deve saber isto, com certeza! O official metteu rapidamente os seus papeis na carteira, que era nova e de feixos brilhantes; e dirigindo-se ao commissario de policia: --Todos elles denotam uma independencia revoltante! --Que insolencia! murmurou o commissario. --A caminho! ordenou o official. --Até á vista, André! até á vista, Nicolao! disse Pavel apertando calorosamente a mão dos companheiros. --Está claro... até á vista! repetiu o official com ironia. Sem dizer palavra, Vessoftchikof apertava a mão de Pélagué entre os seus dedos curtos. Respirava a custo; o pescoço robusto estava congestionado, os olhos brilhavam-lhe de raiva. André sorria e meneava a cabeça; disse algumas palavras a Pélagué, que fez o signal da cruz sobre elle, respondendo-lhe: --Deus conhece os justos! Emfim o bando de homens de capotes cinzentos desappareceu dobrando a esquina da casa, com um tintilar de esporas. Rybine foi o ultimo a saír; com o seu negro olhar prescrutou Pavel; em tom meio abstracto disse: --Adeus, an...? E foi-se, sem pressas, tossindo, de cabeça baixa. Com as mãos cruzadas nas costas, Pavel entrou de passear de um para outro lado, por entre as trouxas de roupa e os livros espalhados no chão, até que perguntou em tom sombrio: --Viste como é? Sem deixar de olhar para a desordem em que ficára o quarto, ella disse baixinho, afflicta: --Prender-te-ão tambem... tambem, a ti! Para que foi tão grosseiro o Vessoftchikof? --Teve medo, provavelmente!... respondeu Pavel tambem em voz baixa. Não se deve falar áquella gente... nada se consegue d’elles! são incapazes de compreender... --Vieram! prenderam-no! levaram-no! murmurou, com os braços erguidos. Só lhe restava o filho. O coração de Pélagué começou a pulsar mais vagaroso; o seu pensamento immobilisava-se perante um facto que ella não podia admittir como real. --Faz pouco de nós, aquelle homem amarello: ameaça-nos... e... --Basta, mãe! disse de repente Pavel com decisão. Anda cá, arrumemos tudo isto. Tinha dito aquelle «mãe» e tratara-a por tu como era seu costume quando se tornava mais communicativo. Ella approximou-se, encarou-o e perguntou em voz baixa: --Humilharam-te? --Sim! Custou-me muito! Preferia ir com elles. Pareceu a Pélagué que elle tinha os olhos lacrimosos; e para o consolar d’aquelle desgosto que ella vagamente adivinhava, disse, suspirando: --Tem paciencia... um dia virá em que tambem sejas preso! --Bem sei... respondeu. Decorridos uns instantes, ella accrescentou com tristeza: --Como és cruel, meu filho! Se ao menos me tranquillisasses... Mas não! se eu digo coisas terriveis, o que tu me respondes é peor ainda! Elle olhou de relance, approximou-se, e baixando a voz: --Não sei que responder-lhe, mamã. Não posso mentir. Tem que acostumar-se... Pélagué suspirou e calou-se; depois, estremecendo: --Será verdade? Dizem que elles torturam os presos, que lhes retalham o corpo em tiras, e lhes quebram os ossos... Quando penso n’isto, tenho medo, Pavel, meu querido filho! --Torturam a alma e não o corpo. É ainda mais doloroso do que a tortura tocarem-nos na alma com as mãos emporcalhadas! XI Soube-se na manhã seguinte que Boukine, Samoílof, Somof e mais cinco pessoas tambem tinham sido presos. Á noite, Fédia Mazine veio de corrida: haviam feito uma busca em sua casa; estava radiante por isso, e considerava-se como um heroe. --Tiveste medo, Fédia? perguntou Pélagué. Empallideceu, encovou-se-lhe o rosto, as narinas estremeceram-lhe. --Tive medo de que o official me batesse! Tinha barba negra e era forte; os dedos cabelludos; usava lunetas de vidros pretos; parecia que lhe faltavam os olhos. Gritou, batendo com o pé: «Faço-te apodrecer na cadeia!» Em mim nunca ninguem bateu, nem o meu pae, nem a minha mãe, porque eu era filho unico, e elles queriam-me muito. Toda a gente tem levado pancada; eu, nunca. Fechou por um instante os olhos avermelhados e apertou os beiços; com um gesto rapido, atirou para traz com os cabellos e disse, encarando em Pavel: --Se alguem me bater, enterro-me n’elle como uma navalha, retalho-o com os dentes. É preferivel que me estendam de vez! --Tão magrito e fraco!... exclamou Pélagué. Como poderias luctar? --Pois luctarei! respondeu em voz baixa. Quando elle saiu, ella disse para o filho: --Será esmagado primeiro do que os outros. Pavel não respondeu. Minutos depois, a porta da cosinha abriu-se devagar, e Rybine entrou. --Bôa noite! disse, sorrindo. Sou eu outra vez. Hontem á noite, obrigaram-me a cá vir; hoje venho por minha conta. Apertou com vigor a mão de Pavel, e pondo a mão no hombro de Pélagué: --Dás-me chá? Pavel observou em silencio o amplo rosto atrigueirado do seu visitante, a sua espessa barba negra e os seus olhos intelligentes. Havia um tanto de gravidade no seu olhar tranquillo; todo o aspecto do recemchegado, de athletica corpolencia, inspirava simpathia pela sua decidida firmeza. A mãe foi á cosinha preparar o samovar. Rybine sentou-se, afagou o bigode, e, encostando-se á meza, envolveu Pavel n’um olhar. --Com que então... Assim começou, como se reatasse o fio de uma conversa. Devo falar-te abertamente. Observei-te por muito tempo antes de vir á tua casa. Somos quasi visinhos, via que recebias muita gente e que ninguem se embriagava nem fazia escandalos. Isto dava nas vistas. Quando alguem se porta bem, é logo notado, vê-se logo quem é. Eu proprio chamo as attenções para a minha pessoa porque vivo á parte, sem praticar porcarias. Falava vagarosamente, com ripanso; tinha inflexões que inspiravam confiança. --Com que então, toda a gente fala de ti. O meu senhorio chama-te «herético» porque não vaes á egreja. Eu tambem lá não vou. Depois appareceram essas fôlhas, esses papeis... A idéa foi tua? --Foi! respondeu Pavel sem desviar o olhar da fisionomia de Rybine, que tambem o fitava. --Ora vamos! exclamou Pélagué, sobresaltada, e saíndo da cosinha. Não foste só tu... Pavel sorriu. Rybine tambem. --Ah!... murmurou este. A velha fungou e saíu, um tanto irritada por não terem prestado attenção ás suas palavras. --Era uma bôa idéa. Perturbam o povo. Quantas foram ao todo? Umas dezenove, não? --Isso mesmo. --Então li-as todas! Bem... bem... Ha por lá coisas incompreensiveis, superfluas. Quando o homem fala muito, acontece-lhe falar para nada. Sorriu; tinha os dentes brancos e sãos. --Depois, a busca que fizeram em tua casa... Foi o que me dispoz a teu favor. Tu, o russo-menor e Vessofchikof mostraram-se muito... muito... Como não encontrava a palavra, calou-se, olhou pela janella, e bateu com um dedo na mesa: --Mostraram-se decididos. Foi como se dissessem: «Faça a sua obra, Excellencia, que nós faremos a nossa!» O russo-menor tambem é um rapaz como se quer. Ás vezes, na fabrica, quando o ouvia falar, pensava: «Este não é para se deixar esborrachar, não! Só a morte poderá vencel-o. Tem um bigode, o typo!» Não acha, Pavel? --Acho! respondeu, movendo a cabeça affirmativamente. --Ora bem... Tenho quarenta annos, o dobro da tua edade; tenho visto vinte vezes mais do que tu. Fui soldado durante mais de trez annos; fui casado duas vezes; morreu-me a primeira mulher; deixei a segunda. Estive no Caucaso, vi os Doukhobors... Não souberam vencer a vida, irmão! oh! não souberam! Pélagué escutava avidamente estas palavras; era-lhe agradavel vêr um homem de edade respeitavel procurar o filho como para confessar-se. Achava, porém, que Pavel o tratava com demasiada seccura, e para destruir esta impressão, perguntou a Rybine: --Talvez tenhas vontade de comer alguma coisa, Mikhaíl Ivanovitch? --Não, obrigado. Já ceei. Com que então, Pavel, pensas que a vida não vae por bom caminho? O rapaz levantou-se e passeando, com as mãos atraz nas costas: --Qual! Por magnifico caminho! E tanto assim que elle o trouxe até mim, agora que tem a sua alma francamente aberta. N’este caminho, a vida une-nos, pouco a pouco, a todos nós que trabalhamos incessantemente; e tempo virá em que ha de unir-nos a todos! As coisas acham-se dispostas de uma maneira injusta e penosa para nós; mas é a propria vida que nos abre os olhos, descobrindo-nos o que encerra amargo; é ella propria que mostra ao homem como lhe deve dirigir a norma. --É verdade! Mas espera! É preciso renovar o homem. N’isto creio eu! Quando se apanha sarna, a gente toma banhos, lava-se, veste-se com asseio e fica bom, não é assim? Mas se a sarna ataca o coração, podemos por acaso arrancar-lhe a pelle, ainda que ficasse sangrando? podemos laval-o, vestil-o de novo? an? Então, como purificar o homem por dentro? O quê? Pavel falou calorosamente de Deus, do imperador, das auctoridades, da fabrica, da resistencia que os trabalhadores do estrangeiro oppunham áquelles que queriam limitar os seus direitos. Rybine sorria por vezes; depois batia com o dedo na meza, como para pontuar o discurso de Pavel, sem comtudo deixar de dizer de quando em quando: --É isso mesmo! Todavia, commentou a meia voz com um sorrisinho: --Ah! és ainda novo. Não conheces o proximo! Pavel, de pé diante d’elle, explicou gravemente: --Não falemos de novos nem de velhos! Vejamos antes qual é a melhor opinião. --Portanto, em tua opinião até se teem servido de Deus para nos enganarem? Concordo. Tambem creio em que a nossa religião é nociva e erronea. Pélagué interveiu. Quando o filho falava de Deus, das coisas sagradas e queridas que se ligavam á fé que ella tinha no seu Creador, tentava sempre encontrar o olhar de Pavel para pedir-lhe tacitamente que não lhe despedaçasse o coração com palavras de incredulidade, cortantes e aceradas. Ella porém sentia que, apezar de mostrar-se sceptico, o seu filho era crente; e isto tranquilisava-a. --Como poderia eu compreender os seus pensamentos? dizia a si mesma. Pensava que devia ser desagradavel e ultrajante para Rybine, um homem d’idade, ouvir taes palavras de Pavel. Mas quando Rybine dirigira aquella pergunta perdeu, de todo a paciencia. --Sêde mais prudentes falando de Deus! disse resumidamente, mas com obstinação. Façam o que quizerem, mas... E tendo tomado a respiração, continuou com mais vigor: --Mas em que me hei de apoiar, no meio dos meus desgostos, eu que estou velha, se me tirarem o meu Deus? Os olhos encheram se-lhe de lagrimas. Com as mãos trémulas, continuou lavando a loiça. --Não nos compreendeu, mamã! disse Pavel com suavidade. --Desculpe-nos! accrescentou Rybine em tom vagaroso, lançando um olhar risonho a Pavel. Esquecia-me de que estás muito velha para ser ainda tempo de te cortarem as verrugas!... --Eu não falava, de maneira alguma, do Deus bom e misericordioso no qual a mãe acredita, mas sim d’aquelle com que os padres nos ameaçam como se fosse um flagello, e em nome do qual exigem que a grande maioria dos homens se submetta á vontade malevola d’alguns. --Exactamente! Isso é que é! exclamou Rybine, batendo com o dedo na meza. Transformaram-nos até Deus. Os nossos inimigos lançam mão de tudo quanto lhes sirva para abater-nos. Recordo-te, Pélagué, que Deus creou o homem á sua imagem e semelhança e portanto parece-se com o homem, visto que o homem se parece com Elle. Nós, porém, não nos assemelhamos a Deus, mas sim aos animaes selvagens... Na egreja, o que nos mostram, em logar de Deus, é um espantalho. É mister transformar Deus, purifical-o! Revestiram-no de mentira e de calumnia, mutilaram o seu rosto para matarem a nossa alma... Falava baixo, mas com espantosa nitidez; cada uma das suas palavras era para Pélagué um golpe doloroso. Sentiu-se assustada por aquella grande cara taciturna enquadrada n’uma barba negra, e o brilho sombrio dos seus olhos tornava-se-lhe insupportavel. --Ah! Prefiro ir-me embora! disse, sacudindo a cabeça. Não tenho coragem de ouvir taes coisas... Não posso! E fugiu para a cosinha, emquanto Rybine dizia: --Vês, Pavel? Não é pela cabeça, mas sim pelo coração que se deve começar. O coração é um logar da alma humana no qual não brota mais do que... --Do que a razão! acabou Pavel com firmeza. Será só a razão que libertará o homem! --A razão não dá o poder! replicou Rybine, vibrante e obstinado. É o coração que dá a força e não o cerebro! Pélagué despira-se e deitara-se sem haver resado. Tinha frio e sentia-se pouco bem. Rybine, que lhe parecera tão sensato, tão correcto, ao principio, excitava-lhe uma reservada hostilidade. --Herético! agitador! pensava, prestando o ouvido á voz sonora que saía com facilidade d’aquelle peito amplo e forte. Para que veio elle cá?!... E Rybine ia dizendo, tranquillo e firme: --Um logar santo não póde ficar vasio. O logar onde Deus vive dentro de nós é atacado; se Elle caír da alma, ficará uma chaga! Ora ahi está! É preciso inventar uma fé nova, Pavel. É preciso crear um Deus justo para todos, um Deus que não seja nem juiz, nem guerreiro, mas sim o amigo dos homens. --E que outra coisa foi Jesus?! exclamou Pavel. --Espera!... Jesus não era firme d’espirito... «Affastem de mim este calice...» disse elle. E reconhecia o poder do Cezar. Deus não pode reconhecer uma auctoridade humana reinando sobre os homens, porque elle é que é a omnipotencia! Elle não dividiu a sua alma n’uma parte divina e em outra humana, e visto que confirmou a sua divindade, não carece de coisa alguma humana. Jesus reconheceu tambem como legitimos o commercio e o casamento. Foi injustamente que condemnou a figueira. Que culpa tinha ella da sua esterilidade? Não é por sua culpa que a alma não dá bons frutos. Fui eu que semeei n’ella o mal? As duas vozes vibravam sem interrupção no quarto, como se se arrojassem uma á outra, combatendo-se em lucta animada e apaixonada. Pavel ia e vinha, a passos largos, e o sobrado rangia sob os seus pés. Quando falava, todos os sons se fundiam no ruido da sua voz; quando Rybine replicava, calmo, tranquilo, ouvia-se o tic-tac da pendula do relogio e o sêcco estalido da neve que roçava com as suas garras agudas nas paredes da casa. --Vou falar-te como authentico fogueiro que sou: Deus parece-se com o fogo. É isto, sim! Não consolida coisa alguma, não o pode. Queima e funde, illuminando. Illumina as egrejas, mas não as constroe. Vive no coração. Disse se: «Deus é o Verbo»; e o Verbo é o espirito. --A razão! emendou Pavel, obstinado. --Isso! Portanto, Deus está no coração, e na razão, e não na egreja. E eis d’onde vem as desgraças, as dores, os infortunios do homem: é que todos nós somos arrancados de nós mesmos! O coração é repellido pela razão, e a razão foi-se! O homem não é uno. Deus une o homem em um todo, em um globo. Deus creou sempre coisas redondas: a terra, as estrellas; tudo o que é visivel, o que é agudo, foi o homem quem o fez. Quanto á egreja, é o tumulo de Deus e do homem. Pélagué adormeceu, não tendo ouvido saír Rybine. Elle voltou a apparecer muitas vezes. Quando qualquer companheiro de Pavel estava em casa d’este, o fogueiro sentava-se a um canto e continha-se em silencio; de tempos a tempos, dizia: --Isso! Exactamente! Uma vez, espraiou o seu negro olhar pelos assistentes, e disse, nada satisfeito: --Deve-se falar do que é; o que será não sabemos nós. Quando o povo fôr livre, elle proprio verá o que tiver de melhor a fazer. Já lhe metteram na cabeça muitas coisas que elle não queria! Basta! Elle que se examine! Talvez elle repilla tudo, toda a vida e todas as sciencias; talvez veja que tudo lhe é hostil, como por exemplo: Deus e a egreja. Dêem-lhe para a mão todos os livros, e elle responderá. Mas para isto, seria necessario que elle compreendesse que quanto mais apertada é a colleira, mais penoso é o trabalho. Quando Pavel e Rybine estavam a sós, punham-se logo a discutir, tranquillamente, por muito tempo. A velha escutava-os inquieta, seguia-os com o olhar silencioso, deligenciando compreender. Por vezes, parecia-lhe que ambos tinham cegado. Nas trevas, entre as paredes do pequeno quarto, os dois vagueavam d’um para outro lado, como em busca d’uma saída ou d’uma luz; agarravam-se a tudo com as suas mãos vigorosas, mas inhabeis; agitavam, revolviam tudo, deixando caír por terra coisas que depois espezinhavam. Esbarravam em tudo, tateavam e repelliam tudo, sem pressas, sem perderem a esperança nem a fé. Tinham-na acostumado a ouvir uma palavras terriveis pela sua simplicidade e audacia; estas palavras já não a opprimiam com a mesma violencia. Rybine não era simpático á velha, mas a repulsão, que a principio lhe inspirára, tinha desapparecido. Uma vez por semana, Pélagué ia á cadeia levar roupa e livros a André; um dia obteve licença de vêl-o; e ao voltar para casa, contou enternecidamente: --Continúa sendo o mesmo. Amavel para com todos. Todos brincam com elle. Parece que tem sempre o coração em festa. Custa-lhe a vida, soffre, mas não quer dal-o a perceber. --E é assim que devem fazer todos! replicou Rybine. Todos nós estamos envolvidos em desgostos como n’uma segunda pelle... Respiramos desgostos... vestimo-nos de desgostos... Não temos de que nos gabar. Nem toda a gente tem os olhos furados, e muitos ha que os fecham de motu-proprio... Quando se é parvo, então sim, não ha remedio senão esperar o soffrimento... XII A velha casa parda dos Vlassof attraía de mais em mais as attenções do bairro. Ás vezes um operario apparecia por lá, e depois de ter olhado para todos os lados, cautelosamente, dizia a Pavel: --Irmão, tu que lês nos livros, deves conhecer as leis. Portanto, explica-me. E contava qualquer arbitrariedade da polícia ou da administração da fabrica. Nos casos complicados, Pavel remettia o consulente, com duas palavras de recommendação, a um advogado dos seus amigos, e, quando podia, elle proprio dava conselhos. Pouco a pouco, os frequentadores do bairro foram nutrindo um sentimento de respeito por aquelle rapaz tão commedido, que falava de tudo com simplicidade e afoiteza, que raras vezes ria, que encarava e escutava todos os assuntos com attenção, mettendo-se na embrulhada de qualquer negocio particular e descobrindo sempre o fio que ligava as creaturas umas ás outras por milhares de nós tenazes. Pélagué via ampliar-se a influencia do seu filho, começava a aprender o sentido dos trabalhos de Pavel, e quando o compreendia, invadia-a uma alegria infantil. Pavel tornou-se maior na opinião publica por occasião da historia do «_kopeck_[1] do pantano». Um grande pantano com pinheiros e bétulas cercava a fabrica como um fosso infecto. No verão, vinham d’elle exhalações amarellentas, opacas, de mistura com nuvens de mosquitos que se espalhavam no bairro produzindo febres. O pantano pertencia á fabrica; o novo director, querendo tirar partido d’elle, concebeu o projecto de esgotal-o, extraíndo-lhe ao mesmo tempo o nateiro. Esta operação, disse aos operarios, tornaria salobras as circumvisinhanças e melhoraria as condições de vida a todos; portanto ordenou que fosse descontado um kopeck por cada rublo, nas ferias, quantia que seria destinada ao saneamento do pantano. Nos operarios houve uma agitação; irritava-os principalmente o facto de não reverter para os empregados o imposto. No sabbado em que foi publicada a decisão do director, Pavel estava doente e não fôra trabalhar; nada sabia. Na manhã seguinte, depois da missa, o fundidor Sizof, um bom velho, o serralheiro Makhotine, homem alto, muito irrascivel, foram a casa d’elle para lhe dizer o que se passava. --Os mais velhos d’entre nós reuniram-se, disse rudemente Sizof; discutimos; os nossos companheiros mandaram-nos cá para te perguntarmos--visto seres um homem de espirito lucido--se ha alguma lei que permitta ao director extinguir os mosquitos á nossa custa. --Nota, accrescentou Makhotine, revolvendo os olhos, que ha quatro annos aquelles ladrões nos apanharam dinheiro para construirem um estabelecimento de banhos... Que é d’elle? Pavel explicou que o imposto era injusto, que a fabrica tiraria uma grande vantagem do projecto. Assim, os dois operarios retiraram-se com ares de poucos amigos. Depois de os haver acompanhado até á porta, Pélagué disse sorrindo: --Vem então os velhos a tua casa aprender comtigo, Pavel!... Sem responder, o rapaz sentou-se e começou de escrever, preoccupado. Decorridos instantes: --Peço-te que vás immediatamente á cidade e entregues este bilhete... --É coisa arriscada? --Sim. É para onde imprimem o nosso jornal. Esta historia do kopeck deve apparecer, sem falta, no proximo numero. --Está bem! está bem! respondeu ella, vestindo-se á pressa. Eu vou. Era o primeiro recado importante de que o filho a encarregava. Sentia-se feliz por vêr que elle lhe dizia francamente do que se tratava, e por poder ser-lhe util na sua obra. --Compreendo, Pavel! Vou n’um momento. Como se chama elle? Iégor Ivanovitch, não?... Regressou de noite, já tarde, fatigada, mas satisfeita. --Vi a Sachenka. Manda-te recommendações. Como é divertido o Iégor! sempre de brincadeira!... --Muito folgo com que elle seja do teu agrado. --Que simpleza de gente! São tão simpaticas as pessoas simples!... E olha que todos elles te estimam muito. Na segunda-feira, Pavel não poude ir á fabrica, doia-lhe a cabeça. Mas ao meio dia, Fédia Mazine appareceu-lhe, em grande excitação, radiante: participou esbofado: --Toda a fabrica está em revolta! Mandaram-me vir á tua procura. Sizof e Makhotine dizem que tu explicarás a coisa melhor do que os outros. Se visses o que por lá vae! Pavel vestiu-se sem dizer palavra. --As mulheres estão reunidas e fazem uma gralhada!... --Vou ter com ellas! disse Pélagué. Tu não estás bom, talvez seja perigoso... Os outros para que servem, então? Eu irei falar com elles... --Vamos! disse Pavel simplesmente. Saíram rapidamente, em silencio. Pélagué, offegante e commovida, presentia o que quer que fosse grave. Á entrada da fabrica, uma multidão de mulheres berrava e discutia. Pélagué via que todos os rostos estavam voltados para o mesmo lado, para a parede das forjas. Ali, Sizof, Makhotine, Valof e mais cinco operarios influentes e idosos tinham trepado para um montão de velha ferragem. --Ahi vem o Vlassof! gritou alguem. --Vlassof! Tragam-no cá! Levaram Pavel, de roldão. Pélagué ficou só. --Silencio! ordenaram muitas vozes a um tempo. Proximo de Pélagué ouviu-se a voz monotona de Rybine: --Não é pelo kopeck que se deve mostrar resistencia, mas sim pelo principio da justiça. Não é o kopeck o que nos custa, não é mais redondo do que os outros, mas é para nós mais pesado: ha n’elle mais sangue humano do que só em um rublo do director! Estas palavras caíam sobre a multidão com energia e provocavam ardentes exclamações. --É verdade! Bravo, Rybine! --Silencio, seus diabos! --Tens razão, fogueiro! --Olhem o Vlassof! As vozes confundiram-se n’um turbilhão tumultuoso, abafando o ruido surdo das maquinas e os suspiros do vapor. De toda a parte corria gente que começava a discutir, agitando os braços, excitando-se mutuamente com palavras febris e causticas. A irritação que dormia nos peitos fatigados, despertava; escapava dos labios e tomava o vôo, triunfante. Ao de cima da multidão pairava uma nuvem de poeira e ferrugem; os rostos cobertos de suor estavam em fogo, a pelle das faces vertia lagrimas negras. No fundo sombrio das fisionomias, brilhavam os olhos e os dentes. Afinal, Pavel appareceu ao lado de Sizof e de Makhotine; ouviram-no gritar: --Companheiros! Pélagué viu que o filho estava palido e que os seus labios tremiam; involuntariamente, quiz avançar, abrindo caminho, á força; mas disseram-lhe com mao modo: --Ó velha, deixa-te estar! Empurraram-na. Mas não desanimou, com os hombros e os cotovellos afastava toda a gente e approximava-se do filho, pouco a pouco, impellida pelo desejo de ir ficar a seu lado. Pavel, depois de haver soltado frases a que costumava dar um sentido profundo, sentiu as guellas apertadas pelo espasmo resultante da grande alegria de combater. Invadiu-o o desejo de entregar-se á força da sua crença, de arrojar áquella gente o seu coração consumido pelo ardente sonho da justiça. --Companheiros! repetiu, dando a esta palavra todo o enthusiasmo e vigor. Somos nós que construimos as egrejas e as fabricas, que fundimos o dinheiro, que forjamos os grilhões... Somos nós a força viva que nutre e diverte o mundo inteiro, desde que nascemos até á morte... --Isso! isso! exclamou Rybine. --Sempre e em toda a parte, somos os primeiros no trabalho, emquanto nos atiram para os ultimos logares na vida. Quem se preoccupa de nós? quem nos quer bem? quem nos considera como homens? Ninguem! --Ninguem! repetiu uma voz como se fosse um écco. Senhor de si, Pavel passou a falar com mais simplicidade e mais calmo. A multidão avançava lentamente para elle, como um corpo sombrio de mil cabeças. Olhava para o rapaz com centenas de olhos attentos, respirava as suas palavras. O ruido decrescia. --Não teremos melhor quinhão emquanto não nos sentirmos solidarios, emquanto não formarmos uma unica familia de amigos, estreitamente ligados pelo mesmo desejo--o de luctarmos pelos nossos direitos. --Entra no assumpto! disse uma voz perto de Pélagué. --Não o interrompam! Calem-se! replicaram de varios pontos. Quasi todas aquellas caras tinham uma expressão de incredulidade soez; poucos olhares estavam fixados em Pavel com gravidade. --É um socialista, mas não tem nada de tolo! disse um. --É um revolucionario! accudiu outro. --Fala com tezura! afirmou um operario, forte e vesgo, dando um empurrão em Pélagué. --Companheiros! Chegou o momento de resistirmos á força ávida que vive do nosso trabalho; chegou o momento de nos defendermos. Deve cada qual compreender que ninguem virá em nosso auxilio, se não nós mesmos. Um por todos, todos por um--deverá ser a nossa lei, se quizermos vencer o inimigo. --Elle diz a verdade, irmãos! exclamou Makhotine. Escutem a verdade! E com um gesto largo, ergueu o punho cerrado. --É indispensavel mandar chamar o director, immediatamente! continuou Pavel. É preciso perguntar-lhe... De subito, dir-se-ia que um furacão caíra sobre todo o povo. Toda aquella massa de gente ondeou como o oceano sob uma rajada; dezenas de vozes berraram a um tempo: --Venha o director! --Elle que s’explique! --Vão buscal-o! --Mandemos-lhe delegados! --Não! Tendo conseguido chegar á frente, Pélagué olhava para o filho, sentindo-se dominada por elle. Estava replecta de orgulho: o seu Pavel, no meio dos velhos operarios mais queridos, sendo escutado e apoiado por toda a gente!... Admirava o seu sangue-frio, a sua simplicidade e o seu falar sem fastio e sem pragas, como era o dos outros. As exclamações, os gritos de revolta, as invectivas choviam como saraivada grossa em telhados de zinco. Pavel encarava na multidão, e parecia procurar o que quer que fosse entre os grupos. --Delegados! --Fale o Sizof! --O Vlassof! --O Rybine, que tem uns dentes terriveis! Afinal, escolheram Pavel, Sizof e Rybine para parlamentarios, e iam mandar chamar o director, quando de chofre se ouviram algumas hesitantes exclamações: --Vem ahi, sem ser chamado... --O director... --Ah!... Ah!... A multidão abriu caminho a um figurão alto, sêcco, de rosto comprido, e barba em bico. --Com licença! dizia, afastando o povo com um movimento ligeiro, mas sem lhe tocar. Tinha os olhos semi-cerrados, e, como experiente em lidar com os homens, ia observando as fisionomias dos operarios. Estes inclinavam-se, tiravam o boné, cumprimentando-o. Elle não respondia a estas demonstrações de respeito, semeava o silencio e o constrangimento por onde ia passando; sentia-se já, sob os sorrisos contrafeitos e o tom abafado das palavras, o como arrependimento da creança, conscia de ter feito uma tolice. O director passou em frente de Pélagué, lançou-lhe um olhar severo e parou junto do montão de ferragem. De cima, alguem estendeu-lhe a mão: não a acceitou. Com um movimento vigoroso e agil, subiu, ficou á frente e perguntou em tom frio e auctoritario: --Que significa esta reunião? Porque abandonaram o trabalho? O silencio foi completo por alguns instantes. As cabeças dos operarios balouçavam como espigas. Sizof agitou o boné, encolheu os hombros e baixou a cabeça. --Respondam! berrou o director. Pavel abeirou-se a elle e disse-lhe em voz alta, apontando para Sizof e Rybine: --Nós trez fômos encarregados pelos nossos companheiros de exigir que reconsiderasse na sua resolução relativamente ao desconto do kopeck. --Porquê? perguntou o director sem olhar para Pavel. --Porque reputamos injusto este imposto! replicou com voz sonora. --Portanto, não vêem no meu projecto senão o desejo de explorar os operarios, e não o cuidado de melhorar a sua existencia, não é verdade? --Exacto! --E o sr. tambem? perguntou, dirigindo-se a Rybine. --Somos todos da mesma opinião. --E o sr.? perguntou ainda, voltando-se para Sizof. --Eu cá... tambem lhe peço que não nos tire o nosso kopeck. Depois, baixando outra vez a cabeça, Sizof sorriu contrafeito. O director passou vagarosamente o olhar pela multidão e encolheu os hombros. Em seguida olhou perscrutadoramente para Pavel, e disse: --O sr. é, segundo creio, um homem instruido. Não compreende todas as vantagens da minha medida? Pavel respondeu distinctamente: --Ninguem deixaria de compreendel-as, se a fabrica exgotasse o pantano á sua custa. --A fabrica não trata de filantropias! replicou. Ordeno-lhes, a todos, que voltem immediatamente para o trabalho. E preparou-se para descer, tateando cautelosamente os ferros com a ponta da bota, sem olhar para ninguem. Ouviu-se um rumor de desapprovação. --Que é isso? perguntou o director, parando. Calaram-se todos; apenas, a distancia, replicou uma unica voz: --Trabalha, tu! --Se dentro de um quarto d’hora não voltarem para o trabalho, multal-os-ei, a todos! declarou seccamente. E seguiu o seu caminho por entre a multidão, emquanto atraz d’elle se ia levantando um surdo murmurio. Quanto mais elle se afastava, mais o ruido se tornava intenso. --Vão lá falar-lhe! --São então estes os nossos direitos! Estupor de sorte! Dirigiam-se a Pavel, gritando: --Olá! jurisconsulto! que devemos fazer agora? --Emquanto se tratou de falar, falaste; mas elle appareceu e mudaram os ventos! --Então, Vlassof! O que fazemos? As perguntas eram cada vez mais insistentes. Pavel respondeu emfim: --Companheiros, proponho que abandoneis o trabalho até que o director renuncie ao injusto desconto. Ergueram-se logo frases irritadas: --Julgas que somos parvos? --É o que se deve fazer! --A gréve?! --Por causa de um kopeck?! --Pois façamos gréve! --Vamos todos para o olho da rua! --E quem trabalharia? --Encontrariam outros operarios! --Onde? Traidores?! NOTAS DE RODAPÉ: [1] _Kopeck_, moeda de cobre, a centesima parte do rublo. O seu valor approximado é de cinco réis. XIII Pavel desceu e collocou-se ao lado da mãe. Em volta delles, todos começaram a falar ruidosamente, a discutir, a agitarem-se, gritando. --Não se fará a gréve! disse Rybine approximando-se de Pavel: o povo embora seja sovina em se tratando de dinheiro, é muito poltrão. Não encontrarás mais de trezentos que tenham opinião igual á tua. Não se pode revolver semelhante esterco só com uma forquilha. Pavel ficou silencioso. Perante elle, a multidão com a sua enorme cara negra movia-se e observava-o como se elle lhe tivesse feito uma exigencia. O seu coração pulsava violento. Parecia-lhe que as suas palavras tinham desapparecido, sem deixarem vestigios naquelles homens, taes como gottas de chuva tenue, esparsas em terreno gretado por uma longa estiagem. Uns após outros, os operarios approximaram-se d’elle, felicitaram-no pelo seu discurso, mas duvidavam do exito da gréve, e lamentavam que o povo não compreendesse nem a sua força nem os seus interesses. O sentimento de desillusão apoderava-se de Pavel, que tambem já não acreditava na sua força. Doía-lhe a cabeça, sentia-se como vasio! D’antes, nos momentos em que elle fantasiava o triunfo da verdade que tão querida lhe era, o enthusiasmo de que se enchia o seu coração dava-lhe vontade de chorar. E agora, tendo exprimido a sua fé diante do povo, apparecera-lhe mais pálida, impotente, incapaz de tocar no que quer que fosse. Accusava-se, a si proprio; tinha a impressão de haver adornado o seu sonho com vestimentas informes, sombrias, e miseras, e que por isto ninguem lhe descobrira a belleza. Voltou para casa triste e fatigado. A mãe e Sizof seguiam-no. --Falas bem, dizia Rybine, mas não chegas ao coração. É o que é! Precisa-se lançar a faísca até ao fundo dos corações. Não será pela razão que os captarás. É calçado muito fino e muito apertado para o povo; não lhe serve nos pés. E ainda que servisse, o sapato ficaria acalcanhado em pouco tempo! Sizof dizia a Pélagué: --Chegou o momento de nós, os velhos, irmos a caminho do cemiterio! Levanta-se um povo novo. Como temos vivido? Arrastando-nos de joelhos, constantemente curvados para a terra. E hoje não se sabe ao certo se ha consciencia do que se faz ou se o caminho novo é mais errado do que o nosso... Em todo o caso, os de hoje não se parecem comnosco. Vejam lá: os novos falando ao director como de igual para igual!... Ah! se o meu filho fosse vivo!... Até á vista, Pavel Mikhaílovitch... És um bello rapaz, tomas a defesa do povo... Queira Deus que encontres o bom caminho, a bôa saída... Deus queira! E foi-se. --Pois! que todos morram! resmungou Rybine. Já agora, não sois homens, sois uma argamassa, bôa apenas para tapar as fendas das paredes! Reparaste, Pavel, nos que mais gritaram para que tu fosses designado como nosso delegado? Eram os que dizem que tu és um revolucionario, um perturbador. Ora ahi tens! Pensaram que serias expulso da fabrica; era isto o que elles queriam. --Sob o seu ponto de vista, teem razão. --Os lobos tambem teem as suas razões quando se despedaçam uns aos outros. Rybine estava rabugento, a voz tremia-lhe. --Os homens não teem confiança na palavra nua e crua... É preciso mergulhal-a no sangue... Durante o dia todo, Pavel sentiu-se desgraçado, como se tivesse perdido alguma coisa e presentisse a sua propria perda sem compreender no que ella consistiria. De noite, quando a mãe já dormia e elle ainda estava lendo na cama, a policia voltou para revolver raivosamente em toda a casa, no pateo e no sotão. O official amarellento portou-se, como da primeira vez, d’uma maneira impliquenta e offensiva, sentindo prazer em melindrar Pavel e a mãe. Assentada a um canto, Pélagué mantinha-se em silencio, com o olhar fixo no rosto do filho. Este tentava occultar a perturbação, mas quando o official ria, os dedos do rapaz tinham movimentos não vulgares; a mãe percebia quanto elle estava soffrendo por não poder responder á letra aos gracejos do officialsito. Sentia-se menos assustada do que na primeira busca, mas era maior o seu odio por aquelles visitantes nouturnos, vestidos de cinzento, de esporas tintilantes. Pavel conseguiu dizer-lhe baixinho: --Vão levar-me. Baixando a cabeça ella respondeu: --Percebo... Compreendia: iam mettel-o na cadeia pelas frases que elle dirigira aos operarios. Mas estes tinham-nas apoiado, e todos iriam tomar a defeza de Pavel, que só por pouco tempo ficaria preso. Tinha vontade de chorar, de abraçar o filho; mas ao seu lado o official observava-a com olhar malevolo, os labios tremiam-lhe assim como o bigode, e Pélagué sentiu que aquelle homem esperava com alegria que ella se desfizesse em lagrimas, em supplicas, em lamentações. Reunindo todas as suas forças, falando o menos possivel, apertou a mão do filho e disse em voz baixa, retendo a respiração: --Até á vista, Pavel. Levas comtigo tudo que precisas? --Levo. Não te dê cuidado. --O Senhor vá comtigo. Quando o levaram, a mãe deixou-se caír n’um banco e soluçou docemente com as palpebras abaixadas. Encostada á parede, como seu marido fazia outrora, torturada pela angustia e pelo sentimento da sua impotencia em semelhante transe, chorou durante muito tempo, fazendo passar ás lagrimas a dôr do seu coração ferido. Via na sua frente, como se fosse uma mancha immovel, uma fisionomia amarella, de bigode delgado, olhos semi-cerrados, aspecto feliz. No seu peito contorciam-se, como em negro torvelinho, o desespero e a colera contra quem roubava um filho a sua mãe, só porque elle procurava a verdade. Estava frio: as gottas de chuva batiam nas vidraças, ao longo das paredes deslisava o que quer que fosse; dir-se-ia que nas trevas, silhuetas pardas, de grandes caras sem olhos, e de braços compridos, rondavam, espiando. E as suas esporas tintilavam fracamente. --Seria melhor que me tivessem levado tambem! pensou. O apito da fabrica vibrou, na sua ordem de começar o trabalho. N’aquella manhã, foi um apito vago, e hesitante. A porta abriu-se, Rybine entrou. Approximou-se de Pélagué, e limpando as gottas de chuva que se lhe haviam espalhado pela barba: --Levaram-no? --Sim. Malditos! --Bonita coisa! A mim, revistaram-me, rebuscaram tudo... Injuriaram-me... mas afinal não me prenderam. Com que então, levaram o Pavel?! O director deu o signal, a policia obedeceu, e aqui está como se prende um homem! Entendem-se bem uns aos outros, como os gatunos nas feiras. Uns encarregam-se de ordenhar o povo, emquanto outros o seguram pelo focinho. --Devem tomar a defeza do Pavel! exclamou ella, erguendo-se. Foi por causa de todos que elle se comprometteu. --Mas quem deve tomar essa defeza? --Todos vós! --Que idéa! Não conte com isso! Foram precisos milhares de annos para reunir a sua força. Cravaram-nos um sem numero de pregos no coração... Como seria possivel ajuntarem-nos de subito? Necessitamos primeiro de arrancar os nossos espinhos de ferro... São estes espinhos que impedem os nossos corações de reunirem-se n’uma massa compacta. E com um risinho, foi-se lentamente. As suas palavras crueis e desesperadas tinham augmentado o desgosto de Pélagué. --Podem matal-o, tortural-o... E imaginou o corpo do filho crivado de pancadas, despedaçado, ensanguentado; e, como uma camada d’argila gelada, suffocava-a o medo caído no seu coração. A luz fazia-lhe mal aos olhos. Não accendeu o fogão, não preparou o jantar, não tomou o chá; só muito tarde, á noite, comeu um pouco de pão. Quando se deitou, reconheceu que nunca na sua vida se sentira tão humilhada, tão isolada, como nua. Nos ultimos annos, acostumara-se a viver na constante espectativa do que quer que fosse importante, feliz. Em torno d’ella, a gente nova movia-se, ruidosa e decidida, dominada pelo seu filho de rosto grave, seu filho, o senhor e o creador d’aquella vida cheia d’inquietação, mas bôa. E n’aquelle momento em que já não o via, tudo tinha desapparecido. XIV O dia decorreu lentamente, seguido de uma noite sem somno. O dia seguinte pareceu-lhe ainda mais comprido. Esperava não sabia o quê, mas ninguem veio. Caíu a tarde, depois a noite. A chuva glacial tombava roçando pelas paredes, o vento soprava pela chaminé, o madeiramento da casa rangia. Ouvia-se apenas a melodia melancólica e dolorosa das gottas d’agua caíndo do telhado, como lagrimas. Parecia que toda a casa vacilava e que uma surda angustia gelava o ambiente. Bateram de manso á vidraça. Pélagué estava acostumada a este signal; não se assustou; estremeceu como se lhe tivessem despertado bondosamente, o coração. Vaga esperança fêl-a levantar-se de prompto. Atirando um chale para os hombros, abriu a porta. Samoílof entrou, seguido d’outra pessoa que occultava a cara na gola erguida da capa; tinha o boné descaído para os olhos. --Viemos accordal-a? perguntou Samoílof sem mais cumprimentos. Fóra do costume, o seu ar não era tranquillo. --Não; eu não estava a dormir. E olhou inquiridoramente para os recemchegados. Com um suspiro abafado e profundo, o companheiro de Samoílof tirou o boné e estendeu a Pélagué a mão forte e de dedos grossos. --Bôa noite, mãesinha! Não me reconheceu? disse-lhe amigavelmente como a um velho conhecimento. --Ora?! exclamou ella com alegria. Iégor Ivanovitch! o sr.?! --Eu, sim! Tinha o cabello comprido como um menino de côro. Illuminava-lhe a fisionomia um sorriso de bondade; os seus olhitos pardos fitavam-se em Pélagué com expressão carinhosa. Assemelhava-se a um samovar no seu corpito redondo, no pescoço grosso e nos braços curtos. A pelle da cara reluzia; no seu peito parecia pesar e rostilhar alguma coisa... --Vão para aquelle quarto; eu vou vestir-me! propôz ella. --Temos que dizer-lhe! respondeu Samoílof, preoccupado e olhando-a de soslaio. Iégor passou para a divisão do lado, dizendo: --Mãesinha, esta manhã um dos nossos amigos saíu da cadeia, onde esteve trez mezes e onze dias. Viu por lá o russo-menor e Pavel que lhe envia muitas recommendações; o seu filho pede-lhe que não se apoquente por causa d’elle, e manda-lhe dizer que no caminho que elle escolheu, a cadeia é o logar que serve para o descanço; assim o resolveram as nossas auctoridades sempre interessadas pelo nosso bem-estar... Vamos agora ao que importa: Sabe quantas pessoas foram presas hontem? --Não. Pavel não foi o unico? --Foi o quadragesimo nono... declarou Iégor tranquillamente. E espera-se que ainda sejam presos uns dez... Entre outros este cavalheiro aqui presente. --Eu mesmo! disse Samoílof, sombrio. Pélagué respirava mais facilmente. --Não está então sosinho!... Quando acabou de vestir-se, passou ao outro quarto, sorrindo, bem disposta. --Não os conservarão presos por muito tempo se elles são muitos. --Diz bem! E se conseguirmos torcer o jogo dos nossos adversarios, não terão adiantado mais do que d’antes. Se deixarmos de propagar agora os nossos folhetos, os patifes da policia notarão o caso, e perceberão que a propaganda era feita pelo Pavel e pelos companheiros, agora seus companheiros na cadeia. --Como? não percebo... --Nada mais simples, mãesinha. Ás vezes a gente da policia chega a raciocinar com acerto... Repare: emquanto o Pavel era livre appareciam os folhetos; mettido na cadeia, desappareceram. Logo era elle quem os espalhava. --Percebo!... murmurou ella tristemente. Que fazer? Ah! Deus do ceo! A voz de Samoílof veiu da cosinha: --Diabos me levem! Prenderam quasi todos os nossos! É preciso continuar a trabalhar como d’antes, não só pela nossa causa, mas tambem para salvar os companheiros. --E ninguem para trabalhar!... suspirou Iégor. Temos folhetos magnificos... Fui eu mesmo que os fiz. Mas como introduzil-os na fabrica? Eu cá não sei: --Agora, toda a gente é revistada á entrada... explicou Samoílof. Pélagué adivinhava que lhe queriam alguma coisa. --Então que fazer? perguntou vivamente. Samoílof parou e perguntou: --Pélagué Nilovna, conhece a vendedeira Korsounova? --Conheço. Porquê? --Fale-lhe. Talvez que ella se encarregue dos nossos folhetos. Ella ergueu logo o braço n’um movimento negativo: --Ah! não! É uma tagarella! Não! Saber-se-ia logo que fui eu... que foi coisa vinda da nossa casa... Não! E de subito, illuminada por uma idéa repentina, exclamou com alegria: --Dêem-me os folhetos! Dêem-mos! Eu acharei um meio... Deixem isso por minha conta! Pedirei á Maria que me tome ao seu serviço. Tenho que trabalhar, se quizer comer. Levarei tambem os jantares á fabrica, aos operarios... Deixem isso por minha conta. Com as mãos unidas no peito, affirmava que saberia proceder sem que a descobrissem, e concluiu com uma exclamação triunfante: --Ah! Hão de ver que mesmo com Pavel na cadeia, a sua mão os attinge! Todos trez se sentiam de novo animosos. Iégor sorria, esfregando rapidamente as mãos, dizendo: --Bravo, mãesinha! Se soubesse como isso lhe fica bem! como é para enthusiasmar! --Se fôr bem succedida, sentir-me-ei tão feliz na cadeia como se estivesse sentado n’uma cadeira estofada! declarou Samoílof, rindo: --É um thesouro, mãesinha! exclamou Iégor roufenhamente. Pélagué sorriu. Era simples: se conseguisse introduzir na fabrica os folhetos, diriam que não era Pavel quem os distribuia. Sentindo-se capaz de desempenhar-se de tal compromisso, Pélagué estremecia jubilosa. --Quando fôr visitar o Pavel, diga-lhe que elle tem uma boa mãe! --Hei de vêl-o mesmo antes do dia da visita! prometteu Samoílof, sorrindo. --Diga-lhe abertamente que hei de fazer quanto fôr necessario. Que elle o fique sabendo! --E se o Samoílof não fôr preso, como ha de sabel-o o Pavel? perguntou Iégor. --Paciencia! Temos que nos resignar! E ambos entraram de rir. Quando ella compreendeu a sua tolice, riu tambem, mas um tanto contrafeita. --Quando olhamos para os nossos, não vemos bem os que lhe ficam por detraz... murmurou ella, a justificar-se. --É natural! concordou Iégor. A proposito de Pavel: não se inquiete nem se entristeça. Ha de saír da cadeia ainda melhor do que quando para lá entrou. Por lá descansa-se, ha tempo para adquirir instrucção, o que não nos acontece quando estamos á solta. Estive preso tres vezes, sem grande vontade, mas o meu coração e a minha razão aproveitaram sempre... --Custa-lhe respirar... disse Pélagué olhando para elle affectuosamente. --Por motivos especiaes... respondeu levantando um dedo para o ar. --Portanto, está combinado, mãesinha. Ámanhã trazemos-lhe o que sabe, e outra vez entrará em movimento a roda que aniquila as trevas seculares. Viva a liberdade da palavra, mãesinha! e viva o coração materno! Até ámanhã! --Até ámanhã! disse tambem Samoílof apertando com força a mão de Pélagué. Eu não posso dizer palavra d’isso tudo á minha mãe. Quando elles saíram, Pélagué fechou a porta e ajoelhando-se no meio do quarto, pôz-se a resar, ao ruido da chuva. Rezou sem soltar dos labios uma só palavra; era como um pensamento muito longo e intenso; rezou por todos aquelles que Pavel associára á sua vida. Via os passar entre ella e as imagens dos santos; eram simples, tão extraordinariamente approximados uns dos outros, e tão isolados na vida. Logo muito cedo, foi a casa de Maria Korsounova. A ruidosa vendedeira, com o fato engordurado como sempre, acolheu-a compassivamente: --Aborreces-te? perguntou, batendo-lhe com a mão no hombro. Consola-te! Agarraram-no, levaram-no? Grande coisa! Que mal ha n’isso? D’antes mettiam uma pessôa na cadeia, quando roubava; agora é quando se diz a verdade. Pavel disse naturalmente coisas que não se devem dizer. Mas foi para defender os companheiros, e isto toda a gente o percebe. Não tenhas medo. Todos sabem que elle é um bello rapaz... embora não o digam. Eu queria ir a tua casa, mas não tive tempo. Estou sempre a cosinhar, esgótto o meu artigo, e afinal estou certa de que virei a morrer pobre. Os amantes arruinam-me! os sacripantas! Comem! comem!... parecem baratas a devorar um pão. Apenas tenho uns dez rublos, apparece-me um d’esses hereticos e rouba-mos! É isto! Má coisa ser mulher! que estupida vida! É difficil viver só, e ainda mais viver acompanhada! --Pois olha eu vim pedir-te que me acceites como ajudante... disse Pélagué, pondo um dique á catadupa das palavras. --O quê?! Mas quando a sua amiga lhe expoz todo o seu pensamento, meneou a cabeça em signal de approvação. --Está dito. Lembras-te quantas vezes me déste esconderijo quando o meu marido andava á minha procura? Pois serei eu agora que te furtarei á miseria. Cada qual deve correr em teu auxilio porque o teu filho está soffrendo por causa de todos. É um bom rapaz! toda a gente o diz; e todos o lastimam. Eu, cá por mim, penso que estas prisões não trazem nenhum bem á fabrica. Se soubesses o que por lá se diz!... Os chefes imaginam que não ha de ir longe o homem que elles morderam no calcanhar. Mas por cada um que elles atacam, ha cem que se revoltam. Deve-se ter cuidado quando se quizer tocar no povo, porque elle vae aturando por muito tempo, mas, n’um bello dia, estoira! XV Os operarios logo notaram a velha. Alguns dirigiram-se a ella amigavelmente: --Encontraste trabalho, Pélagué? E consolavam-na, affirmando-lhe que Pavel seria posto em liberdade dentro em breve, pois tinha este direito. Outros commoviam o seu coração dolorido com prudentes palavras de compaixão; outros ainda invectivavam abertamente o director e a policia e despertavam n’ella um ecco sincero. Havia tambem quem para ella olhasse com certa satisfação malevola; Isaías Gorbof, operario apontador, disse por entre dentes: --Se eu governasse, mandava enforcar o teu filho, para lhe ensinar a não desnortear o povo. Estas palavras gelaram-na mortalmente. Não respondeu, lançou apenas um olhar áquelle rosto coberto de sardas, e baixou a fronte, suspirando. Percebia que havia no ar certa agitação; os operarios ajuntavam-se em pequenos grupos, discutiam a meia voz, mas animadamente; os contramestres, desconfiados, rondavam por toda a parte; de vez em quando, ouviam-se invectivas, risos irritados. Viu então dois guardas da policia levarem Samoílof. Uns cem operarios seguiram-no, injuriando ou troçando dos guardas. --Vaes dar um passeio, amigo? gritou alguem. --Honra seja ao nosso companheiro! disse outro. Dão-lhe uma escolta!... E resoou uma saraivada de pragas. --Ao que parece, é menos rendoso agarrar os ladrões! berrou muito irritado o vesgo. Mettem-se com a gente de bem! --Se ao menos, isto fosse de noite! Mas qual! Esta canalha não tem vergonha da luz do dia! Os guardas iam andando depressa e com ar carrancudo, buscando não verem nada, nem ouvirem os insultos que de toda a parte lhes atiravam. Trez operarios avançaram para elles, com uma barra de ferro, gritando: --Cuidado, peccadores! Quando passou diante de Pélagué, Samoílof abanou a cabeça, rindo e dizendo: --Vão arrastando um humilde servo de Deus!... Ella ficou silenciosa e curvou-se profundamente commovida pelo espectaculo d’aquelles rapazes honrados, intelligentes e modestos que iam para a cadeia com o sorriso nos labios. Sem dar por tal, começava a consagrar-lhes um compadecido amor de mãe. E era-lhe agradavel ouvir as frases de censura para os directores, porque n’ellas sentia a influencia do filho. Quando saíu da fabrica, passou o dia em casa de Maria, ajudando-a, dando attenção á sua tagarellice. Só tarde voltou para a sua casa vasia, fria, hostil. Por muito tempo vagueou de um canto para o outro, sem saber que fazer nem onde sentar-se. Estava inquieta vendo que Iégor ainda não viéra, como promettera. Lá fóra, caíam pesados flócos pardos d’uma neve de outomno. Collavam-se aos vidros, deslisavam sem ruido e derretiam-se deixando rastos humidos. Pélagué pensava em Pavel. Porque batessem cautelosamente á porta, accorreu logo a puxar pelo ferrolho: era Sachenka. Pélagué não a via desde muito tempo; chamou-lhe logo a attenção a gordura da rapariga. --Bôa noite! Tem estado muito longe d’aqui? --Não. Na cadeia! respondeu, sorrindo. Ao mesmo tempo com o Nicolao Ivanovitch. Lembra-se d’elle? --Como havia d’esquecel-o? O Iégor disse-me que o tinham posto em liberdade, mas de si não me falou, nem elle, nem ninguem. --E para que serviria isso? Deixe-me despir antes que o Iégor venha. --Está toda molhada! --Trouxe os folhetos... --Dê cá! dê cá! --Prompto! Entreabriu a capa, saccudiu-a e logo caíram no chão pacotes de folhetos. Pélagué apanhava-os, rindo. --E eu, que ao vêl-a tão roliça, imaginei que tivesse casado e esperasse um menino! Ah! mas que quantidade que trouxe! E veio a pé? --Vim. A rapariga estava outra vez magra e esbelta. Pélagué notou-lhe até as faces um tanto encovadas, e que os olhos bem rasgados eram assombreados por fundas olheiras. --Pozeram-na na rua, e em logar de ir repoisar, faz uma caminhada de sete kilometros com tudo isto em cima de si!... --Assim era preciso. Diga-me: como está o Pavel Mikaílovitch? Não lhe custou muito?... Falava sem olhar para Pélagué, abaixando a cabeça para arranjar o cabello com os dedos tremulos. --Não! respondeu Pélagué. Oh! Aquelle não se traírá! --Tem uma saude de ferro, não é verdade? perguntou ainda em voz baixa e ligeiramente tremelitante. --Nunca esteve doente. Mas como está tremendo!... Espere; vou tratar do chá; tambem tenho uma compota de framboezas... --Não será máo! disse Sachenka com um leve sorriso. Mas para que ha-de ter esse trabalho? É tarde; deixe que seja eu quem faça o chá. --Mas está tão fatigada!... replicou em tom de censura; e pôz-se a accender o samovar. Sachenka seguiu-a até á cosinha, sentou-se n’um banco e enclavinhando os dedos em cima da cabeça: --Estou fatigada, estou. Apezar de tudo, a prisão esgota. Que maldita inacção! Não ha coisa mais penosa! Fica-se para ali uma semana, um mez, sem nada que fazer... Ha quem conte comnosco para receber instrucção, sabemos que podemos dar-lha... e vemo-nos metidos n’uma jaula como animaes ferozes!... É de resequir o coração! --E quem vos recompensará?... suspirou Pélagué. Mas logo accrescentou: Ninguem, se não Deus! Tambem... a sr.ᵃ não acredita n’elle, naturalmente... --Não! --E eu não acredito em si nem nos outros! exclamou, animando-se de subito. Alimpando ao avental as mãos sujas de carvão, continuou com convicção profunda: --Não compreendeis a nossa crença... Como pode alguem dedicar-se a semelhante vida sem acreditar em Deus? Sob o telheiro ouviram-se passos e o resmungar d’alguem. Pélagué estremeceu; a rapariga poz-se logo de pé e disse baixinho: --Não abra! Se fôr a policia, diga que não me conhece... que bati a esta porta por engano... que entrei aqui por acaso, que desmaiei e que a sr.ᵃ me despiu para pôr-me á vontade, encontrando então em mim os folhetos. Percebe? --E para que hei de dizer isso? perguntou enternecida. --Espere!... Parece-me que é o Iégor... Era elle, a escorrer agua, estafado. --Ah! o samovar está prompto!... exclamou. É o que ha de melhor n’este mundo, mãesinha! Já cá está, Sachenka? Enchia a cosinha com os sons gutturaes da sua voz; tirou vagarosamente o casacão e continuou: --Ora ahi tem, mãesinha, uma rapariga muito desagradavel para as auctoridades! Como um dos carcereiros a tivesse insultado, declarou terminantemente que se deixaria morrer de fome, se elle não lhe pedisse desculpa. E durante oito dias não comeu coisa alguma, estando em riscos de abalar d’esta para melhor. É bonito, não acha? E o que me diz á minha barriguinha? Saccudiu o ventre postiço, feito de massos de folhetos e passou ao quarto, fechando a porta. --O quê? Pois esteve oito dias sem comer? perguntou Pélagué, admirada. --Se era indispensavel que elle me pedisse desculpa!... respondeu, com uma tremura d’hombros friorenta. Esta tranquillidade e esta obstinação austeras levaram ao animo de Pélagué o que quer que fosse semelhante a uma censura. «Ah! é assim, é assim!...» pensou. E perguntou ainda: --E se tivesse morrido? --Estaria morta, naturalmente. Afinal, o homem acabou por pedir desculpa. Ninguem deve perdoar os ultrajes. --Sim... Mas nós, as mulheres, somos ultrajadas durante toda a nossa vida... --Prompto! Já larguei a carga! informou Iégor, apparecendo. O samovar está prompto? Se me dá licença... Pegou n’elle e passando-o para o quarto: --O meu papá bebia pelo menos vinte copos de chá por dia; por isso passou n’este mundo setenta e trez annos socegadamente e sem nunca estar doente. Pesava mais de cem kilos e era sacristão da aldeia de Vosskressensky... --É filho do tio Ivan? perguntou Pélagué. --Sim, sr.ᵃ. Como o sabe? --É que eu tambem sou de Vosskressensky! --Então somos da mesma terra! Que nome era o seu, em rapariga? --Séréguine... Eramos visinhos... --É a filha do Nile, o côxo? Não conheci eu outro figurão! Quantas vezes elle me puxou as orelhas! Estavam de pé e riam no meio das perguntas. Sachenka olhando para elle a sorrir, ia preparando o chá. O ruido da loiça chamou Pélagué aos seus deveres. --Desculpem. Começo o tagarellar e esqueço-os. É tão agradavel encontrar um patricio... --Eu é que peço desculpa de me servir primeiro... disse Sachenka. Mas já são onze horas e ainda tenho muito que andar. --Para ir para onde? para a cidade?! --Sim, para a cidade. --Mas chove, é noite, está cansada. Deixe-se ficar. O Iégor dorme na cosinha, e nós, as duas, aqui. --Não! Tenho forçosamente que partir. --É verdade, patricio: é forçoso que esta menina desappareça. Conhecem-na por cá. E se ámanhã a vissem na rua, seria mao. --E vae-se embora sósinha! --Vae! disse Iégor com um risinho. A rapariga deitou ainda mais chá, pegou n’um pedaço de pão de centeio, salgou-o e entrou de comel-o, olhando pensativamente para Pélagué. --Admira-me como é capaz de ir sósinha. E a Natacha tambem... Eu cá não era. Tenho um medo!... --Mas olhe que ella tambem tem medo. Não é verdade, Sachenka? --É. Pélagué lançou-lhe um olhar, murmurando: --Como são corajosas! Depois de ter tomado o chá, Sachenka apertou a mão a Iégor sem dizer palavra e passou á cosinha seguida pela velha. --Se vir o Pavel, dê-lhe muitas recommendações minhas. Tinha já a mão no fecho da porta, quando, voltando-se rapidamente, perguntou: --Deixa-me beijal-a? Sem responder, Pélagué abraçou-a effusivamente. --Obrigada! disse a rapariga, a meia voz. E saíu, meneando a cabeça. Ao voltar ao quarto, a velha olhou com anciedade para o lado da janella. Nas trevas espessas e humidas caíam lentamente flocos de neve meio derretidos. Vermelho e suando, Iégor sentara-se, com as pernas afastadas e soprando ruidosamente ao chá. Sentia-se satisfeito. A velha sentou-se tambem, e olhando tristemente para elle: --Pobre Sachenka!... Como chegará ella ao fim do caminho?... --Cançada! A cadeia serviu-lhe de provação... Era d’antes mais robusta... Depois, não foi educada como nós, á bruta... Parece-me que já tem os pulmões atacados. --Quem é ella? --Filha d’um proprietario rural. O pae é riquissimo e... canalhissimo. Naturalmente, mãesinha, já sabe que elles se amam deveras e que querem casar. --Quem? --O Pavel e ella. É isto! Mas afinal não o conseguem. Quando elle está em liberdade, está ella na cadeia, e _vice-versa_. --Não sabia, não... Pavel nunca fala da sua pessoa. E ainda mais se apiedou da rapariga. --O sr. devia tel-a acompanhado! lembrou com certa hostilidade involuntaria. --Impossivel! respondeu tranquillamente. Tenho uma caterva de coisas que fazer por cá, e para dar conta de tudo hei de andar o dia inteiro. É uma occupação muito desagradavel quando somos asthmaticos. --Que bella rapariga! exclamava, pensando vagamente no que Iégor lhe dissera. Vexava-a ter sabido aquella noticia por outrem e não pelo seu filho; mordeu os beiços fortemente e abaixou as palpebras. --Sim! disse Iégor. Noto que ella lhe causa piedade. Faz mal! se começa a ter piedade dos revoltados não lhe chega o coração para todos. Francamente, ninguem tem boa vida... Ha tempos, um dos meus companheiros regressou do exilio; quando chegou a Nijni, a mulher e o filho esperavam-no em Smolensk, e quando elle chegou a Smolensk, já elles estavam presos em Moscou. Agora é a mulher que vae exilada para a Siberia. Eu tambem tive mulher, tambem, e era uma excellente creatura, mas cinco annos d’esta vida bastaram para a atirar para a cova. Bebeu d’um trago o seu copo de chá e continuou a discorrer. Contou os annos e mezes que passara preso, e no exilio, as suas catastrophes, a fome na Siberia, os massacres nas prisões... A velha ouvia-o attentamente, admirando-se da simplicidade tranquilla com que elle descrevia aquelle viver cheio de perseguições e de torturas. --Bem! Vamos agora ao nosso negocio... A voz transformou-se-lhe, a phisionomia tornou-se grave. Perguntou como imaginava ella poder introduzir na fabrica os folhetos, e Pélagué ficou surpreendida ao perceber que elle conhecia a fundo todos os meios para chegar ao desejado fim. Depois de combinarem tudo, voltaram a falar da sua aldeia; emquanto Iégor gracejava, a velha ia percorrendo em pensamento o passado, que lhe parecia semelhante a um pantano com monotonos monticulos, e com faias, pinheirinhos e bétulas brancas balouçando mansamente ao vento nas pequeninas collinas. As bétulas cresciam muito de vagar, e depois de terem vivido cinco ou seis annos n’aquelle sólo pútrido e movediço, caíam e decompunham-se... A velha considerava este quadro com indifinivel e misteriosa magoa. Na sua frente ergueu-se uma silhueta de rapariga de feições accentuadas e cheias de obstinação. Ia, sob os flocos de néve, fatigada e solitaria... E o seu filho estava encerrado n’uma pequena casa, cuja janella tinha grades de ferro... Talvez áquella hora elle não dormisse; pensava, por certo. Mas não estaria pensando em sua mãe, porque havia alguem que lhe era mais querido... Como uma nuvem de variegadas côres e informe, avançavam para ella os dolorosos pensamentos, invadindo-lhe a alma com violencia. --Deve estar cançada, mãesinha! Vamo-nos deitar! disse Iégor, sorrindo. Desejou-lhe uma boa noite, e passou á cosinha, caminhando d’esguelha, com precaução, com o coração cheio de ardente amargura. Na manhã seguinte, ao tomar o chá, Iégor disse-lhe: --E se a apanharem, e lhe perguntarem onde adquiriu os folhetos, o que responde? --«Isso não é da sua conta!»... Aqui está o que eu respondo. --Por esse ajuste é que elles não estão! O importante para elles é isso mesmo, e sobre o assumpto hão-de interrogal-a demoradamente. --Não direi uma palavra! --Mettem-na na cadeia! --Que m’importa! Graças a Deus, terei ao menos servido para alguma coisa! A quem faço eu falta? A ninguem. E segundo dizem, já não torturam os presos... --Hum!... Não a torturarão. Mas uma boa mulher como a sr.ᵃ deve ter cuidado em si. --Não me parece que seja comsigo que possam aprender isso. Depois de ter dado alguns passos, em silencio, Iégor approximou-se d’ella. --É custoso, patricia! sinto que ha-de custar-lhe muito! --Todos estamos sujeitos!... Talvez seja mais facil para os que teem uma compreensão clara... Emfim, eu não compreendo bem, mas alguma coisa sei do que quer a nossa boa gente. --E desde que o sabe, mãesinha, é util a todos, a todos! Pelo meio-dia, Pélagué, tranquilla e importante, metteu um masso de folhetos no seio. Vendo a destreza com que ella os occultava, Iégor deu um estalido com a lingua e exclamou satisfeito: --_Sehr gut!_ como dizem os allemães ao esvasiarem um barril de cerveja. A litteratura não a transformou: continua sendo uma mulher como se quer! Os deuses protegem a sua empreza! Meia hora depois, com o mesmo sangue-frio e acurvada ao peso da comida que levava para os operarios, Pélagué chegava á porta da fabrica. Dois guardas, irritados pela troça dos operarios com quem trocavam doestos, apalpavam sem ceremonias todos os que entravam no pateo. Um agente de policia passeava não distante d’alli, bem como um homem de olhar vago, pernas curtas, e cara vermelhaça. A velha observou este, de soslaio, emquanto passava o fardo para o outro hombro; advinhava que elle era um espião. Um rapagão de cabellos encaracolados, com o boné para a nunca, gritava aos guardas que o revistavam: --Procurem na cabeça e nas algibeiras, seus diabos! Um dos guardas respondeu: --Não és cara para teres na cabeça o que quer que seja... a não ser piôlhos! --Pois n’esse caso, catem-nos, que é trabalho digno de vós! O espião lançou-lhe um máo olhar, e escarrou para o chão. --Deixem-me passar! pediu Pélagué. Não vêem que a minha carga é pesada? Trago o corpo quebrado... --Vá! vá! pode passar mas não grite tanto! respondeu o guarda com máo modo. Chegando ao seu logar, Pélagué pôz no chão as panelas da sopa e olhou em volta, limpando o suor. Dois serralheiros, os irmãos Goussef, vieram logo; o mais velho, Vassili, perguntou-lhe em voz retumbante, franzindo o sobrolho: --Temos hoje empadas? --Ámanhã! respondeu logo. Eram as palavras convencionadas. A fisionomia dos dois homens abriu-se. Incapaz de subjugar-se, Ivan exclamou: --Ah! como tu és bôa! Vassili agachou-se, observando uma das panelas, e ao mesmo tempo um massinho de folhetos deslisou-lhe para o peito. --Ó Ivan, para que havemos de ir comer a casa? Jantemos aqui! E metteu os folhetos nos canos das botas. Deve-se proteger a nova vendedeira. --Dizes bem! E desatou a rir. Pélagué apregoava de quando em quando, continuando a olhar prudentemente em volta: --Quem quer sopa? aletria quente! carne assada! Pouco a pouco, ia tirando do seio mais folhetos, entregando-os cautelosamente aos dois irmãos. Sempre que isto acontecia, parecia-lhe ver de subito na frente o rosto do official da guarda, como uma nódoa amarella, semelhante á luz d’um fósforo n’um quarto escuro. E, em pensamento, ella atirava-lhe estas palavras, repassadas de satisfação: --Chucha, tiosinho! E ao passar mais folhetos, pensava ainda: --Anda! chucha mais estes! Quando os operarios se approximavam, de prato na mão, Ivan Goussef ria com estrondo; Pélagué suspendia a faina de passar os folhetos, deitava nos pratos sopa de hervas ou de aletria, emquanto Vassili lhe dirigia gracejos. --Olhem que é muito habil, a tia Pélagué! --A miseria até nos ensina a apanhar ratos... disse em tom sorna um fogueiro. Tiraram-lhe aquelle que lhe dava o pão... Canalhas! Pois venham de lá tres kopecks d’aletria. Coragem, boa velha! Tudo ha de acabar em bem! --Obrigado por essa consolação! respondeu ella sorrindo. Ao que elle retorquiu afastando-se: --Não me custa nada!... --Mas não vejo a quem ella aproveite! replicou um ferreiro, rindo. E acrescentou, encolhendo os hombros: --É isto a vida, rapazes! Ninguem a quem dirigir com proveito palavras de consolação... ninguem é digno d’ellas... não achas? Vassili ergueu-se, abotoando cautelosamente o casacão: --A comida estava quente, e, apezar d’isto, estou com frio. Afastou-se, assim como o irmão, assobiando. Pélagué continuava apregoando, sorrindo amavel: --Sopa quente! Aletria! Sopa d’hervas! Ia pensando em que contaria ao filho a sua primeira experiencia. A cara amarellenta do official, irritado e estupefacto, apparecia-lhe constantemente ao espirito; o bigode negro movia-se confusamente, e sob o labio superior, contraído por uma expressão de colera, brilhava o marfim dos seus dentes cerrados. Como um passarinho, no coração da velha adejava e trinava uma alegria intensa. E continuava dizendo em pensamento: --Chucha! chucha ainda mais folhetos!... XVI Durante todo o dia um sentimento novo para ella lhe ameigou a alma. Á noite, concluido o seu trabalho, e quando estava tomando o chá, o tropel de um cavallo soou sob a janella, e ouviu-se uma voz conhecida. Pélagué levantou-se, rapida, e correu á cosinha para abrir a porta: alguem avançava a passos largos. Sentiu-se perturbada, encostou-se ao umbral e empurrou a porta com o pé. --Boa noite, mãesinha! E duas mãos magras e compridas poisaram-lhe nos hombros. Invadiu-a o desgosto da desillusão e ao mesmo tempo a alegria de tornar a ver o recemchegado, André. E estes dois sentimentos fundiram-se em immensa onda ardente que a arrebatou, atirando-a de encontro ao peito do russo-menor. Este abraçou-a com força; as mãos tremiam-lhe. Pélagué chorava brandamente, sem falar emquanto André lhe acariciava os cabellos, dizendo-lhe com a sua voz sempre cantante: --Não chore, mãesinha, não fatigue o seu coração! Dou-lhe a minha palavra d’honra que em breve elle será posto em liberdade. Não teem nenhuma prova contra elle, os companheiros não deram com a lingua nos dentes. E envolvendo com os seus grandes braços os hombros de Pélagué levou-a para a maior divisão da casa; ella apertava-se contra elle com o movimento rapido e assustadiço d’um esquilo; depois aspirou com soffreguidão as palavras de André. --O Pavel manda-lhe muitas recommendações. Está de saude e satisfeito quanto é possivel. Na cadeia não se vive á larga. Foram presas mais de cem pessoas, aqui e na cidade; mettem aos trez e aos quatro em cada cella. Nada ha a dizer da direcção da cadeia; não são maos; são apenas coagidos: os diabos da policia dão-lhes tanto que fazer!... Por consequencia a severidade é pouca. Dizem-nos constantemente: «Estejam mais socegadinhos, senhores, não nos dêem semsaborias!...» Assim, as coisas vão ás mil maravilhas. Podiamos falar uns com os outros, trocar os nossos livros, dividir a nossa comida. Que encantadora cadeia! É velha e suja, mas suave e levesinha. Os criminosos de direito commum eram tambem uma boa gente; prestavam-nos muitos serviços. Deram-me a liberdade e ao Boukine e ainda a mais quatro, porque os logares não chegavam. E dentro em breve hão de pôr na rua o Pavel. É mais do que certo. O Vessoftchikof é que ha de ficar por lá mais tempo, porque estão muito irritados contra elle. Insulta toda a gente, a todo o momento. Os guardas não o podem ver. Ha de acabar por ser julgado, se não lhe derem uma sova. O Pavel deligenceia socegal-o: «Cala-te, Nicolao; para que servem os teus insultos? Não consegues que elles se façam melhores!» Ao que responde aos berros: «Hei de arrancar da terra estas chagas!» O Pavel porta-se muito bem: é firme e ao mesmo tempo commedido com todos. Affianço-lhe que dentro em pouco pôem-no na rua. --Dentro em pouco!... repetiu ella, sorrindo. Ah! sim! dentro em pouco! --Verá! Vamos ao chásinho! O que tem feito n’estes ultimos tempos? André comtemplava-a risonho, muito proximo do coração d’ella. Na profundeza azul dos seus olhos redondos brilhava uma como estrella de amor e de tristeza. --Quero-lhe muito, André! exclamou com um longo suspiro; e ficou-se olhando para o rosto magro d’elle, coberto de pellos. --Um poucochinho já me bastaria. Sei que me estima, sim. Tem uma grande alma, pode estimar a todos. --Não! Quero-lhe muito em especial. Se o André tivesse mãe, haveriam de invejar-lhe tal filho. Elle meneou a cabeça, esfregou vigorosamente as mãos, e disse a meia-voz: --Eu tambem tenho mãe... tambem... algures... --Sabe o que eu fiz hoje? E, com a voz tremula pela satisfação, contou vivamente como tinha conseguido metter os folhetos na fabrica. A principio, elle esbogalhou os olhos, surprezo; depois bateu na testa com o dedo e exclamou, cheio de alegria: --Oh! mas isso é serio! o Pavel vae ficar radiante! Muito bem, mãesinha! Isso é tão util para o Pavel, como para os que foram presos com elle! Fazia estalar os nós dos dedos, satisfeitissimo, assobiava, balouçava-se na cadeira. A sua alegria eccoava poderosamente na alma de Pélagué. --Meu querido André, quando penso na minha vida!... Ai! Meu Deus! Para que tenho eu vivido? Para trabalhar e levar pancada! Não via mais ninguem senão o meu marido; não conhecia mais nada do que o medo. Não vi como o Pavel cresceu... nem mesmo sei se o amava emquanto o meu marido era d’este mundo. Todos os meus pensamentos, todos os meus cuidados, pertenciam a uma coisa unica: alimentar aquelle animal selvagem, para que andasse satisfeito e cheio, para que não se zangasse e me poupasse á pancada, uma vez ao menos. Mas não me recordo de que elle compreendesse isto. Batia-me com tal violencia, que parecia estar castigando não a sua mulher, mas sim aquella contra quem andava irritado. Assim vivi vinte annos. Do que fui antes de casar nem já me lembro. Quando tento recordar-me, nada vejo: é como se estivesse cega. Com o Iégor Ivanovitch--somos da mesma aldeia--conversei ultimamente e a respeito d’estes e d’aquelles... recordava-me das casas, revia as pessoas, mas não me lembrava da maneira como viviam, o que diziam, o que lhes acontecera. Lembro-me dos incendios, de dois incendios... O meu marido tanto me bateu, que de mim saccudiu todas as recordações. A minha alma era hermeticamente fechada; tornou-se depois cega e muda. Resfolegou demoradamente, como um peixe fora d’agua; curvou-se para a frente, e continuou: --Quando elle morreu, agarrei-me ao meu filho, que começou a preoccupar-se com essas coisas... Foi então que tive compaixão d’elle. «Como hei-de viver sósinha, se elle morrer?» perguntava a mim mesma. Quantos receios! quantas angustias! O meu coração despedaçava-se, quando eu pensava na sorte do Pavel! Calou-se por instantes, meneou a cabeça, e continuou: --É impuro o nosso amor, o das mulheres! Amamos aquillo de que precisamos... Quando o vejo pensar em sua mãe... Que falta lhe faz ella? E aquelles que soffrem pelo povo, que são mettidos na cadeia ou mandados para a Siberia, que morrem ou são enforcados por lá... essas raparigas que andam sósinhas de noite por cima da neve, da lama, e á chuva, que andam sete kilometros para virem ver-nos... o que é que as leva a isto? É o amor, mas um amor puro! Teem a fé... a fé...! Eu não sei amar assim; amo o que me diz respeito, o que me é próximo!... --Tem razão! Todos amam o que lhes fica ao alcance, mas, para uma grande alma como a sua, do longe faz-se perto. Pode amar muito, porque tem um grande amor materno. --Deus queira! Sinto que ha-de ser bom viver assim. Por exemplo, estimo-o, André, talvez mais do que o Pavel... Elle é tão reservado! Olhe: quer casar com a Sachenka e nunca me disse uma palavra, a mim, sua mãe! --Não é verdade! Sei que não é verdade! Ama-a, e ella tambem o ama. Quanto a casarem, não. Ella quereria, mas o Pavel... --Ah!... exclamou ficando a olhar tristemente para André. É isso! Deve-se renunciar a si mesmo. --O Pavel é um homem extraordinario! Um caracter de ferro. --E agora... preso! Mas a minha alma transformou-se, abriu os olhos, vê. Emquanto houver ricos, poderosos, o povo não obterá justiça, nem alegria, nada! Não é isto, André? Elle levantara-se pensativo. --É isso mesmo! Havia em Kertch um rapaz judeu que fazia versos, e que uma vez disse assim: Podem assassinar os innocentes, Que a força da verdade os resuscita! Elle mesmo foi assassinado pela policia, em Kertch, mas isso que importancia teve? Conhecia a verdade e semeára-a no coração dos homens. Ah! Pélagué! A sr.ᵃ é tambem uma creatura condemnada á morte... Resuscitou. O poeta sabia o que dizia. --Falo, falo, e sinto-me, e não creio nos meus ouvidos. Hoje penso em todos. Não compreendo talvez muito bem isso em que andam mettidos... mas todos sinto proximo de mim, e desejo a felicidade de todos, a sua principalmente, meu André! Elle approximou-se dizendo: --Obrigado. Não falemos mais de mim. E pegando-lhe na mão, apertou-a com força e voltou o rosto para o lado. Fatigada pela commoção, Pélagué começou de lavar a loiça vagarosamente, emquanto o russo-menor, passeando pelo quarto, ia falando. --Mãesinha, deve tratar de amansar o Vessoftchikof! o pae está com elle na mesma cadeia; é um velhote repellente. Quando o filho o vê, pela janella, insulta-o. Não é bonito! O rapaz é bom, gosta dos cães, dos ratos, de todos os seres, menos dos homens! Ora veja até que ponto pode ser corrompida uma alma humana! --A mãe desappareceu, sem dar novas nem mandados. O pae é um bêbedo... disse Pélagué, pensativa. Quando André foi deitar-se, fez-lhe no peito o signal da cruz, sem que elle désse por isso. Meia hora depois, perguntava, baixinho: --Já dorme, André? --Não. Porque? --Nada. Boa noite. --Obrigado, obrigado! respondeu, reconhecido. XVII Quando no dia seguinte ella chegou á porta da fabrica, carregada com o seu fardo, os guardas detiveram-na rudemente, mandaram-na pôr no chão tudo o que trazia e examinaram-na attentamente. --Olhem que a sôpa arrefece! disse, tranquilla, emquanto a apalpavam sem ceremonia. --Cala-te! O outro disse, dando levemente com o hombro no camarada. --Se eu te affirmo que os atiram cá para dentro por cima do muro!... O velho Sizof foi o primeiro a approximar-se d’ella, perguntando-lhe em voz baixa: --Ouviste? --O quê? --Os folhetos tornaram a apparecer. As prisões e as buscas não serviram para nada. O meu sobrinho Mazine está preso, o teu filho tambem, e afinal os folhetos continuam a ser distribuidos. E concluiu, passando a mão pela barba: --O caso não está nas prisões, mas sim nos pensamentos. E os pensamentos não são coisa que se agarre como quem apanha pulgas. Porque não vens tu á nossa casa? É aborrecido tomar o chá sósinha. Agradeceu. Apregoando sempre, ia activando o movimento cheio de animação que havia na fabrica. Os operarios pareciam contentes; formavam-se grupos, as vozes eram excitadas; pairava no ar um como sopro d’audacia. Ora d’um canto, ora d’outro, partiam exclamações approvativas, gracejos pesados e até ameaças. A figura avantajada do Goussef apparecia aqui e ali; o irmão seguia-o, rindo. Um mestre marceneiro chamado Vavilof e o apontador Isaías passaram diante de Pélagué sem se apressarem. Este ultimo disse vivamente: --Olha, Ivan Ivanovitch: riem, andam satisfeitos, embora o caso possa trazer a destruição do imperio, como disse o sr. director. O necessario não é mondar, mas sim semear. Vavilof, com os braços cruzados nas costas, apertava fortemente os dedos. --Imprimam tudo o que quizerem, cães do diabo! mas não se mettam em falar da minha pessoa! Vassili Goussef approximou-se de Pélagué. --Dá cá de comer. O que tu vendes é bom. Depois, baixaram a voz: -- Vê, mãesinha, que o nosso fim está conseguido! Ella disse que sim com a cabeça. Sentia-se feliz por lhe falar em segredo aquella creatura que tinha tão má fama no bairro; e ao notar a efervescencia que ia pela fabrica, dizia a si mesma, satisfeita: --E pensar que se não fosse eu!... Trez operarios pararam perto d’ella; um disse, a meia voz: --Não encontrei... --Se conseguissemos lêl-o!... Eu nem mesmo sei soletrar; mas percebo que elle é util. O terceiro, olhou em volta, e depois propôz: --Vamos para o pé dos fornos de fundição; eu mesmo o leio. --Os folhetos vão fazendo o seu effeito!... cochichou Goussef a Pélagué. Ella voltou para casa, satisfeitissima, pois tinha visto com os seus olhos que as proclamações attingiam o fim desejado. --Os operarios lamentavam-se de serem ignorantes. Quando eu era rapariga, sabia ler, mas depois esqueci tudo. --É tornar a aprender! disse André. --Na minha idade! Isso até dava vontade de rir! Mas André pegou n’um livro e perguntou, apontando para uma lettra.: --Que é isto? --Um R! respondeu, rindo. --E isto? --Um A. E depois de compreender que o sorriso d’elle nada tinha humilhante nem ironico: --Pensa, na verdade, eu instruir-me, André? --E porque não? Tentemos. Já que uma vez aprendeu, ser-lhe-á agora facil. Se o conseguirmos, tanto melhor; se não, paciencia. E a lição continuou. Dedicando-se com toda a boa vontade; mexendo os sobrolhos, procurava recordar-se das letras esquecidas; tanto se mergulhára no estudo, que não se lembrava de nada mais; os seus olhos fatigaram-se dentro em pouco, e n’elles se accumularam as lagrimas que o cansaço provocava. --Aprendo a ler! exclamou, soluçando... na hora em que só devia pensar na morte. --Não chore! Ha milhares de creaturas que podiam instruir-se ainda mais, e todavia vegetam como brutos, embora se gabem de que vivem bem... E o que ha na sua existencia que seja bom? Sempre a mesma vida: trabalhar e comer. De vez em quando, fazem filhos: a principio acham-lhes graça, mas quando elles começam tambem a comer, entram de embirrar com elles, e dizem-lhes: «Vejam lá se crescem depressa, seus comilões, e se começam a trabalhar!» Nunca a sua alma é animada por uma alegria, por um pensamento que dê jubilo ao coração. Uns mendigam sempre, como os pobres, os outros fazem-se ladrões. Inventaram-se leis infames, entregaram a guarda do povo a umas creaturas a quem disseram: «Obriguem a que respeitem as nossas leis, que nos permittem sugar o sangue humano.» Se o homem não cede quando o comprimem, mettem-lhe á força, nos miolos, preceitos que brigam com a razão. Encostado á meza, fitava o olhar em Pélagué, continuando: --Mas os outros, como o seu filho, são homens que libertam o corpo e o cerebro. E a mãesinha tambem se consagrou a esse trabalho, dentro das suas forças. --Eu?! --Sim. É como a chuva. Cada gotinha vae alimentar um grão de trigo. E quando souber lêr... Levantou-se; e a rir: --O Pavel é que ha de ficar espantado, quando voltar!... --Ah! meu André! Tudo é facil emquanto se é novo; mas quando se é velha... Á noite, o russo-menor saíu. Pélagué foi fazer meia, mas, de subito, fechando-se bem por dentro, tirou da estante um livro, encostou-se á meza, acurvou-se sobre elle, e os seus labios começaram a mover-se... Quando vinha da rua algum ruido, fechava o livro, a tremer, e punha o ouvido á escuta. E ficava-se a soletrar, mentalmente: --L... A... V... I... A... XVIII Bateram á porta. Foi pôr o livro na estante. --Quem é? --Eu. Rybine entrou. Tendo trocado os cumprimentos, alizou a barba demoradamente, olhou para o quarto, e disse: --D’antes deixavas entrar toda a gente, sem perguntares quem era... Estás sosinha? --Estou. --Julguei que estivesses com o André. Vi-o hoje. A cadeia não corrompe o homem. O que corrompe mais do que tudo é a estupidez. Passou ao quarto e sentou-se. --Venho dizer-te alguma coisa. Tive uma idéa... A sua gravidade e o seu ar misterioso sobresaltaram Pélagué, que se sentara diante d’elle. --Tudo custa dinheiro! começou. Ninguem nasce nem morre gratuitamente. Ora os folhetos tambem custam dinheiro. Sabes d’onde elle vem para pagar os folhetos? --Não sei. --Nem eu. Em segundo logar: quem os compõe? --Sabios... --Gente que está acima de nós. Portanto são os grandes que compõem os folhetos. Ora se os folhetos são contra elles, que interesse teem elles em publical-os, gastando para isso o seu dinheiro? Pélagué fechou os olhos; e ao reabril-os: --O que pensas? Dize! --Ah! exclamou, movendo-se na cadeira como um urso. Senti tambem um calafrio quando me veio este pensamento!... --O que ha então? Soubeste alguma coisa? --É tudo um embuste! Entendo que é um embuste! Eu compreendo a verdade, e não quero entender-me com os ricos. Quando precisam de nós, atiram-nos para a frente, para que os nossos corpos lhes sirvam de ponte. Estas palavras acerbas confrangiam o coração da pobre velha. --Ó Senhor! exclamava angustiada. E o Pavel que não compreendeu nada d’isso? Pois dar-se-á o caso de que todos aquelles, que vinham da cidade, fossem...? As fisionomias graves de Nicolao Ivanovitch, de Iégor, de Sachenka, appareceram-lhe na frente. --Não! não!... Não posso acreditar. São creaturas animadas só pela sua consciencia, sem más intensões... --Não é para esses que devemos olhar, mas para mais alto. Os que mais se nos approximam sabem naturalmente tanto como nós. Crêem que procedem bem... amam a verdade. Mas talvez que por de traz d’elles haja outros que não pensem da mesma maneira. O homem não trabalha contra si proprio, não tendo para isso fortes razões. E accrescentou, com a tacanha certeza do camponio, eivado de uma incredulidade secular: --Das mãos dos grandes e dos illustrados nunca nos virá coisa bôa! --O que resolves, então? --Que não devemos alliar-nos aos que estão acima de nós! Ora aqui está! Tornou a calar-se, como se se dobrasse sobre si mesmo. --Vou pôr-me a caminho. Desejava ter-me reunido aos companheiros e trabalhar com elles. Sirvo para isso; sou teimoso, e não muito parvo; sei lêr e escrever. E principalmente percebo o que se deve dizer a essa gente... Vou pôr-me a caminho; é o que devo fazer, já que não posso acreditar. Vou sósinho por essas cidades e aldeias a sublevar o povo, a quem cumpre correr á conquista da sua liberdade. Se souber compreender, encontrará para isso uma saída. Tentarei fazel-o compreender que em ninguem deve ter esperança senão n’elle proprio. Ella teve piedade de Rybine, a sua sorte assustava-a; parecera-lhe sempre antipathico; e n’aquelle momento sentia-o mais perto d’ella, mais familiar. --O Pavel vae por um caminho... e elle vae por outro. O Pavel terá menos trabalho... murmurou involuntariamente, accrescentando: Serás preso! Rybine olhou para ella e replicou: --Mas soltar-me-ão! --A gente do campo será a primeira a entregar-te... e poderás ficar preso por muito tempo... --Acabarei por vir para a rua, e voltarei á mesma. Quanto aos camponios, entregar-me-ão duas ou trez vezes, mas hão de acabar por compreender que farão melhor escutando-me. Dir-lhes-ei: «Não acreditem em mim: oiçam-me apenas!» E se me ouvirem, acabarão por acreditar-me. --Vaes morrer!... disse tristemente a velha, meneando a cabeça. Elle fitou-a com um olhar cheio de interrogação. O seu corpo vigoroso estava inclinado para a frente; as mãos apoiavam-se na cadeira; o seu rosto moreno empallidecera, enquadrado na barba negra. --Sabe o que Jesus disse do grão de trigo? «Não morrerá, mas resuscitará em uma nova espiga!» O homem é um grão de verdade... E eu ainda não estou ás portas da morte... Levantou-se, vagaroso. --Vou ate á taverna. Quando o André voltar, repete-lhe o que eu te disse? --Sim. Passaram á cosinha e trocaram algumas frases curtas, sem olharem um para o outro. --Adeus... --Adeus... Quando recebes a tua feria? --Já a recebi. --E quando partes? --Amanhã de manhãsinha. Adeus! Curvou-se, e saíu um pouco assustado, como contra vontade. Durante uns momentos, a velha ficou á porta prestando o ouvido ao andar que se afastava... Depois foi até ao quarto e pôz-se a olhar pela janella. Densas trevas se apegavam ás vidraças, parecendo esperar o que quer que fosse que podesse tragar as suas fauces insondaveis. --Vivo de noite! pensou. Sempre de noite! André chegou d’ali a pouco, animado, alegre. Quando a velha lhe falou de Rybine, exclamou: --Parte?! Pois que vá! que vá espalhar pelas aldeias a verdade, e accordar o povo. Era-lhe difficil ficar comnosco. Tem na cabeça umas idéas especiaes, que não lhe deixam adoptar as nossas. --Falou dos ricos, dos nobres, dos illustrados. Parece haver no caso alguma coisa torta!... disse ella prudentemente. Oxalá não sejamos enganados!... --Isso dá-lhe cuidado, mãesinha? Ah! o dinheiro! não é? Vamos vivendo por conta d’outrem. O Nicolao Ivanovitch ganha setenta e cinco rublos por mez, e entrega-me cincoenta. Os outros fazem o mesmo. Os estudantes, que passam privações, cotisam-se tambem, e conseguem mandar-nos pequenas quantias, accumuladas kopeck a kopeck. É isto! Ha homens para tudo: uns enganam-nos, outros não nos deixam avançar; mas ha os melhores, os que nos acompanham no caminho da victoria! E esfregando as mãos: --Mas o triunfo ainda vem longe, ainda! Emquanto não chega, vamos organisar um primeiro de maiosinho! Ha de ser divertido! As suas palavras e a sua animação tranquillisaram Pélagué. Elle, passeando a passos largos continuava: --Se soubesse que extraordinaria sensação eu tenho ás vezes!... Parece-me que por toda a parte por onde vou, os homens são companheiros, incendidos na mesma fé, que todos são bons. Todos se compreendem sem precisarem de falar, ninguem offende o proximo. Vive-se em bôa harmonia, cada alma canta a sua canção, e, como regatos, todas as canções se reunem em um unico rio, que vae avançando, majestoso e grave, para o mar onde brilham os clarões da vida livre. E digo com os meus botões que isto ha de realisar se, que isto não póde deixar de ser, se nós quizermos que seja! E então o meu coração transborda de alegria; tenho vontade de chorar, tal é a minha felicidade! A velha nem se movia, para não o interromper. Escutara-o sempre mais attentamente do que aos seus companheiros porque elle falava com mais simplicidade, e as suas palavras iam mais fundo á alma. O Pavel tambem era para a frente que olhava, mas mantinha-se solitario e nunca dizia o que via. Parecia a Pélagué que André olhava sempre para o futuro com o coração: a lenda do triunfo de todas as creaturas surgia sempre nos seus discursos. E aos olhos de Pélagué aquella brilhante lenda illuminava lhe a compreensão da vida e do trabalho a que o filho e os seus companheiros se tinham entregado. --É humilhante isto! exclamou elle de subito. Não se póde acreditar no homem. Precisamos até de temel-o e de odial-o. O homem desdobra se, a vida parte-o em dois. Como seria possivel amar somente? Como perdoar áquelle que se arroja sobre vós, como um animal selvagem? Impossivel! Não falo por mim. Supportaria todos os ultrages; mas não quero ter connivencia com os oppressores; não quero que se sirvam dos meus costados para aprenderem a bater nos outros. Uma expressão de frieza accudiu ao seu olhar, a voz tornou-se-lhe mais firme. --Não devo perdoar o que seja mao, ainda quando não me prejudique. Não sou só eu na terra. Admittamos que hoje me deixo insultar sem responder ao insulto; hei de rir talvez, porque não me senti ferido; mas ámanhã o insultador, que experimentou em mim a sua força, vae tirar a pelle a outro. Por isto não devemos considerar toda a gente da mesma maneira; convem reprimir o coração, vêr quem são os inimigos e quem são os amigos. É justo, embora não seja divertido! Sem saber porquê, Pélagué pensou em Sachenka e no official. Disse com um suspiro: --Como se ha de fazer pão com trigo que não foi semeado? --Esse é o mal! No espirito da velha desenhava-se a figura de seu marido, semelhante a uma grande pedra coberta de musgo. Fantasiou André casado com Natacha, e o seu filho casado com Sachenka. O russo-menor e Pélagué tiveram muitas conversas d’este genero. Elle conseguira metter-se outra vez na fabrica, e entregava todo o seu dinheiro a Pélagué, que o acceitava naturalmente, como se fosse de Pavel. Ás vezes, com um sorriso no olhar, André propunha-lhe: --Se nós aprendessemos a contar?... Ella recusava; o sorriso d’André acanhava-a. Pensava, um tanto vexada: «Se tu ris, para que havemos de falar n’isso?» Elle notou que a velha era mais frequente em pedir-lhe a significação de certas palavras; percebia que ella ia-se instruindo ás escondidas, e por isto deixou de insistir em ensinal-a. --Vae-me faltando a vista, meu André; sinto-a cançada... disse-lhe, um dia. Gostava muito de usar uns oculos. --Está dito! No domingo vamos ambos á cidade consultar um doutor que eu conheço, e compraremos depois os oculos. XIX Já por trez vezes ella sollicitara licença para ver o filho, recebendo sempre a negativa benevola do chefe dos guardas, um velho de cabellos brancos, faces escarlates e nariz comprido. --D’aqui a uma semana, mulhersinha. Antes, não! Para a semana veremos. Hoje é impossivel. --É muito delicado! contava ella a André. Sempre a sorrir!... Não me parece bem. Quando se é chefe, não se deve levar assim as coisas de brincadeira. --Sim, sim... São amaveis, sorriem muito... Se lhes dizem: «Vê aquelle homem intelligente e honrado? É perigoso para nós: enforque-o!» Elles sorriem, enforcam-no, e depois continuam a sorrir. --Aquelle que veio cá fazer a busca era mais simples, valia mais: via-se logo que era um canalha! --Dir-se-ia que não são homens mas sim martellos, ferramentas, para nos talharem por forma a ficarmos ao gosto do governo. Elles proprios foram accomodados á mão que nos dirige... ...A final, Pélagué obteve a ambicionada licença. No domingo, entrou na secretaria da cadeia e sentou-se modestamente a um canto. Havia mais visitas n’aquella casa acanhada e suja, de tecto baixo. Não era a primeira vez que se encontravam ali: conheciam-se uns aos outros. A conversa ia-se arrastando lentamente, a meia voz. --Sabe? dizia uma mulherona já de alguma idade, e que tinha uma malêta nos joelhos. Esta manhã, á primeira missa, o mestre-capella da catedral, esteve outra vez quasi a arrancar uma orelha a um menino de côro. Um homem de meia idade, com o uniforme de soldado reformado, tossiu ruidosamente e replicou: --Os taes meninos de côro são uns garotos!... Um homemsinho calvo, de pernas curtas, braços compridos, a maxilla proeminente, passeava d’um lado para o outro, com ares de preocupado. Sem parar dizia: --A vida está cada vez mais cara; e é por isto que os homens nunca foram tão maos! A carne de vacca de primeira qualidade custa a quatorze kopecks o arratel, o pão dois kopecks e meio... De quando em quando, entravam prisioneiros, vestidos de cinzento, com grossos sapatos de coiro. Um d’elles trazia uma corrente no pé. Parecia que os visitantes estavam acostumados havia muito áquelle espectaculo. O coração de Pélagué tremia d’impaciencia; olhava perplexa para tudo o que a cercava. A seu lado estava uma velhinha com as faces enrugadas e com os olhos amortecidos. Prestava attenção á conversa, estendia o pescoço delgado e fugia a olhar para os assistentes, com uma expressão de irascibilidade. --Quem tem a sr.ᵃ aqui? perguntou-lhe Pélagué com doçura. --O meu filho, que é estudante! E a sr.ᵃ? --Tambem o meu filho, operario. --Como se chama elle? --Vlassof. --Não conheço. Está cá ha muito tempo? --Ha sete semanas. --E o meu ha dez mezes! E Pélagué, julgou perceber-lhe no tom da voz, o que quer que fosse parecido com o orgulho. Uma senhora alta, vestida de preto, de rosto comprido e pallido, disse vagarosamente: --D’aqui a pouco mettem na cadeia todas as pessoas de bem. Já não as podem aturar. --Sim, sim! replicou o velho calvo. A paciencia vae faltando. Toda a gente se zanga e clama, e tudo vae augmentando de preço. É por isto que as pessoas vão diminuindo de valor. E não apparece nenhuma voz conciliadora... A conversa generalisou-se e animou se. Cada qual formulava a sua opinião acerca da vida, mas todos falavam a meia voz; e Pélagué sentia n’aquellas palavras o que quer que fosse estranho. Em sua casa, falava-se d’outra maneira, d’uma maneira mais compreensivel, mais natural, mais aberta. Um guarda, de grande barba grisalha, gritou: --A Vlassof! Mediu-a com o olhar e disse: --Vem! E foi andando, arrastando os pés. A vontade de Pélagué era empurral-o para que elle andasse mais depressa. Afinal, n’um pequenito quarto, encontrou-se com Pavel, que lhe estendeu a mão, sorrindo. Ella agarrou-a, rindo muito, e dizendo: --Bons dias! bons dias! --Olá, mulher! exclamou o guarda. Afastem-se um pouco um do outro. É do regulamento. E bocejou. Pavel pediu á mãe noticias da sua saude, da sua casa. Ella esperava outras perguntas, procurava-as até, no olhar do filho, mas não as encontrou. Como sempre, elle apresentava-se tranquillo; apenas um pouco mais pallido; os seus olhos pareciam maiores. --A Sachenka manda-te recommendações. As palpebras de Pavel estremeceram e abaixaram. O seu rosto dulcificou-se e brilhou com um sorriso. --Pôr-te-ão em breve na rua? perguntou, irritada de subito. Por que foi que te prenderam? Sim porque afinal os taes folhetos voltaram a apparecer. Os olhos de Pavel tiveram um lampejo d’alegria. --Serio?! --É proíbido falar d’essas coisas! observou o guarda, indolente. Só se pode falar d’assuntos de familia. --Ora essa! Então isto não é assunto de familia? perguntou ella. --Sei lá! O que digo é que é proibido. Falem da comida, da bebida, da roupa lavada, e de mais nada! elucidou, continuando como indifferente. --Está bem! Falemos da nossa casa, mamã? O que é que tu fazes? --Levo comida aos operarios, comida e outras coisas! respondeu com audacia. Deteve-se e explicou melhor, depois de resfolegar: --Sopa, carne assada, tudo o que Maria costuma cosinhar, e... toda a especie de alimento. Pavel compreendera. O rosto contraíu-se-lhe n’uma gargalhada abafada. Depois, carinhosamente: --Minha querida mãe... Muito bem! muito bem! Sinto-me feliz, sabendo que tens tão bom emprego, que não te aborreces. Não é verdade que não te aborreces? --E sabes? Revistaram-me toda quando os taes folhetos tornaram a apparecer! informou um tanto fanfarrona. --Outra vez?! exclamou o guarda. Já lhes disse que é proíbido. Priva-se um homem da sua liberdade, para que elle não saiba do que vae lá por fóra, e vens tu, mulher, e começas a tagarelar!... Compreendam que o que é proíbido é proíbido! --Está bem! não se fala mais n’essas coisas, mamã. O Matvé Ivanovitch é um bom homem: não devemos fazel-o zangar. Damo-nos bem um com o outro. É por acaso que elle assiste hoje ás entrevistas dos presos com os visitantes. Quem costuma assistir é o director. E o Matvé Ivanovitch receia que tu digas coisas... superfluas. --Acabou o tempo da visita! disse o guarda, tendo consultado o seu relogio. --Obrigado, mamã! muito obrigado, querida mãesinha! Não te dê cuidado, que dentro em pouco serei posto em liberdade. Abraçou-a com effusão; ella começou a chorar. --Separem-se! ordenou o guarda; e, reconduzindo Pélagué, ia-lhe dizendo, resmungando: --Não chore... Está aqui está na rua! Vão dar a liberdade a muitos... os logares são poucos... não cabem todos... Em casa, ella disse ao russo-menor: --Falei-lhe... com geito... percebeu-me muito bem. E acrescentou com um suspiro: --Percebeu-me, sim, se não, não me abraçava com tanta gana! Foi a primeira vez... --Ah! todos desejam isto ou aquillo, mas as mães não desejam senão affagos! XX Uma noite, estando Pélagué a fazer meia e André lendo em voz-alta a historia da revolta dos escravos romanos, alguem bateu violentamente á porta. O russo-menor foi abrir, e Vessoftchikof entrou, com um embrulho debaixo do braço, o boné descaído para os olhos, e todo elle enlameado até aos joelhos. --Passando na rua, vi luz cá dentro e bati á porta para a cumprimentar. Saí da cadeia agora mesmo! E apertando a mão de Pélagué: --O Pavel recommenda-se muito. Deixando-se caír n’uma cadeira, hesitantemente olhou em volta, como de costume desconfiado. A sua cabeça angulosa e rapada e os seus olhitos tornavam no antipatico a Pélagué, o que não impedia que estivesse gostando de vel-o e que lhe dissésse, affectuosa: --Emagreceste!... Ó André, vamos fazer-lhe o chá! --Já cá estou preparando o samovar! respondeu da cosinha o russo-menor. --E então como vae o Pavel? Vieram outros para a rua comtigo? Vessoftchikof respondeu abaixando a cabeça: --O Pavel continúa preso... Encheu-se de paciencia... Para a rua vim só eu. E levantando o olhar, continuou vagaroso e com os dentes cerrados: --É que eu disse-lhes: «Deixem-me ir embora, que já estou farto! senão mato o primeiro que puder, e suicido-me depois!» Ora!... foi logo! E fizeram bem, porque eu cumpria o que promettera! --Sim, sim, creio!... balbuciou ella, afastando-se, com as palpebras tremulas, como sempre lhe acontecia quando fitava aquelle rosto bexigoso. --E como vae o Fédia Mazine? perguntou da cosinha André. Continúa fazendo versos? --Continúa! Quer dizer... não o percebo bem. Parece um pintasilgo: mettem-no na gaiola, e canta. O que sei é que não tenho nenhuma vontade de ir para casa. --E tens razão. Vaes encontral-a vasia, o fogão apagado, tudo muito frio... Vessoftchikof calou-se, cerrou os olhos, depois, tirando da algibeira um masso de cigarros, começou a fumar, muito descansadamente. Com o olhar ia seguindo as nuvens de fumo que se esvaía por cima da sua cabeça; e de subito, rindo esganiçadamente como o uivar d’um cão: --Sim, muito frio... Naturalmente, o chão está, cheio de baratas geladas, os ratos devem estar tambem mortos de fome... Pélagué Nilovna, dás licença que eu durma cá em casa? --Está dito! respondeu logo. Sentia-se pouco á vontade; por isto não disse mais. Foi elle que murmurou em tom abatido: --Estamos agora no tempo em que os filhos teem vergonha dos paes. --O quê? perguntou ella, estremecendo. --Não te apouquentes, que não falo de ti. Tu nunca envergonharás o Pavel. Eu é que me envergonho do meu pae... Não quero voltar para casa d’elle. Já não tenho pae, nem casa. Estou sob a vigilancia da policia, agora, se não ter-me-iam mandado para a Siberia. Creio que um homem, que não se poupasse a trabalhos, teria muito que fazer na Siberia... Daria a liberdade aos exilados, ajudal-os-ia a fugir... Graças ao seu coração sensivel, a velha percebia que o rapaz estava soffrendo, mas a sua dôr não lhe provocava a compaixão. --Dizes bem. Sendo assim, seria melhor teres ido... André veio da cosinha. --Que estás tu para ahi a cantar, homem? A velha ergueu-se. --Vou arranjar alguma coisa para comer. Vessoftchikof olhou fixamente para o russo-menor e respondeu com firmeza: --Digo que é preciso matar umas pessôas!... --Ih!... E para quê? perguntou, tranquillo. --Para que deixem de existir! --Tens então o direito de transformar os vivos em cadaveres? --Tenho! --E onde foste buscal-o? --Foram os homens que mo deram! O russo-menor, alto, magro, parou no meio do quarto, bamboleando o corpo; com as mãos nas algibeiras, observava dos pés á cabeça o bexigoso. Este, sentado e envolto n’uma nuvem de fumo, tinha n’aquelle momento o rosto palido salpicado de manchas vermelhas. --Foram os homens que mo deram! repetiu, de punho cerrado. Desde que me dão pontapés, tenho o direito de responder, atirando-me aos focinhos, aos olhos... Se não me tocarem, eu não toco em ninguem. Deixem-me viver como quero, que eu viverei quieto, sem incommodar os mais. Juro! Supponhamos que quero viver n’uma floresta, construir uma cabana n’uma ravina, na margem d’um regato... e viver ali, sósinho... --Pois faz isso! respondeu, encolhendo os hombros. --Agora? Não! É impossivel! Estou ligado estreitamente aos homens até á morte! Ligaram o meu coração com o odio, prenderam-me a elles com o mal. É um laço muito solido. Odeio-os, e vá por onde fôr não os deixarei viver tranquillos. Incommodam-me, e eu incommodal-os-ei. Respondo por mim, só por mim; não posso responder por mais ninguem. E se o meu pae é um ladrão... --Ah! exclamou repreensivamente André, em voz baixa, approximando-se. --Ainda acabo por arrancar a cabeça ao Isaías Gorbof, verás! --E porquê? --Porque anda a espiar-me. Foi por causa d’elle que o meu pae se perdeu, é com elle que o meu pae conta para entrar para a policia secreta! --Olhem o grande mal! Mas quem te censura, a ti, pela vida do teu pae? Isso é para os tolos! --Para os tolos e para os não tolos! Olha: tu és intelligente, o Pavel tambem. Dize lá: teem por mim consideração igual á que teem pelo Fédia Mazine ou pelo Samoílof, ou um pelo outro? Não mintas, que não te acreditaria. Atiram-me para o canto! --Tens a tua alma doente, amigo! respondeu André, affectuosamente, sentando-se ao lado d’elle. --A vossa tambem soffre. Mas imaginam que as suas ulceras são mais nobres do que as minhas. Procedemos uns para os outros como canalhas! é o que te digo! O que respondes a isto, an? Fitou o olhar penetrante em André e esperou, com os dentes á mostra. O seu rosto palido estava impassivel; apenas lhe tremiam os labios grossos como se tivessem sido queimados e contraídos por algum liquido caustico. --Nada te responderei! disse André acariciando o olhar hostil de Vessoftchikof com o sorriso luminoso e triste dos seus olhos azues. Sei demais que querer discutir com alguem, cujo coração está sangrando, é o mesmo que irrital-o. Sei, irmão. --Não se pode discutir comigo; não sei discutir! resmungou, abaixando os olhos. --Estou certo de que todos nós caminhámos como tu agora, com os pés descalços por cima de vidros partidos; que todos nós respirámos essas mesmas evaporações de horas sombrias... --Não podes dizer coisa alguma que me socegue. Nada! A minha alma uiva como um lobo! --Nem tenho tal intuito. O que sei é que isso ha de passar. Talvez não muito depressa; mas ha-de passar. E pôz-se a rir, batendo no hombro do rapaz: --É uma doença de creanças, no genero da escarlatina, irmão. Todos nós fomos atacados do mesmo mal, com maior ou menor violencia, conforme eramos fortes ou fracos. Ataca a gente da nossa condição, quando nos encontramos sósinhos, quando não compreendemos ainda a vida, quando não vemos o logar que nos foi destinado. Parece-nos que somos o unico homem n’este mundo e que ninguem se importa comnosco, a não ser para nos devorar. Mais tarde, quando vires que ha tambem boas almas n’outros peitos alem do teu, consolar-te-ás... e envergonhar-te-ás de ter acreditado que só tu davas a nota afinada, e de ter querido trepar ao campanario sendo o teu sino tão pequeno, que ninguem o ouve na bimbalhada dos dias de festa. Perceberás então que és uma voz apenas perceptivel, mas necessaria, no côro poderoso e magnifico da verdade. Compreendes o que eu quero dizer? --Compreendo... compreendo... Mas não te acredito! --Tambem eu não queria acreditar... O bexigoso pôz-se então a rir com a bôca aberta até ás orelhas. --Que é isso? --Pensava que seria um grande parvo aquelle que te insultasse. --E porque hão-de insultar-me? perguntou ainda André, encolhendo os hombros. --Sei lá! O que digo é que o homem que te tiver insultado, ha-de ficar depois com uma linda cara de parvo! --Era a isso que querias chegar!... commentou, rindo. Ouviu-se a voz de Pélagué: --Venha, André! venha buscar o samovar. A sós, Vessoftchikof olhou em volta; estendeu a perna, observou as botas grossas; acurvou-se, palpando a barriga da perna; depois observou attentamente a palma e as costas da mão pelluda; levantou-a, e ergueu-se. Quando André trazia o samovar, o bexigoso, diante do espelho, acolheu-o com estas palavras: --Ha quanto tempo eu não via o meu focinha!... Estou feio como o diabo! --Que te faz isso? --A Sachenka diz que o rosto é o espelho da alma... --Qual historia! Tem o nariz de gancho, as faces agudas como bicos de tezoura, e todavia a sua alma é pura como uma estrella!... Sentaram-se para tomarem o chá e comerem. Vessoftchikof deitou a mão a uma grande batata, salgou um pedaço de pão e começou a comer tranquillamente, vagarosamente, como um lobo. --E como vão as coisas por cá? perguntou com a bôca cheia. E, tendo ouvido as informações d’André: --Tudo isso vae de vagar! É preciso ir mais de pressa. --A vida não é um cavallo: não a fazemos andar ás chicotadas. Mas o bexigoso meneava a cabeça, obstinado. --Vae devagar... vae... Eu não tenho grande paciencia... Que é preciso que eu faça? --Devemos aprender a ensinar os outros. É este o nosso dever! --E quando entraremos em lucta? --Ignoro. Segundo a minha opinião, antes de pegarmos em armas, deveremos armar o nosso cerebro. --O rapaz ficou silencioso, voltando a comer. Sem que elle percebesse, a velha observava-lhe o rosto picado das bexigas, tentando descobrir n’elle alguma coisa que a reconciliasse com aquelle caracter aggressivo; mas ao encontrar-lhe o olhar penetrante, ficava na mesma e movia os sobrolhos, desanimada. No seu intimo, os dois moradores do velho pardieiro sentiam-se como apertados, pouco á vontade, e lançavam de quando em quando olhares furtivos para o hospede. Até que este ergueu-se. --Não me saberia mal deitar-me. Estive encarcerado por muito tempo, puzeram-me na rua de repente... vim por ahi adiante... Estou cançado. Quando elle foi para a cosinha, a velha cochichou a André: --Tem uns pensamentos terriveis!... --Não é um rapaz docil, não. Mas ha de passar-lhe. Eu tambem era assim. Quando o coração não aquece a valer, junta-se n’elle muita gordura... Vá deitar-se, mãesinha, que eu ainda vou ler um pouco. André ouviu-a resar n’um murmurio. Emquanto elle ia lendo, um tanto febrilmente, a pendula do relogio oscilava em cadencia, nas vidraças o vento gemia. A velha murmurava: --Ó Senhor! quanta gente por este mundo, queixando-se conforme os seus males! Onde estão os felizes? --Ha-os, sim; e dentro em breve serão em grande numero! ah! muito grande! respondeu elle. XXI A vida ia decorrendo rapida, de dias variados. Cada qual trazia novas a Pélagué, que não se perturbava com ellas. Cada vez eram mais os desconhecidos que vinham á noite conversar com André, e que, sempre desconfiados e cautelosos, se retiravam no meio das trevas, com a gola do casaco levantada, a pala do bonet sobre os olhos. Para Pélagué todos aquelles rostos, novos ou velhos, fundiam-se em um só rosto magro, calmo e decidido, de olhar profundo, carinhoso e severo ao mesmo tempo, como o de Jesus a caminho de Emmaús. Contava-os e imaginava-os cercando Pavel, como para tornal-o menos visivel aos seus inimigos. Uma noite, uma rapariga esperta, de cabello encaracolado, chegou da cidade, com um embrulho para André; e, ao saír, disse para Pélagué com um olhar brilhante e cheio d’alegria: --Até á vista, companheira! --Até á vista. --E foi á janella para vêr a sua «companheira» pela rua abaixo, em passinhos meudos, fresca como uma flôr de primavera, ligeira como uma borboleta. --«Companheira»!... Ah! minha queridinha! Deus te dê um bom companheiro por toda a vida. Notava por vezes nos que vinham da cidade aspectos variegados que lhe despertavam a simpatia; mas o que principalmente a impressionava era a sua simplicidade, o seu bello e tão generoso esquecimento de si proprios. Compreendia já muitas coisas que os visitantes discutiam; sentia, que de facto, elles tinham descoberto a verdadeira origem da desgraça dos homens, e ia-se acostumando a approvar as suas opiniões. Mas não acreditava que elles podessem transformar a existencia á sua maneira, nem que tivessem a sufficiente força de attraír a si todos os operarios. Regularmente, continuava levando folhetos para a fabrica, com o sentimento do dever cumprido; imaginava toda a especie de astucias; e os guardas, acostumados a vél-a, nem já lhe prestavam attenção. Todavia, revistavam-na por vezes, mas sempre nos dias seguintes a ter havido distribuição de folhetos. Quando não os levava, Pélagué sabia fazer-se notada, excitar a curiosidade dos guardas, que a detinham, ficando afinal com caras de tolos. Vessoftchikof não tornou a ser acceite na fabrica; metteu-se como operario n’uma estancia de madeira, e de manhã á noite guiava os carretos de traves, lenha, taboas. Os cavallos que puxavam a carroça iam como ás cegas, em risco de atropellarem quem passava, de irem de encontro ás outras carroças; o rapaz era perseguido por uma chuva de doestos e de imprecações. Sem levantar a cabeça, sem responder, assobiava estridentemente, e chicoteava, nos intervallos, resmungando: --Toma! toma!... Sempre que havia reuniões em casa de André para a leitura d’um folheto ou do ultimo numero d’um jornal estrangeiro, Vessoftchikof apparecia, sentava-se e escutava sem dizer palavra, durante uma ou duas horas. Concluida a leitura, os novos discutiam; elle porem não entrava na conversa, e era o ultimo a saír. A sós com André, falava então com o seu modo sórna. --Quem é o mais culpado de todos? --Aquelle que foi o primeiro a dizer: «Isto é meu!» Mas como já morreu ha milhares d’annos, não vale a pena zangarmo-nos com elle! respondia André, gracejando. --Mas os ricos e os poderosos? e os que os defendem? teem razão? O russo-menor apertava a cabeça entre as mãos, retorcia o bigode e falava durante muito tempo acerca da vida dos homens, com palavras simples e claras. Elle porém volvia: --Não! Ha de haver culpados! Existem! Digo-te que é preciso revolvermos a vida toda, sem piedade, como um campo coberto de más hervas!... --Foi o que o Isaías disse uma vez, falando do sr.... observou Pélagué. --O Isaías? --Sim. Que mau homem! Espia toda a gente... Vem até espreitar ás nossas janellas. --Ás suas janellas?... Ella estava já deitada e não lhe podia vêr a cara. Mas percebeu que tinha falado de mais, quando André disse, em tom conciliador: --Pouco importa que elle venha espreitar-nos. Não tem que fazer a essa hora: passeia. --Qual! exclamou o rapaz! Ora ahi tens o culpado? --Culpado de quê? de ser parvo? Mas o bexigoso não respondeu e saíu. Pélagué não dormia. --Tenho medo d’elle! exclamou. Parece um fogão levado ao rubro: não dá calor, mas queima. --Sim... é um garôto irascivel. Nunca lhe fale do Isaías, mãesinha. Esse tal Isaias é em verdade um espião... Pagam-lhe até para isso. --Que admira? O seu melhor amigo é um agente de policia! --O Vessoftchikof ainda acaba por torcer-lhe o pescoço! Veja que sentimentos os que mandam na nossa vida fazem nascer nas camadas inferiores. O que succederá quando aquelles que se parecem com este rapaz tiveram a consciencia da sua situação humilhante e perderem a paciencia? O ceu raiar-se-á de sangue, e a terra cobrir-se-á d’espuma, como se a tivesse invadido um musgo vermelho. --É terrivel, meu André! --Os nossos inimigos não terão o que merecem. Todavia, mãesinha, cada gottinha do seu sangue terá sido lavado préviamente pelos lagos de lagrimas que o povo chorou. E accrescentou, rindo: --É justo, mas não é consolador! XXII Um domingo, quando a velha, voltando da mercearia, abriu a porta e appareceu no limiar, foi invadida por subita alegria, pois ouvira lá para o interior da casa, a voz de Pavel. --Cá está elle! gritou André. Pélagué notou a rapidez com que o filho se voltou para ella e o brilho que lhe assomou ao rosto. --Eis-te afinal na nossa casa! murmurou. Pavel avançou, muito palido, com pequeninas lagrimas bailando-lhe nos olhos, com os labios tremulos. Em silencio, os dois contemplavam-se. --Obrigado, mamã! exclamou por fim, apertando-lhe a mão que estremecia. Obrigado, minha querida mãe! Commovida por aquellas palavras, ella acariciava-lhe os cabellos, e reprimindo as pulsações do coração, disse com doçura: --Deus seja comtigo! O que me agradeces? --O teu auxilio na nossa grande obra! Obrigado! É uma honra enorme para o homem poder dizer que sua mãe tambem é sua parenta pelo espirito. Não respondeu, aspirando, soffrega, as palavras do filho, contemplando-o, como em extasi perante aquelle rosto que lhe parecia tão luminoso. --Eu calava-me, mamã, porque percebia que certas coisas da minha vida te impressionavam; tinha piedade da tua alma, e nada podia fazer que lhe fosse agradavel. Imaginava que nunca te juntarias a nós, que nunca seguirias as nossas opiniões, que continuarias a supportar tudo, em silencio, como o tinhas feito em toda a tua vida. E isto custava-me muito. --O André deu-me a compreender tantas coisas!... observou, desejando chamar André ao sentimento do filho. --Contou-me tudo o que tu fazias! disse, rindo. --O Iégor tambem. Somos da mesma aldeia. Olha o André quiz ensinar-me a ler. --E tu tiveste vergonha e pozeste-te a estudar sósinha, ás escondidas. --Espreitou-me, então! notou, contrafeita. Mas que é d’elle? Foi-se d’aqui, para nos deixar á vontade. Chama-o, que elle... não tem mãe. --André! Onde estás tu? --Aqui. Vou rachar lenha. --Tens tempo. Anda cá. --Lá vou. Não veio logo; e á porta, observou, dando importancia ao caso: --É preciso dizer a Vessoftchikof que traga lenha, que já ha pouca. Vê como a cadeia fez bem ao Pavel? Em logar de punir os revoltados, o governo engorda-os. --Ainda não comeste!... Vamos jantar, Pavel! propoz ella. --Não. O guarda vigilante informou-me hontem de que tinham resolvido pôr-me em liberdade, e logo perdi a vontade de comer. A primeira pessoa que encontrei por cá foi o velho Sizof. Apenas me viu, atravessou a rua para me falar. Aconselhei-o a ser mais prudente, porque eu estou sob a vigilancia da policia. «Que tem isso?» foi a sua resposta. E sabes o que me perguntou acerca do sobrinho? «O Fédor tem-se portado bem na cadeia?» E eu: O que entende por isso de portar-se bem? «Ora!... não dar com a lingua nos dentes a respeito dos companheiros!» Quando lhe disse que elle era um bom rapaz e intelligente, passou a mão pela barba, e disse com altivez: «Nós, os Sizof, não temos patifes na familia!» --Não tem nada de tolo, esse velho. E o Fédia vem para a rua por estes dias? --Provavelmente. Creio mesmo em que virão todos. Não ha provas contra nós. Apenas o depoimento do Isaías... Mas o que pode elle saber? --Sentemo-nos! disse Pélagué, servindo o jantar. Comendo, André referiu-se a Rybine. Quando acabou de contar o que se tinha passado, Pavel murmurou, com muito pezar: --Se eu cá estivesse, não o teria deixado partir assim. O que leva na sua alma? Um sentimento de revolta e umas idéas embrulhadas... --Ora! disse André, sorrindo. Quando um homem tem quarenta annos e luctou durante muito tempo contra as dúvidas e as hesitações da sua alma, é difficil transformal-o. Discutiam, empregando termos que a velha não compreendia, até ao fim do jantar, embora por vezes falassem mais a claro. --Devemos continuar no nosso caminho, sem nos desviarmos d’elle nem uma linha! exclamou Pavel com firmeza. --E esbarrarmos no caminho com dezenas de milhões de homens que nos consideram seus inimigos. Pélagué poude concluir que Pavel não gostava dos camponezes, ao passo que André os defendia, entendendo ser preciso ensinar-lhes o bem. Compreendia melhor André. Sempre que elle dizia qualquer coisa a Pavel, prestava muita attenção, deixando mesmo de respirar, esperando com impaciencia a resposta do filho, para ver se o russo-menor o teria offendido. Mas os dois continuavam discutindo sem se zangarem. De quando em quando, perguntava: --É assim, Pavel? E elle respondia, sorrindo: --É. --Com que então o senhor, dizia André, em tom de malicia, comeu bem, não mastigou bastante e ficou embatocado?... --Não digas tolices! --Eu. Estou mais serio do que n’um enterro! E a velha ria... XXIII Approximara-se a primavera, ia-se derretendo a neve, descobrindo a lama e o suor engordorado das chaminés da fabrica, que ella havia occultado sob a sua camada branca. Dia a dia, a lama tornava-se mais aggressivamente apparente, todo o bairro parecia immundo e envolto em farrapos. O sol mostrava-se mais a miude, e os regatos ainda indecisos começavam a dirigir-se para o pantano. Ao meio-dia, a canção cariciosa das esperanças primaveris palpitava pairando sobre o bairro. Andavam em preparação as festas do primeiro de maio. Pela fabrica e pelo bairro todo tinham sido espalhados muitos folhetos, explicando a significação d’aquellas festas. Até a gente nova, que nada tinha de commum com os socialistas, dizia ao lêl-os: --É preciso tratar d’isso! Vessoftchikof resmungava com o seu sorriso sorna: --E não é cedo. O jogo das escondidas dura ha muito tempo! Fédia Mazine rejubilava. Tinha emagrecido e o nervosismo dos seus gestos e das suas palavras lembravam uma cotovia que estivesse mettida n’uma gaiola. Acompanhava-o sempre Jacob Somof, rapaz taciturno, muito grave apezar de novo, e que trabalhava então na cidade. Samoílof, cujos cabellos e barba pareciam terem-se avermelhado ainda mais na cadeia, Vassili, Goussef, Boukine, Dragounof e outros julgavam indispensavel munirem-se de armas; mas Pavel, o russo-menor, Somof e os seus amigos não eram da mesma opinião. Iégor chegou então, como sempre fatigado, offegante, e coberto de suor. Disse de brincadeira: --A transformação da organisação actual é uma grande obra, companheiros, mas para que ella caminhe mais facilmente é necessario... que eu compre um par de sapatos para a minha pessoa! E mostrou as botas rotas e que mettiam agua. --As minhas galochas estão na mesma, tambem muito doentes; todos os dias molho os pés. Não quero descer ao seio da terra sem ter renegado do velho mundo, d’uma maneira bem publica e visivel. Eis porque, regeitando a moção do companheiro Samílof relativamente a uma demonstração de força armada, proponho que me calcem com um bom par de valentes botas, porque estou convencido de que serão mais uteis ao triumpho da nossa causa do que a maior das sarrafuscas! Pavel disse uma vez, falando de Iégor: --Sabes, André, aquelles que mais riem, são aquelles cujo coração mais soffre. Depois de um curto silencio, o outro respondeu: --Qual historia! Se assim fosse, toda a Russia morreria de riso! Natacha appareceu tambem; estivera na cadeia, n’outra cidade, mas não mudara d’aspecto. Pélagué notou que, quando ella estava presente, o russo-menor ficava mais alegre, brincava com todos, com uma malicia sem maldade que provoca as gargalhadas da rapariga, e que, quando ella se ia embora, elle entrava de assobiar tristemente as suas innumeras canções, passeando pela casa, arrastando os pés. Sachenka vinha a miude, sempre apressada, tornando-se dia a dia mais acre, mais angulosa. Uma vez que Pavel tinha saído para acompanhal-a, sem fechar a porta apoz si, Pélagué ouviu-lhes estas phrases: --É o sr. que levará a bandeira? --Sou. --É caso resolvido? --É o meu direito! --Não seria possivel...? --O quê? --...deixar que fosse outro...? --Não! --Reflicta. O sr. tem tanta influencia... estimam-no tanto... Aqui os chefes são o André e o sr. Quantas coisas poderão fazer, estando livres!... Reflicta. São capazes de exilal-o... para muito longe e por muitos annos!... Estas palavras, cujo sentimento Pélagué estava entrevendo, caíam-lhe no coração como pingos d’agua gelada. --Não! estou decidido. Não renunciarei por coisa alguma n’este mundo! --Ainda que eu lhe pedisse...? Pavel interrompeu-a rapidamente, tendo na voz uma severidade especial: --Não deve falar assim. No que está pensando? --Sou uma creatura humana!... murmurou, defendendo-se. --Uma excellente e meiga creatura! disse elle em voz baixa e como se lhe custasse respirar. Uma creatura que me é querida... muito querida! E é por isto mesmo que não deve falar assim! --Adeus! E pelo ruido dos seus passos, a velha percebeu que ella ia correndo. Compreendeu que nova desgraça a ameaçava, e no cerebro cravou-se como um prego esta interrogação: «O que será preciso fazer?» Ao entrar na cosinha, Pavel avançou para André que lhe perguntou: --E aquelle desgraçado do Isaías? --Devemos aconselhal-o a que renuncie á espionagem. --Denunciará aquelles que tal lhe aconselharem. --Que pensas fazer, Pavel? perguntou-lhe a mãe, desviando o olhar. --Quando? agora? --Não: no primeiro de maio. --Ah! quero levar a nossa bandeira. Pôr-me-ei á frente do cortejo, com a bandeira em punho. Naturalmente mettem-me outra vez na cadeia. Os olhos de Pélagué tornaram-se como candentes, a bôca foi-lhe invadida por uma secura febril. O filho pegou-lhe na mão e ameigou-a: --Assim é preciso, mãe. A honra está n’isto mesmo. --Eu não disse nada... balbuciou. --Deverias regosijar-te, em vez de entristeceres-te. --Eu não disse nada... Não me opporei... Se tenho pena de ti, é natural... e fica comigo... Pavel afastou-se, e ella ouviu-o resmungar palavras acerbas: --Ha affeições que impedem o homem de viver! Receando que elle dissesse peor, exclamou vivamente: --Não fales assim, Pavel! Compreendo. Tens que fazer o que tencionas, por causa dos companheiros. --Não! Por minha propria causa! Poderia proceder d’outra forma, mas não quero! Hei-de ir! André parou no limiar; parecia mettido n’uma moldura: era mais alto do que a porta e curvava os joelhos caricatamente, com um dos hombros encostados a um umbral, e com a cabeça e o outro hombro estendido para a frente. --Seria melhor que o sr. tagarellasse menos! Parecia um lagarto semi-occulto na fenda d’um rochedo. A velha tinha vontade de chorar, mas, não querendo que Pavel a surpreendesse, disse de repente: --Ah!... ia-me esquecendo... E retirou-se, rapida. Sob o alpendre, encostou a cabeça á parede, e deu livre curso a todo o seu pranto. As palavras dos dois amigos chegavam até lá. --Divertes-te em atormental-a! dizia André. --Não tens o direito de falar-me assim! --Não seria um bom companheiro, se me calasse ao ouvir as tuas estupidas cabriolices! Para que respondeste tão rudemente á tua mãe? --Deve-se falar sempre com firmeza, seja a quem fôr! --Á tua propria mãe? --A todos! Dispenso qualquer amor ou amisade que me detenham no meu caminho. --Que heroe! Á Sachenka é que devias falar assim. --Foi o que fiz. --Com essa rispidez? Não creio! Havias de falar-lhe com uma voz carinhosa, terna... É como se estivesse a ouvir-te! Guardas o teu heroísmo para quando a tua mãe está presente. Pois fica sabendo, animal, que o teu heroísmo não vale nada! Pélagué receou que a discussão se azedasse; limpou rapidamente as lagrimas e appareceu, dizendo: --Oh! que frio que faz! E é isto a primavera!... E, nos arranjos domesticos, deu alguns passos pela casa, voltando de novo á cosinha. Apóz um silencio, André approximou-se de Pavel. --Percebeste-a?... Tem mais coração do que tu. --Querem chá? perguntou a velha. E sem esperar resposta, accrescentou logo: --É que estou transida de frio. Pavel dirigiu-se a ella, com um sorriso a tremer-lhe nos labios. --Perdôa, mãe... Sou ainda uma creança... um garôto... Ella estreitou-o a si. --Não me ralhes mais. Não me digas mais nada. Deus seja comtigo, filho! Segue lá a tua vida, mas não bulas no meu coração. Como não haveria de uma mãe ter piedade do seu filho? Tenho piedade de todos... --Está bem, mamã. Perdôa. Fiz mal. E afastando-se, enleado: --Nunca mais o esquecerei, palavra d’honra! Passando á cosinha, Pélagué disse a André, que se conservara á porta: --Não ralhe com elle. Bem sei que o André é mais velho, mas... Elle não se moveu, e pôz-se a berrar comicamente: --Ora! ora! ora! Ralho... e até lhe chego, se calhar! A velha apertou-lhe a mão commovida. --Meu bom amigo!... André entrou na cosinha, e, continuando no mesmo tom ironico: --Desapparece, Pavel, se não queres que eu te torça o pescoço. Por emquanto, não, porque estou arranjando o samovar! Oh! que pessimo carvão! Está molhado, com mil diabos! Calou-se. Quando a viu perto de si, foi dizendo, baixinho, todo entretido no seu trabalho: --Não tenha medo, mãesinha, que não lhe tocarei nem com um dedo! Sou simplorio como um nabo cosido. E gosto muito d’elle. Olha tu é que não deves dar ouvidos ao teu heroe! Anda como se tivesse estreado um collete garrido: com o peito espetado, empurrando em toda a gente para que lhe vejam bem o collete... É bonito, lá isso é; mas para que diabo empurra elle o proximo? Pavel disse de lá: --Ainda estás resmungando? E approximou-se logo. André, sempre sentado no chão, tinha posto entre as pernas o samovar e contemplava-o. Pélagué, encostada á porta, fixava o olhar na nuca e no farto pescoço do russo-menor. Elle então deitou o corpo para traz, com as mãos apoiadas no chão, e, depois de ter observado a mãe e o filho: --Em verdade, olhem que são muito boa gente! Pavel abaixou-se para lhe pegar n’um braço. --Não puxes por mim, que me fazes caír! --Para que se zangam? perguntou ella tristemente. Não seria melhor que se abraçassem? --Queres?... murmurou Pavel. --Porque não? Pavel ajoelhou-se e os dois homens abraçaram-se, unindo-se n’uma só alma, animada da mais quente amisade. Pélagué chorava; era porem um pranto sem amargor. Enxugando os olhos, balbuciou: --As mulheres gostam de chorar... de tristeza... e de alegria... André afastou o amigo, e esfregando os olhos: --Basta! basta! Que diabo de carvão! Tenho os olhos cheios d’elle! Pavel sentara-se junto da janella, e murmurou: --Lagrimas como estas não devem envergonhar. --Sim! Acabámos de viver uns momentos de uma boa vida, humana, replecta de amor! exclamou André. Ao que a mãe observou: --Tudo está mudado! O pezar é outro... outra é a alegria... já nem sei... já não sei o que me faz viver... faltam-me as palavras... --Tudo está mudado. E assim é que deve ser! acudiu André. E sabe porquê? Porque se desenvolve na vida um coração novo, mãesinha. Os corações estão todos elles despedaçados pela diversidade dos interesses, roídos pela cega avareza, mordidos pela inveja, cobertos de chagas e de feridas purulentas... de mentira, de covardia. Os homens são uns doentes, que teem medo de viver... perdidos como em um nevoeiro... conhecendo apenas a sua propria dor. Mas eis que apparece um homem que illumina a vida com o fogo da razão e que grita: «Eh! pobres insectos perdidos! Chegou o tempo de compreender que tendes todos os mesmos interesses e o mesmo direito á vida e ao desenvolvimento!» O homem que clama está isolado, sente-se triste e tem frio sósinho. E ao seu chamamento, todos os corações se reunem, formando um coração immenso, forte, sensivel como um sino de prata. E este sino diz assim: «Uni-vos, homens de todos os paízes, formae uma unica familia! A mãe da vida é a affeição e não o odio!» Irmãos, eu oiço este sino! --E eu tambem! disse Pavel. --Deitado, de pé, vá para onde fôr, oiço-o e sinto-me feliz. Eu sei: a terra está farta de supportar a injustiça e a dôr; éccôa como se quizesse responder, saúdando o novo sol que desponta no peito do homem! Pavel ergueu um braço, ia falar; mas a mãe deteve-o, e disse baixinho: --Não o interrompa. --Sabem? ha ainda muitas dores reservadas aos homens; ainda muito sangue lhes será arrancado por mãos ávidas. Mas tudo isto, toda a minha dor e todo o meu sangue, nada são perante o que já possuo no meu cerebro, na minha medula, nos meus ossos! Já sou rico como uma estrella é rica em scintillações. Supportarei tudo, porque tenho em mim uma alegria, que ninguem nem coisa alguma matará, e que é a minha força! E até á meia noite, a conversa proseguiu, harmonica e sincera, acerca da vida, dos homens, do futuro. XXIV De manhã muito cedo, apenas André e Pavel tinham sido, Maria Korsounova bateu á janella com estrondo. --O Isaías foi assassinado! Vamos ver! Pélagué estremeceu: o nome de assassino atravessou-lhe o peito como uma flécha. --Quem o matou? --O assassino fugiu! Tendo posto um chale, á pressa, Pélagué foi ter com ella á rua. --Naturalmente começam outra vez a fazer buscas. Ainda bem que a tua gente não saíu de casa áquella hora. Posso tesmunhar. Á meia noite passei eu por aqui, olhei pela janella e vi-os a todos trez sentados á meza. --Mas, Maria, porque haveriam de accusal-os? perguntou aterrorisada. --O assassino é forçosamente dos vossos! Todos sabem que o Isaías os espionava... Pélagué parou, offegante, com a mão no peito. --Que é isso? Não tenhas medo. O Isaías não merecia outra coisa. Vamos depressa, que não chegamos a tempo. A pobre velha caminhava sem mesmo perguntar a si propria para que ia ver o cadaver; tremia pensando em Vessoftchikof: «Conseguiu o seu fim!» Não distante da fabrica, sobre o entulho d’uma casa recentemente destruida por um incendio, grande ajuntamento de povo murmurava como uma nuvem de bezouros, e movia-se levantando em poeira a cinza com os seus passos. Já lá estavam muitas mulheres, ainda mais creanças, lojistas, os moços da taverna proxima, agentes de policia, o guarda Pétline, um guarda velho, de barbas brancas como prata, e com o peito coberto de medalhas. Isaías estava meio deitado no chão; tinha as costas apoiadas a uma trave enegrecida pelo fogo, a cabeça descaída para o ombro direito. Conservava a mão direita na algibeira das calças; os dedos da esquerda desappareciam contraídos sob a terra fôfa. Pélagué olhou para o rosto do morto. Um dos olhos tinha-o elle fixado no boné posto entre as pernas estendidas, a boca entreaberta n’uma como expressão d’assombro; a barbicha ruiva pendia. O corpo magro, com a cabeça ponteaguda, e o rosto ossudo coberto de manchas avermelhadas, parecia diminuido, comprimido pela morte. Ella então benzeu-se suspirando. Em vida, aquelle homem fôra-lhe antipatico; morto, fazia-lhe dó. --Não tem sangue! disse alguem. Talvez o prostrassem aos murros. --Talvez ainda esteja vivo. --Vão-se d’aqui! berrou o guarda. --O medico já veio, e disse que elle estava morto! --Fecharam a boca a um denunciador... Foi bem feito! O guarda afastou as mulheres que o cercavam e perguntou ameaçadoramente: --Quem é que falou? Muitos recuaram; outros deitaram a fugir. Ouviram-se risos escarninhos. Pélagué voltou para casa. --Ninguem tem dó d’elle!... ia pensando. --E o perfil macisso do bexigoso erguia-se na sua frente; os seus olhos tinham um brilho frio e rude; a sua mão direita balouçava, como se estivesse ferida. Quando André e Pavel entraram para o jantar, perguntou-lhes logo: --E então? Não está ninguem preso por causa do Isaías? --Não ouvi nada... respondeu o russo-menor. Ella notou que os dois vinham sombrios e reservados. --Não falam do Vessoftchikof?... avançou. O filho encarou-a com severidade e respondeu, accentuando muito as palavras: --Não! Ninguem pensa n’elle. Está ausente. Hontem ao meio dia, partiu a caminho da ribeira e ainda não voltou... Tirei informações... --Deus seja louvado! exclamou ella com um suspiro d’alivio. Ao jantar, Pavel deixou caír de repente a colher no prato e disse: --Não entendo isto! --O quê? perguntou André, até ali triste e silencioso. --Admitto que matem um animal feroz, uma ave de rapina... Julgo-me capaz de matar um homem que se tornasse uma fera para os seus semelhantes. Mas como ha quem possa levantar a mão para assassinar uma creatura miseravel e repugnante? André encolheu os hombros, e depois: --Elle era tão nocivo com uma fera. --Sei... --Nós tambem esborrachamos o mosquito que nos suga um pouco de sangue... --Sim, é verdade. Não é esse o meu ponto de vista. Digo que é repugnante! --Que se ha de fazer? e encolheu outra vez os hombros. --Poderias matar uma creatura d’aquellas? perguntou Pavel depois de curta pausa. --O russo-menor fitou-o, lançou um rapido olhar a Pélagué, e respondeu tristemente mas com firmeza: --Se se tratasse de mim só, não tocaria em ninguem. Pelos companheiros, pela nossa causa, faria tudo. Mataria até meu proprio filho, se preciso fosse! --Oh!... suspirou Pélagué. Elle sorriu, concluindo: --Impossivel proceder d’outra maneira! É a vida que assim o quer! Como se obedecesse a um impulso intimo, André ergueu-se de repente. --Que se ha de fazer? É-se obrigado a odiar o homem, para que venha mais cedo o tempo de admiral-o sem reservas. Temos que destruir aquelle que obsta ao curso da existencia, que vende os outros para adquirir honrarias ou o descanso. Se encontramos no caminho dos justos um Judas que nos espera para nos traír, eu proprio seria um traidor, se não o anniquilasse. É crime? É contra o direito? E os outros, os nossos senhores, com que direito se servem de soldados e carrascos, de casas publicas e de prisões, do degredo e de tanta coisa infame para protegerem a sua segurança e o seu bem-estar? Os nossos senhores assassinam-nos ás centenas, aos milhares; isto dá-me o direito de levantar a mão e de deixal-a caír na cabeça d’um inimigo, d’aquelle que mais se approximou de mim e que mais me prejudica na vida. Sei que o sangue dos meus inimigos não cria, que é esteril... Desapparece sem deixar vestigios, porque está podre; ao passo que quando o nosso rega a terra como uma chuva compacta, a verdade desenvolve-se exhuberante! Tambem o sei! Mas se vir que é indispensavel matar, matarei e revindicarei a responsabilidade do meu crime. Não falo senão de mim. O meu peccado morrerá comigo, não maculará o futuro com uma unica nódoa, não manchará ninguem, ninguem senão eu! Cheia de tristeza e de inquietação, Pélagué sentia que elle tinha como que uma mola partida no seu espirito, e que soffria. Não a inquietava já o caso do assassinio: não tendo sido Vessoftchikof, nenhum outro companheiro de Pavel o seria, por certo. André proseguia: --Tempo virá em que os homens se admirarão uns aos outros, em que cada qual brilhará como uma estrella, em que escutará a voz do seu semelhante, como se fosse uma musica. Haverá na terra homens ricos, grandes pela sua liberdade, tendo todos o coração aberto, purificado de qualquer ambição ou interesse. A vida será então um culto prestado ao homem; a sua imagem será exhaltada porque para os homens livres todas as alturas são accessiveis. Viver-se-á então na liberdade e na egualdade, pela belleza; os melhores serão os que mais souberem abarcar o mundo no seu coração, os que mais o amarem! E por esta vida assim, estou prompto a tudo. Arrancaria o coração a mim proprio, e pizal-o-ia, com os meus pés! O seu rosto tremia; as suas feições tinham uma excitação luminosa; uma a uma, as lagrimas deslisavam-lhe pelas faces. Pavel levantou a cabeça e contemplou-o. Pélagué sentia-se inquieta, com um vago e terrivel presentimento. --O que tens, André? perguntou Pavel, a meia-voz. Elle esticou o corpo, e fitando a velha: --Eu vi... eu sei... Pélagué levantou-se, correu a elle, pegou-lhe nas mãos. --Socega, André! meu filho!... socega!... murmurava. --Esperem!... Quero dizer-lhes como a coisa foi... --Não! não! accudiu ella, com os olhos razos d’agua. Pavel approximou-se d’elle, com as mãos trémulas e muito pálido, e segredou-lhe: --A minha mãe receia que tivesses sido tu... Ella porem ouviu, e disse: --Não receio, não. Sei que não foi elle. Ainda que tivesse sido, não acreditaria. --Oiçam... pediu André, sem os fitar e buscando libertar as mãos que Pélagué não abandonava. Não fui eu... mas poderia ter evitado o crime. --Cala-te, André! exclamou Pavel, pondo-lhe a mão no hombro, como para fazer cessar a tremura que lhe abalava todo o corpo. O russo-menor explicou então: --A coisa foi assim: quando nos deixaste, ficamos á esquina, eu e o Dragounof. O Isaías appareceu de repente... e conservou-se afastado... Troçava de nós, observando-nos... Dragounof disse-me: «Não vês! Anda-me a espiar todas as noites. Ainda venho a dar-lhe uma lição!» E afastou-se para entrar em casa, ao que julguei... Então o Isaías chegou-se a mim... Suspirou: --Ninguem me insultou mais rélesmente do que aquelle cão! Sem falar, Pélegué fôra conseguindo puxal-o para junto da meza até obrigal-o a sentar-se. --Disse-me que todos nós eramos conhecidos da policia, que tinha os olhos em nós, e que antes do primeiro de maio estariamos servidos!... Não respondi, limitei-me a rir-me, mas cá por dentro começava a ferver. Disse-me depois que eu era um rapaz intelligente, que não deveria metter-me a taes caminhos... --Percebo!... murmurou Pavel. --Isso! Acabou por dizer-me que seria melhor eu entrar ao serviço da policia... E de punho cerrado erguido: --Que alma infame a d’aquelle homem! Mais valia que me houvesse esbofeteado! ter-me-ia custado menos! e talvez fosse melhor para elle. Perdi a paciencia quando assim me cuspiu no coração a sua saliva infecta! Dei-lhe um muro em pleno rosto, e retirei-me. Ouvi uma voz atraz de mim: «Fizeste muito bem!» Era Dragounof, que por certo tinha ficado occulto na esquina. Não olhei para traz, apezar de sentir, de compreender a possibilidade... Ouvi depois um ruido, mas não fiz caso. Eu ia tão tranquillo como se tivesse acabado de esmagar um sapo. Quando cheguei á fabrica, dizia toda a gente: «Mataram o Isaías! Não quiz acreditar. A minha mão é que teve a culpa... Não sou senhor d’ella... Não me faz soffrer, não... mas dir-se-ia que a sinto retraída agora... Lançou á mão um olhar rapido e exclamou: --Não conseguirei nunca laval-a d’esta mancha! --Tenhas tu bem puro o teu coração!... disse Pélagué chorando. --Não me accuso, não! declarou elle com energia. Mas é repugnante... Não é agradavel ter esta lama cá dentro no peito! --Que pensas fazer? --O que quero fazer? E depois de reflectir, de cabeça baixa, ergueu-a e respondeu com amargo sorriso: --Não tenho medo de dizer que fui eu... mas tenho vergonha do que fiz! Não! não posso dizel-o! Tenho vergonha! --Não te percebo bem! exclamou Pavel, encolhendo os hombros. Não foste tu quem matou; e ainda que... --Irmão, apezar de tudo, era um homem. O assassinio é coisa repugnante. Saber que alguem assassina, e não o impedir... é talvez uma covardia infame! --Continúo sem perceber! Ouviu-se o apito da fabrica. André deixou tombar a cabeça para o hombro, escutando aquelle auctoritario chamamento e disse: --Não quero ir trabalhar. --Nem eu! --Quero ir tomar um banho! Vestiu-se á pressa e saíu. Pélagué seguiu-o com um olhar de compaixão; depois abriu-se com o filho. Podes dizer o que quizer, Pavel. Sei que é peccado matar um homem, mas n’este caso não encontro culpa em ninguem. Lembro-me de que o Isaías me ameaçou uma vez com a forca para ti... Eu não lhe queria mal, nem me alegro por elle ter morrido... Tinha apenas dó d’elle... E agora... nem mesmo isso já sinto... --Ahi tens o que é a vida, mãe! XXV Alguem acabava de chegar sob o alpendre. Mãe e filho entreolharam-se, estremecendo. A porta abriu-se e deu entrada a Rybine. Trazia vestida uma capa curta, de pelles, toda manchada de alcatrão, e nos pés sapatos de canhamo; do cinto pendiam-lhe grosseiras luvas de lã preta; na cabeça um boné de pelles. --Como vão de saúde? Puzeram-te na rua, Pavel? E tu, Pélagué, como vaes? --Ah! és tu? muito estimo ver-te! --Olha que vens mesmo lindo! disse Pavel. Rybine respondeu, tirando vagarosamente a capa: --Sim. Fiz-me camponez. Tu e os teus vão-se transformando pouco a pouco em senhores; eu ando para traz. E passando ao quarto, lançou o olhar em roda. --Não teem mais mobilia do que d’antes. Os livros é que augmentaram. São o melhor bem que se pode possuir hoje. Como vão as coisas por cá? Conta-me. Sentou-se abrindo muito as pernas, apoiou as palmas das mãos nos joelhos, parecendo satisfeito na espectativa da resposta de Pavel. --Vão bem. --Muito me alegro! muito me alegro! --Queres chá? perguntou a dona da casa. --Pudera! e um copinho de aguardente... e se me offerecessem de comer, tambem não recusaria. Estou contente por tornar a vêl-os! --E como vae? --Bem. Parei em Eguildiévo. Conhecem? É uma bella villa, com duas feiras por anno e mais de dois mil habitantes. Má gente. Não ha terras para cultivar; arrendam-nas, mas são de má qualidade. Entrei como assalariado ao serviço de um explorador do povo; não faltam d’estas sanguesugas; são como as moscas á roda de um cadaver. Fazemos carvão, extraímos alcatrão das bétulas. Trabalho duas vezes mais do que trabalhava aqui, e ganho quatro vezes menos. Ao serviço d’esta sanguesuga somos sete, todos lá da terra, menos eu. Sabem ler e escrever. Um delles, chamado Jéfim, é muito bulhento... --E fala muito com elles? --Está claro. Levei comigo todos os meus folhetos. Tenho trinta e quatro. Mas prefiro servir-me da Bíblia: encontra-se lá tudo o que se quer, e é um livro permittido, publicado pelo Santo-Synodo, e no qual se pode crer. Piscou o olho, malicioso, e continuou: --O peor é que não basta. Vim cá buscar leitura. Como vamos fazer uma entrega d’alcatrão, o tal Jéfim e eu, combinámos a patuscada de passar por tua casa... Dá cá livros antes que elle appareça... É inutil que elle fique sabendo... Pélagué observava-o; parecia-lhe que ao largar a capa, largara tambem qualquer coisa da sua pessôa: estava menos grave do que d’antes, e havia no seu olhar mais astucia. --Mamã, vae buscar os livros. Dize que vão para o campo, que logo sabem o que te hão de dar. --Irei apenas o samovar esteja pronto. --Quero livros proíbidos e bem incisivos. Distribuil-os-ei ás escondidas. E se o padre ou alguem da policia os descobrir, imaginarão que os mestres-escolas é que fazem a propaganda. De mim ninguem suspeitará. Satisfeito por este achado, desatou a rir. --Olha sabes? disse Pélagué. Tens assim o aspecto de um urso, e afinal és uma raposa! Pavel ergueu-se, em tom de censura: --Dar-lhe-emos os livros que deseja, mas o que pensa fazer não lhe fica bem. --E porquê? --Porque se deve responder sempre pelo que se faz. --Não percebo o que dizes! --Acha bem que os mestres-escolas sejam mettidos na cadeia como suspeitos de fazerem propaganda? --Então? que tem isso? Essa é boa! Os livros são coisa que lhes dizem respeito, a elles; portanto elles que tenham a responsabilidade! Pélagué interveio, mostrando-se da opinião de Rybine, ao que Pavel objectou: --Se qualquer de nós, o André por exemplo, praticasse uma infracção da lei e me mettessem na cadeia, a mim, o que diria a minha mãe? --Ah! ah! É um caso melindroso!... exclamou Rybine. Mas assumindo uns ares doutoraes: --Ainda és muito ingenuo, irmão! Não nos devemos preoccupar com casos de honra, quando trabalhamos por uma causa secreta. Reflecte: quem primeiro caírá na cadeia será a pessoa a quem forem encontrados os livros, e não o mestre. Depois, o texto dos livros auctorisados que os mestres distribuem é o mesmo dos livros proíbidos, com simples differenças de palavras e com menos coisas verdadeiras do que os nossos. Portanto os mestres teem o mesmo fim que eu, mas servem-se de rodeios, ao passo que eu vou por caminho direito; e assim, aos olhos das auctoridades, somos igualmente culpados; não achas? Em terceiro logar, que tenho eu a ver com os mestres-escolas? Não procederia da mesma maneira com um camponez. O mestre-escola é um filho de padre; a mestra uma filha de proprietario; não sei porque se põem a querer levantar o povo. Eu, camponez, não posso conhecer os seus pensamentos de pessôas instruidas. Sei o que faço, mas ignoro o que elles querem. Durante milhares d’annos, os grandes eram verdadeiros senhores e tiravam a pelle do povo; de repente accordam e começam a abrir os olhos ás suas victimas. Nunca tive predilecção por contos de fadas, e este é um d’elles. Para mim, a gente rica e instruida, seja qual fôr, fica afastada de nós. No inverno, quando atravessamos os campos e vemos ao longe alguma coisa a mexer, perguntamos a nós mesmos: será uma raposa, um lobo, um cão? Sabe-se lá o que é! E, passando a mão pela barba: --Não tenho tempo para delicadezas. O momento é grave. Trabalhe cada qual, segundo a sua consciencia... Todas as aves teem o seu canto especial. --Mas ha ricos que se sacrificam pelo povo, que passam toda a vida na cadeia... observou a velha, recordando-se de pessoas amigas. --Com esses o caso é outro. Quando o homem do povo enriquece, acotovella-se com os senhores. Estes, quando empobrecem, tornam-se amigo do povo. Quando a algibeira está vasia, a alma torna-se pura, á força. Ergueu-se e continuou, sombriamente: --Durante cinco annos, desacostumei-me do campo, andando errante de fabrica em fabrica. Quando para lá voltei e vi o que se passava, disse comigo que não podia viver como vivem os camponezes. Percebes? Parecia-me impossivel. Por cá não se conhece a fome, nem a muita humilhação. Mas na aldeia a fome segue o homem como uma sombra durante toda a vida, sem nunca lhe dar a esperança de obter pão que chegue. A fome devorou as almas, apagou as feições humanas; não se vive: apodrece-se irremediavelmente na miseria. E as auctoridades vigiam, cuidadosas; como os corvos, espreitam, não se dê o caso de que o camponez tenha um bocado de pão a mais. Quando o descobrem, arrancam-lho da mão, e ainda lhe dão com elle na cara! Encostado á mesa, de pé, falando muito perto de Pavel, proseguiu: --Julguei que não poderia supportar semelhante vida. Todavia, dominei-me. Disse com os meus botões: «Não devo consentir que a minha alma me faça partidas! Ficarei aqui, e, não podendo dar pão aos camponezes, farei a zaragata!» Com a fronte coberta de suor, exclamou: --Dá-me livros que não deixem mais em descanso aquelles que os lerem. Ajuda-me! É preciso metter ouriços dentro da cabeça d’aquella gente. Dize aos que escrevem folhetos para os da cidade, que os escrevam tambem para os do campo. Que os escrevam de maneira a regar o campo de agua a ferver, para que os cultivadores, depois de lel-os, caminhem para a morte sem protestarem! As frases vigorosas de Rybine impressionavam Pélagué. Havia n’aquelle homem o que quer que fosse que lhe recordava o marido: um e outro mostravam os dentes e arregaçavam as mangas, com a mesma irritação impaciente. Ao menos, Rybine falava. --Sim! é indispensavel! disse Pavel. É indispensavel organisar um jornal para o campo. Dê-nos o assumpto, narre-nos os factos, e nós lhe daremos um jornal. Ao que Rybine respondeu. --Está dito! Mas escrevam com simplicidade, para que até os vitellos os entendam! XXVI Pélagué tinha saído. Pouco depois alguem entrava. --É o Jéfim! informou Rybine. Entra! Anda cá. Este homem, que vês aqui, chama-se Pavel. Foi d’elle que eu te falei. Jéfim era um rapagão de cara ampla, cabellos ruivos, olhos pardos, robusto e bem talhado, trajando uma capa curta. Avançou até Pavel, de boné na mão e olhar baixo. --Ora viva! resmungou, apertando a mão de Pavel, e tendo percorrido o quarto com o olhar, demorando-o na estante dos livros, poz-se a alisar com a mão os cabellos asperos. --Já os viu! exclamou Rybine. Jéfim foi ver os livros mais de perto. --Ih! quantos ha por cá! E naturalmente lê-os muito. No campo, não temos tempo... --E pouca vontade, não? perguntou Pavel. --Ao contrario! Hoje somos obrigados a pensar, se não, não nos resta mais do que deitarmo-nos e esperarmos a morte. Como o povo não quer morrer, poz-se a trabalhar com o cerebro. «Geologia?...» O que é isto? Pavel explicou. --Não precisamos d’isso! concluiu Jéfim pondo o livro no seu logar. Rybine commentou: --O camponez não tem curiosidade de saber d’onde veio a terra, mas sim como foi distribuida, como os proprietarios a arrancaram de sob o dominio do povo. Que ella se mova ou não, que importa! comtanto que dê de comer! --«Historia da escravatura!» Isto é com a gente? --Aqui tem um acerca da servidão. --É já muito velho. --Possue algumas terras? --Somos trez irmãos, e temos quatro hectares... terreno de areia fina. Coisa fresca, para limpar metaes! mas para cultivar o trigo... Eu cá libertei-me da terra. Não sustenta o homem, antes o traz manietado. Ha quatro annos que me alugo como manufactor... Para o outomno vou para a tropa. O Mikhaíl diz-me que não vá, porque obrigam os soldados a baterem no povo. Mas vou, por força! É tempo de acabar com isto. Que lhe parece? --É tempo, é... respondeu Pavel, sorrindo. Mas o difficil está em saber falar aos soldados. --Aprende-se! --Mas se o apanham em flagrante, podem fuzilal-o. --Sim... não me perdoarão... respondeu tranquillamente, voltando a vêr os livros. --Vamos ao chásinho, companheiro, que temos que abalar! disse Rybine. André entrou muito vermelho, encalorado e taciturno. Apertou a mão de Jéfim, sem falar, assentou-se ao lado de Rybine, e, depois d’olhar para elle, sorriu. --Pareces triste, homem! Porquê? perguntou aquelle dando-lhe uma palmada no joelho. --Porque sim! Jéfim, observava attentamente André, até que disse: --Os trabalhadores das cidades e villas são magrizellas, teem os ossos a romper a pelle. Nós cá, os do campo, somos mais roliços... Rybine completou: --O camponez tem mais firmeza nas pernas. Sente a terra debaixo dos pés, ainda que não lhe pertença. Mas o operario é como um passaro: não tem patria, nem lar; um dia aqui, outro dia ali. Pélagué entrou. Jéfim tinha-se approximado de Pavel a quem pediu: --Poderia dar-me um livro? --Da melhor vontade. O jubilo brilhou-lhe no olhar. --Eu restituo depois. Obrigado! Hoje, os livros são tão precisos como á noite uma candeia. Rybine tinha posto a capa. --Vamos, que são horas. --Olha: já tenho que ler! exclamou Jéfim, mostrando-lhe o livro, com um sorriso muito aberto. Quando elles saíram, Pavel dirigiu-se a André. --Que me dizes áquelles diabos? --Parecem nuvens á hora do crepusculo: grossos, sombrios, arrastando-se lentamente... --Tenho pena de que não chegasses mais cedo. Terias observado um coração, tu, que estás sempre a falar de coração. Rybine disse das suas... Não soube que responder-lhe. A minha mãe tem razão: aquelle homem traz em si uma força terrivel! --Conheço isso! Essa gente do campo anda envenenada! Quando se revoltarem, derrubarão tudo, sem distincção. Querem a terra absolutamente sua, e arrancarão tudo o que a cobre. Falava de vagar; percebia-se que pensava n’outra coisa. Pélagué disse-lhe com blandicia: --Deves espairecer, André! --Deixe, mãesinha, deixe... Embora eu não quizesse tel-o feito, a acção foi abominavel! E voltando ao assumpto da conversa: --O nosso camponez queimará tudo, como se tivesse havido uma peste, para que todos os vestigios das suas humilhações vôem com as cinzas. --E levantar-se-á depois contra nós... continuou Pavel. --O nosso dever é não lho consentir, reprimindo-o! Somos nós quem se encontra mais perto d’elle. Acreditar-nos-á... seguir-nos-á! --Sabes? O Rybine pediu-me que fizessemos um jornal para os camponezes. --Apoiado! É tratar d’isso. E depois de commentar as ultimas palavras de Rybine, ergueu-se, dizendo: --Vou dar um passeio ao campo. --Depois do banho? Olha que faz muito vento... Vaes arranjar uma irritação na pelle! accudiu Pélagué. --Deixal-o! Quero saír. Vestiu-se e foi-se sem dizer palavra. --Soffre! suspirou a velha. --Tens um bello coração, mamã! --Oxalá assim seja! Se ao menos podesse ajudal-os!... se eu soubesse!... --Não te dê cuidado: has-de saber. O russo-menor voltou tarde; estava fatigado; deitou-se logo, dizendo: --Parece-me que andei uns dez kilometros... --Isso vae melhor? --Não sei... Não faças barulho... Deixa-me dormir. Pouco depois, Vessoftchikof appareceu, sujo, esfarrapado e de mao-humor como sempre. --Não sabes quem matou o Isaías? --Não! respondeu Pavel. --Até que houve um homem que não achou antipatico esse feito! E eu que me preparava para torcer-lhe o pescoço!... --Não digas essas coisas, companheiro! Pélagué interveio: --És bom e tens sempre palavras tão crueis!... Para quê? Era-lhe então agradavel tornar a vêl-o; o seu rosto bexigoso chegava até a parecer-lhe bonito; sentia mais piedade por elle. --Eu não sirvo para nada, senão para taes emprezas! Pergunto constantemente qual é o meu logar. Não o encontro. Se é preciso falar... não sei... Vejo tudo, sinto todas as humilhações dos homens, e não posso exprimil-as. Tenho uma alma muda. Irmãos, dêem-me um trabalho penoso, seja qual fôr. Não posso viver assim, sem fazer nada em favor da nossa causa. Pavel pegou-lhe n’uma das mãos. --Havemos de pensar em ti, descansa. --André disse lá da cama: --Ensinar-te-ei a conhecer as letras d’imprensa, e serás um dos nossos compositores; queres? --Se me ensinares, dar-te-ei de presente uma navalha. --Vae para o diabo mais a tua navalha! --Uma navalha bôa! insistia. André e Pavel riram á larga. Elle parou no meio do quarto, perguntando: --Estão a rir-se de mim? --Então de quem? E o russo-menor saltou da cama. --Se fossemos dar um passeio pelo campo? A noite está bôa, ha luar. Vamos? --Pois vamos! apoiou Pavel. --E eu tambem vou. Gosto de ouvir rir o André! --E eu gosto que me promettas presentes! XXVII ...Os dias decorriam com tal rapidez que não deixavam que Pélagué pensasse no primeiro de maio. Só á noite quando se deitava, fatigada dos trabalhos e preoccupações, é que o seu coração se confrangia, e o seu cerebro a fazia monologar: --Se ao menos já tivesse passado!... Todas as noites as folhas impressas convidando os operarios a festejarem o primeiro de maio eram colladas até á porta das estações policiaes; todas as manhãs appareciam tambem na fabrica. Os policias percorriam o bairro logo de manhãsinha e arrancavam das paredes os pequenos cartazes côr de violeta; mas pelo meio dia elles tornavam a apparecer espalhados pelo chão. Da cidade vieram policias da secreta que ás esquinas espiavam os menores movimentos dos operarios que iam e vinham, animados, alegres, pelas ruas. Era um prazer disfructar a impotencia da policia; até a gente de idade dizia, sorrindo: --Tem graça isto! Pavel e André quasi não dormiam. Regressavam a casa, palidos, fatigados, pouco antes do apito da fabrica soltar a sua estridula chamada. Pélagué sabia que elles organisavam reuniões na floresta, no pantano; não ignorava que a policia trabalhava para abafar o movimento, chegando até a prender alguns operarios; compreendia que todas as noites o filho e André se arriscavam a serem presos, e chegava a pensar que talvez isto fosse melhor. Em volta do assassinio de Isaías tinha-se feito um silencio extraordinario. A policia interrogou a principio umas dez pessoas; depois desinteressou-se do assunto. Um dia, Maria Korsounova, que vivia em paz com a policia como com toda a gente, dizia: --É lá possivel encontrar o criminoso!... N’aquella manhã mais de cem pessoas viram o Isaías, e pelo menos noventa tel-o-iam esganado de bôa vontade. ...André transformava-se a olhos visto. As faces tinham-se-lhe encovado; as palpebras descaíam-lhe cerrando-lhe os olhos; sorria menos; das narinas descia-lhe uma ruga até ao canto dos labios. Todavia entusiasmava-se mais, falando do futuro, da festa luminosa e deslumbrante do triunfo da liberdade e da razão. Falando de Isaías, declarou: --Quanto mais penso n’elle, mais dó me causa. Não queria que o matassem, não! não queria! --Acaba com isso! disse Pavel. Pélagué acrescentou: --Houve quem topasse n’um tronco pôdre, que se desfez em pó. ...Chegou emfim o dia tão impacientemente desejado: o primeiro de maio. Como de costume, o apito da fabrica fez-se ouvir auctoritario, implacavel. Pélagué levantou-se d’um salto e foi accender o samovar, que ficára preparado de vespera. --Ouves, Pavel? Chamam por nós... disse André. --E nós levantamo-nos! respondeu Pavel alegremente. --Já faz sol... e as nuvens vão-se embora. Seriam de mais, hoje! Ao vêl-o perto de si, a velha supplicou-lhe: --Meu André, não te afastes d’elle! --Está dito! Andaremos sempre juntos. Descanse. --Que estão a dizer? perguntou Pavel. --Nada. É a mãe que quer que eu me lave mais que de costume, porque as raparigas hoje vão olhar muito para mim! Pélagué pensava: «Elles agora estão de brincadeira; mas o que acontecerá ao meio dia?» Á meza, tomando o chá, André contou: --Quando eu era um garoto de dez annos, tive um dia a ambição de apanhar um raio de sol com o meu copo. Parti o copo, cortei a mão, e levei pancada. Saí depois para o pateo, e como o sol se reflectisse n’uma poça d’agua, saltei n’ella aos pulos. Levei mais pancada porque fiquei coberto de lama. Berrei para o sol: «Isto não faz mal! seu diabo ruivo! isto não faz mal!» E deitei-lhe a lingua de fóra, por vingança. --Porque lhe chamavas diabo ruivo? --Defronte de nós morava um ferreiro de cara vermelhaça e barba ruiva; era um rapagão sempre alegre; e eu achava que o sol se parecia com elle. Pélagué exclamou: --Ora esta! Pois não seria melhor que falassem do que vão fazer? --Está tudo organisado! replicou o filho. --No caso de sermos presos, mãesinha, o Nicolao Ivanovitch virá dizer-lhe o que tem a fazer, auxiliando-a em tudo. O apito da fabrica tinha tocado de novo, mas dir-se-ia já menos firme, como receoso. Pavel aventou: --Se fossemos para a rua?... --Não. Deixa-te estar em casa até á hora... aconselhou André. Para que has de atrahír a attenção da policia, que te conhece perfeitamente? ...Fédia Mazine entrou radiante. --O povo já se mexe... Pelas ruas, as caras andam severas como machados. Vessoftchikof, Vassili Goussef e Samoílof estão á porta da fabrica e falam aos operarios... Muitos já voltam para casa. Vamos! são dez horas. --Vamos! disse Pavel, resoluto. Pélagué exclamou: --Arde de impaciencia, como uma vela ao vento! Levantou-se e passou logo á cosinha para vestir-se. --Que vae fazer, mãe? --Arranjar-me para ir tambem! André lançou um olhar a Pavel, puxando pelo bigode. Rapidamente, elle foi ter com a mãe. --Não falarei comtigo, nem tu comigo. Está combinado? --Está combinado! Deus os acompanhe! XXVIII Quando na rua ella ia ouvindo o murmurio das vozes, quando via por toda a parte, nas janellas, ás portas das casas, grupos que seguiam com o olhar André e Pavel, o coração ora parecia brilhar-lhe, ora toldar-se de uma nuvem opaca. Ouviam-se frases soltas: --Ali vem os commandantes do exercito! --Sabemos lá quem são os commandantes?!... --Isto não foi por mal. --Se a policia os agarra, estão perdidos! --Isso agarra ella! Um grito agudo, de mulher, partiu d’uma janella. --Estás doido? És pae de familia!... Elles são solteiros! Ao passarem defronte da casa de um tal Zossimof, operario inhabilitado que vivia d’uma pensão da fabrica, elle chegou á janella e berrou: --Ó Pavel, olha que te cortam a cabeça, como a um salteador! André e Pavel pareciam não ver, não ouvir nada. Caminhavam, calmos, sem pressa, falando em voz alta de varios assuntos. Encontrando Mironof, homem d’idade, modesto, respeitado pela vida exemplar que levava: --Tambem não trabalha hoje, Danilo Mironof? perguntou Pavel. --A minha mulher está com as dôres do parto... e depois... anda uma coisa no ar... Dizem que os srs. querem fazer escandalo, partir os vidros da fabrica... --Não somos uns bebados! exclamou Pavel. André explicou: --Atravessaremos apenas as ruas, levando bandeiras e cantando o hymno da liberdade. Oiça o nosso hymno, que elle lhe ensinará as nossas crenças. --Já as conheço... E vendo Pélagué: --Tambem tu? --Devemos caminhar com a verdade, mesmo á beira da cova. --É isso! Aqui está porque dizem que tu levas folhetos proíbidos para a fabrica. --E quem o diz? perguntou Pavel. --Toda a gente. Adeus... adeus... Não façam algum disparate. Pélagué poz-se a rir baixinho: envaidecia-a que assim falassem d’ella. O filho disse-lhe: --Mettem-te na cadeia, mamã. --Quem me dera! Á esquina d’uma pequena praça, á entrada de uma rua estreita, umas cem pessoas cercavam Vessoftchikof, que discursava. --Espremem-nos para nos tirarem o sangue, como espremeriam um limão para lhe tirarem o succo. --É verdade! responderam algumas vozes que se confundiram depois no confuso ruido. --Faz o que pode, o pobre rapaz! disse André. Vou ajudal-o. Approximou-se do grupo, abaixou-se, penetrou n’elle como um sacca-rôlhas e começou: --Companheiros! Dizem que ha na terra toda a especie de povos: judeus e allemães, francezes, inglezes, tartaros. Mas não creio que assim seja. Ha só duas raças, dois povos irreconciliaveis: os ricos e os pobres. Os vestuarios são differentes, as linguas tambem; mas quando se vê como os senhores tratam o povo, compreende-se que elles são verdadeiros carrascos para os miseraveis, uma especie de espinha atravessada na garganta. Rebentou uma gargalhada. O ajuntamento augmentou; os ouvintes estendiam o pescoço, punham-se nos bicos dos pés. --No estrangeiro, os operarios já compreenderam esta simples verdade. E hoje todos confraternisam n’este luminoso dia primeiro de maio. Deixam o trabalho, e saem para a rua, para se verem, para medirem a sua grande força. Hoje formam um coração unico, porque todos os corações têem a consciencia da força do povo operario, porque a amisade os une, estando cada qual disposto a sacrificar a vida luctando pela felicidade de todos, pela liberdade, pela justiça a todos! --A policia! gritou alguem. Dez guardas a cavallo voltaram a esquina proxima e dirigiram-se para o ajuntamento, de chicote no ar, e intimando: --Nada de ajuntamentos! --Girem! --Que conversas eram essas? --Quem falava? As fisionomias annuviaram-se: todos davam passagem aos cavallos; alguns treparam a uns tapumes. Depois veio a troça. --Olhem: montaram uns porcos a cavallo, e elles grunhem: «Nós tambem damos ordens!» André ficou sósinho no meio da rua. Dois cavallos avançaram para elle, ao mesmo tempo que Pélagué o agarrava, dizendo-lhe: --Prometteste não abandonar o Pavel, e vens expôr-te assim!... ...Chegaram afinal á grande praça, ao centro da qual se erguia a egreja. No largo havia umas quinhentas pessoas, movendo-se impacientes. --Mitia! supplicava uma voz feminina. Tem cuidado em ti! --Deixa-me em paz! A voz amiga e grave de Sizof dizia, calma e persuasiva: --Não! não devemos abandonar os rapazes. Teem mais juizo do que nós, e mais audacia. Quem foi que se metteu no caso do kopeck para o pantano? Foram elles. Não nos esqueçamos. Estiveram na cadeia por causa d’isso, mas todos nós aproveitámos da sua coragem! O rugido do apito da fabrica supplantou o ruido das conversas. A multidão estremeceu; muitos empallideceram. --Companheiros! gritou Pavel. A seu lado, a mãe tremia. Decorridos instantes, quando tudo caíra em silencio: --Irmãos! Chegou a hora de renegarmos d’esta vida cheia d’aridez, de trevas e de odio, esta vida de oppressão em que não ha um logar para nós, em que não somos homens! Companheiros! resolvemos declarar hoje, abertamente, quem somos, desfraldando a nossa bandeira, a bandeira da razão, da verdade, da liberdade! Um pao de bandeira comprido e branco for levantado ao ar, tremulando n’elle, como uma ave vermelha, a bandeira do povo operario. Pavel estendeu o braço, gritando: --Viva o povo operario! Centenares de vozes lhe responderam em unisono. --Viva o nosso partido, companheiros! Viva a liberdade do povo russo! Mazine, Samoílof, os dois Goussef tinham-se postado junto de Pavel; Vessoftchikof ia empurrando quem lhe impedia o caminho até elle. Pélagué, trémula, com os olhos cheios de lagrimas, agarrou-lhe novamente n’uma das mãos, balbuciando: --Sim!... é a verdade!... meus amigos! Elle contemplava a bandeira, rugindo palavras vagas, e com a outra mão estendida para o símbolo da liberdade. Depois abraçou-se a Pélagué, rindo. --Companheiros! começou então André, dominando o sussurro com a sua voz meiga, potente e cantante. Erguemo-nos em honra d’um novo Deus, do Deus da luz e da verdade, da razão e da bondade! Partimos para a cruzada, companheiros, e o caminho será comprido e difficil. O fim está distante, e os espinhos estão proximo. Queremos ao nosso lado os que vejam o fim e creiam no bom exito; os outros não, porque só os esperam o pezar e o soffrimento. Entrae nas fileiras, companheiros! Viva o primeiro de maio, a festa da humanidade livre! Pavel ergueu a bandeira. --_Reneguemos do velho mundo!_ cantou Fédia Mazine com voz sonora. A resposta veio logo como uma enorme vaga potente: --_Saccudamos a poeira dos pés!_ Pélagué, com um sorriso ardente, via por cima da cabeça de Fédia, o filho e a bandeira. No meio das vozes mais proximas que entoavam o hymno, chegava-lhe aos ouvidos a de André: Ergue-te, ergue-te, ó povo operario! Revoltae-vos, esfomeados!... E o povo corria, apertava-se, avançando para a bandeira, proseguindo no hymno, que em voz baixa tinha sido aprendido em casa. Corramos para aquelles que soffrem... Um rosto de mulher, meio jubiloso e meio assustado, surgiu ao lado de Pélagué. --Mitia, onde vaes? E a velha respondeu: --Deixe-o lá! Não lhe dê cuidado! Eu tambem tinha mêdo, d’antes. O meu está á frente de todos. Aquelle que tem na mão a bandeira é o meu filho! A outra porem continuava: --Ó desgraçado! que fazes? Os soldados estão ali adiante! --Não se assuste! Isto é uma missão sagrada! Até Jesus não teria existido, se não houvesse homens que morreram por sua causa! Sizof appareceu perto d’ella, agitando no ar o boné, ao compasso do hymno: --Isto é que é bem ás claras! ãn? Inventaram um hymno que é mesmo lindo! ãn? O tzar quer soldados na tropa: Vossos filhos lhes daes... --Não teem medo de nada! exclamou Sizof. O meu filho está na cova... Foi a fabrica que o matou! Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido! A multidão, allucinada, nem olhava para traz de si, com os olhos fitos na bandeira vermelha, que balouçava ao vento. --Bello côro! bravo, rapaz! berrava um entusiasta; e invadido por um sentimento, que não sabia exprimir, desatou a rogar pragas. D’uma janella partiu uma voz de canna rachada: --Hereticos! Revoltarem-se contra Sua Majestade o Imperador! contra o tzar! Mas o hymno continuava, firme, altivo. Pélagué, que no meio dos encontrões, fôra sendo empurrada para distante do centro do grande ajuntamento, ouvia então frases soltas: --Perto da escola está uma companhia de soldados, e outra na fabrica... --O governador já chegou... --O quê? é verdade? --Vi-o com os meus olhos! --Ainda bem! Começam a ter medo de nós! Já nos mandam soldados, e o governador. As vozes do côro foram enfraquecendo; dir-se-ia um movimento de recúo. Alguns iam-se calando. Aqui e ali havia quem tentasse animar de novo o hymno moribundo. Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido! Ao inimigo, ó gente esfaimada! Pélagué não podia ver o que se passava no centro; abrindo á força caminho, notou que a multidão tendia a dispersar, de cabeça baixa, sobrolhos franzidos, com as narinas contrafeitas. Ouviam-se já alguns assobios trocistas. --Companheiros! gritava Pavel. Os soldados são homens como nós. Não nos farão mal. Porque haviam de fazel-o? Porque levamos a liberdade a todos? Mas precisam tambem da nossa verdade. Não compreendem ainda, mas tempo virá, e muito em breve, em que entrarão nas nossas fileiras, em que já não marcharão sob o estandarte dos gatunos e dos assassinos, mas sim á sombra da nossa bandeira da liberdade e do bem! E para que elles compreendam mais depressa a nossa liberdade, caminhemos para a frente! Ávante! companheiros! ávante! A sua voz era firme, mas o rebanho dispersava. XXIX Pélagué distinguiu á entrada da rua um como pequeno muro, cinzento baixo, composto de seres humanos sem fisionomia e que tapavam a saída da praça. Era este muro que infundia o receio em toda aquella gente. --Companheiros! continuava Pavel. A vida inteira está na nossa frente! Não temos outro caminho! Cantemos! P’rá frente! Respondeu-lhe um silencio esmagador. A bandeira ergueu-se, balouçou, e agitando-se por sobre as cabeças, apontou para o muro cinzento dos soldados. Pélagué estremeceu, fechou os olhos e suspirou: apenas quatro pessôas se tinham destacado da multidão e avançavam: Pavel, André, Samoílof e Mazine. Ouviu-se a voz trémula de Fédia, cantando: --«_Sois as victimas prostradas!..._» --_Na grande lucta fatal!_ continuaram duas vozes como dois suspiros abafados. E uma voz de commando chegou aos ouvidos de alguns: --Cruzar baionetas! O muro cinzento agitou-se, as baionetas fuzilaram no ar, na direcção da bandeira. --Marche! --Ahi veem elles! exclamou um vesgo que estivera proximo de Pélagué; e mettendo as mãos nas algibeiras, afastou-se com grandes pernadas. Os soldados avançavam em fila, de baioneta calada. Pélagué approximou-se do filho, com as mãos no peito e viu André collocar-se na frente d’elle, como para protegel-o. --Ao meu lado, companheiro! ordenou Pavel. Com as mãos nas costas, André cantava, de cabeça erguida, avançando sempre. Pavel deu-lhe um encontrão com o hombro, exclamando: --Aqui! ao meu lado! Não tens o direito de ir á minha frente! O primeiro deve ser o porta-bandeira! --Dis... per... sae!... gritava um officialsito com voz aguda, de sabre no ar, marchando sem dobrar os joelhos e batendo com os tacões, raivoso. A seu lado, um pouco atraz, marchava pesadamente um homem muito alto de farto bigode branco, com uma grande capa cinzenta, debruada de vermelho, e as amplas calças listradas de amarello. Como o russo-menor, caminhava com as mãos nas costas. Tinha os olhos cravados em Pavel. Os da bandeira e os soldados iam-se approximando; estes, no seu caminho, iam fazendo dispersar a multidão sem lhe tocar. --Salve-se quem puder! --Vem, Vlassof! --Para traz, Pavel! --Dá cá a bandeira, Pavel! dizia Vessoftchikof. Eu a escondo. E deitou-lhe a mão. --Deixa! berrou Pavel. O bexigoso retirou logo a mão, como se se tivesse queimado. O hymno cessára de todo. Os rapazes pararam, envolvendo Pavel n’um circulo, que elle acabou por transpor. Sob a bandeira haveria, quando muito, uns vinte homens; mas firmes. --Tenente, prenda aquelle! ordenou o velho alto apontando para Pavel. O officialsito accorreu logo, e agarrou no pao da bandeira. --Dá cá isso! --Não! Abaixo os oppressores do povo! A bandeira tremia; inclinava-se ora para a direita, ora para a esquerda, ficando depois erecta. Vessoftchikof passou pela frente de Pélagué, com o braço erguido, de punho cerrado, e com uma rapidez que ella não lhe conheceu. --Agarrem todos! berrou o velho, batendo com o pé. Alguns soldados avançaram, um d’elles com a coronha no ar; a bandeira estremeceu, baixou e desappareceu no grupo cinzento. Pélagué soltou um grito, um rugido que não tinha nada de humano. Aos ouvidos chegou-lhe a voz do filho: --Até á vista, mãe! até á vista! «Está vivo! não se esqueceu de mim!» taes foram os seus dois rapidos pensamentos. Poz-se nos bicos dos pés e conseguiu ver a cara de André. --Meus filhos, meus queridos filhos! André! Pavel! E elles iam dizendo: --Até á vista, companheiros! Algumas vozes lhes responderam, mas não em unisono; vinham das janellas, dos telhados, não se sabia d’onde. XXX Alguem deu um empurrão em Pélagué. Atravez do nevoeiro que lhe toldava os olhos, viu diante d’ella o officialsito, que lhe gritou: --Vae-te d’aqui, velha! Mediu-o com o olhar d’alto a baixo, viu-lhe aos pés o pao da bandeira partido em dois; a um dos pedaços estava preso um resto da bandeira. Abaixou-se para apanhal-o. O official arrancou-lho das mãos, lançou-o para distante, e ordenou de novo: --Vae-te, velha! Do meio dos soldados partiu o estribilho: --_Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido!_ O official retrocedeu, rapido, e esganiçou-se, ordenando: --Façam-os calar! Krainof... Vacilante, Pélagué apanhou outra vez o destroço da bandeira. A dez passos d’ella formára-se novo ajuntamento. Urravam, grunhiam, assobiavam, recuando lentamente, e dispersando para os pateos visinhos. --Vae para o diabo! berrou um soldado, empurrando Pélagué para cima do passeio. Para não caír, porque os joelhos vergavam, ella caminhava apoiada ao destroço da bandeira, ouvindo sempre atraz de si os soldados. Até que estes passaram-lhe á frente. Parou. Á entrada da rua, um cordão de tropa impedia a passagem para a praça, que ficára deserta. Quiz voltar para traz, mas sem saber o que fazia, continuou para a frente; metteu-se por uma ruasinha estreita. Parou de novo. Ao longe, o povo susurrava. A ruasita quebrava perto d’ella para a esquerda. N’um grupo compacto discutia-se. --Não é por insolencia que elles affrontam as baionetas, irmãos! --Viram, ãn! Os soldados a marcharem sobre elles, e elles impassiveis! sem medo! --Que valente é o Pavel Vlassof! --E o russo-menor! --Meus amigos! boa gente! exclamou ella, avançando. --Olhem: traz na mão o resto da bandeira! --Cala-te! ordenou uma voz severa. Ella estendeu o braço, com um gesto largo. --Escutem, em nome de Jesus! Sois todos dos nossos, gente sincera. Abride os olhos... olhae sem receio... O que se passou? Os nossos filhos levantam-se, pacificamente... Os nossos filhos, o nosso sangue, levantam-se em nome da verdade, abrem lealmente um caminho novo, largo, direito, destinado a todos... Por todos vós, pelos vossos filhos, empreendem uma cruzada... dirigindo-se para um mundo cheio de encanto. Em nome de todos e pelo nome de Christo, caminham contra todas as coisas por meio das quaes os maos, os mentirosos, os rapinantes, nos prendem, nos estrangulam prisioneiros. Meus amigos! é pelo povo, pelo mundo inteiro, por todos os opprimidos que os nossos filhos se sublevaram. Não os abandoneis, não os renegueis, não deixeis os vossos filhos seguirem sósinhos a sua estrella. Tende piedade de vós mesmos... amae-os... compreendei aquelles corações juvenis... tende confiança n’elles. Fatigada, avergou. Alguem amparou-a. --É Deus que a inspira! disse um d’elles. É Deus que a inspira, amigos! Escutem-na! Outro lamentou-a: --Ah! está-se matando! --Não se está matando, não, idiota! A nós é que fére, fica sabendo! A mesma voz aguda e anciosa tornou a fazer-se ouvir: --Christãos! O meu Mitia... A sua alma é pura... O que fez elle? Seguiu os seus companheiros muito queridos. Fez bem. Por que abandonaes os nossos filhos? Que mal fizeram elles? Sizof disse a Pélagué: --Volta para casa... Vae... Estás arrazada! Passando depois pelo auditorio o olhar severo: --O meu filho Matwei foi esmagado, na fabrica, bem sabeis. Mas se vivesse, eu proprio o teria mandado entrar nas fileiras d’aquelles... Ter-lhe-ia dito. «Vae com elles, vae, porque defendem uma causa justa, uma causa santa!» É um velho quem lhes está falando. Conhecem-me todos. Ha trinta e nove annos que trabalho aqui... ha cincoenta e sete que vivo n’este mundo. O meu sobrinho, um bello rapaz, intelligente e honrado, foi preso hoje outra vez. Ia tambem á frente de todos com o Vlassof, ao lado da bandeira. E pegando na mão de Pélagué: --Esta mulher disse a verdade. Os nossos querem viver com honra, segundo o que manda a razão; e nós... nós abandonamol-os! Vae para casa, minha velha, vae! --Meus amigos, a vida é para os nossos filhos! é para elles a terra! disse ella passando pela multidão o olhar toldado de lagrimas. --Vae, Pélagué, vae... Toma o teu arrimo! E deu-lhe o destroço da bandeira. Olhavam para a velha com respeitosa tristeza; seguiu-a um murmurio de compaixão. Sem falar, Sizof abria-lhe caminho; e o povo afastava-se sem protesto, obedecendo a uma força inexplicavel, trocando em voz baixa breves palavras de lamento. Ao chegar á porta de casa, Pélagué voltou-se para elles, e disse com muito reconhecimento: --Obrigada a todos! E accrescentou: --Nosso Senhor Jesus Christo não teria vindo ao mundo, se os homens não morressem pela sua gloria! A multidão olhou para ella em silencio. Quando Pélagué entrou em casa acompanhada por Sizof, houve ainda na rua algumas frases em que a reflexão dominava... Depois todos dispersaram, vagarosos. SEGUNDA PARTE I ...O resto do dia passou n’um nevoeiro entrecortado de recordações, n’uma fadiga extrema que opprimia corpo e alma. Como uma sombra pardacenta, o officialsito saltitava sob os olhares da velha, e em negro redemoinho movediço luziam o rosto bronzeado de Pavel e os olhos risonhos de André... A velha ia e vinha pelo quarto, sentava-se junto da janella, olhava para a rua, tornava a levantar-se e franzia o sobrolho; sentia-se estremecer, relanceava os olhares em torno; e com a cabeça esvaída, procurava o que quer que fôsse, sem mesmo saber o que queria... Bebeu agua sem acalmar a sêde, sem extinguir no coração o ardente brazeiro de angustia e de humilhação que toda a consumia. Aquelle dia apresentava-se-lhe dividido em duas partes. A primeira tinha uma significação, um conteúdo, mas a segunda era como se se evaporasse, era um vacuo absoluto. Pélagué não encontrava resposta á pergunta tremente de perplexidade que a si propria apresentava: --Que havia de fazer... agora?... Maria Korsounova appareceu então. Poz-se a gesticular com força, gritou, chorou, bateu o pé, alvitrou e prometteu qualquer coisa, ameaçou quem quer que fôsse. Mas tudo aquillo não conseguiu impressionar sequer a outra. --Ah! dizia a voz destemperada de Maria, assim como assim, o povo mexeu-se d’esta vez... Ahi a teem em revolta, toda a fabrica! --É verdade, é, respondeu baixinho Pélagué, meneando a cabeça. E com o olhar fito, considerava quão longe ficára o passado e tudo o que d’ella se afastára com André e com Pavel. Não podia chorar. Tinha o coração confrangido mas arido; os labios seccos tambem, como a garganta. Tremiam-lhe as mãos e tinha arrepios gélidos pelas costas. Mas subsistia n’ella uma scentelha de colera, fixa, cravada no coração qual agulha. E a tal intimo instigamento respondia ella com uma promessa de fria reflexão: --Esperem um pouco!... E então, tossindo ruidosamente, franzia as sobrancelhas. Pela noite, veio a policia. Recebeu-os sem admiração nem temor. Entraram pela casa dentro fazendo muita bulha, com ares satisfeitos. O official de pelle amarellada disse, mostrando os dentes: --Então como vae isso? É esta a terceira vez que nos encontramos, an? Ella ficou-se em silencio e passou a lingua pelos beiços para humedecel-os. Entrou então o official a falar muito, em tom de pessoa fina. E Pélagué percebia que elle falava pela satisfação de se ouvir a si proprio. Mas as palavras nem lhe chegavam aos ouvidos nem a impressionavam. No entretanto, quando o official lhe disse: --Tu propria tens culpas, porque não soubeste inspirar a teu filho o respeito a Deus e ao Imperador... Respondeu sem o fitar: --Os nossos filhos é que são os nossos juizes... Elles hão de condemnar-nos, e com toda a razão, visto que os deixámos seguir tal caminho... --O quê? gritou o official, fala mais alto! --Digo que os nossos juizes são os nossos filhos! repetiu com um suspiro. O outro poz-se então a discorrer em voz rapida e irritada, mas as frases precipitavam-se e não commoviam a velha. Citada como testemunha, Maria Korsounova ficára de pé ao lado de Pélagué, para quem nem olhava. Quando o official lhe fazia qualquer pergunta, inclinava-se logo muito baixo e respondia em voz monotona: --Não sei, Excellencia! Sou uma pobre mulher ignorante, só trato do meu negocio... Graças á minha estupidez, nada sei... --Cala-te d’ahi! ordenou o official retorcendo os bigodes com violencia. --A mulher inclinou-se, e logo, fazendo-lhe um gesto de provocação que elle não viu, murmurou: --Toma, guarda lá este! Mandaram-lhe que revistasse a velha. Pestanejou primeiro; depois fitou o official, com os olhos muito abertos. E declarou com voz submissa: --Mas eu não sei fazer isso, Excellencia! O official bateu o pé, zangado. --Está bem... Desabotoa-te, Pélagué, disse Maria. E muito córada, passou a revolver e a apalpar o fato da outra, commentando baixinho: --Ein? que corja! --O que é? gritou o official desabridamente, e insinuou o olhar, desconfiado, pela abertura por onde Maria se desempenhava da tarefa. --Nada, Excellencia, não é nada; coisas que só nós usamos... murmurou Korsounova timidamente. Ao ordenar-lhe o official que assignasse o auto de investigação, Pélagué traçou estas palavras n’uma calligrafia desconforme, em grandes letras garrafaes: «Pélagué Nilovna Vlassof, viuva d’um operario». --Que escreveste tu ali? Porque escreveste aquillo? prorompeu o official, de sobrecenho carregado e em tom de desdem; e accrescentou com um riso de mofa: Que selvagens! Retiraram-se os guardas. A mãe foi pôr-se deante da janella. Com os braços cruzados no peito; para ali ficou muito tempo, olhando sem vêr. Desfranzira as sobrancelhas, e comprimia os labios. Ao mesmo tempo, apertava as maxillas de encontro uma á outra, com tal força, que dentro em pouco ficou com dôr de dentes. Acabára-se o petroleo do candieiro, a luz ia a sumir-se, crepitando. Soprou-a de vez e ficou ás escuras. A colera e a humilhação de havia pouco desappareciam n’ella; agora era uma nuvem negra e fria de angustia e de louco terror, que toda a penetrava, que lhe enchia o peito, difficultando-lhe o pulsar do coração. E immovel permaneceu, até sentir cansados os olhos e as pernas. Ouviu então sob a janella, Maria parar e gritar-lhe com voz avinhada: --Pélagué! Estás a dormir? Minha pobre Pélagué!... Dorme, dorme! Todos estão soffrendo os mesmos enxovalhos,--ouves?--todos! Deitou-se sobre a cama, sem se despir, e caíu em somno profundo, como quem rola para um precipicio. Em sonhos, viu-se junto do montículo de saibro amarello que ficava para lá do pantano, no caminho que conduzia á cidade. Ali, no cume da encosta, que dava accesso ás pedreiras d’onde se extraía a areia, Pavel cantava em voz doce, mas com uma voz que era a mesma de André: Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido... Pélagué passou por diante do monticulo e contemplou seu filho, ao mesmo tempo que levava a mão á fronte. Destacava-se nitidamente o perfil do rapaz no fundo azul do ceu. Mas a mãe sentia vergonha em approximar-se d’elle, pois que estava gravida. E levava ao colo, outra criança. Proseguiu no seu caminho. Pelos campos, havia outras creanças a brincar com uma bolla; eram muitas, as creanças, e a bolla era vermelha. O pequenito que tinha nos braços queria ir brincar com os outros e entrou a fazer grande berreiro. Deu-lhe de mammar e voltou pelo mesmo caminho. O monticulo estava já então occupado por muitos soldados que lhe apontavam as baionetas. Deitou a fugir em direcção a uma egreja edificada em meio dos campos, uma egreja muito branca, altissima e de levissima construcção, como se fôsse formada de nuvens. Lá dentro, cantavam-se responsos; o caixão era grande, preto, hermeticamente fechado. Padre e acolyto, vestiam alvas d’immaculada brancura, e entoavam: «Christo ressuscitou d’entre os mortos...» O acolyto agitou o turíbulo e, ao avistar Pélagué, sorriu-lhe. Tinha os cabellos ruivos e uns modos prazenteiros, assim como Samoílof. Da cupula caía raios de sol em verdadeiras toalhas. E, no côro, crianças repetiam a meia-voz: «Christo ressuscitou d’entre os mortos»... --Prendam-nos! gritou subitamente o padre, estacando a meio da egreja. A alva que vestia tinha desapparecido e no rosto surgia-lhe um bigode grisalho e espesso. Todos se puzeram em fuga, até mesmo o acolyto, que atirára para longe o turíbulo e apertava a cabeça entre as mãos, como o russo-menor costumava fazer. A mãe deixou caír a criança sob os pés dos fieis que se afastavam evitando-a, com olhares de temor para o pequenino corpo nu. Ella caíra de joelhos e gritava: --Não abandonem a criança! Salvem-na... E, de mãos atraz nas costas, com um sorriso nos labios, o russo-menor proseguia cantando: --«Christo ressuscitou d’entre os mortos!...» Pélagué abaixou-se, agarrou na criança, pôl-a n’um carrinho ao lado do qual Vessoftchikof ia caminhando vagarosamente. Este ria, dizendo: --Sempre me deram um trabalhão!... Percorriam uma rua muito suja. Pelas janellas, havia gente que assobiava, gritava, gesticulava. --O dia estava claro, brilhava o sol com ardor; não havia uma nesga de sombra, em parte alguma. --Cante, cante, tiasinha! disia o russo-menor. É a vida, isto! --E ia cantando sempre, dominando tudo com a sua boa voz sonora e jovial. A mãe seguia-o, lamentando-se. --Porque está elle a mangar comigo? N’isto, recuou; mas logo se sentiu despenhar para um grande abysmo sem fim, que escachoava com estrondo... Accordou em sobresalto, toda a tremer, banhada de suores; apurou o ouvido, perscrutando-se. Estupefacta, sentiu vasio o proprio peito. Parecia-lhe que mão desconhecida, ferrenha, lhe esquadrinhára o seio e, tendo-se-lhe apoderado do coração, lho estava a apertar brandamente, como em cruel brinquedo. O silvo da fabrica uivava teimosamente. Pelo som, calculou que fôsse já a segunda chamada. Reinava a desordem no quarto; livros e fatos jaziam de mistura, no sobrado emporcalhado; tudo em confusão. Levantou-se, cuidou dos arranjos, sem se lavar, sem mesmo rezar. Na cosinha, encontrou um pao que ainda conservava amarrado um farrapo encarnado; pegou n’elle e, irritada, esteve para atiral-o para debaixo do fogão; mas, suspirando, tirou e dobrou cuidadosamente o pedaço de panno vermelho e meteu-o na algibeira. Em seguida, procedeu a uma grande lavagem ao sobrado e á janella. Acabou de vestir-se, arranjou o samovar e depois foi sentar-se ao pé da janella da cosinha, a repetir a si mesma a pergunta da vespera: --Que se ha de fazer? Mas lembrou-se que ainda não tinha orado; postou-se por alguns momentos diante das imagens santas, e depois tornou a sentar-se. No logar do coração tinha um vacuo. O proprio pendulo do relogio, ordinariamente tão agil, dir-se-ia ter afroixado o seu tic-tac precipitado. As moscas zumbiam hesitantes e debatiam-se estonteadas de encontro ás vidraças... Reinava em todo o bairro um silencio singular; parecia que toda aquella gente, que na vespera tanto gritára pelas ruas, se tivesse escondido em suas casas para reflectir em silencio n’aquelle extraordinario dia. De subito, Pélagué recordou-se de uma scena que presenciára uma vez, quando era rapariga: no velho parque dos senhores Zoussailof havia um vasto tanque todo esmaltado de nenufares. Por ali passára em um dia d’outono nevoento e triste; a meio da laguna, um barco jazia, como que estatico na agua tranquilla e sombria, salpicada de folhas amarellecidas. E d’esta embarcação sem remos nem remadores, solitaria e immovel na agua opaca, entre folhas mortas, provinha funda melancolia, um pezar mysterioso. Pélagué permanecera ali muito tempo, procurando adivinhar quem impellira a canoa para longe da margem e porquê... Afigurava-se-lhe agora ser ella mesma igual á barquinha que outr’ora a levára a pensar n’algum esquife á espera do cadaver. N’esse mesmo dia, á noite, viera a saber-se que a esposa do intendente se havia afogado,--uma mulhersinha de modos saccudidos, os cabellos pretos sempre em desalinho... Passou a mão pelos olhos, como para expulsar taes recordações, mas logo o pensamento indeciso e horrorisado lhe deslisou brandamente para as impressões da vespera, dominadoras. Com os olhos apegados á chavena de chá, que lhe arrefecia na frente, conservou-se longamente immovel, sentindo nascer-lhe na alma o desejo de falar com quem quer que fôsse, sincero e intelligente, para lhe perguntar innumeras coisas. E, como de proposito para realisar o seu desejo Nicolao Ivanovitch appareceu pela volta da tarde. Ao vêl-o, apoderou-se d’ella brusca inquietação. Com voz sumida, disse sem responder aos cumprimentos de Nicolao: --Ah! tiosinho; fez mal em vir até aqui! É uma imprudencia; se o vêem, prendem-no! Depois de lhe ter apertado a mão com energia, Nicolao Ivanovitch segurou melhor os oculos no nariz, e ao ouvido d’ella, explicou-lhe rapidamente, em voz baixa: --É que nós tinhamos combinado, o André, o Pavel e eu, que se os prendessem, eu havia de vir buscal-a logo no dia seguinte, para a levar para a cidade. Vieram cá fazer alguma busca? --Vieram; revolveram tudo; até me apalparam. Essa gente não tem consciencia nem pudor! --E porque o haviam de ter? retorquiu Nicolao com um encolher d’hombros; e logo lhe expoz as razões por que era conveniente que ella passasse a residir na cidade. A outra escutava aquella voz amiga, cheia de sollicitude, fitava aquelle rosto de resignado sorriso e sentia-se admirada da confiança que tal homem lhe inspirava. --Uma vez que o Pavel assim decidiu, e se não o incommodo... disse. --Não pense n’isso, interrompeu elle logo. Vivo sósinho, minha irmã só raramente apparece... --Mas é que eu quero trabalhar, quero ganhar o meu sustento! --Pois se quer trabalhar, ha de se lhe encontrar trabalho, descanse! Para ella, a idéa do trabalho relacionava-se indissoluvelmente com a especie de actividade a que se entregavam seu filho, André e os mais companheiros. Approximou-se de Nicolao e perguntou-lhe fitando-o muito: --Parece-lhe?... --Pois está claro! A casa não é grande, e quando a gente vive só... --Não lhe falo d’isso, falo-lhe da nossa grande empreza... explicou em voz baixa. --E soltou um suspiro triste, melindrada por não ter sido compreendida. Nicolao ergueu-se e, franzindo os olhos myopes n’um sorriso, declarou em tom de gravidade: --Pois para a grande causa, tambem ha-de ter que fazer, se quizer... Uma idéa simples e clara formára-se subitamente no espirito d’ella. Já uma vez conseguira auxiliar Pavel; talvez o conseguisse de novo. Quanto mais gente houvesse a trabalhar por tal causa, tanto mais clara se tornaria aos olhos de toda a gente a razão que a Pavel assistia em defendel-a. E ao mesmo tempo que analisava a fisionomia bondosa de Nicolao Ivanovitch, esperava ella que este lhe falasse compassivamente de Pavel, de André e d’ella propria. Mas o outro limitou-se a acrescentar, acariciando a barba, como que absorto: --Veja se póde saber pelo Pavel, quando lhe falar, as moradas d’esses camponezes que pediram jornaes... --Já as sei! exclamou ella alegremente. Sei perfeitamente quem elles são e onde moram. Dê-me o jornal que eu mesma lh’o levo. Eu mesma irei procural-os e farei o que me mandar... Ninguem será capaz de suppôr que levo commigo livros proíbidos. Deus seja louvado, bastantes kilos d’elles metti na fabrica! Era como um súbito desejo de partir, de ir ao acaso, fôsse para onde fôsse, pelas estradas sem fim, por bosques e aldeias, com o cajado na mão e a alcofa ao hombro. --Não encarregue mais ninguem d’esse serviço, peço-lh’o, meu amigo, disse ella. Irei a toda a parte onde julgar preciso. Não tenha medo, que não me perderei, seja em que provincia fôr. De verão e de inverno, caminharei sem descanso... até morrer! Tornar-me-ei um apóstolo por amor da verdade. Não será digno de inveja o meu destino? Que bella vida, a do viandante! Vaguear pelo mundo, sem se possuir nada e sem se ter necessidade de coisa alguma, a não ser do pão de todos os dias; não humilhar ninguem; percorrer a terra, tranquillamente e sem que ninguem nos conheça!... Tambem eu quero viver assim!... E hei de encontrar Pavel, hei de encontrar André, hei de chegar até onde elles estiverem... Mas aqui entristeceu ao ver-se já, em pensamentos, sem lar, errante, a mendigar em nome de Deus pelas portas das cabanas... Nicolao agarrou-lhe meigamente na mão e affagou-lh’a ao calor das suas. --Havemos de falar n’isso mais tarde! declarou, olhando para o relogio. É perigosa a tarefa de que quer encarregar-se... pense bem! --Meu bom amigo! exclamou ella. Para que serve pensar? Pois se os nossos filhos, a parte mais pura do nosso proprio sangue, parcellas dos nossos proprios corações, os que mais do que tudo nos são queridos, sacrificam vida e liberdade e morrem sem contemplação por si mesmos, o que não hei de eu de fazer, eu, que sou mãe? Nicolao fez-se pallido. --Sabe que é a primeira vez que oiço falar d’essa maneira?... --Que sei eu dizer! murmurou ella, sacudindo desconsoladamente a cabeça. E os braços penderam-lhe n’um gesto de desalento. Se eu encontrasse palavras que exprimissem o que sente o meu coração de mãe!... E ergueu-se, impellida pelo ardor que n’ella se concentrava e lhe excitava no cerebro frases candentes de revolta. --... Muitos haviam de chorar... até os malvados, os entes sem consciencia... Nicolao ergueu-se e tornou a ver as horas. --Pois então, fica combinado, vem para minha casa, para a cidade! Ella abanou a cabeça, sem uma palavra. --Quando ha de ser? continuou Nicolao. O mais depressa possivel. E accrescentou com meiguice: --Vou ficar em cuidado por sua causa, palavra! Pélagué ergueu para elle um olhar admirado: que interesse podia ella inspirar áquelle homem? O outro permanecia de cabeça baixa, com um sorriso de constrangimento, myope e um tanto corcovado, no seu modesto fato preto. --Tem dinheiro em casa? perguntou sem a fitar. --Não. Com vivacidade, tirou logo da algibeira uma bolsa, abriu-a e apresentou-lh’a. --Ahi tem, tire, se faz favor... A pobre mãe esboçou involuntario sorriso e, com um meneio de cabeça, observou: --Como tudo está mudado! O proprio dinheiro já não tem valor para vocês. Ha por ahi gente capaz de tudo para o possuir, que chega até a perder a propria alma... e para vocês não passa d’uns bocados de papel... d’umas rodelas de cobre... Chega-se a imaginar que se vocês o têm é só por caridade para com os outros! --O dinheiro é na verdade desagradavel e incommodo, retorquiu Nicolao Ivanovitch, rindo. É por igual coisa enfadonha pedil-o ou dal-o!... Tomou lhe novamente da mão, apertou-lh’a fortemente. --Venha o mais depressa que possa, sim? repetiu. E, como das outras vezes, foi-se sem fazer ruido. Ao despedir-se d’elle, Pélagué pensava: --É tão bom homem!... Comtudo não teve uma palavra de compaixão... E não chegou a perceber bem se tal facto lhe era desagradavel ou se lhe causava simples admiração. II Quatro dias apóz a visita de Nicolao, punha-se Pélagué a caminho, em direcção a casa d’elle. Quando o carro que a transportava e ás duas malas, atravessou o burgo e rodou em pleno campo, voltou-se para traz ainda uma vez e sentiu n’esse instante que era para sempre que abandonava aquelle logar onde decorrera a quadra mais sombria e penosa da sua vida, onde outra existencia começara, periodo replecto de novos desgostos e de novas alegrias, em que os dias voavam velozes. Semelhante a immensa aranha d’um vermelho escuro, estendia-se a fabrica ao longo do solo sujo de fuligem, erguendo muito ao alto na atmosphera, as enormes chaminés. Em torno, amontoavam-se os casinhotos do operariado. Pardacentos e mesquinhos, formavam grupo compacto á beira do charco e pareciam entreolhar-se lastimosamente pelas suas janellinhas sem brilho. A meio d’elles erguia-se a igreja, de côr vermelha como a fabrica, com o seu campanario, que parecia menos elevado do que as chaminés da fabrica. A pobre mulher suspirou, desapertou a gargantilha do vestido, que a incommodava. Ia triste, mas de uma tristeza arida como a poeira d’uma tarde d’estio. --Para diante! resmungava o carroceiro, puxando pelas redeas. Era manco, de idade imprecisa, com uns olhos sem côr definida e uns raros cabellos de tom sujo. Bamboleando-se todo, caminhava ao lado do vehiculo, demonstrando claramente que o fim da viagem, qualquer que elle fosse, se lhe tornava totalmente indifferente. --Para diante! repetia com uma voz sem timbre, atirando por maneira caricata com as pernas cambadas, calçadas de grossas botas cheias de lama. A passageira, essa, vagueiava o olhar em torno. A desolação da planicie era tão profunda como a da sua alma... O cavallo, saccudindo lamentosamente a cabeça, enterrava as patas pela areia profunda, que rangia, froixamente requentada pelo sol. A carroça, em mau estado e com os eixos mal azeitados, chiava a cada volta das rodas. A todos estes ruidos vinha juntar-se a poeira. Morava Nicolao Ivanovitch no extremo da cidade, n’um pequeno pavilhão pintado de verde, encostado a um sombrio predio de dois andares, a caír de vetustez, em rua solitaria. Á frente do pavilhão, havia um jardim, de fórma que pelas janellas dos trez quartos mettiam-se as frescas ramadas de algumas acacias, lilazes e um ou outro alamosinho prateado. Os quartos eram aceiados e silenciosos; sombras mudas e recortadas, tremiam sem cessar nos sobrados; pelas paredes havia prateleiras carregadas de livros e alguns retratos de pessoas de modos graves e ponderados. --Parece-lhe que lhe ha de agradar isto? perguntou Nicolao, introduzindo a sua hospede n’um quarto com uma janella para o jardim e outra para o pateo coberta por espessa relva. E, n’este como nos outros quartos, guarneciam as paredes varias estantes carregadas de livros. --Antes queria ficar na cosinha. Falava assim porque lhe parecia ver em Nicolao o receio de qualquer coisa. Elle dissuadiu-a de tal proposito, mas com uns modos de constrangimento, e logo que ella renunciou a ir habitar na cosinha, tornou a mostrar-se satisfeito. Reinava em toda a casa particular atmosfera: era agradavel respirar ali, mas as vozes instinctivamente faziam-se menos ruidosas; não se sentia o desejo de falar alto, nem de perturbar a beatifica meditação das personagens que do alto das suas molduras olhavam concentradamente. --Estas plantas precisam de ser regadas, disse ella depois de tatear a terra dos vasos. --Sim, sim, concordou o dono da casa, um tanto confuso. Bem vê, gosto muito de flôres, mas não tenho tempo para tratar d’ellas. Notava Pélagué que, mesmo em sua casa, bastante confortavel aliás, Nicolao movia-se com prudencia, sem fazer bulha, como que estranho e a mil leguas de tudo o que o cercava. Ia pôr a cara mesmo em cima do que queria vêr; compunha os oculos com os dedos afusados da mão direita, assestando, por assim dizer, uma interrogação muda, a cada objecto que considerava. Dir-se-ia que fizera a viagem com a sua hospede e que tudo n’aquella casa lhe era desconhecido. Então, ao vêl-o assim distraído, Pélagué entrou a sentir-se inteiramente á vontade na sua nova habitação. Precedida de Nicolao, percorria a casa, notando de memoria o logar de cada objecto e interrogando o seu amigo sobre os seus habitos de vida, ao que este dava respostas embaraçadas, como alguem que tivesse a consciencia de não proceder como deveria, mas que não tivesse outro expediente a tomar. Regadas as plantas e reunidas em um só monte as musicas esparsas sobre o piano, deu com o samovar. --Tem de ser limpo, observou. Nicolao passou um dos dedos pelo metal embaciado pela sujidade e, pondo-o mesmo diante do nariz, observou-o com attenção. Isto fel-a rir com gosto. Quando se encontrou na cama, e depois de ter recordado as peripecias de tal dia, Pélagué deitou a cabeça fóra da roupa e poz-se a olhar em volta. Era a primeira vez na sua vida que se via em casa de um estranho. Não se sentia perturbada com esta idéa. Sollícitamente, pensou no seu hospedeiro; a si propria prometteu amenisar-lhe a existencia com um pouco de carinhosa affeição. Impressionavam-na a timidez, o feitio desgeitoso e ridiculo de Nicolao, a expressão a um tempo ingenua e séria dos seus olhos claros. E logo o pensamento lhe vôou para o filho; reviveu mentalmente os episodios do dia primeiro de maio. Esta lembrança causava-lhe uma dôr particular, como particular fôra aquelle dia: era um soffrimento que não abatia a cabeça para o solo como a pancada d’um malho, mas que torturava o coração com mil picadas e excitava surda colera, fazendo altear-se o dorso corcovado da velha. --Como é triste ter filhos para os ver partir por esse mundo fóra!... pensava. E apurava o ouvido, escutando os ruidos, desconhecidos para ella, da vida nocturna da cidade, que lhe chegavam amortecidos e atenuados pela janella aberta, por entre as folhagens do jardim, vindos de longe, a morrerem suavemente dentro do quarto. Pela manhã, cedo, procedeu á limpeza do samovar e accendeu-lhe o lume; guardou toda a loiça sem fazer barulho; depois, foi sentar-se na cosinha e esperou que o seu hospedeiro accordasse. Houve um ruido de tosse e appareceu Nicolao com os oculos na mão. Tendo correspondido aos bons dias que este lhe dirigiu, Pélagué levou o samovar para a casa de jantar, emquanto Nicolao se lavava, espalhando a agua pelo sobrado, deixando caír a todo o momento o sabonete, a escova, resmungando de continuo contra si proprio. Ao almoço, Nicolao participou-lhe: --É bem triste a minha occupação na administração da provincia: emprego-me em observar como é que a nossa gente do campo se arruina... E repetiu com um sorriso contrafeito: --Sim, observo, é o verdadeiro termo. Essa pobre gente morre de fome, ainda novos, lá vão para a cova, roidos pela miseria; as creanças nascem fracas e enfesadas, caem aos centos, como as moscas, quando chega o inverno... Sabemos tudo isso perfeitamente... conhecemos as causas d’essa calamidade e afinal, depois de as termos analisado, recebemos o nosso ordenado... e ficamos por aqui. --Mas o senhor o que é? perguntou Pélagué. Foi estudante? --Nada; era mestre-escola rural... Meu pae é director d’uma fabrica em Viatka; e eu fiz-me professor. Mais tarde, por ter distribuido uns livros pelos habitantes do logar, atiraram commigo para uma enxovia. Depois, fui empregado de livraria Ali, parece que tambem commetti qualquer imprudencia, porque fui outra vez preso: então mandaram-me para a provincia d’Arkhangel... Por lá tive tambem os meus desaguisados com o governo local e fui recambiado lá para as margens do mar Branco, para um logarejo onde vivi cinco annos... E dizendo isto, a voz resoava-lhe calma e suave na tranquilidade d’aquelle quarto claro, inundado de sol. Frequentes vezes tinha a sua interlocutora ouvido historias do genero d’aquella; mas nunca pudera compreender porque era que quem as contava o fazia com tal placidez, sem que nunca formulasse, por tantos soffrimentos, uma accusação contra ninguem, como se aquillo devesse fatalmente acontecer a todos... --Sabe que chega hoje minha irmã, annunciou elle. --É casada? --Viuva. O marido foi exilado para a Siberia. De lá conseguiu fugir, mas no caminho apanhou um resfriamento e morreu no estrangeiro, ha de haver dois annos. --Sua irmã é mais nova do que o senhor? --Não, tem mais seis annos do que eu... Devo-lhe muitos favores... Ha de ouvil-a tocar n’aquelle piano, que é mesmo d’ella... de mais, ha aqui muita coisa que lhe pertence... Os livros, esses, são meus... --E onde mora? --Em toda a parte! respondeu elle, sorrindo. Onde quer que seja precisa uma creatura decidida, lá a encontrarão... --Então tambem trabalha pela nossa causa? --Está claro! Dito isto, saíu em direcção á sua repartição e a velha ficou-se a pensar n’aquella causa commum que de dia para dia tornava os homens tão frios e obstinados. Parecia-lhe estar em frente de altissima montanha, em plena escuridão. Por volta do meio dia veio uma senhora alta e elegante, vestida de preto. Aberta a porta, a recemchegada atirou para o chão uma malinha amarella e tomou com vivacidade uma das mãos de Pélagué, interrogando: --A senhora é a mãe do Pavel Vlassof, não é? --Sou eu, sim, senhora! declarou Pélagué, constrangida pela elegancia da dama. --Pois a senhora é tal qual eu a tinha imaginado! Meu irmão mandou-me dizer que vinha viver para casa d’elle! Somos amigos velhos, seu filho e eu... Falava-me tanto de si! A voz era baça; exprimia-se com lentidão, mas tinha gestos rapidos e saccudidos. Brilhava-lhe nos grandes olhos cinzentos um franco sorriso de mocidade. Algumas rugasinhas delicadas sulcavam-lhe já as fontes, e por cima das orelhas bem feitas ondeava um ou outro cabello branco, como prata. --Venho com fome! declarou. Não desgostava de tomar uma chavena de café... --Vou preparar-lho immediatamente, disse a outra; e, ao tirar uma cafeteira do armário, inquiriu em voz baixa: --Então sempre é certo que o Pavel lhe falava de mim? --Com certeza, e até muitas vezes! E a irmã de Nicolao tirou da algibeira uma carteirinha, tomou de um cigarro e accendeu-o. Percorrendo o quarto a grandes passadas, proseguiu: --Está em cuidados por causa d’elle? Pélagué sorria, fitando a chamma azulada da lampada de espirito de vinho, a crepitar sob a cafeteira. O constrangimento de havia pouco desapparecera na sinceridade da sua satisfação. «Fala então muito em mim, o meu filho!» pensava. E proseguiu: --Pergunta-me se estou em cuidado?... Com certeza, é bem triste o que se passa... Mas antigamente era peor ainda... Agora, como sei que elle não está só... Fixou o olhar no rosto da sua nova conhecida. --Como se chama, minha senhora? perguntou. --Sofia. Passou a examinal-a melhor. Havia n’aquella mulher o que quer que fôsse de audácia, demasiada confiança em si própria e excessiva precipitação. O seu falar era por demais imperioso. --O que é importante é que os companheiros não vão ficar muito tempo na cadeia, e que sejam julgados depressa. Quando o Pavel estiver na Siberia, nós o faremos fugir... Ninguem póde passar sem elle, aqui... Sofia procurava com a vista onde deitar a ponta do cigarro; por fim enterrou-a n’um dos vasos de flôres. --Olhe que assim a planta morre! observou a velha machinalmente. --Queira perdoar! disse Sofia. É isso o que o Nicolao me está sempre a repetir... E retirando do vaso a ponta de cigarro, atirou-a pela janella. --Sou eu que lhe peço desculpa. Falei sem reflectir. Não é a mim que compete repreendel-a. --E porque não?... Se eu sou uma estouvada! redarguiu Sofia serenamente e com um encolher de hombros. O café está pronto? Muito obrigada! Então, só uma chavena? Não se serve? E, collocando-lhe as mãos nos hombros, puxou-a para si, fitou-a e perguntou-lhe em tom de admirada: --Estará por acaso a fazer cerimonia? A outra respondeu com um sorriso: --Ainda hontem cheguei aqui, e já hoje me parece que estou em minha casa e que conheço a senhora ha muitos annos... Nada receio; digo o que me vem á cabeça; faço observações... --E está muito bem! exclamou Sofia com entusiasmo. --Nem sei onde tenho a cabeça! Nem já me conheço! continuou Pélagué. Antigamente, a gente estudava as pessoas por dentro e por fóra primeiro que lhes falasse com o coração nas mãos; agora, não, parece que nada se receia, dizem-se de repente coisas que d’antes nem mesmo nos atreviamos a pensar... e que de coisas! Sofia accendeu outro cigarro; pousára o olhar cinzento na sua interlocutora, cariciosamente. --Disse ha pouco que se ha de arranjar a fuga do Pavel... Mas como vae elle viver depois? Era esta pergunta que importunava Pélagué e que conseguira emfim formular. --É coisa facil! respondeu Sofia, servindo-se outra vez de café. Ha de viver como vive grande numero de evadidos... Olhe, agora acabo eu de ir buscar um d’elles, que acompanhei até ao estrangeiro. É tambem um homem valioso; é operario no sul; foi condemnado a cinco annos de degredo, mas só cumpriu trez annos e meio. É por este motivo que me vê tão bem vestida. Julgava que era o meu trajo habitual? Não; detesto os farrapos e os enfeites... A humanidade é de origem humilde; deve trajar com humildade,--vestuario bem feito mas simples... Pélagué, abanando a cabeça, disse em voz baixa: --Ah! esse primeiro de maio é que me pôz as idéas em confusão! Não me sinto bem; chega-me a parecer que vou por duas estradas, ao mesmo tempo... tão depressa julgo que compreendo tudo, tão depressa me vejo cercada de nevoeiros... A senhora, por exemplo... Vejo que é uma senhora fina... e a senhora tambem trabalha pela nossa causa... conhece o Pavel... e diz que o tem em grande conta... Não sei como agradecer-lhe... --Não, os agradecimentos são para si, disse Sofia, rindo. --Para mim?! Não fui eu que lhe ensinei essas coisas todas! respondeu a mãe com um suspiro. Dizia-lhe eu então, continuou: umas vezes, tudo isto me parece simples, outras, nem essa mesma simplicidade eu posso compreender... Assim, agora, encontro-me com o espirito socegado, d’aqui a instantes, já sinto medo por me vêr tão socegada. Toda a minha vida tenho passado em meio de inquietações... e agora, que ha motivo para receios, já quasi não sinto medo... Porque é isto? Não sei!... Pensativamente, Sofia respondeu: --Ha de vir um dia em que tudo compreenderá!... Parece-me tempo de abandonar todos estes esplendores de vestuario... Collocou a ponta do cigarro no pires, e saccudindo a cabeça, fez rolar sobre os hombros, em madeixas espessas, os doirados cabellos. Depois saíu... A outra seguiu-a com a vista, suspirou, olhou em torno e começou a arrumar a loiça, com a cabeça vasia de idéas, prostrada por uma somnolencia que a amodorrava. III Pelas quatro da tarde, Nicolao estava de volta. Ao jantar, Sofia contou, rindo, o seu encontro com o forçado evadido; falou do terror d’esse homem, sempre a vêr espiões em todos os cantos, e dos modos exquisitos do evadido... No tom de voz em que falava alguma coisa fazia lembrar á velha Pélagué a fanfarronada d’um operario que terminou uma tarefa difficil e que d’ella se gaba. Vestia agora Sofia um roupão cinzento, leve e adejante que lhe cahia dos hombros até aos pés em pregas harmoniosas, vaporoso e simples. Este novo trajo fazia-a parecer mais alta, ao passo que o olhar se lhe annuviára e os movimentos se lhe tornavam mais serenos. --É preciso que trates d’outro negocio, Sofia! disse Nicolao, terminado o jantar. Como sabes, ha idéa de editar um jornal para a gente dos campos... mas, graças ás ultimas prisões effectuadas, os laços que nos uniam a esses camponezes, quebraram-se. Só Pélagué sabe como poderemos rehaver o homem que se encarrega da distribuição do jornal... Parte com ella... o mais cêdo que possas... --Está bem, disse Sofia, recomeçando a fumar. Está combinado, mãesinha? --Porque não? Pois, vamos! --E é longe? --Oitenta kilometros, pouco mais ou menos. --Optimamente!... Agora vou tocar um bocado de piano... Está disposta para um pouco de musica? --Nada me pergunte, faça de conta que não estou aqui, respondeu ella. E foi sentar-se para um canto do canapé coberto de uma capa de linho. Notava ella que os dois irmãos, sem parecerem ligar-lhe importancia, a intromettiam todavia, e a meude, na conversação. --Ouve isto, Nicolao; é de Grieg. Trouxe hoje a musica. Fecha a janella! Abriu a partitura e acariciou as teclas de mansinho, com a mão esquerda. As cordas entraram a vibrar em accordes indolentes e pesados. Houve primeiro um profundo suspiro, depois outra nota veio juntar-se ás primeiras, n’uma forte e tremente amplidão de som. A mão direita entrou então em resonancias claras, em gritos parecidos com os de uma ave assustada; balanceou-se depois, em cadencia, imitando o palpitar das azas no fundo sombrio das notas graves, que cantavam, harmoniosas e compassadas, quaes vagas batidas pela tempestade. Em resposta á canção, vinham logo caudaes de accordes soturnos, chorando com dôr, suffocando queixumes, implorações, gemidos, tudo fundido n’um rythmo de angustia. Por vezes, como n’um impulso de desespero, a melodia soluçava, desfallecida; mas logo recaía, rastejando, hesitante, sob a torrente espessa e cascadeante das notas cavas, e afogava-se, sumia-se, para de novo reaparecer por entre o ribombar igual e monotono; tomava alento, então vibrava e dissolvia-se por fim n’um poderoso martelar de notas humidas que toda a salpicavam, e ficava a suspirar sem cansaço, com a mesma força e a mesma resignação... Ao principio, a música não impressionou Pélagué; não a compreendia; era para ella como um cáos de sonoridades. O ouvido não lhe permittia distinguir a melodia na palpitação complexa d’aquella alluvião de notas. Meio somnolenta, fitava Nicolao, sentado no outro extremo do canapé, com as pernas dobradas por debaixo do corpo; considerava tambem o severo perfil de Sophia, de cabeça inclinada, sob o velo espesso dos seus cabellos d’oiro. Ia pôr-se o sol. Um raio tremulo nimbou primeiro a cabeça, o hombro da pianista; depois, deslisando para o teclado, brincou-lhe entre os dedos. Toda a sala estava cheia d’aquella melodia, e o coração da mãe despertava emfim, sem que ella mesma o percebesse. Succediam-se, entretanto, trez notas vibrantes como a voz de Fédia Mazine, regularmente e sustentando-se mutuamente á mesma altura, taes trez peixes de prata fluctuando n’um regato, scintillando por entre a torrente dos sons... De vez em quando, outra nota mais vinha juntar-se ás primeiras, e, todas ao mesmo tempo, entravam a cantar uma canção ingenua, triste e acalentadora. E Pélagué começava a poder seguil-as, esperando que voltassem, não escutando outra coisa, abstraíndo-as do cáos inquietador da harmonia geral, que pouco a pouco ia deixando de ouvir... E subitamente, das negruras remotas do seu passado, veio-lhe a recordação d’uma humilhação esquecida havia muito, mas que ressuscitava agora com nitidez cruel. De uma vez, o marido voltára-lhe para casa tardíssimo e completamente embriagado. Puxára-a pelo braço, atirára-a da cama e enchera-a de pontapés, regougando: --Vae-te d’aqui, canalha, que não te posso aturar!... Vae-te! Para se esquivar aos maus tratos, tomára precipitadamente nos braços o filho, que então tinha dois annos, e, firmando-se nos joelhos, protegia-se com o corpinho do innocente, como se fôsse um escudo. O pequeno chorava, barafustava, com medo, nu, e quentinho do berço. --Vae-te d’aqui! rugia Mikhaíl. Ella saltára da cama, descalça, correra á cosinha; então, atirando uma camisola para os hombros e embrulhando a criança n’um chale, sem uma palavra, sem um queixume nem uma exortação, com os pés no lagedo, saíra para a rua. Era em maio, a noite ia fresca; a frigida terra da calçada collava-se-lhe aos pés, penetrando-a toda, regelando-a. A criança chorava sempre e debatia-se. Desnudára o seio, conchegou a si o pequeno; e, instigada pelo medo, lá se foi pelas ruas escuras, cantando baixinho para adormecer o filho. Ia despontar o dia; Pélagué toda se envergonhava com a ideia de ser encontrada n’aquelle estado. Desceu até á margem do pantano, sentou-se no chão debaixo de compacto bosque de álamos... E para ali esteve muito tempo, disfarçada na treva, com os olhos esgazeados fitos na escuridão, a cantar timidamente para embalar o filho e o coração ultrajado. Subito, uma ave negra, silenciosa, esvoaçára-lhe por sobre a cabeça e sulcára o ceu, accordando-a. E a tremer de frio, erguera-se e lá voltára para casa, a arrostar com o seu habitual terror das sevicias e das injurias incessantes... Pela ultima vez, ecoou um accorde sonoro, mas de indifferença e frieza, que n’um suspiro se immobilisou no ambiente. Voltou-se Sophia e a meia voz perguntou ao irmão: --Gostas? --Muito! respondeu, estremecendo como se saísse d’um sonho; muito!... Os dedos de Sophia desfiaram então um harpejo suave e harmonioso. No intimo do seu peito, Pélagué escutava ainda o echo debil e tremente das suas recordações. O seu desejo era que a musica proseguisse. E um pensamento germinava n’ella: --Ora aqui está uma gente que vive socegada... o irmão, a irmã... muito amigos... Entretêem-se com a musica... Não dizem palavradas, não bebem aguardente, não questionam por qualquer futilidade... nem pensam sequer em offender-se um ao outro, como se faz entre toda a gente de baixa extracção... Sophia, entretanto, fumava um cigarro. Fumava muito, quasi sem descanso. --Era este o trecho favorito do pobre Kostia! disse, aspirando com força uma fumaça, e assentou de novo a mão, n’um debil accorde triste. Como eu gostava de lh’o tocar! Era tão intelligente! Nada havia que não compreendesse... O espirito d’elle era accessivel a tudo. --É do marido que fala, pensou a hospede. E sorriu. --Quanta felicidade elle me trouxe! continuou Sophia em voz baixa, ao passo que acompanhava os seus pensamentos com leves accordes repetidos. Como elle sabia viver bem!... Sempre alegre, de uma alegria infantil, cheia de vida, que todo o illuminava... --Infantil! repetiu a mãe comsigo mesma. --É verdade, disse Nicolao, revolvendo a barbicha, uma alma de illuminado! Sophia atirou fóra o cigarro ainda acceso, voltou-se para Pélagué, perguntou: --Esta bulha não a incommoda? --Já lhe disse que não se importe comigo, respondeu ella com um ligeiro despeito que não poude disfarçar. Eu nada percebo d’isso... Estou aqui quieta, a escutar e a pensar... --Não, senhora, é preciso que compreenda! replicou Sophia. Uma mulher, principalmente quando está triste, não póde deixar de compreender a musica... E pulsou as teclas com força. Resoou um grito violento, como se a alguem acabassem de dar uma d’estas noticias terriveis, das que ferem em pleno coração e arrancam um dolorido queixume. Entraram então a vibrar umas vozes frescas que, logo, horrorisadas e desconcertadas fugiram velozmente, não se sabia para onde; de novo, ecoou uma outra voz sonora e irritada, abafando todo o conjunto... Era com certeza uma desgraça, mas desgraça que incitava coleras, não gemidos. Depois outra voz energica mas reconfortante entrou a entoar uma canção bonita e simples cheia de persuasão, de incitamento. Surdamente, em tom de melindre, as vozes dos graves murmuravam... Sofia tocou por muito tempo ainda. Pélagué sentia-se perturbada. Todo o seu desejo era perguntar o que significava tal musica, que assim fazia germinar n’ella imagens indistinctas, sentimentos, pensamentos mutaveis sem cessar. O pezar e a angustia cediam o logar perante as scintillações d’uma serena alegria; dir-se-ia que um bando de invisiveis passarinhos redemoinhasse pela sala, acariciando as almas com o perpassar das delicadas azas, contando gravemente alguma coisa que provocasse instinctivamente o curso do pensamento com palavras incompreensiveis, acalentando os corações com esperanças vagas, enchendo-os de força e de vigor. E Pélagué sentia o ardente desejo de dizer o que quer que fôsse meigo aos seus companheiros. Sorria ternamente, enebriada por aquella música. Procurou com a vista o que poderia fazer; ergueu-se, e nos bicos dos pés, foi para a cosinha dispôr o samovar. Mas o desejo de se tornar util não se lhe extinguiu, continuava a pulsar-lhe no coração com obstinada regularidade; serviu depois o chá com um sorriso de embaraço e de commoção, com a alma banhada em tepidos effluvios de sollitude que ella partilhava por igual entre si e os seus companheiros. --Nós cá, gente do povo, explicou, sentimos tudo, mas é nos difficil exprimil-o, não podemos formar senão ideias incertas; e envergonhamo-nos de não podermos dizer o que se sente. E quantas vezes, para falar com consciencia, a gente não se zanga com as proprias ideias e com aquelles que nol-as suggerem! Entramos a irritar-nos e afugentamol-as! Em que agitações se passa esta vida! É ella que por todos os lados nos assalta e nos magoa. Era tão bom descansar!... mas os pensamentos não deixam á alma um só momento de repouso e ordenam-lhe que veja, que oiça. Nicolao escutava-a, com approvações de cabeça; limpava os óculos com movimentos saccudidos; Sofia encarava fixamente aquella mulher, esquecida do cigarro, que se apagára. Continuava sentada ao piano, e de vez em quando afagava o teclado. Accordes muito brandos acompanhavam assim as considerações da anciã, a qual se deu pressa em revestir os seus pensamentos intimos com palavras da mais simples sinceridade. --Agora, posso falar um pouco de mim propria e dos meus... porque já compreendo a vida, e comecei a conhecel-a quando pude comparar. D’antes, não tinha pontos de comparação. Na nossa classe, todos levam vida igual. Hoje, que vejo como vivem os outros, lembro-me de como eu vivi e custa-me muito o recordal-o... Emfim, é impossivel voltar atraz; e mesmo quando o pudessemos fazer, não encontrariamos uma nova mocidade... Baixou a voz; proseguiu: --Talvez eu esteja dizendo coisas insensatas ou nescias, pois que o senhor e sua irmã devem conhecer tudo isto... mas vejam que é de mim que estou falando e que falo a quem teve a bondade de me chamar para o seu lado. Tremiam-lhe na voz lagrimas de grata felicidade; fitou-os a ambos com um olhar muito risonho e continuou: --Queria abrir-lhes a minh’alma para que vissem todo o bem que lhes quero. --Mas nós bem vêmos! disse Nicolao com bondade. E sentimo-nos felizes por têl-a na nossa companhia. --Sabem o que isto me parece? interrogou ella, sempre com voz sumida, risonha, parece que foi um tesoiro que eu achei, que estou rica, que posso presentear toda a gente... Isto é talvez um effeito da minha tolice... --Não diga tal! interrompeu com gravidade Sofia. Não era para acalmar de pronto aquella sêde de expansão; continuou portanto Pélagué a falar-lhes de tudo o que para ella era novo e lhe parecia de inapreciavel importancia. Contou-lhes a sua miserrima vida cheia de humilhações e resignado soffrer; por vezes, interrompia-se; julgava ter-se afastado de si mesma e estar falando de si como o faria de qualquer outra... Sem rancor, em termos correntios e nos lábios sorriso de piedade, desenrolou em presença de Nicolao e da irmã a monotona e lugubre história dos seus tristes dias, enumerado os maus tratos infligidos pelo marido, intimamente admirada, ella própria, da futilidade dos pretextos que os provocavam, admirada por não ter sabido esquivar-se-lhes... Attentos e silenciosos, Nicolao e Sofia escutavam-na; sentiam-se esmagados pela significação profunda d’aquella historia, d’aquelle ente humano tratado como um animal e que passára tanto tempo sem sentir a injustiça da sua condição, sem um murmurio. Eram milhares de vidas a falar pela bocca d’aquella mulher. Tudo n’esta existencia era banal e indifferente, mas havia pelo mundo innumeravel quantidade de creaturas avergadas áquelle modo de vida... E, avantajando-se mais e mais nos seus raciocínios, aquella história assumia as proporções d’um símbolo... Nicolao, com os cotovellos sobre a mesa, a cabeça entre as mãos, quedava-se immovel, considerando a sua hospede por detraz do vidro dos óculos, com os olhos piscando de attenção. Sofia, reclinada no espaldar da cadeira, sentia-se estremecer, murmurava de quando em quando o que quer que fôsse, abanando a cabeça negativamente. Deixára de fumar; o seu rosto parecia agora mais magro ainda, e mais pálido. --Um dia, começou ella, em voz baixa, senti-me muito infeliz; parecia-me que toda a minha vida nada mais era do que um delírio de febre. Estava eu então no desterro, n’uma miseravel povoação da provincia, onde nada tinha a fazer, ninguem em quem pensar, a não ser em mim propria... Para occupar este ocio, puz-me a fazer a conta das minhas infelicidades, recordando-as todas: ficára de mal com meu pae, a quem estimava, fôra expulsa do collegio por lêr livros proíbidos; em seguida, fôra a prisão, a traição d’um companheiro a quem muito queria, a captura de meu marido, outra vez a prisão e o degredo, a morte d’elle... E então parecia-me que a mais desgraçada creatura de toda a terra era eu... Mas todos os meus males justapostos e decuplicados, não chegam a valer um mez da sua vida, pobre mulher... não! Essa tortura de todos os dias durante annos e annos... Onde vão os pobres buscar essa força contra o soffrimento? --Acabam por se habituar! respondeu ella, suspirando. --E julgava eu conhecer o mundo! disse Nicolao, pensativo. E afinal, quando não se trata só de impressões fragmentadas, quando não é já um livro que nos fala, mas uma creatura em pessôa, como é horrivel! E os pormenores são tambem horrorosos, os proprios nadas, cada um dos segundos que formam um anno inteiro!... E a conversa proseguia em voz baixinha. Mergulhada nas suas recordações, Pélagué extraía do crepúsculo sombrio do seu passado todas as injúrias mesquinhas e habituaes; ia compondo negro quadro de mudo horror immenso, em que sossobrava a sua juventude de mulher. De repente, exclamou: --Ai, e eu aqui a palrar!... São horas de nos irmos deitar! É impossivel contar tudo! Nicolao inclinou-se diante d’ella mais do que costumava e apertou-lhe com mais força a mão. Sofia acompanhou-a á porta do quarto, e ali, parando, murmurou: --Durma bem!... Boa noite! Era caloroso o seu falar; envolvia n’um meigo olhar de caricia o rosto de Pélagué... Esta agarrou-lhe em uma das mãos e, apertando-a nas suas, respondeu: --Quanto lhes agradeço! IV Quatro dias depois, apresentavam-se a Nicolao as duas mulheres pobremente vestidas de saias de chita já usadas, de cajados na mão e alforge ao hombro. Este trajo tornava Sofia mais baixa e dava-lhe á fisionomia uma expressão de austeridade. --Parece que passas a vida a jornadear de convento em convento! disse-lhe o irmão. E ao despedir-se d’ella, apertou-lhe a mão com energia. Mais uma vez, notou a velha esta simplicidade e esta calma. Decididamente, não eram pródigos de beijos nem de demonstrações de estima, e comtudo, mostravam-se tão sinceros um para o outro, tão sollicitos para com os estranhos! Porque nos meios onde Pélagué vivera, todos se beijavam muito, todos se animavam com bonitas palavras, o que não impedia que se mordessem como cães damnados. Atravessaram as viandantes a cidade, alcançaram o campo e tomaram a vasta estrada bem calcetada, orlada de velhas bétulas. --Não estará cansada? inquiriu a mais idosa. --Julga que não estou costumada a andar? Pois engana-se... Jovialmente, por entre risadinhas, como se tratasse de travessuras de criança, Sofia entrou de contar os seus feitos de revolucionária. Vivera já com um nome supposto, servindo-se para isso d’um passaporte falsificado; disfarçára-se para fugir aos espiões, transportára para diversas cidades muitos quintaes de brochuras proíbidas. Tinha arranjado a fuga a muitos companheiros exilados, acompanhára-os ao estrangeiro. De uma vez, montára na sua própria casa uma imprensa clandestina; e quando os gendarmes, sob denuncia do delicto, tinham vindo proceder ás buscas, disfarçara-se ella de criada, minutos antes d’elles chegarem e saíra, cruzando-se com os inquisidores já no limiar do predio. Sem uma capa, com uma simples mantilha pela cabeça e de amotolia de petroleo em punho, percorrera de outra vez a cidade de extremo a extremo, sob um frio rigoroso, em pleno inverno. D’outra occasião, porque se tivesse dirigido a casa de uns correligionarios, n’uma cidade distante, ia a subir a escada quando percebeu que havia lá policia, varejando. Era tarde para saír do prédio; bateu portanto com o maior atrevimento, no andar de baixo. Entrou em casa de gente que não conhecia, de mala na mão, e tratou de pôr a claro o acontecido. --Os senhores podem denunciar-me se quizerem, mas não os julgo capazes d’isso declarára ella convictamente. Atrapalhadissimos, não fecharam os olhos toda aquella noite, julgando a todo o momento que lhes vinham bater á porta. Comtudo, não a denunciaram e, chegada a manhã, mangaram, como ella, com a polícia. Tambem lhe acontecera vestir-se de irmã da caridade e fazer viagem no mesmo compartimento e no mesmo assento do vagon em que ia um espião encarregado de lhe seguir a pista, o qual, para fazer valer a sua esperteza, se lhe puzera a contar como era que procedia em tal diligencia. Estava certo o homem de que Sofia ia n’aquelle comboio, em segunda classe: e a cada nova paragem, descia e commentava regressando para o pé da pseudo religiosa: --Não a vejo... Provavelmente vae a dormir. É que essa gente tambem cansa... Levam uma vida tão dura... tal qual a nossa! A outra ria com estas historias, olhava para Sofia com affecto. Alta e magra, a joven senhora caminhava com passo leve mas firme; tinha os pés fortes e bem feitos. Na maneira de andar, no falar, no proprio timbre da voz, decidida se bem que um pouco baça, em toda a sua figura esbelta, transparecia uma como bôa saude moral, uma audacia alegre, um desejo de ar e de espaço, e os seus olhares para tudo se dirigiam com uma expressão de juvenil contentamento. --Olhe aquelle pinheiro tão bonito! exclamou, mostrando uma arvore á sua companheira, que parou para vêl-a. Mas o pinheiro, afinal, não era nem maior nem mais folhudo que os outros. --É verdade, bonita arvore! repetiu, risonha. --Olhe uma cotovia! E os olhos pardos de Sofia brilharam de satisfação. Ás vezes, com movimentos flexuosos, baixava-se, apanhava uma flôr e acariciava-lhe amorosamente as petalas tremulas com o ligeiro contacto dos seus dedos afusados e ageis. E trauteava canções meigas. Pelo caminho, cruzavam-se com peões ou campónios empoleirados nas suas carroçadas, que lhes diziam: --A paz seja comvosco! Brilhava um lindo sol primaveril; todo o vasto azul resplandecia; aos dois lados da estrada, estendiam-se densas florestas de madeiras resinosas, herdades de um verde muito vivo; cantavam passaros, o ar tepido e perfumado acariciava brandamente as faces. Tudo contribuia para approximar Pélagué d’aquella mulher de alma e de olhos tão limpidos; e involuntariamente, chegava-se mais para ella, esforçando-se por igualar a sua andadura pela d’ella. Comtudo, ás vezes, destacava-se das frases de Sofia uma expressão demasiado viva, demasiado sonora, que a Pélagué se afigurava superflua. Então, era tomada de inquietação: --Estou vendo que não vae agradar ao Rybine... Mas um instante depois, Sofia voltava a falar com simplicidade, cordialmente, e ella de novo a olhava com ternura. --Como é nova ainda! suspirou. --Ora! olhe que já tenho trinta e dois! A outra riu. --Não é isso que quero dizer... Á primeira vista parece ter mais idade... mas quando se repara nos seus olhos, quando a ouvimos falar, fica-se muito admirado, parece uma menina... A sua vida é desasocegada, penosa, cheia de perigos... e todavia, tem o coração alegre... --Não vejo em que a minha vida seja penosa, nem posso imaginar outra mais interessante e melhor do que esta... --E quem ha de recompensal-a dos seus trabalhos? --Se já estamos recompensados! respondeu Sofia, em tom que á outra pareceu denunciar fundo orgulho. Arranjámos uma existencia que nos satisfaz; que mais havemos de desejar? A mãe olhou para ella furtivamente e baixou a cabeça, repetindo a si mesma: --Não vae gostar nada d’ella, o Rybine... Aspirando a plenos pulmões o ar tepido, as duas mulheres caminhavam em passo lento mas firme. A Pélagué parecia-lhe que andava em romaria. Lembrava-lhe aquillo a sua meninice e a pura felicidade que a animava quando, nos dias de festa, partia da aldeia em direcção a algum mosteiro, onde houvesse uma imagem milagrosa. De vez em quando, Sofia entoava com a sua voz novas canções em que se falava de amôr e do Ceu; outras vezes, punha-se de subito a declamar estrofes celebres que celebravam os campos e as florestas, o Volga; e a outra escutava-a, prazenteira, meneando, sem dar por isso, a cabeça ao rythmo do verso, cuja melodia a enfeitiçava. N’aquelle coração, tudo era paz, carinho e doçura, como n’um velho jardinsinho, n’uma tarde de estio. V Ao terceiro dia, ao chegarem a uma aldeia, perguntou a mais velha das duas a um trabalhador do campo onde ficava a fabrica do alcatrão. E logo tiveram de descer por estreito atalho ingreme e agreste, qual escada, onde as velhas raízes formavam degraus. Avistaram d’ali uma clareirasinha circular atapetada de aparas de lenha e de carvão e onde, aqui e ali, havia poças de alcatrão. --Eis-nos chegadas! disse a velha, olhando em volta com desconfiança. Junto a uma choça feita com estacas e algumas ramadas, jantavam quatro operarios, em torno d’uma mesa feita com trez táboas em bruto estendidas sobre umas estacas cravadas no solo. Eram elles: Rybine, muito sujo, com a camisa aberta no peito, Jéfim e mais dois rapazes. Rybine foi o primeiro que avistou as duas mulheres; quedou-se á espera, em silencio, formando pala com a mão, para abrigar os olhos. --Viva, irmão Mikhaíl! gritou-lhe de longe Pélagué. Levantou-se então e veio-lhes ao encontro, mas sem se apressar. Ao reconhecer quem lhe falava, deteve-se a acamar a barba. --Andamos em romaria! disse ella, approximando-se mais. E fiz um rodeio para vir vêr-te. Esta minha amiga veio comigo; chama-se Anna... Contente com o seu achado, olhou de soslaio para Sofia. Esta permaneceu séria e impassivel. --Vivam lá, respondeu Rybine com um sorriso contrafeito. Apertou-lhe a mão, cumprimentou Sofia e accrescentou: --É inutil mentir; não estamos na cidade; aqui não são precisas mentiras. Aqui só ha gente séria, todos nos conhecemos uns aos outros. Jéfim, á mesa, onde continuava sentado, examinava com attenção as recemvindas; segredou o que quer que fôsse aos seus commensaes. Ao approximarem-se as duas, levantou-se, cumprimentou sem dizer uma palavra. Os outros dois deixaram-se ficar, como se não tivessem dado pelas viandantes. --Vive-se aqui como presidiarios! proseguiu Rybine, batendo familiarmente no hombro da sua conhecida. Ninguem vem vêr-nos, o patrão não está na aldeia, a mulher d’elle lá está no hospital e eu sou agora aqui uma especie de gerente... Sentem-se. Tomam chá? Ó Jéfim, vae buscar o leite! Vagarosamente, Jéfim encaminhou-se para a choupana, emquanto as duas se desembaraçavam dos alforges. Um dos camponezes, um grande latagão magro, levantára-se para as ajudar. O outro, atarracado e coberto de farrapos, acotovelado sobre a mesa, olhava pensativo para ellas, coçando a cabeça e trauteando baixinho. Aromas suffocantes de alcatrão fresco casavam-se com o cheiro das folhagens apodrecidas, provocando tonturas. --Este chama-se Jacob, disse Rybine, apresentando o mais alto dos dois operarios; aquelle é o Ignaty... E então o teu filho? --Está na cadeia! gemeu a mãe. --Outra vez! exclamou Rybine. Ao que parece deu-se bem por lá... Ignaty deixára de cantarolar. Jacob tomou o cajado das mãos de Pélagué. --Senta-te, tiasinha! --E a senhora sente-se tambem, disse Rybine, dirigindo-se a Sofia. Sem uma palavra, esta tomou assento em cima d’um fardo e poz-se a examinar Rybine. --E quando foi elle preso? perguntou este; e acrescentou com um abanar de cabeça: Não tens sorte nenhuma, Pélagué! --Que importa! --Então, já te vaes costumando? --Não, mas cheguei ao convencimento de que as coisas não pódem ir d’outra fórma! --Ora ahi está! disse Rybine. Conta, então... Jéfim trouxe uma infusa de leite; o outro tomou de sobre a mesa uma tigella, laviscou-a com um pouco d’agua e depois de a encher de leite, empurrou-a para o logar de Sofia. Ia e vinha sem ruido, com precaução. Depois da mãe ter finalisado a sua curta narrativa, todos ficaram calados. Ignaty, que continuava á mesa, fazia gravuras nas taboas com as unhas. Jéfim encostava-se ao hombro de Rybine. Jacob, de braços cruzados no peito, baixava a cabeça. Sofia continuava a analysar as caras d’aquelles campónios. --Pois está visto! declarou Rybine, arrastando muito as sylabas. Decidiram-se a proceder ás claras... --Elles que viessem para cá com uma fantochada d’essas, declarou Jéfim, que os moujiks dariam cabo d’elles!... --Disseste que o Pavel vae ser julgado? perguntou Rybine. --Sim, é coisa decidida, respondeu a mãe. --E que pena póde elle apanhar... não sabes? --Ou as galés ou o degredo para a Siberia, por toda a vida! respondeu, baixando a voz. Os outros trez operarios fitaram-na simultaneamente. Rybine proseguiu: --E quando elle se metteu n’esse negocio, sabia o que o esperava? --Não sei... provavelmente. --Sim, sabia-o! affirmou Sofia com decisão. Calaram-se todos e ficaram-se como estaticos, mergulhados em um mesmo pensamento consolador. --Ora ahi está! continuou Rybine em tom de severa gravidade. Tambem eu creio que o soubesse. É um homem sério; não se mette levianamente n’essas coisas. Vejam lá companheiros. Sabia que o podiam espetar n’uma baioneta ou que lhe davam as honras d’um presidio, e atirou-se para a frente ainda assim! Era preciso que se atirasse--atirou-se! E se lhe tivessem posto a propria mãe no caminho, passava-lhe por cima... não é isto Pélagué? --Com certeza... murmurou a mãe com estremecimento. E depois de ter circumvagado o olhar em torno, soltou do peito profundo suspiro. Sofia afagou-lhe com meiguice uma das mãos e teve para Rybine um olhar de descontentamento. --Aquillo é que é um homem? declarou elle a meia voz, fixando os sombrios olhos nos companheiros. E novamente todos se quedaram silenciosos. Pendiam da atmosfera tenues resteas de sol, como fitas d’oiro. Perto d’ali grasnava um corvo. Os olhares de Pélagué vagueavam, impressionada com as recordações do primero de maio, com a lembrança de Pavel e de André. Pelo solo, na clareira exigua onde estavam, jaziam barricas escangalhadas que tinham servido a alcatrão, madeiros sem casca e com a fibra a desfiar-se; fluctuavam ao vento as aparas, em longas fitas. Os carvalhos e as bétulas perfilavam-se em fila compacta; por todos os lados, ganhavam insensivelmente o espaço da clareira como para apagar, aniquilar todos aquelles destroços, toda aquella immundice que os ultrajava, e, alliados no seu silencio, immoveis, projectavam no solo as suas sombras negras e tragicas. De subito, Jacob afastou-se da arvore a que se encostava, deu um passo e logo parou para interrogar com voz forte e desabrida, abanando a cabeça: --E é contra gente d’essa que nos vão mandar a combater, o Jéfim e eu? --Pois contra quem pensavas? retorquiu Rybine em tom frio. Andam a esganar-nos com as nossas proprias mãos... É o cumulo! --Pois assim como assim, prefiro ser soldado! declarou Jéfim com voz indecisa. --E quem te péga? exclamou Ignaty. Pois vae! E, fitando Jéfim, acrescentou a rir: --Em todo o caso, quando me apontares a espingarda, aponta á cabeça, não me deixes estropiado... mata-me de vez!... --Já me disseste isso! gritou Jéfim com desabrimento. --Escutem, companheiros! proseguiu Rybine; e ergueu o braço n’um gesto lento. Olhem para esta mulher!--e apontava para Pélagué.--O filho está perdido; provavelmente... --Porque dizes isso? perguntou a mãe, angustiada. --Porque assim é preciso! Pois haviam os teus cabellos de embranquecer em vão e o teu coração de soffrer inutilmente?... Tu ainda não morreste, não é verdade?... Trouxeste livros? A mãe lançou-lhe furtivo olhar e confirmou apóz um silencio: --Trago. --Ora ainda bem! disse Rybine, dando uma palmada na mesa. Percebi-o logo mal te vi. E para que terias tu vindo, a não ser para isso? Vejam lá vocês, o filho desappareceu-nos das fileiras, e ahi temos a mãe no logar d’elle! Ergueu-se e poz-se a gritar com voz cava e gestos ameaçadores: --Essa canalha não sabe o que anda a semear por ahi, ás cegas! Hão de ver, quando nós estivermos mais fortes, quando entrarmos a ceifar n’essas hervas malditas! Hão de ver! A estas palavras, toda se assustou Pélagué; olhou para Rybine, achou-o muito mudado, muito magro; já não tinha a barba cuidada como d’antes, mas emaranhada; distinguiam-se-lhe perfeitamente as saliencias dos malares. No branco azulado dos olhos corriam-lhe laivos sanguineos, como de quem anda mal dormido. O nariz afilára-se-lhe, mais carlaginoso e adunco, qual bico de ave de rapina. Pelo cós da camisa, desabotoado, d’antes sempre sujo de tintas e alcatrão, viam-se-lhe as claviculas mirradas e o denso velo do peito. Toda a pessoa d’este homem respirava alguma coisa mais soturna e melancólica do que o fôra até então. O brilho dos exaltados olhos illuminava-lhe o rosto sombreado por uma expressão de soffrimento e de rancor, que relampejava em purpureos clarões. --No outro dia, continuou elle, o governador do districto manda-me chamar e pergunta-me: «--Que fôste tu dizer ao padre, grande garoto?--E porque é que eu sou garoto? Ganho o meu sustento com o meu trabalho, não faço mal a ninguem,» respondi-lhe eu. Pôz-se logo a berrar e deu-me um murro em cheio na cara... e mandou-me para o calaboiço por trez dias. Ah! assim é que vocês sabem falar ao povo? Está bem! Mas não esperem pelo perdão, excommungados! Se não fôr eu, outro ha de lavar a injuria, em vocês ou nos filhos de vocês... lembrem-se bem! Andaram a lavrar no peito do povo com as garras de ferro da avidez e da cubiça e n’elle semearam a maldade... Pois seremos sem piedade, malditos! Ahi tem! Espumava de furor; na voz tinha impetuosidades que amedrontavam Pélagué. --E afinal que tinha eu dito ao padre? proseguiu mais calmo. Á saída d’uma reunião, estava elle na rua n’um grupo de camponeos e dizia-lhes que os homens eram um rebanho e que precisavam sempre d’um pastor... ahi está! E eu disse-lhe por brincadeira: «Se fizessem a raposa chefe da floresta, pennas havia de haver muitas, mas passaros, nem um!» O padre olhou-me de revez e entrou a dizer que o povo devia soffrer, resignar-se e orar a Deus com mais frequencia, para que elle lhe desse forças para tudo supportar. E eu respondi-lhe: «O povo reza muito; provavelmente Deus é que não tem tempo para escutal-o. Se nem o ouve!» Ora ahi está! Elle então perguntou-me quaes eram as minhas orações. E eu respondi-lhe: «Não aprendi senão uma só na minha vida; é a do povo inteiro:» Deus, ensina-me a trabalhar para os nossos senhores, a comer pedras, a escarrar sangue! O padre não me deixou acabar... A senhora é da nobreza, ao que vejo? perguntou bruscamente Rybine, interrompendo a narrativa e voltando-se para Sophia. --Porque julga isso? disse ella com um sobresalto de surpreza. --Ora, porquê... disse Rybine. É sorte sua, nasceu assim, ahi está! A senhora imagina que póde disfarçar o seu peccado de fidalguia só porque tapou a cabeça com um lenço de chita? O padre conhece-se bem, mesmo quando não traz corôa... Agora acaba a senhora de pôr o cotovello na mesa, que estava molhada e a senhora fez uma carêta... E olhe que tem as costas muito aprumadas para uma operaria... Receando que elle offendesse Sofia com aquella maneira de falar, aquelles ditos e aquella graça pesada, Pélagué interveio com viveza e severamente: --É minha amiga esta senhora. É uma excellente mulher... Foi a trabalhar por nós e pela nossa causa que fez os cabellos brancos... Não sejas tão desabrido com ella... Rybine soltou um suspiro mal contido. --Então eu disse-lhe alguma coisa injuriosa? Sofia olhou para elle e perguntou seccamente: --Tinha alguma coisa a communicar-me? --Eu? Ah, sim! Ahi tem: nós temos cá um homem que chegou ha dias; é primo do Jacob, está doente, está tisico, mas é esperto e percebe muita coisa. Posso mandar chamal-o? --Porque não? retorquiu Sofia. Rybine fitou-a franzindo as palpebras e ordenou em voz baixa: --Jéfim, vae a casa do homem... diz-lhe que venha cá á noite. Jéfim dirigiu-se á choupana, poz o boné e sem uma palavra, sem mesmo olhar para quem estava, sumiu-se pelo bosque, a passo socegado. Rybine meneou a cabeça e, apontando para elle, disse surdamente: --Soffre muito!... É teimoso... Dentro em pouco vae ser soldado... E o Jacob tambem... O Jacob diz que não póde, que não vae para o regimento. O Jéfim tambem não póde, mas diz que quer ir, custe o que custar... Teve uma idéa... Lembrou-se que poderá levar aos soldados pruridos de liberdade... Eu cá, a minha opinião é que não se póde arrombar uma parede dando-lhe com a cabeça. E elles, mettem-lhes uma espingarda na mão e abalam por ahi fóra. Para onde vão? Não percebem que marcham contra si mesmos... Anda a soffrer, o Jéfim. E o Ignaty ainda mais lhe revolve o punhal na ferida. Parece-me inutil... --Qual historia! replicou Ignaty com indignação, sem fitar o seu contendor. Lá no regimento se encarregam de o converter, e ha de acabar por fazer fogo, como os outros! --Não, não creio! replicou o outro, pensativo. Mas, seja como fôr, mais vale evitar isso... A Russia é grande... Como podem elles descobrir um homem? É preciso arranjar um passaporte e fugir de aldeia em aldeia. --São essas as minhas tenções! declarou Ignaty, batendo na perna com uma acha. Uma vez que está resolvido combater-se, é preciso marchar sem hesitação. A conversa cessou. Voltavam pelo ar, atarefadas, as abelhas e as vespas, esmaltando o silencio com os seus zunidos. Os passarinhos chilreavam; de longe, vinha uma canção n’uma toada que vagueava por sobre os campos. Depois de curto silencio, proseguiu Rybine: --É preciso trabalhar, companheiros... Ou talvez prefiram descançar... Lá dentro da choupana ha camas a lastro. Ó Jacob, vae-lhes arranjar folhas bem sêccas... E tu, dá cá os livros, tiasinha! Onde estão? Sofia e Pélagué abriram os alforges. Rybine inclinou-se a espreitar e disse, satisfeito: --Ahi está... Mas que grande quantidade trouxeram! Ora venham vêr! Ha muito tempo que trabalha n’este negocio, a senhora? acrescentou, falando com Sofia. --Ha doze annos. --Então, como se chama? --Chamo-me Anna Ivanovna. Porquê? --Cá por coisas. E já esteve presa provavelmente? --Já estive. --Bem vês! disse Pélagué, baixo e em tom de censura. E tu que a trataste mal... Ficou calado um momento. Depois, tomando um pacote de livros, respondeu: --Não se zangue! Campónio e fidalgo são como o alcatrão e a agua, não ha maneira de os misturar, não se dão... --Não sou fidalga; sou uma creatura que pensa, que soffre e geme! contestou Sofia. --É possivel! disse Rybine. Vou esconder tudo isto. Ignaty e Jacob approximaram-se d’elle, de mãos estendidas. --Dá-nos alguns! disse Ignaty. --São todos iguaes? perguntou Rybine a Sofia. --Nem todos. Vem tambem um jornal... --Ah! Os tres homens precipitaram-se para a cabana. --É exaltado, este rapaz! observou Pélagué, baixando a voz e seguindo-os com olhar pensativo. --É verdade, disse Sofia no mesmo tom. Nunca vi uma cara como aquella... Dir-se-ia um martyr heroico!... Vamos lá tambem; estou curiosa por ver o effeito do jornal. --Mas não se zangue com elle... supplicou brandamente a outra. --Que bom coração é o seu, Pélagué! Ao ver surgir as duas mulheres á porta da choupana, Ignaty levantou a cabeça e lançou-lhes rapido olhar; depois, enterrando os dedos pelos cabellos annelados, curvou-se de novo sobre o jornal, que desdobrára nos joelhos. Rybine, de pé, apresentava o periodico á luz d’uma restea, que penetrava na choupana por uma greta do tecto; ia deslocando pouco a pouco o jornal sob o feixe de luz, á medida que ia lendo e lia por bocca pequena. Jacob, ajoelhado, firmava o peito de encontro á borda d’uma cama e lia tambem. Pélagué viu que a Sofia não passava despercebido o enthusiasmo dos trez por aquellas palavras de verdade. O rosto illuminou-se-lhe n’um sorriso. Devagarinho, foi para um canto da choça e sentou-se. Sofia, em silencio, passou-lhe o braço pelos hombros. --Tio Mikhaíl! Olhe que nos insultam, n’este papel, a nós, camponezes! proferiu Jacob a meia voz, sem se mexer. Rybine voltou-se para elle e disse, risonho: --É porque nos estimam. Aquelles que nos amam podem dizer-nos tudo o que quizerem sem que nos irritemos. Ignaty respirou ruidosamente, ergueu a cabeça e poz-se a rir; em seguida, fechou os olhos, dizendo: --Está aqui escripto: «O homem dos campos deixou de ser uma creatura humana.» E é bem verdade; já o não é! Perpassou pelo seu rosto ingenuo e franco uma expressão de aviltamento. --Este sabio das duzias! continuou, referindo-se ao articulista. Eu queria vêr-te na minha pelle! Fizesses-te tu fino! Então é que se havia de vêr o que tu eras! --Vou descansar um bocado, disse Pélagué a Sofia. Sinto-me um pouco fatigada e este cheiro do alcatrão faz-me dôres de cabeça. Vem? --Ainda não. Pélagué estendeu-se na cama e d’ahi a pouco dormitava. Sofia, sentada á cabeceira, continuava observando os leitores, ao passo que ia enxotando com sollicitude os zangãos e as vespas que vinham adejar em volta do rosto da companheira. Pélagué, com os olhos meio cerrados, percebia-o e taes attenções impressionavam-na. Rybine approximou-se, perguntou: --Está a dormir? --Está. Elle calou-se um pedaço, attentou no sereno rosto da anciã e com um suspiro proseguiu baixinho: --É talvez esta a primeira que tenha seguido o filho pelo mesmo caminho!... a primeira! --Vamo-nos embora, não a incommodemos, propoz Sofia. --Temos de ir trabalhar. Eu preferia ficar a conversar comsigo, mas é forçoso deixar isso para a noite. Vamos, camaradas! Saíram os trez homens, deixando Sofia na choupana. Pélagué pensava: --Deus seja louvado! fizeram as pazes!... Entendem-se um com o outro!... E adormeceu socegadamente, aspirando o ar perfumado da floresta. VI Á noitinha, voltaram os quatro operarios, satisfeitos por verem terminado o seu dia. Ao ruido das vozes, Pélagué, accordou, veio á porta da cabana, risonha, bocejando. --Vocês a trabalharem e eu a dormir como uma fidalga! disse, fitando-os affectuosamente a todos. --Não faz mal, nós perdoamos-te, disse Rybine. Mostrava-se mais socegado do que ao jantar; o cansaço dissipára o seu excesso de agitação. --Ignaty! ordenou. Arranja a ceia. Cada um trata da casa, por sua vez. Hoje é ao Ignaty que compete dar-nos de comer e de beber... Ora ahi está! --De bom grado cedia hoje a minha vez a outro qualquer, declarou Ignaty. E, emquanto procurava distinguir a conversa, começou a apanhar aparas, afim de accender o lume. --As visitas são sempre interessantes para toda a gente! confirmou Jéfim, sentando-se ao lado de Sofia. --Eu te ajudo, Ignaty! disse Jacob. Penetrou na choça e de lá trouxe um pão redondo. Partiu-o em fatias. --Schiu! murmurou Jéfim, oiço tossir... Rybine apurou o ouvido e disse: --É elle que chega. E, voltado para Sofia, explicou: --Vae ouvir uma testemunha. A minha vontade era poder leval-o a essas cidades, pôl-o em exposição por essas praças, e o povo que fôsse ouvil-o... Diz sempre o mesmo, mas é digno de ser ouvido!... Silencio e escuridão tornavam-se mais profundos; as vozes ecoavam com mais suavidade. Sofia e Pélagué seguiam com o olhar os camponezes a moverem-se pesadamente, mas de vagar, com singular prudencia. Do bosque surgiu um homem corcovado, de alta estatura, caminhando apoiado com todo o seu peso a uma bengala. Ouvia-se-lhe o ruido da respiração rouca. --Ahi vem o Savely! exclamou Jacob. --Aqui me têm! disse o homem, parando, saccudido por um accesso de tosse. Vestia um sobretudo usado que lhe cahia até aos pés; de sob o chapeu redondo e muito velho, saíam-lhe em madeixas ténues uns cabellos amarellentos e asperos. Cobria-lhe o rosto ossudo e pallido uma barba loira; a bocca aberta, os olhos com um brilho de febre, nas orbitas profundamente cavadas, como no fundo de sombrias cavernas. Apresentado a Sofia, perguntou: --Segundo parece, trouxe livros para o povo lêr? --Sim, senhor. --Agradeço-lh’o... pelo povo. O povo não pode ainda compreender o livro da verdade... ainda não póde agradecer-lhe como merece; mas eu que o compreendi já, agradeço-lhe em nome do povo. Respirava com avidez, absorvendo o ar em pequenas golfadas repetidas. Falava a espaços. Os dedos descarnados das diafanas mãos, perpassava-os pelo peito, tentando abotoar o sobretudo. --Póde ser-lhe doentio, para si, este passeio tão tarde, pela floresta... Ha muita humidade e suffoca-se, ali! fez notar Sofia. --Para mim já nada ha salubre ou doentio! respondeu, offegante. Só a morte será bemvinda. Era doloroso ouvir falar aquelle homem, tanto mais que toda a sua pessoa provocava dó, uma compaixão infinita mas improficua. Agachou-se sobre uma barrica, dobrando os joelhos com precaução, como se receasse que se quebrassem; depois, enxugou a fronte, coberta de suor. Tinha os cabellos seccos e sem viço. O lume começava a atear-se. Ao clarão das chammas tudo se deslocou; as sombras, lambidas pelas labaredas, fugiam assustadas pela floresta. Por cima do brazeiro appareceu por instantes a cara redonda d’Ignaty, a soprar. Depois, apagado o lume, ficou persistente o cheiro do fumo, e o silencio e as trevas apoderaram-se de novo da clareira, como se viessem apurar o ouvido para o falar rouco do doente. --Mas ainda posso ser util ao povo... Sim, como o testemunho d’um enorme crime! Olhem para mim! Tenho vinte e oito annos e ando a morrer... Ha dez annos, levantava nos hombros, sem me custar, até duzentos kilos... Pensava eu então que com uma saude d’aquellas, havia de levar setenta annos para chegar á cova, direito e sem tropeçar... E afinal vivi dez... e não posso ir mais longe. --Ahi têm a canção d’este homem! disse Rybine com voz rancorosa. Reaccendeu-se mais viva a fogueira; de novo as sombras debandaram, para se sumirem nas chammas, agitando-se em torno do brazeiro n’uma dansa silenciosa e hostil. Sob a mordedura do lume, os velhos troncos estralejavam e gemiam. A folhagem susurrava em segredo, agitada por uma corrente d’ar quente. Vivas e folgazãs, as linguas de fogo purpureas e doiradas brincavam, abraçavam-se, erguiam-se, despedindo faíscas. Voou uma folha em braza. No ceu, as estrellas sorriam para as scentelhas, attraíndo-as a si. --Não é só minha esta canção; ha milhares de creaturas que tambem a cantam, mas só para si! E cantam-na só para si porque não compreendem que as suas miseraveis existencias são uma lição salutar para o povo... Quantos seres minados ou estropiados pelo trabalho e pela cadeia, não morrem para ahi de fome, sem um queixume!... É preciso gritar bem alto, companheiros, é preciso gritar! E Savely entrou a tossir, todo curvado e tremulo. Jacob poz na mesa uma caneca de _koass_[2] e atirou para o lado um molho de cebolas, e disse ao enfermo: --Anda, Savely, trouxe leite para ti. O outro abanou negativamente a cabeça; mas Jacob agarrou-o por debaixo dos braços e fêl-o sentar á mesa. --Oiçam, disse Sofia a Rybine, em voz baixa e em tom de censura, para que o obrigaram a vir? Póde morrer d’um momento para o outro. --É certo, replicou Rybine. Mas mais vale morrer rodeado de amigos; ser-lhe-á menos doloroso do que na solidão. Tem soffrido muito na sua vida; pois que soffra ainda mais um pouco para servir de aviso aos homens... Que lhe póde fazer isso? Ali está! --Chega a parecer que se desinteressa d’elle com horror pelos seus soffrimentos, exclamou Sofia. Rybine lançou-lhe rapido olhar e respondeu com modos sombrios: --Só os fidalgos é que se recreiam com o espectaculo do Christo a gemer na sua cruz; mas nós outros, nós queremos estudar os homens ao vivo e gostavamos que a senhora tambem apprendesse a conhecel-os... O enfermo retomou a palavra: --Destroe-se um homem com o trabalho, dá-se cabo d’elle com a prisão... e porquê? O nosso patrão--era na fabrica Nefédof que eu trabalhava á doida--o nosso patrão deu a uma cançonetista uma grande bacia de mãos e mais uma bacia de cama tudo de oiro... E foi em tal vaso que ficaram as nossas forças, as nossas vidas... as minhas e as de milhares d’outros. Ahi têem para que ellas serviram! --O homem foi creado á imagem e semelhança de Deus! disse Jéfim, sorrindo--e ahi está o emprego que lhe dão... não vae mal! --É necessario gritar isso! exclamou Rybine com violenta palmada na mesa. --Não devemos supportal-o! accrescentou Jacob mais baixo. Ignaty limitou-se a sorrir. Notava a velha que os trez operarios falavam pouco, mas escutavam com uma attenção insaciavel d’almas sequiosas. De cada vez que Rybine abria a bocca, fitavam-no, copiavam-lhe os menores movimentos. As frases de Savely, porém, provocavam-lhes singulares tregeitos de enfado. Dir-se-ia não sentirem dó algum do enfermo. E Pélagué inclinando-se ao ouvido de Sofia, perguntou baixinho: --É certo o que elle conta? Sofia respondeu em voz muito alta: --É certo, sim senhora! Os jornaes falaram do caso; foi em Moscou que isso se deu. --E esse homem não foi castigado! disse Rybine com ódio. Devia ter sido punido; precisava que o levassem a uma praça publica e ali cortal-o aos bocados, atirando aos caes essa carne immunda! Grandes castigos se hão de vêr, quando o povo se levantar! --Que frio que faz! disse o tisico. Ajudou-o Jacob a levantar e a chegar-se para o lume. A fogueira ardia em clarão uniforme e vivo. Sombras imprecisas erravam em torno, contemplando surprezas o brinquedo das labaredas. Savely, sentou-se n’um cepo e offereceu ao calor as mãos seccas e transparentes. Rybine designou-o com um gesto do mento, e disse para Sofia: --Sabe mais do que um livro! Eu é que o conheço... Quando uma máquina arranca um braço ou mata um homem, compreende-se; é sempre do homem a culpa. Mas sugar o sangue d’um homem e atira-lo depois á margem como uma coisa pôdre, isso é que não se explica. --Sim... pronunciou com lentidão Ignaty, não se explica... Um chefe de districto conheci eu, que obrigava a gente do campo a cumprimentar-lhe o cavallo, quando o levavam a passeio pela aldeia, e que punha a ferros quem desobedecesse. Para que lhe servia aquillo?... É o que tambem não se explica! Depois de comerem, fizeram roda junto á fogueira. Diante d’elles o lume ardia, devorando rapidamente a lenha; por detraz, ceu e floresta envolviam-se na treva. O estropiado fixava no lume os olhos esgazeados, tossia sem descanso, com grandes arrepios. Parecia que do peito lhe saíam pedaços da propria vida, solertes em abandonar aquelle corpo esqualido. Dansavam-lhe no rosto reflexos do fogo sem que lhe colorissem a pelle fenecida. Só os olhos scintillavam n’uma coruscação azulada, bruxuleante. --Talvez preferisses abrigar-te na cabana, an, Savely? lembrou Jacob, inclinando-se-lhe no hombro. --Para quê? respondeu esforçadamente. Quero ficar aqui. Já não tenho muito tempo a viver entre os homens... Não, não tenho para muito tempo. Vagueiou o olhar em volta, ficou um bocado calado e proseguiu, com um sorriso palido: --Sinto-me bem entre vocês. Estou-os vendo e estou a pensar que talvez sejam vocês que hão de vingar todos os que foram maltratados... o povo inteiro! Ninguem lhe respondeu. E d’ahi a pouco, a cabeça pendia-lhe para o peito e entrou a dormitar. Rybine considerou-o demoradamente e disse meio em segredo: --É sempre assim quando vem visitar-nos; senta-se para ahi e conta sempre a mesma coisa. --Aborrece ouvil-o repetir-se! murmurou Ignaty. Bastava ouvir uma vez essa historia para não a esquecer e elle sempre a moêl-a! --É que para elle, n’essa historia, tudo se resume, a sua vida inteira, compreende-o bem! justificou Rybine, soturno. E da mesma sorte a vida de toda uma legião de seres. Ouvi-lhe essa historia dezenas de vezes já, e, ainda assim, acontece-me ter certas dúvidas. Ha horas de bondade em que a gente se recusa a crêr na vilania do homem, ou na sua loucura, e em que se sente compaixão por todos, ricos e pobres... porque o rico tambem é um transviado do bom caminho. A um cega-o a fome, ao outro, o dinheiro... E então, a gente pensa: «Homens, meus irmãos! Desentorpeçam esses raciocinios, reflictam com lealdade, reflictam bem». O doente oscilou estremunhado, abriu os olhos e deitou-se sobre a terra. Sem ruido, Jacob levantou-se, foi á cabana buscar um pequeno agasalho de pelles, e estendeu-lho por cima. Depois, retomou o seu logar ao lado de Sofia. Ás vozes dos homens misturavam-se o surdo crepitar da lenha e o murmurio das labaredas; e aquelle lume, qual rosto rubicundo, parecia sorrir-se com malicia para os sombrios vultos que lhe faziam circulo. Falou então Sofia da lucta dos povos em prol do direito á vida e á liberdade, dos remotos combates dos rusticos da Allemanha, dos infortunios dos irlandezes, dos feitos do operariado francez. Sob a floresta, revestida de veludos, na pequena rotunda limitada pelos majestaticos arvoredos, sob a abobada do negro firmamento, perante a risonha lareira, em meio d’aquelle grupo de sombras hostis e assombradas, ressuscitavam os acontecimentos que haviam revolucionado o mundo dos saciados, dos entes tresloucados pela cubiça; desfilavam uns após outros, os povos da terra, sangrentos, esgottados em mil combates; celebravam-se os nomes dos heroes da liberdade e da justiça... Aquella debil voz de mulher ecoava mansamente, como se viesse do passado; instigava esperanças, inspirava confianças. O auditorio escutava religiosamente aquella melopeia, a vasta historia dos seus irmãos espirituaes. Todos fitavam o rosto pálido e magro da narradora, correspondiam com sorrisos ao sorrir dos olhos cinzentos. E com mais viva luz brilhava para elles a sagrada causa da humanidade; nos seus peitos medrava mais e mais o sentimento do parentesco moral com os seus irmãos do mundo inteiro; um novo coração nascia para elles na propria terra e ardiam no desejo de tudo compreenderem, de tudo resumirem n’elle. --Ha de chegar o dia em que os povos todos levantarão cabeça, bradando: «Basta! não queremos continuar n’esta vida!» proclamou Sofia com voz sonora, e então ha de desabar o ficticio poder d’aquelles que só na avidez encontram a sua força, a terra fugir-lhes-á debaixo dos pés e ficarão sem saber em que apoiar-se. --É o que ha de acontecer! affirmou Rybine, de cabeça baixa. Que ninguem poupe as suas forças e tudo vae de vencida! Pélagué escutava, arregalando muito as sobrancelhas e com um sorriso de surpreza nervosa. Estava a ver que tudo o que nas maneiras de Sofia lhe parecia insolito, a sua audacia, a sua extrema vivacidade, tudo desapparecera, como submerso no fluxo regular e entusiástico das suas palavras. A noite silenciosa, o revolutear do lume, a fisionomia da joven oradora, interessavam-na; mas o que a deleitava principalmente era a absorta attenção dos campónios. Permaneciam immoveis, esforçando-se por não perturbarem fôsse com o que fôsse o desenvolvimento sereno do discurso; dir-se-ia n’elles um receio de quebrarem o fio luminoso que os ligava ao mundo. De tempos a tempos, um d’elles collocava com precaução uma nova acha no lume; e dispersava com a mão as faúlhas e o fumo, para que não incommodassem Sofia. Ao romper da aurora, Sofia calou-se, fatigada, e attentou, sorrindo, nos rostos pensativos e tranquilisados que a cercavam. --É tempo de partirmos, disse a velha. --Vamos! respondeu Sofia com expressão de cansaço. Um dos operarios suspirou ruidosamente. --É pena que se vão! declarou Rybine com desacostumada meiguice. A senhora fala tão bem! Grande coisa é ligar as creaturas pela sorte commum! Quando a gente pensa que ha milhões de sêres a quererem o mesmo que nós queremos, o coração torna-se bom... E ha tanta força na bondade! --E quando se procede com bondade, pagam-nos com a violencia! protestou Jéfim n’uma risadinha e pondo-se de pé com presteza. É bom que ellas se vão, tio Mikhaíl, antes que sejam vistas... Quando os livros estiverem distribuidos pelo povo, as autoridades hão de indagar d’onde vieram... E póde alguem lembrar-se das peregrinas e denunciál-as... --Obrigado pelo incommodo, mãe! disse Rybine interrompendo Jéfim. Sempre que olho para ti me lembro do Pavel... Fizeste bem em seguir-lhe o exemplo... Inteiramente apaziguado agora, esboçava franco e amigavel sorriso. Fazia fresco; no emtanto, conservava-se de blusa, o cós entreaberto, o peito á mostra. Pélagué attentou-lhe no robusto corpo e aconselhou, sollicita: --Devias agasalhar-te, faz frio. --Se eu estou tão quente cá por dentro! objectou. De pé, junto do fogo, os trez rapazes conversavam baixo; aos pés d’elles, dormia o doente, embrulhado nas pelles. Branqueava-se o ceu, fundiam-se as sombras. Tremula, a folhagem aguardava o sol. --Está bem, adeus! disse Rybine, apertando a mão de Sofia. Como hei de perguntar por si, na cidade? --Basta que me procures, responde Pélagué. Lentamente, em um só grupo, vieram os operarios apertar a mão de Sofia com expressões desastradas, de affecto. Em cada um d’elles transparecia secreta gratidão e amisade, e tal sentimento, novo como era para elles, desconcertava-os. Com os olhos prazenteiros e amortecidos pela insomnia, consideravam Sofia, firmando-se ora n’um pé, ora no outro. --Querem beber uma gota de leite antes de partirem? offereceu Jacob. --Ainda ficou algum? interrogou Jéfim. --Um pouco. Mas Ignaty, confuso, declarou, coçando a cabeça: --Não ha; eu entornei-o. E todos os trez se puzeram a rir. Falavam no leite, mas Pélagué percebia que pensavam em coisa bem diversa; que ambicionavam para Sofia e para si propria todas as felicidades possiveis, mas sem poderem expressar-se. Sofia estava visivelmente commovida, e a sua perturbação era tal, que apenas conseguiu dizer em tom de voz humilde: --Obrigada, companheiros! Entreolharam-se, como se este tratamento os tivesse feito cambalear de prazer. Ouviu-se um accesso de voz rouca do enfermo. No lume extinguiam-se os brazidos. Até mais vêr! disseram os campónios a meia voz; e os adeuses melancolicos de todos acompanharam por muito tempo as duas mulheres. Vagarosamente estas embrenharam-se por um atalho da floresta, á claridade da aurora. Entraram a falar de Rybine, do doente, dos operarios, que sabiam conservar tão attencioso silencio e que haviam exprimido sentimentos de reconhecida amisade por fórma desgeitosa mas eloquente, dispensando ás duas mulheres mil cuidados. Entraram no campo. O sol vinha-lhes ao encontro. Invisivel ainda, o astro abrira no céu um leque diáfano de purpureos raios; pela herva scintillavam gotas de rócio em multicolores lumes de alegria viva e primaveril. Despertavam os passaros e animavam a aurora com gritos joviaes. Com o seu grasnar pressuroso, corpulentos corvos voavam para longe, agitando pesadamente as azas; pelos campos semeados já desde o outono, outros corvos de lustrosa plumagem, saltitavam, tagarelando em vozes ritmadas; perto, andava um verdelhão a assobiar, inquieto. Desanuviavam-se os longes e acolhiam o sol, apagando as sombras nouturnas das cumieiras. NOTAS DE RODAPÉ: [2] Bebida em uso entre o povo da Russia, obtida pela fermentação de um cosimento de farinha de cevada.--N. do T. VII A existencia de Pélagué decorria em singular socego que por vezes a surpreendia. Tinha o filho na cadeia, sabia que o esperava duro castigo; de cada vez que n’isso pensava, apresentavam-se-lhe, mau grado seu, á memoria as imagens de André, de Fédia e d’outros,--toda uma larga série de caras conhecidas. Resumindo para si todos os que da sua sorte compartilhavam, a figura de Pavel avantajava-se aos olhos de Pélagué e quando pensava no filho, os seus pensamentos alastravam, dirigiam-se para todos os lados, sem que ella desse por tal. Era uma dispersão em mil lampejos desiguaes que tudo interessavam, que tudo pretendia e tudo reuniam em um mesmo quadro e assim impediam a mãe de se concentrar no desgosto que experimentava por não ter Pavel junto, de si e no terror que lhe inspirava a sorte do filho. Pouco depois partiu Sofia. Cinco dias mais tarde, voltava ella desenvolta e alegre, para desaparecer de novo algumas horas passadas. Então só a tornou a vêr ao fim de quinze dias. Dir-se-ia percorrer a existencia em circulos cada vez maiores. Vinham assim de vez em quando a casa do irmão para lhe encher a casa de valorosa decisão e de musica. Tornára-se agradavel a musica a Pélagué, quasi indispensavel mesmo. Sentia-a correr-lhe no peito, penetrar-lhe no coração, fazendo brotar catadupas de pensamentos rápidos e intensivos, e desabrochar expressões suaves e bellas, suggeridas pela força das melodias. Difficilmente se resignava, porém, ao desleixo de Sofia, que atirava para todos os cantos os objectos que lhe pertenciam, e as pontas e a cinza dos cigarros; mais lhe custava a habituar-se á sua maneira de falar tão decidida. Era por demais flagrante o contraste com a pesada tranquilidade de Nicolao, com a gravidade benevola e constante das suas palavas. Ao entendimento de Pélagué, Sofia não passava d’uma rapariguita com vontade de passar por pessôa de juizo e que olhava ainda para as pessôas como para brinquedos engraçados. Falava muito da santidade do trabalho e augmentava nesciamente a tarefa da pobre mulher com o seu desmazelo; discorria sobre a liberdade e, comtudo, era visivel incommodo que a todos proporcionava com a sua irritavel impaciencia, com as suas incessantes discussões e o seu proposito de se collocar acima dos outros. Muitas contradicções se davam n’ella; Pélagué tratava-a com prudencia constante, mas sem o sentimento caloroso que nutria por Nicolao. Sempre meticuloso, este levava dia por dia a mesma vida monotona e regrada; almoçava ás oito horas, lia o seu jornal em voz alta, commentando as noticias mais importantes. Pélagué descobria n’elle affinidades de caracter com André. Como acontecia com o russo-menor, o seu hospedeiro nunca falava dos homens com rancor; considerava-os a todos culpados da má organisação da existencia. Mas a fé n’uma vida nova não era n’elle tão fervorosa como em André, nem mesmo tão idealmente luminosa. Tinha um modo de falar pausado, uma voz de juiz integerrimo e rigoroso; até quando fazia qualquer narrativa de horrores, esboçava sempre um sorriso compassivo; mas nos olhos tinha um clarão sinistro. Quando reparava n’aquelle olhar, Pélagué compreendia que não era homem para perdoar; e, sentindo quão mortificadora se lhe devia tornar tal severidade, tinha pena d’elle. E affeiçoava-se-lhe cada vez mais. Ás nove horas, ia elle para a repartição; a velha arranjava os quartos, preparava o jantar, lavava-se, mudava de vestuario; depois, sentava-se no quarto e punha-se a vêr as estampas dos livros. Applicando toda a sua attenção, ainda podia ler um bocado; mas, ao cabo d’algumas páginas, ficava cansada e perdia o sentido ao que lia. Em compensação, as gravuras distraíam-na muito, qual a uma criança: desenrolavam-lhe diante da vista um mundo novo, maravilhoso, compreensivel, no emtanto, e quasi tangivel. Via cidades immensas com magnificos edificios, máquinas, navios, monumentos, riquezas incalculaveis amontoadas pelos homens, a par das criações da natureza, n’uma diversidade que a confundia. Alargava-se a vida até o infinito, patenteando-lhe em cada dia coisas colossaes, desconhecidas, portentosas; e pela abundancia das suas riquezas, o variegado das suas bellezas, exaltava mais e mais aquella alma sedenta que despertava. Gostava ella principalmente de folhear um livro de zoologia; e bem que tal obra estivesse escripta em lingua estrangeira, eram as suas illustrações as que mais nítida representação lhe davam da riqueza, da belleza e da immensidade da terra. --Como a terra é grande! disse um dia a Nicolao. --É; e apesar d’isso a humanidade vive apertada... O que sobretudo a enternecia eram os insectos, particularmente as borboletas; percorria, surpreza, os desenhos que as representavam e dizia: --Que belleza! não é verdade, Nicolao? Quantas d’estas perfeições existem por toda a parte! Mas vivem occultas aos nossos olhos, passam ao nosso alcance sem repararmos n’ellas. Cada qual corre á sua vida, nada sabe, nada admira, porque não ha tempo nem vontade para isso. Quanto prazer poderiamos disfructar, se todos soubessem como a terra é rica e que de coisas admiraveis ella encerra! E é tudo para todos e cada um para tudo... não é assim? --Sim, com effeito... respondia Nicolao, sorrindo. E trazia-lhe mais livros. Á noite, havia visitas muitas vezes; entre ellas, Aleixo Vassilief, um bello homem de rosto claro, barba preta, taciturno e grave; Romão Pétrof, este de cara redonda e avermelhada, que fazia constantemente estalar os beiços n’um gesto de lastima; Ivan Danilof, baixo e magro, barba em bico, e uma vozinha fina, agressiva, berrante e acerada como um estilete; Iégor, que de tudo gracejava, de si, dos companheiros e da doença que o ia minando. A meude, vinha gente que Pélagué não conhecia, de povoações distantes e tinham longas conferencias com Nicolau, sempre sobre o mesmo assunto: a liberdade e os operarios de todas as nações. Discutiam acaloradamente, gesticulavam com força, bebia-se muito chá. Ao ruído da vozearia, Nicolao compunha ás vezes umas proclamações que passava a lêr aos consocios e ali mesmo eram copiadas em caracteres d’imprensa. Ella recolhia cuidadosamente os fragmentos dos rascunhos e queimava-os. Emquanto ia servindo o chá, admirava ella o ardor com que os companheiros falavam da vida e da sorte do operário e do campónio, da maneira mais vantajosa e rápida de semear entre o proletariado a idéa da verdade e da liberdade, educando-lhe o espirito. Muitas vezes, divergiam as opiniões, zangavam-se, accusavam-se uns aos outros, injuriavam-se, mas logo voltavam a discutir. Mas ella sentia bem que conhecia melhor do que todos aquelles palradores, a vida do operario; que avaliava com mais nitidez a enormidade da tarefa que elles se propunham, o que lhe permittia tratar os visitantes com a condescendencia um tanto melancólica d’uma pessôa de idade madura a ver crianças a brincarem de marido e mulher sem compreenderem o lado trágico da situação. Mau grado seu, comparava-lhes os discursos com os de seu filho, com os de André, e percebia agora differenças que d’antes não podia avaliar. Gritava-se mais ali do que lá no sitio, ao que lhe parecia. E concluia: --É que sabem mais, falam mais de rijo... A maior parte das vezes, porém, notava ella que todos aquelles homens parecia que se exaltavam de proposito uns aos outros, que eram ficticias as suas exaltações; cada qual pretendia demonstrar aos collegas que andava mais perto da verdade do que elles e que mais presava esta verdade do que qualquer d’elles. Os outros vexavam-se e, a seu turno, para provarem como conheciam bem tal verdade, questionavam com desabrimento e rudeza. Cada qual, tudo era querer subir mais alto do que os mais e isto causava-lhe pungente tristeza. Agitava então os supercilios, divagando pela assistencia olhares de súpplica, e pensava: «Já se esqueceram do Pavel e dos companheiros!... Já não pensam n’elles.» Escutava sempre attenta as discussões, que, naturalmente não compreendia; procurava descobrir os sentimentos sob aquelle fluxo de palavras. Percebeu então que nas reuniões do seu bairro, quando se falava do bem, todos o acceitavam integro e completo, ao passo que ali, tudo se fragmentava, tudo se dividia; além, os sentimentos tinham mais força e convicção; aqui, era o domínio das idéas radicaes que retalhavam tudo em bocados. Aqui, falava-se mais da destruição do velho mundo; além, sonhava-se um mundo novo, e era por isso que os discursos do seu filho e de André lhe eram mais compreensiveis, mais ao seu alcance. Surdo descontentamento para com os homens se lhe introduzia furtivamente no coração, trazendo-a inquieta; nascia n’ella a desconfiança, sentia desejos de compreender tudo, e o mais depressa possivel, para falar tambem do mundo com palavras dictadas pela sua alma. Notava igualmente Pélagué, quando vinha algum companheiro operario, que Nicolao o recebia com uma semceremonia singular; dava ao rosto uma expressão de bonhomia e falava por maneira diversa do costume, se não com mais grosseria, pelo menos com maior liberdade. --É que faz o possivel para descer ao nivel d’elles, pensava. Mas esta razão não a satisfazia, pois que o operario claramente se sentia constrangido, com a intelligencia como que oppressa, e não chegava a expressar-se tão simples e livremente como com ella, por exemplo, mulher da sua condição. Um dia, n’um momento em que Nicolao se ausentára da sala, perguntou a um d’elles: --Porque estás tu tão contrafeito? Olha que não és um menino a fazer exame. O homem abriu-se n’um franco sorriso. --É a falta de habito... Assim como assim... não é cá da nossa classe! E ficou-se cabisbaixo. --Não quer dizer nada, replicou ella. Pois se elle é tão boa pessoa... O operario volveu para ella o olhar, sorriram um para o outro e nada acrescentaram. Ás vezes, apparecia por lá Sachenka. Nunca se demorava, falava sempre apressadamente, sem se rir. E quando se retirava, perguntava invariavelmente a Pélagué: --Como está o Pavel? Passa bem? --Sim, senhora; graças a Deus! Está bom, bem disposto. --Cumprimentos da minha parte! concluia a rapariga, e desapparecia. Umas vezes por outras, queixava-se-lhe a pobre mãe por conservarem preso o Pavel tanto tempo, sem se fixar data para o julgamento. Sachenka calava-se, frazindo o sobrolho; tremiam-lhe os labios e os dedos agitavam-se-lhe nervosamente. A mãe de Pavel tinha impetos de lhe dizer: --Minha querida, eu sei que o amava... sim, bem o sei! Mas não se atrevia: os ares serios da rapariga, a sua bocca franzida, a recusa do seu falar pareciam repudiar de antemão qualquer meiguice. Limitava-se a sorrir e a apertar a mão que lhe estendiam, dizendo comsigo: «Pobre pequena!...» Um dia, appareceu-lhe Natacha. Muito satisfeita com vêr que Pélagué a beijava affectuosamente, annunciou-lhe, em voz sumida, e entre outras coisas: --Morreu minha mãe... morreu, a minha pobre mamã! E, limpando os olhos, em rapido gesto: --Que pena tenho!... Ainda não tinha feito cincoenta annos... Podia viver muito mais tempo. Mas, quando penso em tudo o que vejo, chego a pensar que a morte lhe ha de ser mais leve do que a vida! Vivia sempre só, estranha a todos; não era precisa a ninguem; meu pae tinha-a feito timida com os seus continuos ralhos... Pode-se por ventura dizer que era viver aquillo? Só vive quem espera alguma coisa bôa; mas ella, ella nada tinha a esperar, a não ser os maus tratos! --É bem certo o que diz, Natacha! declarou a outra depois de reflectir. Para viver é preciso que se espere alguma coisa. Nada esperar é viver? Affagou com mimo a mão da rapariga e perguntou-lhe: --E agora, vive sósinha? --Vivo, respondeu Natacha. Calou-se Pélagué um instante; depois, concluiu com um sorriso: --Que importa! Quando se tem uma alma bôa, nunca se está só, sempre se está acompanhada... Natacha foi residir, na qualidade de professora, para um districto onde havia uma fabrica de fiação. Pélagué ia de vez em quando levar-lhe livros proíbidos, proclamações, jornaes. Estava já encartada n’este officio. Varias vezes em cada mez, vestida de irmã da caridade, de vendedeira de rendas ou de retrozaria, de burgueza ricaça ou de peregrina, lá se ia pela provincia fóra, a pé, de caminho de ferro, n’uma carroça, alforge ao hombro ou de mala na mão. Nos hoteis ou nas estalagens, nos vapores, assim como nos comboios, a sua attitude era sempre calma e simples; com os desconhecidos, era a primeira a dirigir-lhes a palavra, e captava irresistiveis simpatias com o seu falar afavel, a sua tranquilidade de mulher que muito viu e aprendeu. Agradava-lhe conversar com os infelizes e informar-se das suas opiniões sobre o mundo, dos seus infortunios e perplexidades. Enchia-se-lhe o coração de alegria sempre que observava n’estes interlocutores aquelle vivo descontentamento que, embora proteste contra os golpes da adversidade, ardentemente busca solução para os grandes problemas da humanidade. Mais vasto sempre e mais variado, desenrolava-se aos seus olhos o panorama da vida com todas as suas luctas. Em tudo e por toda a parte ella encontrava a tendencia cínica do homem para enganar o homem, para roubal-o, para tirar d’elle o maior proveito possivel. E tambem via a abundancia por toda a terra, ao passo que o povo jazia na miseria, vegetando a bem dizer esfomeado, no meio das incommensuraveis riquezas. Das cidades, via os templos a abarrotar d’oiro e prata inuteis a Deus, emquanto fóra, nos adros, os necessitados tiritavam na vã espectativa d’uma esmola que não vinha. Aquelle espectaculo era-lhe já conhecido: as igrejas opulentas, as vestes bordadas dos padres, as mansardas dos pobres e os seus ascorosos farrapos; mas n’esse tempo tudo lhe parecia natural, pois que no presente considerava tal estado de coisas offensivo para os pobres, aos quaes, ella bem o sabia, a religião é mais necessaria que aos ricos. Mercê das imagens de Jesus, das narrativas que ouvira, Pélagué sabia que Elle era um amigo para os miseraveis, que Elle se vestia sem ostentação; e nas igrejas, onde os pobres vinham a Elle para serem consolados, ia encontral-O opprimido em arrebiques d’oiro e de sedas, desdenhosamente insolentes em face de tanta privação. E as palavras de Rybine voltavam-lhe á memoria: --Até de Deus se serviram para nos ludibriarem! Disfarçaram-no com embustes e calumnias para nos assassinarem a alma... Sem que desse por tal, Pélagué rezava agora menos, mas pensava mais em Jesus, nas creaturas que não falavam d’Elle que nem mesmo o conheciam, segundo parecia, mas que viviam segundo o Seu evangelho e, como Elle, consideravam a terra o reino dos pobres, queriam distribuir em partes iguaes entre os homens todas as riquezas. Reflectia muito em todas estas coisas, aprofundando-as, comparando-as com tudo o que via, e estes pensamentos tomavam corpo, revestiam a fórma luminosa de oração, derramando uma claridade igual na escuridão do mundo, na vida e na humanidade. E afigurava-se á bôa mulher que o proprio Christo, a quem sempre venerára com vago amôr, com um sentimento complexo em que o medo se alliava estreitamente á esperança, á ternura e á dôr, que o proprio Christo se approximava mais d’ella, que se transformára, que lhe era mais visivel, n’uma serenidade mais satisfeita. Agora, via os seus olhos sorrirem-lhe tranquillos com uma viva claridade interior, como se tivesse verdadeiramente ressuscitado, lavado e reanimado pelo sangue candente que por Seu amor generosamente derramam aquelles que teem a sabedoria de nunca O nomear. D’estas viagens voltava, portanto, feliz e animada, porque muito vira e ouvira, e satisfeita com a missão cumprida. --É agradavel jornadear para um lado e outro e vêr tantas coisas, disse ella uma noite a Nicolao. Fica a gente percebendo como esta vida está arranjada. O povo é escorraçado, atirado á margem, refervendo na sua humilhação e perguntando a si mesmo: «Porque me põem de parte? Porque tenho fome, quando ha de tudo em abundancia? Porque sou eu estupido, ignorante, quando ha tanta intelligencia por toda a parte? E onde está Elle, esse Deus de misericordia, para o qual não ha ricos nem pobres, e de quem todos são bem amados?» Pouco a pouco, o povo revolta-se contra a sua existencia; o povo sente que ha de aniquilal-o a injustiça, se não tratar do seu bem estar. E experimentava, cada vez com mais frequencia, a necessidade de falar, ella mesma, na linguagem que era a sua, das injustiças da vida; e, por vezes, era-lhe difficil resistir... Quando a encontrava a folhear os desenhos, Nicolao contava-lhe coisas surpreendentes. Impressionava-a a audacia dos problemas que o homem se propunha; perguntava, incredula: --Pois isso é possivel? E Nicolao descrevia-lhe um futuro de sonho, com uma confiança inabalavel nas suas profecias. --Os desejos do homem não conhecem limite, a sua força é inesgottavel! affirmava elle. Comtudo, o mundo só muito lentamente se enriquece em dons do espirito, pois que, para serem independentes, os homens são obrigados a juntar dinheiro, e não sciencia. Quando tiverem banido a avidez, libertar-se-ão da escravatura do trabalho obrigatorio. Pélagué era raro que compreendesse o sentido das palavras de Nicolao, no emtanto, pungia sensivelmente a fé tranquilla que as dictava. --Ha muito poucos homens livres n’esta terra; é o que faz o infortúnio da humanidade! dizia elle. Com effeito, Pélagué conhecia pessôas que se haviam libertado dos rancores e da cubiça; e pensava que se o número d’essas pessôas avolumasse, o rosto sombrio e horrivel da existencia havia de tornar-se mais benevolo e simples, melhor e mais luminoso. --O homem é obrigado a ser cruel contra sua vontade! dizia tristemente Nicolao. Ella acquiescia com um aceno de cabeça e lembrava-se do russo-menor. VIII Um dia, Nicolao, por hábito tão pontual, chegou da repartição muito mais tarde do que o costume. Em vez de tirar o sobretudo, disse com vivacidade, a esfregar as mãos: --Sabe, Pélagué? Fugiu hoje da cadeia um dos nossos companheiros, á hora das visitas!... Mas não consegui saber quem seja. Ella sentiu-se cambalear, tomada de commoção; deixou-se caír n’uma cadeira e mal poude balbuciar, em segredo: --Será o Pavel, talvez? --Talvez! respondeu Nicolao, encolhendo os hombros. Mas como havemos de o ajudar a esconder-se? onde estará elle? Tenho andado a passear por essas ruas, a ver se o encontrava. É uma tolice, mas é forçoso fazer qualquer coisa! Eu torno a saír. --Tambem eu saio! declarou a mãe de Pavel. --Então, vá a casa do Iégor; talvez elle saiba alguma coisa... aconselhou Nicolao. E saíu. Ella atirou para a cabeça um lenço, e foi-se nas peugadas de Nicolao, nadando em esperança. Levava a vista turvada; o coração batia-lhe em fortes pulsações que quasi a obrigavam a correr. Voava ao encontro d’uma possibilidade, de cabeça baixa, sem nada vêr em torno. «Talvez já esteja em casa do Iégor!» Este pensamento instigava-lhe o passo. Fazia calor; Pélagué ia offegante. Na escada de Iégor parou, sem forças para ir mais longe. Voltou-se então e soltou um grito de espanto: tinha-lhe parecido vêr na soleira da porta Vessoftchikof, de mãos nas algibeiras e um sorrisinho nos labios, a olhar para ella. Mas, quando tornou a abrir os olhos, não viu ninguem. --Foi allucinação! concluia pela escada acima, apurando sempre o ouvido. Do páteo veio um ruido abafado de passos pachorrentos. Deteve-se a meio da escada, foi á janella e olhou: outra vez distinguiu uma cara bexigosa a sorrir para ella. --O Vessoftchikof! foi elle! exclamou, descendo a correr-lhe ao encontro, mas com o coração confrangido por aquella decepção. --Não! sobe! sobe! disse-lhe elle debaixo, a meia voz, apontando para o andar superior. Obedeceu; entrou pelo quarto de Iégor, a quem encontrou estendido do canapé. Segredou, esbaforida: --O Vessoftchikof fugiu da cadeia! O outro ergueu a cabeça e n’uma voz áspera: --O picado das bexigas? --Sim, esse!... E vem para aqui! --Está muito bem! Mas eu é que não estou para me levantar a recebel-o. O fugitivo entrou n’este comenos. Fechou bem a porta no ferrolho, tirou o boné e poz-se a rir devagarinho. --Se não te tivesse visto, não me restava mais que voltar para a prisão! Não conheço ninguem na cidade... Se tivesse ido lá para o bairro, prendiam-me logo! Eu dizia com os meus botões, emquanto ia andando: «Palerma! para que fugiste?» Quando n’isto, vejo cá a tiasinha a correr. Puz-me logo no seu encalço! --E como pudeste fugir? perguntou Pélagué. O rapaz sentou-se desastradamente na beira do canapé e disse com embaraço, encolhendo os hombros: --Não sei... Foi a occasião que se offereceu. Andava a passear no pateo... Os presos de crimes communs atiraram-se á bordoada a um carcereiro, um que foi da policia e que expulsaram por causa d’um roubo... É um que espia dá partes e torna a vida de toda a gente um inferno... Então, houve barafunda; os vigias tiveram medo, uns apitavam, outros corriam... Eis senão quando, vejo a grade aberta. Approximei-me, vejo um largo, a cidade... Foi uma atracção!... E saí sem pressa nenhuma, como se estivesse sonhando... Dei alguns passos e caí em mim. Para onde havia de ir?... Entretanto, as portas da cadeia tinham se tornado a fechar... Não me sentia bem; tinha saudades dos companheiros... emfim, aquillo era estupido; eu não fazia idéa de fugir... --Hum! resmungou Iégor. Pois, meu caro senhor, devia ter voltado para traz, bater á porta e pedir delicadamente que o deixassem entrar: «Queiram perdoar, foi momento de distracção...» --Sim, continuou Vessoftchikof, rindo, isso tambem era tolice, bem vejo. Mas ainda assim, andei mal com os companheiros. Não digo nada a ninguem e ponho-me ao fresco... Na rua, encontrei um enterro. Puz-me atraz do caixão--era uma criança--e lá fui de cabeça baixa, sem olhar para ninguem. Estive um bocado no cemiterio, de toitiço ao vento, e então veio-me uma idéa... --Uma só? observou Iégor, e com um suspiro accrescentou: Parece-me que não lhe havia de faltar logar. O bexigoso poz-se a rir, sem se zangar. --Oh! já não tenho a cabeça tão vazia como d’antes... E tu, Iégor, continuas sempre doente? --Faz-se o que se póde! respondeu o outro, saccudido por accesso de tosse. Continua! --D’ali fui ao museu. Passei por lá vi, as collecções, mas sempre a pensar: «Para onde hei de eu ir, agora?» Estava furioso comigo mesmo e tinha uma fome horrorosa!... Voltei para a rua, puz-me a caminhar. Sentia-me envergonhado com aquillo! Percebi que os policias olhavam com attenção para quem passava... E dizia com os meus botões! «Bom! graças ao meu focinho, estou aqui, estou nas mãos da justiça!...» N’isto, vejo cá a velhota a correr. Passou-me ao lado; afastei-me para a deixar passar, voltei-me e segui-lhe no encalço... E mais nada! --E eu que nem sequer dei por ti! notou ella em tom pezaroso. Examinava attentamente Vessoftchikof; achava-o mudado, mas para melhor. --Os companheiros estão em cuidado, com certeza, sem saberem onde paro! proseguiu elle, coçando a cabeça. --E dos guardas da cadeia, não tens saudades? Olha que elles tambem devem estar n’um cuidado!... observou Iégor. Em seguida abriu a bocca e, movendo muito os beiços, como se quizesse absorver todo o ar, exclamou: --Basta de brincadeiras! É preciso tratar de te esconder, o que é coisa agradavel de fazer, mas não muito facil de conseguir... Se eu pudesse levantar-me!... Teve uma crise de soffocação e poz-se a esfregar o peito, em debeis movimentos. --Estas bem doente, Iégor! disse o fugitivo. Pélagué, a esta observação, suspirou e relanceou um olhar de inquietação pelo modesto quarto. --Isso é comigo! declarou Iégor. Ó mãesinha, não esteja com cerimonias, peça-lhe noticias do seu Pavel. A cara do bexigoso abriu-se outra vez em franco sorriso. --O Pavel? Está bom, está de saúde. Elle é uma especie de presidente lá da rapaziada. É sempre elle que fala com as autoridades, em nome da gente; é elle quem manda!... Nós temos-lhe respeito... E com razão! A mãe bebia as palavras do rapaz; por vezes, lançava um olhar furtivo para o rosto macerado e entumecido de Iégor. Este, com a fisionomia estática, qual mascara desprovida d’expressão, e com uma apparencia singular de nullidade, só pelos olhos vivia, em scintillações de espírito. --Se me dessem alguma coisa de comer... Palavra que tenho muita fome! exclamou de subito o bexigoso. --Ó mãesinha, disse Iégor, n’aquella prateleira está um pedaço de pão; dê-lho. Vá depois ao corredor e bata á sua esquerda, na segunda porta. Ha de vir abrir-lhe uma mulher; diga-lhe que venha cá e que traga tudo o que possuir com respeito a comestiveis. --Para que ha de ella trazer tudo!? protestou Vessoftchikof. --Ah, não se assuste, que não ha de ser grande coisa... talvez até não seja nada! Pélagué obedeceu, bateu á porta indicada e, apurando o ouvido, pensava com tristeza: «Está mesmo a morrer...» --Quem está ahi? perguntaram de dentro. --Venho da parte do senhor Iégor, respondeu baixo. Pede-lhe que vá a casa d’elle. --Lá vou! responderam. Pélagué esperou um instante e tornou a bater. A porta abriu-se de brusco e appareceu uma mulher ainda nova, muito alta e que usava oculos. Vinha a alisar a manga do vestido, amarrotada. Seccamente perguntou: --Que deseja? --Foi o senhor Iégor que me mandou... --Ah! vamos lá!... Mas eu conheço a senhora! exclamou. Como passou?... É que faz aqui muito escuro... Pélagué fitou-a e lembrou-se de tel-a visto uma vez ou duas, em casa de Nicolao. «Por toda a parte ha gente nossa!» pensou. A mulher deixava livre o caminho, por fórma que Pélagué fôsse adiante. --Está então muito mal? inquiriu. --Muito mal; está deitado. Pede-lhe que lhe leve alguma coisa de comer... --Ora! é inutil... Ao penetrarem as duas mulheres no quarto de Iégor, este debatia-se em doloroso estertor. --Lioudmila, disse por fim. Esse rapaz saíu agora da cadeia sem licença da auctoridade. Já é ser descortez! Antes de mais nada, dá-lhe de comer e esconde-o em qualquer parte, por um dia ou dois. Lioudmila fez um signal d’assentimento e, ao passo que fitava attentamente o rosto do enfermo, dizia com certa severidade: --Iégor, porque não me chamou logo que chegaram as suas visitas? E já vejo que por duas vezes se esqueceu de tomar o remedio! É um desmazelo!... Pois se é o primeiro a dizer que se sente respirar melhor quando o toma!... Venha para minha casa, camarada!... Não tarda que venham buscar o Iégor para o levarem para o hospital. --É então forçoso ir para o hospital? perguntou o enfermo. --De certo. Lá irei ter comsigo. --O quê? lá, tambem?... --Não diga tolices! E emquanto falava, compuzera no peito do doente a manta que o cobria, observára fixamente Vessoftchikof e medira com o olhar a altura do remedio no frasco. A voz d’ella era monotona e grave, mas sonora; os movimentos amplos, o rosto branco, com umas sobrancelhas muito pretas, que quasi se reuniam na base do nariz. Tal fisionomia não agradou a Pélagué, que a ficou julgando arrogante; os olhos não tinham brilho e nunca sorriam; o tom da voz era imperioso. --Vamo-nos d’aqui! continuou ella. Eu já volto. A senhora dê ao Iégor uma colher de sopa d’este remedio... Não consinta que fale. E saíu levando comsigo o bexigoso. --Que mulher extraordinaria! disse Iégor com um suspiro. Que admiravel creatura!... Para casa d’ella é que você devia ter ido, mãesinha. Ella trabalha muito... Até anda esfalfada! --Não fales! Olha, bebe antes isto! supplicou Pélagué com meiguice. Elle ingeriu o remedio e continuou, fechando um dos olhos: --Que me importa! Que fale ou que não fale, sempre tenho de morrer. Olhou para a velha, ao mesmo tempo que os labios se lhe entreabriam lentamente n’um sorriso. Ella tinha curvado a cabeça; agudo sentimento de dó lhe fazia derramar lagrimas. --Não chore, mãesinha; é natural... O prazer da vida traz comsigo a necessidade da morte... Ella pousou-lhe a mão na cabeça e, em voz baixa: --Cala-te, sim? O doente fechou os olhos como se estivesse a escutar o estertor dentro do peito. Teimosamente, objectou: --Estúpida coisa o estar calado, mãesinha!... Que ganho eu com isso?--uns minutos mais d’esta agonia e o ficar sem o prazer de palrar um bocado com uma santa mulher como você... Não creio que no outro mundo haja tão bôa gente como n’este... Ella interrompeu-o, agitada: --Olha que vem ahi já aquella senhora, e depois ralha comigo se te ouve falar... --Não é senhora nenhuma; é uma revolucionaria, uma companheira, um coração admiravel!... De toda a maneira, ha-de ralhar comsigo, mãesinha! Está sempre a ralhar com toda a gente! E Iégor poz-se a contar a historia da sua visinha, lentamente, com um articular custoso dos labios. Só os olhos sorriam. Inquieta, Pélagué dizia comsigo, notando a maceração d’aquelle rosto banhado de suor: --Vae-me morrer aqui! Voltou Lioudmila. Fechou cuidadosamente a porta e disse para a velha: --É absolutamente necessario que aquelle seu amigo se disfarce e se vá embora; vá já arranjar-lhe outro fato e traga-lho aqui! Que pena que a Sofia esteja ausente! É a sua especialidade, dar esconderijo a quem foge! --Ella chega ámanhã, annunciou a outra, deitando o seu lenço para os hombros. Sempre que a encarregavam de qualquer missão, era idéa fixa sua desempenhar-se d’ella bem e depressa. Sollícita e preoccupada, franzindo as sobrancelhas, perguntou ainda: --Como o havemos de vestir? Que lhe parece? --Pouco importa: como elle sae de noite... --É muito peor que de dia: anda menos gente pelas ruas, é-se mais facilmente notado, e como o Vessoftchikof não é muito esperto... Iégor soltou uma gargalhada rouca: --Como você é fina, mãesinha! --Posso ir vêr-te ao hospital? perguntou ella. O doente acenou com a cabeça, tossindo muito. Lioudmila fitava na velha os seus grandes olhos pretos. --Quer que lhe fiquemos de guarda, cada uma por sua vez? propoz. Sim? Está bem!... Mas agora, vá, vá depressa. Agarrou Pélagué por um braço em gesto amigavel mas autoritario, fêl-a saír para o corredor e ali disse-lhe baixinho: --Não se zangue por eu a despedir assim... Não é bonito, bem sei; mas faz-lhe tanto mal falar!... E eu tenho esperança... Esta explicação commoveu Pélagué. Murmurou: --Não diga isso!... Não é bonito! Mas a senhora é um anjo!... Até mais vêr; eu cá me vou. --Cuidado com os espiões! recommendou a outra em segredo. E levando as mãos ao rosto, passando-as depois pelas fontes, com uma tremulencia nos labios, tomou uns ares de maior bondade. --Sim, esteja descansada, respondeu Pélagué com uma pontinha de orgulho. Ao chegar á grade da entrada, parou um instante como a arranjar a mantilha e lançou em torno um olhar vigilante, mas que passaria despercebido de qualquer. Sabia bem distinguir, e sem se enganar, os espiões d’entre o povo. O andar propositadamente descuidado, a placidez affectada dos movimentos, a expressão de cansaço e de tedio que fazia transparecer, o brilhar timido, confuso e mal dissimulado dos olhos, movediços e desagradavelmente esquadrinhadores, eram outros tantos disfarces que se lhe haviam tornado familiares. D’esta vez, porém, não enxergou cara alguma conhecida. Então, sem pressa, tomou pela rua adiante, e subiu para um carro de praça, que mandou seguir para o mercado. Ali comprou o fato para o fugitivo, não sem regatear ferozmente, desfazendo-se em pragas contra o bebado do marido, a quem tinha de vestir de novo quasi todos os mezes. Esta mentira não fez impressão alguma ao adelo, mas causou-lhe muita satisfação por a ter inventado; tinha ido a pensar pelo caminho que a policia havia de suspeitar que o fugitivo se disfarçaria e não deixaria de proceder a um inquerito no mercado. Feito isto, Pélagué voltou a casa de Iégor e foi acompanhar o bexigoso ao termo da cidade. Cada um tomou por passeio opposto e a velha, satisfeita, divertia-se immenso a vêr o rapagão a andar no seu passo pesado, cabeça baixa, atrapalhado com a comprida roda d’um sobretudo amarello e atirando para traz o chapeu, que lhe ia sempre a escorregar para os olhos. N’uma rua deserta veio-lhes Sachenka ao encontro, e Pélagué voltou para casa depois de se despedir de Vessoftchikof com um aceno de cabeça. Mas pensava com tristeza: --Pois sim, mas o Pavel está na cadeia... e o André tambem. IX Foi recebida por Nicolao com um grito de mal contida inquietação. --Sabe? O Iégor está muito mal! Levaram-no para o hospital; a Lioudmila veio cá pedir que fôsse ter com ella. --Ao hospital? Nicolao, depois de ter ajustado os oculos, em movimento nervoso, ajudou-a a vestir um casaco, apertou-lhe a mão entre as suas, seccas e febris, e, em voz trémula: --Sim! Leve este embrulho comsigo. O Vessoftchikof ficou em segurança? --Sim, tudo vae pelo melhor... --Tambem hei de ir vêr o Iégor... Pelagué estava tão cansada, que sentia a cabeça a andar-lhe á roda; a inquietação de Nicolao dava-lhe a presentir um drama. --Vae morrer!... Vae morrer! dizia comsigo; e esta sombria idéa martelava-lhe no cerebro. Mas quando entrou no quartosinho alegre e muito aceiado do hospital e viu o Iégor a rir de manso, sentado em meio d’um montão de almofadas brancas, socegou de pronto. Parou á porta a sorrir-lhe e ouviu o doente dizer ao medico: --O remedio, é uma reforma! --Não diga tolices, Iégor! obtemperou o doutor em tom appreensivo. --E eu, que sou revolucionario, detesto as reformas!... Certamente, o medico tomou a mão do doente e collocou-lha sobre o joelho; em seguida, levantou-se, poz-se a puxar pelas barbas, emquanto ia apalpando com um dedo os entumecimentos do rosto de Iégor. Pélagué conhecia bem o doutor por ser um dos melhores camaradas de Nicolao. Approximou-se de Iégor, que, ao vel-o, lhe deitou a lingua de fóra. O medico voltou-se. --Ah, é vocemecê?... Viva!... Sente-se. Que traz ahi? --Livros, parece-me. --Não póde ler declarou, o medico. --Quer que eu fique parvo de todo! choramigou Iégor. --Cala-te! ordenou. E poz-se a escrever qualquer coisa na carteira. Do peito do doente exalavam-se breves suspiros forçados, de mistura com saliva, n’um estertor, violento; tinha o rosto coberto de camarinhas de suor, que elle enxugava de vez em quando, erguendo muito devagar as pesadas mãos, quasi inconscientes. A singular immobilidade das faces inchadissimas descompunha a expressão de bonhomia da sua ampla cara, onde as feições haviam desapparecido sob uma mascara cadaverica; e só os olhos, profundamente cavados entre os inchaços, conservavam um olhar puro e sorriam com condescendencia. --An?! Esta sciencia!... Já não posso mais... Deito-me, doutor? perguntou elle. --Não! respondeu com brevidade o medico. --Então deito-me quando tu te fôres embora! --Não lh’o consinta, mulhersinha. Arranje-lhe as almofadas. E tome muito cuidado, não o deixe falar, peço-lhe; faz-lhe muito mal. Pélagué fez um aceno. O medico saíu em passinhos rapidos. Iégor deitou a cabeça para traz, fechou os olhos e ficou sem movimento; só os dedos se lhe agitavam um pouco. Das paredes brancas da cellasinha exalava-se um frio secco e uma tristeza velada e pálida. Pela alta janella divisavam-se os cumes ondulados das tilias; por entre a folhagem poeirenta e sombría destacavam-se vivamente manchas amarellas: eram as frias primicias do outomno, que chegava... --Vem para mim a morte, devagar, como que sem vontade! disse Iégor, sem bulir e sem abrir os olhos. Parece que tem pena de mim!... Pois se eu era um bom rapaz, de bom genio!... --Cala-te, Iégor! supplicou Pélagué, afagando-lhe a mão ternamente. --Espere um pouco, mãesinha, eu vou-me calar... E, offegante, continuou com esforço immenso a articular palavras entrecortadas de longas pausas: --Gosto muito que vocemecê esteja comnosco, mãesinha... É-me muito agradavel ver a sua fisionomia, os seus olhos tão vivos, a sua candura... Quando a vejo, pergunto a mim mesmo: «Como irá ella acabar?» E fico triste, a pensar que a espera a cadeia, ou o degredo, toda a especie d’abominações... como os outros... Não tem medo da prisão? --Não! respondeu ella com simplicidade. --Está claro!... E, comtudo, a prisão... é nojenta coisa... foi ella que me matou... Porque, para falar com franqueza, eu não tenho vontade de morrer. Ella sentiu desejo de responder: «Talvez não morras ainda,» mas calou-se e ficou a olhar para elle. --Podia ainda fazer alguma coisa pelo bem do povo... Mas quando a gente já não póde trabalhar, é impossivel viver, é uma estupidez! Á memoria da velha accudiram então estas palavras de André: «Isso é verdade, mas não é consolador!» Suspirou. Sentia-se fatigadissima e com fome. O murmurar monotono e rouco do doente resoava triste pelo quarto, como que rastejando, impotente, por sobre a lisura das paredes. A folhagem das tilias fazia pensar em nuvens que tivessem descido á terra, e impressionava pelo seus tons carregados e melancolicos. Tudo, em volta, se congelava singularmente em tristonha immobilidade, n’aquella desconfortante espectativa da morte. --Como me sinto mal! disse Iégor. E calou-se, fechando os olhos. --Dorme! aconselhou ella. Talvez te faça bem. Apurou por alguns instantes o ouvido para a respiração do doente e relanceou o olhar em torno de si. Invadida por glacial tristeza, entrou a dormitar. ... Despertou-a um ruido de vestidos roçagantes. Estremeceu ao ver Iégor accordado, com os olhos muito abertos. --Deixei-me dormir... desculpa! disse em voz baixa. --E tu, tambem, perdôa-me! replicou elle igualmente n’um murmurio. Pela janella, entrava o crepusculo; um frio nevoento opprimia a vista; tudo se fundia em singular opacidade; o rosto do doente tomava tons mais sombrios. De novo se ouviu um roçagar de saias e logo depois a voz de Lioudmila, dizendo: --Então, aqui ás escuras, a tagarelar?... Onde fica o botão da luz? E de subito, uma claridade branca e desagradavel innundou o quarto. Lioudmila estava de pé, alta, toda vestida de negro. Iégor teve um grande estremecimento por todo o corpo e levou a mão ao peito. --O que é? exclamou Lioudmila, correndo para elle. Fixou na velha um olhar demorado; parecia ter os olhos enormes, com um brilho estranho. --Espera... balbuciou o enfermo. Abriu muito a bocca, ergueu a cabeça e estendeu o braço para diante. Pélagué tomou-lhe a mão com cuidado extremo e fitou-o, contendo a propria respiração. Em movimento convulso e vigoroso, elle projectou a cabeça para traz e disse em alta voz: --Deixei de existir... está acabado... Percorreu-lhe o corpo ligeira contracção, a cabeça rolou-lhe lentamente no hombro, e, nos seus olhos esgazeados, a luz da lampada collocada por sobre o leito, espelhou-se com um reflexo frio... --Meu amigo!... murmurou Pélagué. Lentamente, Lioudmila afastou-se do leito; parou junto da janella a olhar para fóra e disse n’uma voz singular e sonora, que Pélagué nunca lhe tinha ouvido: --Morreu... Ella inclinou-se, apoiou-se á mesinha de cabeceira e entrou de balbuciar com a voz a tremer: --Morreu... socegadamente... corajosamente... sem um queixume... E de repente, como se lhe tivessem dado uma pancada na cabeça, deixou-se caír de joelhos, sem forças tapou o rosto com as mãos, e desatou em soluços abafados. Depois de ter cruzado os braços pesados do morto, sobre o peito e de lhe ageitar nas almofadas a cabeça, extraordinariamente quente, Pélagué avisinhou-se de Lioudmila, curvou-se para ella e afagou-lhe docemente os espessos cabellos, ao mesmo tempo que enxugava as proprias lagrimas. Esta ultima voltou com lentidão para ella os olhos dilatados, febris e balbuciou por entre os labios trémulos: --Havia muito que o conhecia... Estivemos juntos no degredo, estivemos nas mesmas prisões... Ás vezes, aquella tortura era insupportavel, horrorosa; muitos d’entre nós perdiam o animo e alguns endoideciam... Comprimiu-lhe a garganta um espasmo violento; dominou-se com esforço, e em seguida, avisinhando do rosto da velha o seu rosto, a que uma nevoa de ternura dolorida dava desconhecida suavidade que o rejuvenescia, proseguiu em rapido murmúrio, com um soluçar sem lagrimas: --E elle, elle sempre, sempre, andava alegre; nunca se cansava de gracejar, de rir, occultando corajosamente o seu soffrer, esforçando-se por reanimar os fracos... era tão bom, tão sensivel, tão meigo!... Na Siberia, a inacção em que se vive, deprava o espirito e faz nascer maus instinctos. Como elle os sabia combater!... Que companheiro aquelle era; se soubesse! a sua vida particular foi árdua, dolorosa... mas--sei-o bem--nunca ninguem o ouviu queixar... ninguem, nunca! Assim, eu, que era sua intima amiga, devo muito ao seu coração e recebi do seu espirito tudo o que podia dar-me; vivia triste, solitário e, no emtanto, nunca elle me pediu nada em paga, nem carinhos, nem disvelos... Foi até junto do morto, curvou-se e beijou-lhe a mão. --Companheiro, meu querido e amado companheiro, disse ella n’uma voz sumida e cheia de desconsolo, agradeço-te de toda a minha alma... Adeus! Trabalharei, como tu fizeste... sem me cansar... sem duvidar... toda a minha vida... pelos que soffrem... Adeus! Todo o corpo lhe foi saccudido por violentos soluços e, offegante, a cabeça descaíu-lhe sobre o leito, aos pés de Iégor. Derramava Pélagué bastas lagrimas que lhe queimavam as faces. Procurava retel-as, pois o seu desejo era consolar Lioudmila com um affago especial e animador, falar-lhe do morto com boas palavras repassadas de amor e de tristeza. Por entre o pranto, distinguia o rosto entumecido do defuncto, os olhos fechados, os labios negros, confrangidos em leve sorrisos... Reinava um silencio profundo em meio d’aquella claridade que opprimia. O medico entrou em passinhos apressados, como sempre; parou bruscamente a meio do quarto, enterrou em rapido gesto as mãos pelas algibeiras e perguntou com voz nervosa e sonora: --Ha muito tempo? Ninguem lhe respondeu. Bamboleou-se nas pernas e approximou-se de Iégor, enxugando o suor da testa; apertou a mão do morto e afastou-se novamente. --Não é para admirar... em vista do estado do coração... Isto já devia ter acontecido ha seis mezes... pelo menos... Sim, com certeza!... Mas aquelle tom agudo da voz em que a placidez era forçada e a sonoridade fóra de proposito, logo se lhe velou. Encostou-se á parede e poz-se a passar os dedos rapidamente pela barba, olhando alternadamente para as duas mulheres e para o morto, com os olhinhos piscos. --Mais um!... concluiu brandamente. Lioudmila ergueu-se e foi abrir a janella. Pélagué como que accordou áquelle ruido e olhou em torno, com um gemido. E um instante depois, o doutor, ella e Lioudmila encontravam-se reunidos no vão da janella, apertados uns contra os outros, a contemplarem o aspecto sombrio d’aquella noite de outono. Por cima do arvoredo, scintillavam as estrellas e pareciam recuar, perdendo-se no negro infinito dos ceus. Lioudmila envolveu o braço de Pélagué com o seu e descansou-lhe a cabeça no hombro, sem uma palavra. O medico limpava a luneta com o lenço. Fóra, os ruidos nouturnos da cidade morriam, abafados, o fresco da noite regelava as faces e agitava os cabellos. Lioudmila sentia arrepios; e as lagrimas escorriam-lhe pelo rosto. Nos corredores do hospital, vagueavam ruidos amortecidos, assustados, passadas pressurosas, gemidos, murmurios desconsolados. Immoveis, á janella, os trez sondavam as trevas, em silencio. Pélagué sentiu que era ali de mais e, depois de soltar com brandura o braço do da joven senhora, dirigiu-se para a porta, não sem que se inclinasse, ao passar, perante o morto. --Vae-se embora? perguntou baixo o medico, sem se voltar. --Vou. Pela rua fóra, ia pensando em Lioudmila. «Nem ao menos sabe chorar!» dizia ella comsigo, recordando-se da parcimonia das suas lagrimas. E as ultimas palavras de Iégor voltavam-lhe á memoria; faziam-na suspirar. Caminhando a passo vagaroso, revia em mente os olhos vivos de Iégor, os seus gracejos, as suas opiniões sobre a vida. --Para a gente proba, a existencia é penosa e a morte leve... Como morrerei eu? Em seguida, o pensamento representou-lhe Lioudmila e o doutor de pé, junto da janella, n’aquelle quarto muito branco e cruamente illuminado, os olhos embaciados de Iégor; e, invadida por um sentimento oppressor, de compaixão, suspirou profundamente e entrou a caminhar mais depressa, impellida por vago presentimento... «É preciso marchar para a frente!» pensou sob o impulso de coragem valorosa e contristada, que lhe subia do coração. X O dia seguinte passou-o Pélagué a dispôr tudo para o enterro de Iégor. Á noite, quando tomava o chá, com Nicolao e Sofia, appareceu Sachenka, animada e expansiva, o que era para admirar. Vinha com as faces córadas, os olhos brilhantes, e Pélagué percebeu que ella trazia qualquer esperança risonha. Este radiante estado de espírito veio fazer uma irrupção barulhenta e tumultuosa no curso melancolico das recordações, mas sem o distraír era como uma viva claridade que tivesse brilhado de súbito n’aquellas trevas e que vinha incommodar a pequena reunião. Nicolao, pensativo, bateu na mesa: --Acho-a mudada hoje, Sachenka!... --Deveras! Póde ser! respondeu com uma risadinha de contentamento. Pélagué lançou-lhe um mudo olhar de censura. Sofia fez notar, accentuando as palavras: --Estavamos falando do Iégor. --Que bello homem! não é verdade? exclamou Sachenka. Sempre tinha prontos nos labios um sorriso e um gracejo... Trabalhava tão bem! Era o artista da revolução; possuia em alto grao a idéa revoluccionaria, como um verdadeiro mestre! Com que simplicidade mas ao mesmo tempo com que veemencia elle sabia descrever-nos o homem--o homem falso, perverso e violento! Muito lhe devo eu! Dizia isto a meia voz, com um sorriso de reflexão, mas que não lhe extinguia no olhar o brilho de alegria que era bem visivel e que nenhum dos trez compreendia. É que nos acontece ás vezes sentirmos prazer com um pezar, fazermos d’elle um brinquedo torturante que nos roe o coração. Mas Nicolao, Sofia e Pélagué, esses, não queriam deixar que se dissipasse a sua tristeza, nem abandonal-a aos sentimentos despreoccupados que Sachenka viera ali trazer; sem d’isso terem consciencia, defendiam o seu melancolico direito de se acolherem á dôr, e tentavam fazer entrar a recemchegada no circulo das suas preoccupações. E, afinal, está morto! insistiu Sofia, fitando-a com attenção. Ella vagueou pelos presentes interrogador olhar e baixou a fronte. --Está morto?... repetiu em voz alta. Custa-me conformar-me com este facto. Entrou a passear a todo o comprimento da sala, e em seguida, estacando de súbito, proseguiu em tom singular: --Mas que significa isso: «Está morto?» O que foi que morreu? A minha estima pelo Iégor, a minha affeição por esse camarada, a memoria do que a sua intelligencia praticou, tudo isso morreu? A opinião que eu tinha d’elle--a d’um homem valente e leal--ficou por ventura aniquilada? Morreu tudo isso? Para mim, tudo isso, a melhor parte d’elle proprio, nunca ha de morrer, sei-o bem! Parece-me que ha sempre pressa de mais em se dizer que um homem morreu! Se os seus labios morreram, as suas palavras estão vivas no coração dos que as escutaram. Muito commovida, tornou a sentar-se, encostou-se á mesa e continuou com mais brandura: --Talvez sejam tolices o que digo, mas olhem, camaradas: creio na immortalidade da gente de bem! --Teve alguma novidade? Está tão alegre! perguntou-lhe Sofia, amavel. --Tive! respondeu Sachenka, confirmando a resposta com um aceno. Uma novidade muito agradavel, ao que julgo. Falei toda a noite com o Vessoftchikof. Antigamente não gostava d’elle; achava-o muito grosseiro, muito ignorante, o que realmente era verdade. Havia n’elle um mau humor, uma irritação indefinida e continua para com todos; estava sempre a antepôr-se a tudo com uma insistencia que chegava a aborrecer, sempre a falar de si mesmo... Aquelle homem tinha o que quer que fôsse de maldade, que enervava. Interrompeu-se para sorrir e relanceou em torno um olhar radiante: --E agora, não: fala já dos seus «companheiros». E se ouvissem como elle pronuncia esta palavra! Com uma veneração tão terna, com tanta meiguice, que ninguem o póde intimar! Caíu em si, sabe a força de que dispõe, sabe o que lhe falta... e hoje, o que sente sobre todas as coisas é o verdadeiro sentimento de camaradagem, uma immensa dedicação, capaz de ir ao encontro das maiores provações. Escutava-a Pélagué, encantada com a alegria d’aquella rapariga, por hábito tão triste. Mas, ao mesmo tempo, no recondito do seu coração brotava secreto pensamento de inveja: «E o Pavel, que faz elle no meio de tudo isto?» --Só pensa nos camaradas, continuava Sachenka; e sabem o que elle me persuadiu que fizesse? Que arranjasse uma fuga geral dos presos... É verdade! Diz que é facil. Sofia ergueu a cabeça e, em tom de animação: --E que lhe parece, Sachenka? É uma boa idéa. A chavena de Pélagué entrou a tremer-lhe na mão; pousou-a sobre a meza. Sachenka ficou-se um instante calada, de sobrolho franzido, reprimindo o entusiasmo; depois, muito séria mas com um sorriso radiante, respondeu com alguma hesitação: --Certo é que se as coisas são realmente como elle diz, devemos tentar... é o nosso dever. Córou, deixou-se caír n’uma cadeira e nada mais acrescentou. A mãe de Pavel esboçou um sorriso de muita meiguice, dizendo comsigo: «Querida! Querida da minha alma!» Sofia sorriu tambem; Nicolao soltou uma gargalhadinha, e attentou na rapariga, bondosamente. Então, ella ergueu a fronte, olhou em torno com severidade, e, pallida, com os olhos a faiscar, disse seccamente: --Riem-se... Percebo porque é. Pensam que sou pessoalmente interessada no resultado da evasão, não é isto? --Mas porquê, Sachenka? interrogou Sofia hypocritamente. E, levantando-se d’onde estava, foi pôr-se ao lado d’ella. Pélagué achou a pergunta futil e humilhante para Sachenka e assim lho fez sentir com um olhar. --Mas, então, não quero tratar de nada! exclamou Sachenka. Não quero tomar parte na discussão, desde o momento que consideram este projecto... --Cale-se, Sachenka! disse Nicolao sem se exaltar. A mãe de Pavel foi para a rapariga e afagou-lhe brandamente os cabellos. Sachenka agarrou-lhe logo a mão e voltando para ella o rosto, onde o sangue affluira, fitou-a, confusa. Sofia arrastou uma cadeira, sentou-se ao lado de Sachenka, passou-lhe o braço em volta da cinta e disse-lhe, ao passo que a fitava com curiosidade: --Que caracter singular o seu! --Sim, parece-me que disse tolice... mas é que eu gosto das coisas claras... Nicolao interrompeu-a para dizer em tom sério e preoccupado: --Se a evasão é possivel, trate-se d’isso, não temos que hesitar!... Mas antes de mais nada, é preciso saber se os companheiros encarcerados estarão d’accordo. Sachenka curvou a fronte. --Como se elles pudessem recusar! disse Pélagué, suspirando. O que eu não creio é que isso se possa fazer! Todos ficaram calados. --Deixem me falar com o Vessoftchikof, disse Sofia. E Sachenka annunciou em voz baixa: --Bem! amanhã lhe digo onde e quando póde encontral-o. Nicolao approximou-se da velha, que estava lavando as chavenas. --Vocemecê vae depois d’amanhã á cadeia; é preciso fazer chegar um bilhete ás mãos do Pavel. Compreende? É preciso que a gente saiba... --Compreendo. Compreendo! interrompeu ella com vivacidade. Eu me encarrego de lho entregar. --Vou-me embora! declarou Sachenka e, tendo distribuido pelos companheiros vigorosos apertos de mão, foi-se, sem mais uma palavra. Poisou Sofia a mão no hombro de Pélagué e a sorrir: --Queria ter uma filha como esta, Pélagué? --Meu Deus! Se eu pudesse vel-os casados, ainda que não fôsse senão um dia! exclamou a bôa mulher quasi a chorar. --Sim, a felicidade de cada um consiste em ser-se um bocadinho feliz... Quando essa felicidade é demasiada, tambem é de qualidade inferior. E Sofia foi para o piano tocar uma musica triste. XI Na manhã seguinte, apinhavam-se ao portão de ferro do hospital algumas duzias de homens e de mulheres, á espera que saísse o enterro do companheiro. Pelo meio d’elles, cautelosamente, giravam varios espiões, escutando cada exclamação, retendo de memoria rostos, gestos e palavras; no passeio fronteiro, estava um grupo de policias, de revolvers á cinta. A imprudencia dos primeiros e os risos irónicos dos segundos, a fazerem alarde da força, irritavam o povo. Uns disfarçavam a ira que os possuia e gracejavam; outros, ficavam-se cabisbaixos, olhando para o chão, para não verem aquelle apparato ultrajante; outros ainda, incapazes de conter o seu furor, zombavam dos poderes públicos e do seu medo de gente que por armas só tinha o dom da fala. Um ceu de outono, de azul muito pallido, illuminava a rua calcetada a seixos redondos, semeada de folhas mortas, que as lufadas erguiam em remoinhos diante dos pés dos transeuntes. Entre a multidão, estava Pélagué. Ia contando as caras conhecidas e pensava tristemente: --Não são bastantes!... não são bastantes! O portão rodou nos gonzos. Trouxeram para a rua a tampa do caixão, enfeitada com corôas de fitas encarnadas. Silenciosos, os homens tiraram a um tempo os seus chapeus: dir-se-ia uma revoada de passaros pretos que se tivesse levantado das cabeças. Um official da policia, de avantajada estatura, de grossos bigodes escuros atravessados n’um rosto vermelhaço, cercado de policias e soldados, precipitou-se por entre o povo, empurrando todos sem cerimonia, e gritou com voz roufenha e autoritaria: --Tenham a bondade de tirar as fitas! N’um prompto viu-se rodeado de homens e mulheres, em circulo compacto, falando todos á uma, gesticulando, empurrando-se uns aos outros. Perante o olhar turvado de Pélagué, agitaram-se em confusão rostos lividos e excitados, com os beiços a tremer de ira; e pelas faces d’uma mulher corriam pesadas lagrimas d’humilhação. --Abaixo a prepotencia! gritou uma voz juvenil que se sumiu, desacompanhada, no borborinho da discussão. Pélagué sentia referver-lhe a amargura; voltou-se para o seu visinho, rapaz pobremente vestido, e disse-lhe: --Até não nos deixam enterrar um camarada, como entendermos!... Augmentava a hostilidade, a tampa do esquife vacillava por sobre as cabeças, as fitas agitadas pelo vento envolviam os rostos e as cabeças; ouvia-se-lhes o crepitar nervoso e secco da seda. Pélagué, tomada de terror gelido por uma desordem possivel, dirigia aos que lhe ficavam proximos e a meia voz, frases rapidas: --Que importa!... Uma vez que tem de ser... tirem-se as fitas... é melhor ceder... Para que serve resistir? Resoou uma voz aspera e sonora, que dominou o tumulto: --Queremos que nos deixem acompanhar á sua ultima morada um companheiro que vocês martyrisaram! Alguem,--alguma rapariga com certeza--poz-se a entoar n’uma voz aguda e fina: E vós caístes, victimas, na lucta... --Façam favor de tirar as fitas! Jakovlef! corta essas fitas! Ouviu-se o tinido d’uma espada a saír d’uma bainha. Pélagué fechou os olhos, na espectativa d’um grito. Mas tudo socegou; o povo rosnava, mostrava os dentes como os lobos perseguidos. Depois, de cabeça baixa, em silencio, esmagados sob o sentimento da impotencia, puzeram-se a caminho, fazendo ecoar pela rua o ruido dos passos. Á frente, a tampa do caixão despojada dos seus ornatos, com as corôas esfrangalhadas, lá ia erguida no ar; depois, vinham os agentes de policia, balançando-se d’um e outro lado, em cima dos cavallos. Pélagué seguia pelo passeio; não podia enxergar o caixão, devido á muita gente que o cercava; augmentava sem cessar o número dos manifestantes, que occupavam já toda a largura do calcetamento. Atraz da multidão, alteavam-se tambem os vultos uniformes e cinzentos dos guardas de cavalaria; de cada lado, polícias, com a mão nos copos das espadas; e, por toda a parte, divisava Pélagué caras de espiões com os agudos olhares a prescrutarem as fisionomias. --_Adeus, companheiro, adeus!_ cantaram suavemente duas vozes bonitas. --Silencio! gritou alguem. Calem-se, amigos! Calem-se por emquanto! Havia n’esta exclamação uma rudeza tão suggestiva de ameaçador conselho, que o povo calou-se. O canto funebre ficou interrompido, e o ruido das vozes socegou; só se ouviam agora passos amortecidos, n’um tropel que se elevava muito alto, que se perdia na transparencia do ceu, agitando a atmosfera, assim como o ecco do primeiro trovão de tempestade ainda longinqua. O vento, cada vez mais frio, atirava aos rostos, com animosidade, poeira e lama entumecia os vestidos, entorpecia as pernas, vergastava os peitos... Aquelle funeral silencioso, sem um sacerdote, sem um cantico, aquellas fisionomias oppressas e carrancudas, aquelle ruido de passos energicos, tudo provocava em Pélagué pungente angustia; o pensamento redemoinhava-lhe indeciso, revestindo de frases tristes as suas impressões: --Ah! que não sois bastantes... luctadores da liberdade, não sois bastantes! E comtudo teem-vos medo! Afigurava-se-lhe não ser aquelle mesmo Iégor seu conhecido que ia a enterrar, mas sim uma coisa habitual, que lhe fôsse intima e indispensavel. Dominava-a um sentimento de violenta revolta: não estava d’accordo com aquella gente. Pensava: --Sei-o bem: Iégor não cria em Deus, como estes tambem não crêem... Mas não conseguia concluir a sua idéa e suspirava, como a querer desembaraçar a alma de pesado fardo: --Ó Senhor! Senhor!... Jesus!... Será possivel que tambem eu vá a enterrar assim?... Chegaram ao cemiterio. Depois de muitas voltas por entre os sepulcros, parou o cortejo n’um vasto espaço livre, semeado de cruzinhas brancas. A multidão agrupou-se em torno d’uma cova e estabeleceu-se silencio. E este austero silencio dos vivos, entre tumulos, presagiava alguma coisa terrivel que sobresaltava o coração de Pélagué. Immobilisou-se então na espectativa. O vento uivava por entre as cruzes; em cima do caixão adejavam tristemente flôres murchas. A gente da policia, vigilante, tinha-se alinhado, seguindo com os olhares os movimentes do chefe. Então, um rapaz alto, pallido, com a cabeça descoberta, negras sobrancelhas e comprido cabello negro, foi postar-se junto do coval. No mesmo instante, ouvia-se a voz roufenha do official da policia. --Meus senhores!... --Companheiros! começou o rapaz com voz sonora. --Perdão! gritou o official. Tenho a declarar-lhes que não consinto discursos. --Limitar-me-ei a dizer algumas palavras, observou socegadamente o orador: «Companheiros! Juremos sobre a sepultura do nosso mestre e amigo nunca esquecermos os seus ensinamentos, juremos trabalhar cada qual toda a nossa vida e sem descanso, para destruir a origem de todos os infortunios da nossa patria, a forca damninha que a opprime, a autocracia!» --Prendam-no! gritou o official. Mas logo teve a voz coberta por uma explosão de gritos: --Morra a autocracia! Afastando a multidão, ás cotovelladas, os polícias atiraram-se para o orador, a quem o povo formava estreito circulo, emquanto elle bradava: --Viva a liberdade! É por ella que devemos viver e morrer! Pélagué foi arrebatada para longe. Transida de terror, agarrou-se a uma cruz e fechou os olhos, á espera do golpe que havia de feril-a. Ensurdecia-a um turbilhão impetuoso de sons discordantes; sentia faltar-lhe o solo debaixo dos pés; opprimiam-lhe a respiração o vento e o medo. Os apitos da policia rasgavam o ar; resoavam vozes roucas, de commando; mulheres soltavam gritos nervosos; estralejavam madeiras das divisorias de covaes; no terreno, secco, resoava lugubremente o pesado tropel de toda aquella gente. Durou isto muito tempo. Pélagué não podia conservar por maior espaço os olhos fechados; era demasiado lancinante o seu horror. Olhou em volta, e soltando uma exclamação entrou a correr, de braços estendidos. Não longe, em estreito carreiro, entre tumulos, estavam os policias cercando o rapaz de cabello preto e defendendo-se dos ataques da populaça. Scintillavam pelo ar com brancos e frios reflexos, as laminas desembainhadas; elevavam-se acima das cabeças e caíam rapidamente. Bengalas, destroços dos tapumes surgiam, para logo desapparecerem; em selvagem torvelinho, cruzavam-se os gritos da multidão amotinada; de vez emquando, divisava-se o rosto pallido do rapaz; com voz forte que dominava a tempestade das iras, bradava: --Camaradas! Para que serve sacrificarem-se inutilmente? Acabaram por lhe obedecer. Atiraram para longe os cacetes e uns apóz outros, foram-se afastando. Pélagué continuava a caminhar, arrastada por força invencivel. Viu Nicolao, com o chapeu para a nuca, a repellir os manifestantes, cegos de colera; ouviu-o dirigindo-lhes censuras: --Endoideceram?... Soceguem! Pareceu-lhe que trazia uma das mãos toda ensanguentada. --Vá-se d’aqui Nicolao! gritou, atirando-se-lhe ao encontro. --Onde vae a correr? Olhe que lhe fazem mal! Sentiu-se agarrar por um hombro. Voltou-se. Era Sofia, sem chapeu, os cabellos em desalinho, sustendo nos braços um rapaz, quasi uma criança, que limpava á mão o rosto tumefacto e balbuciava com os beiços a tremer: --Deixem-me... não é nada! --Veja se trata d’elle. Leve-o para nossa casa. Aqui tem um lenço... amarre-lhe a cabeça! disse Sofia rapidamente. E introduzindo entre as mãos de Pélagué a mão do rapaz, deitou a correr, com um ultimo conselho: --Vão se depressa, se não são presos! Os manifestantes precipitavam-se por todas as saídas do cemitério; atraz d’elles, os polícias marchavam pesadamente por entre as sepulturas. Embaraçados com as compridas abas das fardetas, praguejavam e brandiam as espadas. O rapaz seguia-os de longe, com a vista. --Vamos, depressa! disse-lhe Pélagué com brandura. E limpou-lhe o rosto. O pequeno lançou um escarro de sangue e ciciou: --Não lhe dê cuidado... não sinto nada. O polícia bateu-me com o punho da espada, na cara e na cabeça... E eu dei-lhe com o meu pau... Sempre apanhou uma sova!... Até uivava! --Depressa! instava Pélagué, dirigindo-se rapida, para uma pequena aberta do muro do cemitério. Pareceu-lhe distinguir para além do muro dois policias á espreita, disfarçados com a verdura e que os esperavam, para lhes saltarem em cima á pancada, tão depressa elles apparecessem. Mas depois de ter empurrado a portinha com precaução, espraiou a vista pelo campo, todo envolvido no tecido pardacento d’aquelle crepusculo outonal. O silencio e a quietação que n’elle reinavam tranquillisaram-na de súbito. --Espere, deixe-me ligar-lhe a cabeça, propôz. --Não senhora; não tenho que me envergonhar das minhas feridas. Pélagué pensou-o summariamente. Aquelle sangue fresco e vermelho apiedou-a immenso; ao sentir-lhe com os dedos a quente humidade, toda a percorreu um estremecimento de terror. Em seguida, conduziu o ferido pelo braço, pelo campo fóra, sem proferir uma palavra. Elle libertou os lábios da ligadura para dizer alegremente: --Para que vae a puxar por mim, camarada? Eu posso bem caminhar sósinho! Mas Pélagué sentia-o cambaliar, o andar vacillava-lhe. A voz ia-lhe enfraquecendo emquanto falava, interrogando-a sem esperar as respostas. --Chamo-me Ivan, sou funileiro... e a senhora quem é? Eramos trez no club do Iégor... trez funileiros; ao todo, eramos onze! Gostavamos muito d’elle. Na rua mais proxima, Pélagué tomou um trem e para elle fez subir Ivan, segredando-lhe: --Agora, cale-se. E para mais segurança, puxou-lhe outra vez a ligadura para a bocca. Elle levou logo a mão á cara, mas não conseguiu libertar os lábios; o braço recaíu inerte sobre os joelhos. Ainda assim, continuava a murmurar atravez do lenço: --Nunca me esquecerei d’estas pancadas, amiguinhos da policia!... Antes do Iégor, era um estudante que nos dirigia... Ensinava-nos economia politica... Era muito rigoroso, muito aborrecido... Afinal, prenderam-no. Ella passou-lhe o braço em volta e descansou no seio a cabeça do rapaz. De súbito, sentiu que lhe pesava mais, ao mesmo tempo que se tinha calado. Transida de medo, Pélagué olhava para todos os lados; parecia-lhe ver a cada esquina um polícia, pronto a agarrar Ivan e a matal-o. O cocheiro voltou-se na almofada, com um sorriso: --Bebeu, an? --É verdade, até caír! respondeu ella, suspirando. --É teu filho? --É, sim. É sapateiro... Eu sou cosinheira... --Ah, sim! É duro officio! Descarregou uma chicotada no cavallo e logo tornou a voltar-se. Baixou a voz. --Sabes? Houve ha pouco grande desordem no cemitério. Era o enterro d’um d’esses políticos, d’essa gente que está contra a autoridade... que tem questões com a polícia. Havia amigos do defunto no acompanhamento... Elles então puzeram-se a gritar: «Morram as autoridades, que arruinam o povo»!? A polícia bateu-lhes. Dizem que alguns ficaram mortos... Mas a policia tambem apanhou pancada. Calou-se o cocheiro, abanou a cabeça com ares de desconsolo e proseguiu n’um tom de voz estranho: --Assim se vão incommodar os mortos... accordar os cadaveres que dormem! O trem ia aos salavancos pela calçada, chiando muito; a cabeça de Ivan rolava suavemente no peito da sua enfermeira. O cocheiro, virado para elles, continuou, pensativo: --Anda a agitação entre o povo... As desordens parece que se levantam debaixo dos pés... É verdade! Esta noite veio a polícia a casa d’uns visinhos. Fizeram lá não sei o quê até pela manhã e depois, quando se foram, levaram preso um que é ferreiro. Dizem que uma noite d’estas vão leval-o ali á beira no rio e afogam-no em segredo. E todavia, era um homem intelligente, aquelle ferreiro. --Como se chama elle? perguntou a velha. --O ferreiro? Chama-se Savyl, mas tem um outro nome: Evetchenko. É muito mocinho ainda, mas já compreendia muitíssimas coisas, e é proíbido compreendel-as, ao que parece... Ás vezes, apparecia lá pelas estações de carroagens e dizia-nos: «Que vida que vocês levam cocheiros!» --É verdade, respondiamos-lhe nós, o nosso officio é peor que o dos cães!» --Pára ahi! ordenou Pélagué. O sobresalto produzido fez então que Ivan voltasse a si. Entrou a gemer devagarinho. --Esse rapaz está muito doente, observou o cocheiro. Vacillante, Ivan atravessou o páteo, custando-lhe collocar um pé adiante do outro. --Não é nada, dizia. Ando perfeitamente... XII Sofia já estava de volta. Atarefada e mexendo-se muito, recebeu a velha, de cigarro na bocca. Deitou o ferido n’um canapé e ligou-lhe com perícia a cabeça, ao mesmo tempo que ia dando ordens. O fumo do cigarro obrigava-a a piscar os olhos: --Doutor, ahi os tem. Sente-se fatigada, Pélagué? Teve muito medo, não é assim? Está bem, descanse agora um bocado... Nicolao vae-lhe já buscar o chá e um copo de Porto. Emocionada por taes acontecimentos, Pélagué respirava com difficuldade e resentia-se de uma dolorosa sensação de picada no seio. --Não se importem commigo, murmurou. E toda a sua pessôa, transida de medo, supplicava um affago, um pouco de attenção... Nicolao veio do quarto contiguo. Trazia a mão ligada. Atraz d’elle entrou o médico, com os cabellos desgrenhados, como um ouriço. Correu para Ivan, curvou-se a examinal-o e pediu: --Agua, muita agua! Pannos de linho limpos! Algodão em rama! Já Pélagué se dirigia á cosinha, mas Nicolao travou-lhe do braço e disse-lhe affectuosamente, levando-a para a casa de jantar: --Não é comsigo que elle fala, é com a Sofia. A minha querida amiga passou por bastantes commoções, não é verdade? Aquelle falar apiedado respondeu ella com um soluço mal contido e exclamou: --Ah! que horrivel coisa!... A espadeirarem o povo... a espadeirarem! --Eu tambem lá estava, disse Nicolao, com um aceno confirmativo de cabeça. E encheu um copo de vinho quente. Dos dois lados houve egual exaltação... Mas não tenha receio; a polícia aggrediu só com a parte mais larga das espadas; só uma pessoa ficou ferida gravemente, ao que me parece... e essa vi-a eu caír ao pé de mim... Puxei-a até para fóra da batalha. A fisionomia e a voz com que Nicolao lhe falava, a claridade e o calor que reinavam no aposento, socegaram os nervos de Pélagué. Dispensou ao seu hospedeiro um olhar de reconhecimento e perguntou-lhe: --Tambem ficou ferido? --Sim, e creio que por culpa minha... Sem querer, rocei com a mão não sei por quê e fiquei com a pelle arrancada. Beba o seu vinho... Faz frio e vocemecê tem um fato tão leve!... Ella estendeu as mãos para o copo e reparou que tinha os dedos cheios de sangue coagulado. Em gesto instinctivo, deixou caír os braços sobre os joelhos. Tinha a saia húmida. Esgazeou os olhos, com as sobrancelhas muito erguidas, examinou furtivamente os dedos. A cabeça andava-lhe á roda, uma idéa martelava-lhe no cérebro: --Ahi está, ahi está o que espera o Pavel um dia! Voltou o médico. Vinha em mangas de camisa e estas arregaçadas. A uma interrogação muda de Nicolao, respondeu com a sua vozinha delgada: --A ferida do rosto é insignificante, mas houve fractura do craneo, que tambem não é muito grave... O rapazola é valente, mas ainda assim perdeu muito sangue. Vamos leval-o para o hospital. --Para quê? Póde ficar aqui! accudiu Nicolao. --Hoje e ámanhã talvez, mas depois era preferivel que se tratasse no hospital, não tenho tempo para visitas. Encarregas-te do relatório do que se passou no cemitério? --Bem entendido! respondeu Nicolao. Pélagué levantou-se então sem fazer bulha e dirigia-se para a cosinha. --Onde vae? exclamou Nicolao alvoroçado. Deixe lá a Sofia governar-se sósinha! Com um olhar e um sorriso involuntário, singular, respondeu a tremer: --Estou toda suja de sangue... Estou toda suja de sangue! E ao mudar de roupa, no seu quarto, mais uma vez ficou a meditar na serenidade d’aquella gente, n’aquella faculdade de que dispunham de não demorar muito tempo o pensamento no horror dos acontecimentos. Esta reflexão fêl-a caír em si, vencendo o sentimento de terror de que estava possuida. Quando voltou ao quarto onde jazia o ferido, Sofia, curvada sobre este, dizia-lhe: --Que tolice, camarada! --Mas eu vou incommodal-os! observou elle em voz debil. --Cale-se; é o melhor que tem a fazer. Pélagué parou por detraz d’ella e pousou-lhe a mão no hombro; fitou depois, sorrindo, o rosto muito branco do ferido e pôz-se a contar o medo que lhe tinha causado o seu accesso de delírio, no trem. Ivan escutava-a com os olhos a arder em febre; fazia estalar os beiços e exclamava de vez em quando, como que envergonhado: --Oh, que tolo que eu sou! --Bem, agora vamos deixal-o, declarou Sofia compondo-lhe as roupas que o cobriam. Descanse! E as duas mulheres passaram para a casa de jantar, onde, com Nicolao e o médico, por muito tempo conversaram baixinho sobre os acontecimentos d’esse dia. Já o drama era tratado como coisa remota, já se falava do futuro com tranquillidade; preparava-se a tarefa de ámanhã. Se os rostos exprimiam a fadiga, os pensamentos latejavam vivos. O doutor mexia-se nervosamente na cadeira, esforçando-se por velar a voz, que tinha aguda e esganiçada: --Ora, a propaganda!... Não basta; os operários têem razão: é necessario exercer a agitação em terreno mais vasto. Creiam que os operários têem razão! Nicolao acrescentou com ar desconsolado: --Por toda a parte se queixam da insufficiencia dos livros e ainda não conseguimos montar uma bôa imprensa... A Lioudmila está esgotada de forças, vae nos caír doente, se não lhe arranjarmos collaboradores. --E o Vessoftchikof? perguntou Sofia. --Esse não póde residir na cidade. Ha de entrar para o serviço da nova imprensa... mas falta-nos ainda alguem... --E se eu pudesse servir? propôz a velha com brandura. Os trez fitaram-na um momento. --É uma bôa idéa! exclamou Sofia de repente. --Não; é muito difficil para você, creia, Pélagué, contestou Nicolao com secura. Era preciso que fôsse viver para fóra da cidade, que não pensasse mais em ver o Pavel, e em geral... Ella replicou, suspirando: --Olhe que não faria grande falta ao Pavel... e pela minha parte, tambem essas visitas me partem o coração. É proibido falar seja do que fôr! Até pareço uma idiota aos olhos do meu filho! Estão ali mesmo, sempre a espiar-nos! Os recentes acontecimentos haviam-na fatigado, e agora, quando se lhe apresentava ensejo de afastar a idéa dos dramas da cidade, era quando se agarrava a esse assunto com todas as forças. Mas Nicolao mudou o curso da conversa. --Em que pensas? perguntou elle ao doutor. Este, mal humorado, respondeu: --Somos poucos! Aqui tens em que penso... É absolutamente necessario trabalhar com mais energia. É necessario decidir o André e o Pavel a evadirem-se; são dois trabalhadores preciosos de mais para estarem na inacção. Nicolao franziu o sobrolho, meneou a cabeça em ar de dúvida e lançou um rápido olhar para a mãe de Pavel. Percebeu que se constrangiam em falar do filho diante d’ella e foi para o seu quarto, levemente irritada contra quem tão pouco se preoccupava com os seus desejos. Deitou-se e, de olhos abertos, embalada pelo ciciar das vozes, sentiu-se tomada de inquietação. Parecia-lhe incompreensivel o dia que acabava de decorrer, cheio de allusões ameaçadoras; mas porque este genero de reflexão lhe fôsse penoso, afastou-as do cérebro e entrou de pensar no seu filho. Queria vel-o em liberdade e, ao mesmo tempo, tal idéa assustava-a; sentia que tudo se lhe agitava em torno; a situação tornava-se cada vez mais tensa, andavam imminentes violentas collisões. A paciencia do povo dera logar a enervada espectativa; crescia visivelmente a irritação publica, ouviam-se com frequencia frases rancorosas, de toda a parte soprava um hálito novo, um vento d’excitação. As proclamações eram discutidas animadamente no mercado, nas lojas, entre a criadagem e os artifices; cada prisão que na cidade se effectuasse despertava ecos tímidos, mas inconscientemente simpaticos e as suas causas eram commentadas. Pélagué ouvia agora com mais frequencia a gente do povo pronunciar as palavras que outrora a amedrontavam tanto: «socialistas, política, revolta». Taes palavras eram repetidas com ironia, mas esta ironia não chegava a disfarçar o fim principal, que era o de se informarem das opiniões; com colera, mas sob esta colera transparecia o medo, e todos andavam pensativos, entre alternativas de esperança e de ameaça... Em vastos circulos, lentamente, ia-se propagando a agitação na vida sombria e estagnada do povo; despertava o pensamento adormecido; os acontecimentos diarios já não eram tratados com o socego habitual e a antiga placidez dos fortes. Pélagué notava tudo isto mais distinctamente do que os seus companheiros, pois que melhor do que elles conhecia o aspecto desconsolador da vida, d’ella vivia mais proxima e n’ella divisava simtomas de reflexão e de irritação, uma sêde vaga de alguma coisa nova, o que a regosijava e assustava-a um tempo. Regosijava-se porque tudo considerava obra de seu filho; assustava-se porque sabia que elle, mal saísse da cadeia, logo iria collocar-se no posto mais perigoso, á frente dos companheiros... e que ali havia de morrer. Sentia muitas vezes Pélagué agitarem-lhe o espirito os grandes ideaes indispensaveis á humanidade e experimentava o desejo de falar da verdade, mas quasi nunca conseguia realisar o seu desejo. N’esta mudez forçada, os seus secretos pensamentos acabrunhavam-na. Por vezes, a imagem do filho tomava a seus olhos as proporções giganteas d’um heroe de lenda; n’elle resumia todas as maximas fortes e leaes que ouvira, todos os seus affectos, todas as coisas grandes e luminosas que o seu espirito abraçava. Contemplava-o então com mudo entusiasmo; ufana, enternecida, nadando em esperança, dizia comsigo: --Tudo ha de ir bem!... tudo! O seu amor materno exaltava-se, comprimia-lhe o coração até fazel-o sangrar, mas impedia que n’elle o amor pela humanidade se desenvolvesse, chegando a destruil-o de todo; e no logar d’este grande sentimento só ficava uma minúscula idéa fixa a palpitar timidamente nas cinzas frias da inquietação: --Vae morrer... Vae morrer!... Adormeceu tardíssimo em profundo somno, mas accordou logo muito cedo, com o corpo dorido e a cabeça pesada. XIV Ao meio dia, já Pélagué estava na secretaria da cadeia. Com turvo olhar, examinava o rosto barbudo de Pavel, que se lhe sentára em frente, á espera do momento em que poderia passar-lhe o bilhete que apertava fortemente na mão. --Estou de saúde, e outros tambem, dizia Pavel a meia voz. E tu? como vaes? --Muito bem. Morreu o Iégor! respondeu maquinalmente. --Palavra?! exclamou Pavel; e baixou a cabeça. --Vinha a policia no enterro, houve uma desordem, e foi um homem preso, continuou ella com simplicidade. O sub-director da cadeia deu com a bocca um estalo, aborrecido, e levantou-se a resmungar: --Não falem n’essas coisas! É proíbido, já devem sabel-o. Não se consente que se fale de política... Oh, Deus poderoso! Ella ergueu-se igualmente e em voz d’innocencia desculpou-se: --Eu não falava de política, falava da desordem. E o certo é que elles bateram uns nos outros. Até um ficou com a cabeça aberta! --Não faz mal, queira calar-se! Quer dizer: não profira uma palavra que não lhe diga pessoalmente respeito, a si, á sua familia ou á sua casa. E para confirmar melhor as suas explicações, sentou-se á secretária e acrescentou n’um tom de cansaço e de enfado, ao mesmo tempo que punha em ordem uns documentos: --Depois, eu é que sou responsavel. Pélagué lançou-lhe furtivo olhar e introduziu rapidamente o bilhete na mão de Pavel. Depois, suspirou com allivio: --Nem eu sei de que hei de falar... Pavel sorriu. --Nem eu tão pouco. --Então para que serve vir fazer visitas? observou, irritado, o funccionario. Se não sabem de que hão de falar, não venham, não nos incommodem! --Quando vaes responder? perguntou a mãe apóz curto silencio. --O procurador esteve ahi um dia d’estes; disse que era para breve. Trocaram ainda umas frases banaes. A mãe via que o seu Pavel a fitava amorosamente. Não mudara; mostrava-se, como sempre, calmo e ponderado; unicamente, a barba que lhe crescera vigorosamente, o fazia mais velho; e tinha os pulsos mais brancos. Pélagué quiz causar-lhe prazer dando-lhe noticias de Vessoftchikof. Então, sem mudar de voz, no mesmo tom em que lhe falava de bagatellas, continuou: --Vi o teu afilhado... Pavel fitou-a com o ar interrogador. E logo para evocar o rosto bexigoso do fugitivo, ella cravou o indicador em diversos pontos da cara. --Vae bem, o teu rapaz; é robusto, desembaraçado... Vae ter emprego d’aqui a pouco... Lembras-te? estava sempre a exigir que lhe dessem trabalho pesado. Pavel tinha compreendido. Abanou a cabeça e respondeu com os olhos illuminados por um alegre sorriso: --Ora essa!... se me lembro!... --Pois ahi tens! disse ella com satisfação. Sentia-se contente comsigo mesma e alegre com a alegria do filho. Ao retirar-se, apertou-lhe elle a mão vigorosamente: --Obrigado, mamã! Como o vapor da embriaguez, uma sensação de extase subiu á cabeça da mãe; sentia o coração do filho mais perto do seu; não teve forças para lhe responder com frases e contentou-se com apertar-lhe tambem a mão, sem uma palavra mais. Em casa, encontrou Sachenka, pois tinha esta por costume visital-os nos dias em que Pélagué ia á cadeia. Nunca a interrogava ácerca de Pavel; se Pélagué, de motu-proprio, não falava do filho, Sachenka ficava-se a olhar fixamente para ella, e era tudo. Mas n’esse dia, acolheu-a com uma interrogação de desasocego: --E então, que faz elle? --Está bom. --Deu-lhe o bilhete? --Com certeza. --E leu-o? --Está visto que não. Como podia elle lêl-o? --É verdade!... Esquecia-me!... emendou com lentidão a rapariga. Esperemos mais uma semana... E que lhe parece? Estará d’accordo? E olhou fito para a mãe de Pavel. --Sim... não sei... creio que sim! respondeu. Porque não havia elle de se evadir? Perigo, não ha nenhum... Sachenka concordou com um aceno e perguntou com seccura: --Não sabe dizer-me o que é que se póde dar a comer ao doente? Diz que tem fome... --Póde comer de tudo... de tudo! Eu mesma lá vou. E encaminhou-se para a cosinha. Sachenka seguiu-a vagarosamente. Pélagué foi ao fogão buscar uma cassarola. --Escute! murmurou a rapariga. Fez se pálida, os olhos dilataram-se-lhe n’uma angustia e com os beiços trémulos, segredou de enfiada: --Queria perguntar-lhe... Eu bem sei: elle não ha de querer. Mas convença-o, diga-lhe que precisamos d’elle, que não podemos passar sem elle, que tenho medo que elle caia doente n’essa prisão... que tenho muito medo! Bem vê: nem ainda está fixado o dia do julgamento!... Falava com difficuldade e tal esforço toda a inteiriçava; não se atrevia a fitar a mãe de Pavel; a voz saía-lhe desigual como corda que se puxa de mais, e logo se quebra. Com as palpebras cerradas mollemente, mordia os beiços e ouviam-se-lhe estalar as articulações dos dedos, enclavinhados. Pélagué, ficou emocionada ao ver aquelle accesso de exaltação, mas compreendeu. Commovida, cheia de tristeza, abraçou-a e respondeu baixo: --Minha filha: elle não dá ouvidos senão a si mesmo... A mais ninguem! Permaneceram um instante em silencio, estreitamente enlaçadas. Depois, Sachenka soltou-se-lhe dos braços suavemente e disse enleada: --Sim... tem razão! São tolices minhas... são os meus nervos! E fazendo-se de repente muito séria, concluiu simplesmente: --Mas agora me lembro: é preciso levar de comer ao doente! D’ahi a pouco, sentada á cabeceira de Ivan, perguntava a este em tom de amigavel sollicitude: --Doe-lhe muito a cabeça? --Não, não muito... Mas vejo e oiço tudo vagamente... sinto-me fraco! respondeu Ivan confuso e puxando a roupa até o queixo. Pestanejava de contínuo, como se a luz se lhe tornasse demasiado forte. E porque notasse que o rapaz não se resolvia a comer na presença d’ella, Sachenka levantou-se e saíu do quarto. Ivan sentou-se na cama, seguindo-a com a vista; e, piscando o olho: --É tão bonita!... Ivan tinha uns olhos claros e espertos, dentes pequenos e muito iguaes, a voz estava ainda na mudança da puberdade. --Que idade tem? perguntou-lhe Pélagué pensativa. --Dezesete annos. --Onde vivem seus paes? --No campo. Ha sete annos que vivo aqui; abandonei a aldeia ao saír do collegio... E a senhora, camarada, qual é o seu nome? O ouvir tratar-se assim divertia sempre Pélagué, e sensibilisava-a. Muito risonha, retorquiu: --Que precisão tem de o saber? Calou-se um instante o rapaz, confuso, e explicou: --É que um estudante do nosso grémio... quer dizer do grémio que nos fazia as leituras, falou-nos da mãe de Pavel Vlassof, sabe? aquelle que organisou a manifestação do primeiro de maio... o revolucionario Vlassof. Ella confirmou com a cabeça e apurou o ouvido. --Foi elle o primeiro a desfraldar a bandeira do nosso partido! declarou com emfase o rapaz, e esta exclamação de orgulho ecoou no coração da mãe. Eu não estava no grupo... Tinhamos tenção de fazer uma manifestação tambem aqui, mas fomos mal succedidos: eramos muito poucos! Mas este anno ha de ser outra coisa... Verá! Offegava, emocionado, comprazendo-se á idéa de futuros acontecimentos. Agitando a colher, proseguiu: --Falava eu então da mãe de Vlassof... Ao que parece, entrou tambem para o partido depois da prisão do filho... Dizem que essa velha é extraordinaria! Pélagué teve um franco sorriso: sentia-se a um tempo lisonjeada e constrangida. Ia dizer-lhe que a mãe de Pavel era ella; mas conteve-se e pensou com tristeza e um pouco de ironia: --Que velha tola que eu sou! E de repente, dominando a sensibilidade que a dominava, curvou-se para o rapaz: --Vamos, coma! Coma que mais depressa se ha de curar para proseguir nos nossos trabalhos! A causa do povo precisa de braços juvenis e robustos, de corações puros, de espíritos leaes! São essas forças que lhe dão vida; é por ellas que hão de ser vencidas toda a maldade e toda a infamia!... Abriu-se a porta, deixando penetrar o fresco húmido do outono. Entrou Sofia, alegre, com as faces muito córadas. --Os espiões andam a perseguir-me como os janotas arruinados perseguem uma herdeira rica, palavra d’honra! Tenho de me ir embora d’aqui. --E então, Ivan, como vae?... Bem?... Pélagué, que diz o Pavel?... A Sachenka está cá? Accendia um cigarro e ia fazendo todas estas perguntas sem esperar as respostas. Afagava no entretanto a velha e o rapaz com a caricia do seu olhar pardacento. Pélagué considerava a recemchegada, rindo interiormente e pensava: «E eis como eu tambem me transformei em creatura humana... e n’uma bôa creatura, até!» Inclinando-se de novo para Ivan, disse-lhe: --Cure-se depressa, rapazinho! E passou á casa de jantar, onde estava Sofia a dizer a Sachenka: --Ella já preparou trezentos exemplares!... Mata-se a trabalhar... Que heroísmo o d’ella! Sabe Sachenka, que é uma verdadeira felicidade viver entre gente assim, ser seu camarada, trabalhar com elles!... --É certo! respondeu a rapariga. E á noite, Sofia annunciou: --Mãe Pélagué, precisamos que faça uma nova excursão pelo campo. --Com muito gosto. Quando é a partida? --Dentro de trez dias... Está por isso? --Certamente! --Mas não ha de ir a pé, aconselhou Nicolao. Alugam-se cavallos de posta e toma outro caminho: pelo districto de Nikolsky... Aqui, calou-se; tomára uns modos sombrios que não condiziam com a sua expressão habitual; as suas feições tão calmas tiveram uma contracção singular de fealdade. --É uma volta muito grande! fez notar a velha. E os cavallos custam caro. --É preciso que saibam, proseguiu Nicolao. Sou geralmente contrario a estas viagens. Ha agitação lá para esses lados... ha pouco, fizeram-se por lá prisões, foi encarcerado um mestre escola... É bom ser-se prudente... Mais valia esperar um pouco... --Ora! redarguiu Pélagué a rir. Se é certo o que dizem: que não se tortura ninguem n’essas prisões... Sofia, que tamborilava sobre a mesa, observou: --Mas é importantissimo para nós que a distribuição dos folhetos e dos manifestos se faça sem interrupção... Não tem medo de lá ir, Pélagué? perguntou bruscamente. Sentiu-se melindrada. --Tive eu alguma vez medo? Mesmo da primeira vez não me senti nada assustada... e a senhora... Baixou a cabeça sem terminar a frase. É que sempre que lhe perguntavam se ella tinha medo, se podia fazer uma coisa ou outra, se isto ou aquillo era facil para ella, presentia que precisavam de si para alguma coisa, que tratavam de se descartar d’ella, e que a tratavam por fórma diversa da que usavam entre elles. Quando tinham vindo os dias dos acontecimentos mais consideraveis, haviam-na ao principio assustado um pouco a rapidez dos incidentes e a repetição das emoções, mas logo, instigada pelo exemplo e sob o impulso das idéas que a dominavam, o seu coração transbordára do immenso desejo de se tornar tambem util. Era este o seu estado de espirito n’esse dia, e a pergunta de Sofia tornou-se-lhe assim, pois, tanto mais desagradavel. --É inutil perguntar se tenho medo... ou outra qualquer coisa d’este genero, proseguiu ella. Porque havia de ter medo?... Os que possuem alguma coisa é que teem medo. E eu que tenho? O meu filho, unicamente... Tinha medo por elle... Tinha medo que o torturassem e que me fizessem outro tanto. Mas desde o momento que não ha torturas, que me importa o resto? --Não está zangada comigo?! exclamou Sofia. --Não... Somente noto que nunca pergunta aos outros se têm medo... Nicolao tirou com vivacidade os óculos, tornou a pôl-os e olhou de fito para a irmã. O silencio contrafeito que se estabeleceu agitou a alma de Pélagué. Levantou-se constrangida; ia falar, mas Sofia, pegando-lhe brandamente em uma das mãos, disse baixinho: --Desculpe... Nunca mais lho pergunto. Esta promessa fez rir a anciã. E instantes depois, todos trez conversavam affectuosamente mas preoccupados, sobre a nova jornada ao campo. XV Logo ao nascer da aurora, lá ia a velha na carrinhola, em fortes solavancos pelas estradas enlameadas pelas chuvas do outono. Soprava húmido vento; a lama voava em mil respingos; o postilhão, sentado á beira do carro, virado para Pélagué, ia a lamentar-se n’uma voz anasalada e filosófica: --Tinha eu dito áquelle meu irmão: façamos partilhas! E começámos a fazer partilhas... Mas de repente fustigou o cavallo da mão com valente chicotada e gritou furioso: --Queres andar, ou não, estuporado animal? Os nédios corvos d’outono saltitavam com gravidade pelos campos nús; o vento vinha-lhes ao encontro, assobiando; elles então apresentavam o flanco ao vento, que lhes arrepiava as pennas e os obrigava a cambalear, e elles cediam á força da brisa e deitavam a voar com um palpitar indolente das azas. --Finalmente prejudicou-me, e eu vi que não havia nada a fazer com elle, concluiu o postilhão. As palavras do homem resoavam como n’um sonho, aos ouvidos de Pélagué; no seu coração germinava um pensamento muito diverso, a sua memoria fazia-lhe desfilar na frente a longa série dos acontecimentos passados nos ultimos annos. Outrora, a vida, para ella, era como uma coisa criada não se sabia onde, muito longe, não se sabia por quem, nem porquê, e, agora, um numero consideravel de coisas se faziam á sua vista e com o seu próprio auxílio. E um vago sentimento se apoderava d’ella: era perplexidade e suave tristeza, contentamento e desconfiança de si mesma... Em torno d’ella, tudo se deslocava com lento movimento; no ceu, vogavam pesadamente as nuvens pardacentas, correndo para passarem umas adiante das outras; aos dois lados do caminho, fugiam as arvores encharcadas, com os cumes desnudados a baloiçarem; os campos estendiam-se em circulos regulares; monticulos adiantavam-se-lhe ao encontro, depois, ficavam para traz. Dir-se-ia que aquelle dia turvado ia a correr para alguma coisa longinqua, indispensavel. A voz nasal do postilhão, o tintilar dos guisos, o assobiar húmido e o perpassar do vento, tudo se fundia em uma torrente sinuosa e palpitante, que corria por cima dos campos com força uniforme e que suggestionava os espíritos. --O rico até no ceu acha o espaço pouco!... É sempre assim! Meu irmão entrou a chicanar... as autoridades protegem-no! continuava o cocheiro, sentado sempre no rebordo do vehículo. Chegados ao termo da viagem, desatrelou os cavallos e disse á velha n’um tom desesperado: --Bem me podias dar cinco kopecks para beber uma pinga. E como ella acquiescesse ao pedido, o homem declarou no mesmo tom, fazendo tenir as duas pequenas moedas no concavo da mão: --Pois vou comprar uns trez kopecks d’aguardente e dois de pão!... Pela tarde, chegou Pélagué, esfalfada e transida á importante villa de Nikolsky. Dirigiu-se á hospedaria, pediu chá e, tendo occultado debaixo d’um banco a sua pesada mala de mão, foi sentar-se ao pé da janella, a olhar para o largosinho, revestido d’um tapete amarellado de herva calcada, e para o edificio da administração da communa, um casarão pardacento e triste, com os telhados a caír. Sentado nos degraus da entrada, estava um campónio calvo, de barbas compridas, a fumar o seu cachimbo. Corriam as nuvens em massas sombrias; amontoavam-se umas sobre outras. Reinava silencio; tudo respirava um tédio de mau humor; dir-se-ia que a existencia inteira se tinha occultado não se sabia onde, silenciosa. De repente, appareceu um official inferior de cossacos, a galope; sopeou o alazão que montava, em frente da entrada da administração e gritou o que quer que fôsse para o campónio, agitando o chicote no ar. Os seus gritos atravessavam as vidraças, mas Pélagué não podia distinguir as palavras. O campónio levantou-se, estendeu a mão para o horizonte; o official inferior saltou para o chão, cambaleou um pouco, atirou as rédeas ao homem; depois, firmando-se pesadamente na balaustrada, subiu os degraus e sumiu-se no interior do edificio. Fez-se novo silencio. Por duas vezes o alazão bateu com o casco no solo empapaçado. Uma rapariguinha, de olhos cariciosos e rosto muito redondo, com uma pequena trança loira caída no hombro, entrou na sala onde Pélagué estava. De bocca franzida, trazia sobre os dois braços estendidos uma enorme bandeja de bordas já gastas, carregada de louça. Cumprimentou com a cabeça. --Viva, minha lindinha! disse-lhe Pélagué amoravelmente. --Viva! Quando dispunha sobre a mesa pratos e chavenas, a pequena annunciou de chofre, muito animada: --Apanharam agora mesmo um ladrão... Vão trazel-o para aqui. --Que vem a ser esse ladrão? --Não sei. --Que fez elle? --Não sei; só ouvi dizer que tinham apanhado um ladrão! Foi o guarda que saíu a correr da administração para ir buscar o commissário. Ia a gritar: «Está agarrado, tragam-no para cá!» Pélagué olhou pela janella e viu que vários camponezes se approximavam. Uns caminhavam devagar, com todo o socego; outros, corriam e vinham a abotoar as suas capas de pelles mesmo a andar. Pararam todos em frente do casarão e dirigiram os olhares para a esquerda. Mas conservavam-se todos em singular silencio. A rapariguinha olhou tambem para a rua e saíu da sala, batendo ruidosamente com a porta. Pélagué estremeceu. Occultou o melhor que poude a mala debaixo do banco, cobriu a cabeça com um lenço e veio fóra, a passo rápido, reprimindo o incompreensivel desejo de fugir que toda inteira a assaltava. Ao chegar ao poial da entrada da estalagem, sentiu nos olhos e no peito um friosinho agudo; suffocou, teve as pernas dormentes: a meio do largo caminhava Rybine com as mãos amarradas nas costas, escoltado por dois guardas. Silenciosa, a multidão dos campónios estava á espera, em volta da escadaria da administração. Atordoada, sem compreender bem o que via, Pélagué não desfitava Rybine. Este vinha a falar, pois que Pélagué lhe ouvia o som da voz, mas as palavras voavam indecisas, sem que tivessem éco no vácuo fremente e obscuro do seu espirito. Voltou a si e respirou melhor. Um campónio de barba loira estava a fitar n’ella attentamente os olhos azues. Ella tossiu, esfregou o peito com as mãos trémulas de terror e perguntou com esforço: --Que se passa? --Veja vocemecê mesma, redarguiu o camponez, voltando-se de novo para ella. Outro rústico approximou-se do primeiro e postou-se lado a lado. Os guardas fizeram alto em frente da populaça sem cessar crescente, mas que permanecia muda. De súbito, a voz de Rybine resoou com inergia: --Teem ouvido falar d’esses papeis em que se escreve toda a verdade a respeito da nossa vida de campónios?... Pois bem: foi por causa d’esses papeis que me prenderam! Fui eu que os distribui pelo povo! A multidão cercou então o preso. Este apparentava voz calma, reflectida, e isto aliviou Pélagué da oppressão em que se sentia. --Estás ouvindo? perguntou o segundo camponez ao dos olhos azues, dando-lhe com o cotovelo. Este, sem responder, ergueu a cabeça e de novo fitou a velha. O outro fez o mesmo. Era mais novo que o primeiro e tinha uma cara chupada, coberta de sardas, de barbinhas pretas. Os dois afastaram-se um pouco. --Teem medo! disse Pélagué comsigo. E augmentou de attenção. Da soleira da estalagem distinguia perfeitamente o rosto sujo e tumefacto de Rybine, divisava-lhe o brilho do olhar; desejava que elle tambem a visse; pôz-se nos bicos dos pés, de pescoço estendido. Varios populares attentavam n’ella com modos frios, desconfiados, sem proferir uma palavra. Só nas primeiras filas do ajuntamento é que se notava um susurro continuado de conversações. --Camponezes, meus irmãos, proseguiu Rybine com voz máscula e firme, tenham confiança n’esses escriptos! É para a morte talvez, que eu caminho por causa d’elles! Fui espancado, torturado, quizeram obrigar-me a dizer d’onde elles provinham... Pois que continuem a espancar-me--tudo supportarei!... Porque n’esses papeis encontra-se a verdade, e a verdade é para ser por nós mais presada do que o pão!... do que a própria vida! --Para que diz elle aquillo? perguntou um dos dois campónios. O dos olhos azues respondeu com lentidão: --Que lhe importa, a elle? A gente não morre duas vezes... E agora que já está condemnado... Os trabalhadores continuavam mudos, relanceando olhares furtivos e mal humorados; a todos parecia acabrunhar o que quer que fosse invisivel mas esmagador. O official inferior appareceu n’isto na balaustrada da administração. Titubeante e em voz avinhada, regougou: --Que vem a ser toda esta gente? Quem está para ahi a falar? Precipitou-se para o largo, agarrou e saccudiu Rybine pelos cabellos, gritando: --És tu que estás a falar, filho d’uma cadella... és tu? Fez-se agitação entre o povo, que entrou a murmurar. Presa de violenta angustia, a cabeça de Pélagué descaíu sobre o peito. Um dos campónios suspirou com ruido. E de novo resoou a voz de Rybine: --Pois bem, bôa gente, escutem!... --Cala-te! E o sargento deu-lhe um murro sobre o ouvido. Rybine cambaleou, depois, ergueu os hombros. --Amarram as mãos a uma pessôa para a martirisarem á vontade! --Guardas, levem-no! Olá! toca a dispersar! E, aos saltos na frente de Rybine, como um cão preso pela trela diante d’um naco de carne, o sargento atirava-lhe murros á cara, ao ventre e ao peito. --Não lhe batas! gritou uma voz entre o povo. --Para que lhe bates? perguntou outro. --Vamo-nos embora! disse o dos olhos azues para o companheiro, abanando a cabeça. E, de seu vagar atravessaram o largo, emquanto Pélagué os acompanhava com um olhar de simpatia. Suspirou então, mais aliviada. O sargento accudiu outra vez, em pesado passo, á balaustrada e entrou a gritar, furioso, brandindo o punho: --Tragam-no para aqui, já lhes disse. --Não! replicou uma voz sonora. (A velha percebeu que era a do camponez dos olhos azues.) Não devemos consentir! Se o deixam entrar ali, vae ser espancado até o matarem! E depois não faltará quem diga que a culpa foi nossa, que fomos nós que o matámos!... Não devemos consentir! --Camponezes! gritou Rybine. Não vêem a vida que levam? Não vêem como são explorados, ludibriados, e que lhes tiram o sangue?... Tudo repousa em vós; vós sois a principal força da terra... toda a sua força!... E quaes são as vossas regalias? Unicamente a de morrer á fome! De subito, os camponezes proromperam em gritos, interrompendo se uns aos outros: --O homem tem razão! --Chamem o commissário da policia rural! Onde está? --O sargento foi chamal-o! --Ora adeus! O sargento está bêbedo! --Não é a nós que compete chamar as auctoridades! --Fala, que não deixamos que te batam! --O que foi que tu fizeste, an? --Desamarrem-lhe os pulsos. --Não, não, meus irmãos! --Porque não? Que importancia tem isso? --Pensem bem no que fazem! --Doem-me os pulsos! disse Rybine, dominando o tumulto com a sua voz sonora e espaçada. Meus irmãos! descansem que não fujo!... Eu não posso fugir á verdade, pois que ella vive em mim! Algumas pessôas separaram-se do ajuntamento e foram-se afastando com meneios de cabeça; alguns riam... Mas sem cessar, gente exaltada, mal vestida por terem envergado os fatos á pressa, vinha chegando de todos os lados. Fervilhavam em volta de Rybine qual negra escuma. De pé, no meio d’elles, tal um cruzeiro em meio da floresta, o preso ergueu os braços acima da cabeça e gritou: --Obrigado, obrigado, bôa gente! Sim! devemos desligar as nossas mãos mutuamente! Quem nos havia de ajudar, se nós não nos ajudassemos uns aos outros? Ergueu novamente uma das mãos, toda ensanguentada: --Vêem o meu sangue? É pela verdade que o derramo! Pélagué desceu o poial. Mas do nivel do largo, já Rybine lhe não era visivel; tornou pois a subir os degraus. Tinha o peito em fogo mas dentro d’elle sentia palpitar alguma coisa de vaga alegria... --Camponezes! Busquem esses folhetos, leiam-nos. Não acreditem nas autoridades e nos padres, que andam a dizer-lhes que são ímpios e herejes aquelles que vos trazem a verdade!... A verdade vae sempre fazendo o seu caminho silencioso pela terra, e no seio do povo encontra abrigo. Para essas autoridades ella é peor que o ferro e que o fogo. A verdade é a nossa melhor amiga; para a autoridade é uma inimiga declarada.--ahi teem porque ella se esconde. De novo resoaram entre a multidão varias exclamações. --Irmãos, escutem! --Ai, pobre homem, estás perdido! --Quem te denunciou? --Foi o padre, respondeu um dos guardas. Dois dos camponezes vomitaram logo uma chuva de impropérios. --Cuidado, camaradas! advertiu uma voz. XVI É que vinha chegando o commissário da polícia rural. Era um homem alto e robusto, cara redonda. Trazia o bonné inclinado para a orelha; uma das guias do bigode vinha retorcida para cima, a outra pendia-lhe do canto da bocca, o que lhe dava uma expressão contorcida á cara, já de si desfigurada por um sorriso parado e estúpido. Na mão esquerda tinha uma pequena espada e balançava o braço direito ao ritmo dos passos. Fazia bulha, com o andar, pesado e firme. A populaça afastava-se na sua passagem. As fisionomias tomavam um aspecto de triste acabrunhamento. O tumulto socegára, desapparecera como se se tivesse sumido pela terra. Pélagué sentiu estremecer-lhe em repuxões nervosos a pelle da fronte; offuscava-lhe a vista uma como névoa de calor. Novamente teve vontade de ir misturar-se áquella gente; inclinou-se porém, e ficou immovel, em angustiosa espectativa. --Que temos? perguntou o commissário, parando diante de Rybine e medindo-o dos pés á cabeça. Porque é que este homem não tem as mãos amarradas? Porquê? Amarrem-lhas! Tinha a voz aguda e sonora, mas sem timbre. --Elle tinha as mãos amarradas... mas o povo desamarrou-lhas! respondeu um guarda. --O quê? O povo? Que povo? Percorreu com a vista o semi-círculo que o cercava e proseguiu na sua voz branca e uniforme: --Quem vem a ser aqui o povo? Tocou com o punho da espada o peito do camponez de olhos azues: --És tu que és o povo, Tchoumakof? E quem mais? És tu, Michine? E deu um puxão nas barbas d’outro camponez. --Vamos a dispersar, canalha!... Senão, comigo se hão de haver...! Não demonstrava no tom em que falava nem irritação nem ameaça, como tão pouco na fisionomia. Exprimia-se com uma tranquillidade completa e ia distribuindo as pancadas em gestos firmes e iguaes. Diante d’elle, os grupos recuavam, baixavam-se as cabeças, desviavam-se os rostos. --Então, por que esperam? perguntou aos guardas. Amarrem-no! E depois de uma chuva de insultos cínicos, virou-se de novo para Rybine: --Olá, tu! Mãos atraz das costas! --Não quero ser amarrado! replicou Rybine. Eu não fujo... não me defendo... Para que serve amarrarem-me? --O quê?! exclamou o commissário, indo para elle. --Já bastante martirisastes o povo, feras! continuou Rybine, erguendo a voz. Tambem vocês dentro em pouco hão de ter os seus dias de sangue! O commissário parou-lhe na frente de chofre e pôz-se a miral-o, ao mesmo tempo que repuxava o bigode. Depois, recuou um passo e disse em tom de espanto e n’uma voz sibilante: --Ah, filho d’um cão!... Que significam essas palavras? E bruscamente, com toda a força, descarregou uma punhada no rosto de Rybine. --Não se destroe a verdade a murros! gritou este, crescendo para elle. E tu não tens o direito de me bater! --Eu não tenho o direito?! berrou o commissário, destacando muito as palavras. E novamente atirou o braço para attingir o rosto de Rybine. Este baixou-se, por fórma que o commissário, com o impulso, esteve a ponto de caír. D’entre o ajuntamento alguem fungou com ruido. Furioso, Rybine repetiu: --Já te disse que não tens o direito de me bater, grande diabo! O commissário olhou em torno. Os homens, silenciosos e de má catadura, rodeavam-no em compacto círculo. --Nikita! chamou. Olá, Nikita! Um campónio baixote e atarracado, vestido de um curto casacão de pelles, saíu do grupo. Vinha de olhos fitos no chão, com a enorme cabeça baixa e os cabellos desgrenhados. --Nikita! ordenou o commissário com a maior tranquillidade e retorcendo o bigode. Dá-lhe uma bofetada bôa! O homem deu um passo para diante, parou em frente de Rybine e ergueu a cabeça. Rybine, á queima roupa, bombardeou-o com estas palavras sinceras e duras: --Vejam vocês, bôa gente, como este bruto vos esmaga com a vossa própria mão!... Vejam bem... e reflictam. Lentamente, o homem ergueu o braço e contundiu Rybine na cabeça, mas levemente. --Assim é que eu te mandei fazer, canalha? gritou o outro, esganiçando-se. --Eh, Nikita! disse alguem próximo. Não te esqueças de que Deus te está vendo! --Bate-lhe, já t’o disse! gritou o commissário, empurrando o camponez. Este afastou-se um passo e respondeu com frieza, de cabeça baixa: --Não, senhor! não estou para mais! --Como? Contraíu-se o rosto da autoridade. Bateu o pé e precipitou-se sobre Rybine, rogando pragas. A pancada resoou em surdo choque. Rybine cambaleou, agitou o braço; em segundo assalto, prostrou-o o commissário no solo e, aos pulos em volta d’elle, entrou a dar-lhe pontapés na cabeça, pelo peito, nas ilhargas. A multidão, soltando gritos hostis, pôz-se em movimento e cresceu para o commissário, mas este deu um salto para o lado e desembaínhou a arma. --Ah, é assim? Revoltam-se? Ah, é isso? Tremeu-lhe a voz, tornou-se mais aguda e passou a saír-lhe da garganta em guinchos, como se se tivesse quebrado. E ao mesmo tempo que perdia a voz, sentia-se perder todo o prestigio. Com a cabeça encolhida nos hombros, o dorso recurvado e relanceando em torno o olhar amortecido, entrou a recuar, tateando cautamente o solo atraz de si. Amedrontado, rouquejava, ao mesmo tempo que ia cedendo: --Muito bem... Fiquem com elle... Eu vou-me embora!... Mas, depois? Fiquem bem sabendo: esse homem é um criminoso político, combate contra o nosso tzar, anda a fomentar revoltas! Compreendem? É contra Sua Magestade o Imperador... e vocês defendem-no! Sabem que ficam sendo rebeldes? Immovel, o olhar de estátua, sem idéas nem acção, como n’um pesadello, Pélagué succumbia ao peso do terror e da sua piedade. Semelhantes ás vibrações d’um sino enorme, susurravam-lhe aos ouvidos os gritos irritados da plebe. Tudo lhe redemoinhava dentro da cabeça, a voz tremente do commissário, mil ruidos confusos... --Se é criminoso, seja julgado! --E não massacrado! --Tenha dó d’elle, Excellencia! --Pois está claro! Não tem direito de bater-lhe! --Se isto são maneiras de proceder! D’essa fórma, começam todos para ahi a bater na gente! O que será então! --Que brutos! que carrascos! Dividia-se o povo em dois grupos: uns rodeavam o commissário, gritavam, exortavam-no, os outros, menos numerosos, permaneciam junto do ferido e discorriam em voz baixa e com ares de abatimento. Ergueram-no do chão alguns homens. Os guardas dispunham-se a ligal-o de novo. --Esperem ahi, seus diabos! gritaram-lhes. Rybine limpou a lama e o sangue que lhe empastavam a cara e, silencioso, olhou em torno. Deu então com a vista no rosto de Pélagué. Esta estremeceu, adiantou todo o corpo para elle, fez instinctivo gesto. Elle desviou os olhos. Mas, alguns instantes mais tarde, voltava o olhar do preso a fixar-se n’ella. Afigurou-se á pobre mulher que Rybine se endireitava na sua direcção, que erguia a cabeça para ella, com um movimento convulso das ensanguentadas faces. --Reconheceu-me!... É possivel que me tenha reconhecido?!... E, vibrante de uma pungente satisfação angustiada, fez-lhe um signal com a cabeça. Mas logo reparou no homem dos olhos azues, que se encontrava junto de Rybine e que a fitava. Dispertou n’ella a consciencia do perigo. --Que estou eu a fazer?... Podem prender-me tambem. O homem segredou algumas palavras a Rybine; este abanou a cabeça e disse nervosamente mas por fórma distincta e valorosa: --Que importa? se eu não estou sósinho no mundo!... A verdade nunca poderá ser encarcerada! O povo ha de lembrar-se de mim por toda a parte onde passei... Ahi está! O ninho foi destruido, mas que mal vae n’isso, se dentro d’elle já não estavam nem amigos, nem camaradas? É para mim que está a falar! pensou Pélagué. --O povo saberá construir outros ninhos, em prol da eterna verdade, e ha-de chegar o dia em que as águias voarão livremente... em que o povo será libertado! Trouxe uma mulher um balde d’agua e, desfazendo-se em lamentações, entrou de lavar o rosto do preso. A vózinha chorosa e fina da mulher confundia-se com a de Rybine e não deixava que Pélagué entendesse o que elle dizia. Precedido do commissário de polícia, avançava um grupo de camponezes. Alguem ordenou: --Um carro para levar o preso para a cidade! Olá, a quem toca fornecer o carro? Em seguida, o commissário gritou n’uma voz transtornada e como vexado: --Eu posso bater-te, entendes? mas tu não me pódes fazer outro tanto, tu é que não tens esse direito, idiota! --Ah! E quem és tu então? Deus de misericordia! replicou Rybine. Algumas exclamações abafadas cobriram a resposta. --Não discuta, tiosinho! Olhe que é um chefe! --Não se zangue mais, Excellencia! --Cala-te d’ahi, meu original! --Vão-te já levar para a cidade!... --Lá, ha mais respeito pela lei! Os gritos da populaça tornavam-se mais conciliadores, supplicantes; conjugavam-se em indistincta vozearia, lamentosa, mas sem qualquer nota em que se traduzisse uma esperança. Os guardas agarraram Rybine pelos braços, conduziram-no pela escadaria da administração e com elle penetraram no edificio. Lentamente, a multidão foi-se escoando. Pélagué notou que o homem dos olhos azues se dirigia para o seu lado e a observava de soslaio. Tremiam-lhe as pernas; desconsoladora sensação de impotencia e de isolamento lhe alanceava a alma, causando-lhe nauseas. --Não devo ir-me embora! pensou. Não o devo fazer! Reteve-se vigorosamente á balaustrada e ficou esperando. Em pé, no cimo da escadaria da administração, o commissário discursava com grandes gestos, repreensivo, e na sua voz outra vez incaracteristica de indifferença: --Imbecis! Filhos de cães! Não compreendem nada e vão metter-se n’um negocio d’estes!... n’um negócio d’Estado! Idiotas! Vocês deviam agradecer-me a minha bondade, deviam inclinar-se diante de mim, até ao chão! Se eu quizesse, iam todos para as galés! Escutavam-no uns vinte campónios, de chapeu na mão. Caía a noite; vinham descendo as brumas... Então o homem dos olhos azues approximou-se de Pélagué e commentou com um suspiro: --Que cantiga aquella, an? --É verdade! respondeu, baixo. Elle fitou-a com um modo decidido; perguntou: --Em que se emprega? --Compro rendas ás mulheres que as fabricam... e pannos tambem. O campónio afagou de vagar a barba; depois, disse em tom de contrariedade e a olhar na direcção da villa: --Não temos nada d’isso lá em casa... A velha examinou-o da cabeça aos pés e ficou-se esperando instante opportuno para voltar ao interior da hospedaria. Era bello e pensativo o rosto do homem; nos olhos tinha uma nuvem de melancolia. Alto e espadaúdo, vestia uma blusa muita remendada, uma camisa limpa, de chita, umas calças côr de castanha, de grosseiro panno e trazia os pés nús n’umas alpercatas de canhamo. Sem saber porquê, soltou Pélagué um suspiro como de alivio. E de súbito, obedecendo a um instincto mais prompto do que o seu raciocínio, perguntou-lhe em um impulso que a ella mesma surpreendeu: --Posso passar a noite em tua casa? E logo sentiu os músculos, o corpo inteiro retesarem-se n’um espasmo. Atravessaram-lhe rapidamente o cérebro idéas cruciantes: --Vou perder Nicolao!... Não mais tornarei a ver o Pavel... por muito tempo... E hão de espancar-me tambem! O homem, sem precipitação alguma, olhos no chão, respondeu, emquanto cruzava sobre o peito a gola da blusa: --Passar a noite? Sim... porque não? O peor é que a minha cabana não é grande coisa! --Tambem, eu não estou habituada a mimos! respondeu ella. --Está bem! acquiesceu o campónio, medindo-a por seu turno com olhar perscrutador. Á claridade do crepúsculo, os olhos do homem tinham um brilho frio; o rosto tornára-se-lhe muito pálido. E logo, Pélagué, baixo: --Então, vou já comtigo... Has-de trazer-me a mala. --Está dito. Encolheu os hombros, cruzou outra vez a blusa e segredou: --Ora, veja: lá vem a procissão! Rybine surgira no topo da escadaria. Trazia de novo as mãos amarradas, e a cabeça e a cara embrulhadas em qualquer coisa pardacenta. A sua voz vibrou na frialdade do crepúsculo: --Até mais ver, bôa gente! Busquem a verdade, conservem-na; creiam n’aquelles que vos trazem as bôas palavras... Não poupem quantas forças tenham, em prol da verdade! --Cala-te, cão! gritou o commissário. Guarda, faz andar esses cavallos! --...Pois que teem a perder? Que existencia é a vossa? Pôz-se o carro em andamento. Sentado entre dois guardas, Rybine ainda gritou cavamente: --...Porque morrem de fome? Trabalhem por obter a liberdade... É ella que lhes ha-de dar pão e justiça!... Bôa gente, adeus! O ruído precipitado das rodas e das patas dos cavallos, as invectivas do commissário de policia confundiam-se com a sua voz, entrecortando-a e abafando-lha. Pélagué voltou para dentro de casa; sentou-se á mesa, perto do samovar, agarrou n’um pedaço de pão, examinou-o e tornou a pôl-o lentamente no prato. Não tinha vontade de comer, bem que experimentasse na bocca do estomago uma desagradavel sensação que lhe esgotava as forças, que lhe expulsava o sangue do coração e lhe fazia andar a cabeça á roda. --Elle deu por mim! dizia ella comsigo, tristemente, no sentimento da sua fraqueza, para poder reagir. Deu por mim... Adivinhou, com certeza!... E não podia ir mais longe o seu pensamento: fundia-se n’uma prostração dolorosa, n’uma sensação viscosa de enjôo... O silencio timido, como que acoitado para além das vidraças e que succedera ao borborinho, provava que em toda a villa os habitantes haviam voltado ao antigo torpor medroso e subserviente, e isto mais lhe acirrava a sensação de isolamento em que se debatia, enchendo-lhe o espirito de obscuridade pardacenta e penetrante como cinza. A rapariguinha abriu a porta e do limiar perguntou: --Quer que lhe traga uma _omelette_? --Não... Já não tenho vontade... Esta gritaria fez-me um mal!... A pequenita foi até junto da mesa e pôz-se a narrar animadamente, mas em voz baixa: --Como elle lhe bateu com força, o commissário!... Eu estava mesmo ao pé d’elle; vi tudo... Até quebrou os dentes todos do homem!... E quando o homem escarrava, o sangue vinha muito grosso, muito grosso e escuro!... Nem se lhe viam os olhos!... O sargento está cá. Está embriagado de todo e não faz senão pedir vinho. Diz elle que era uma quadrilha inteira e que aquelle das barbas era o chefe. Apanharam trez, mas um fugiu... E tambem prenderam um mestre escola que andava com elles!... Elles não crêem em Deus e aconselham o povo a roubar todas as igrejas. Aqui está o que elles fazem! Havia homens que tinham dó do tal das barbas, mas outros diziam que se devia dar cabo d’elle!... Sempre ha homens muito maus cá no nosso sítio! Pélagué escutava attenta esta rápida e entrecortada narrativa; esperava distraír assim o seu desasocego e dissipar a oppressora angustia da espectativa. A pequena encantada com tão bôa ouvinte, tagarelava sempre com crescente animação, comendo as palavras: --O papá diz que tudo isto vem da falta de generos, tudo! Ha já dois annos que a terra não produz nada... e toda a gente anda sem saber o que ha de fazer. É por isso que apparecem agora homens como aquelle. É uma desgraça! Vão para as reuniões gritar e bater uns nos outros!... Ainda no outro dia, quando venderam as terras do Vassioukof, porque não pagava o fôro, deu uma bofetada no _staroste_.[3] «Ahi teem o fôro!» disse-lhe o Vassioukof. Resoaram pesados passos para além da porta. Pélagué ergueu-se com as mãos apoiadas na mesa. O camponez dos olhos azues entrou e sem tirar o bonné: --Onde tem a sua bagagem? Ergueu a mala sem esforço algum. E observou: --Está vazia!... Maria, acompanha esta viajante a minha casa. E saíu sem olhar para ninguem. --Vae passar a noite á villa? inquiriu a pequena. --Vou, sim! Eu negoceio em rendas e quero ir fazer as minhas compras. --Não ha de encontral-as por cá. Em Tinekof e em Darino, ahi é que as fazem, mas cá na terra, não! explicou Maria. --Pois ámanhã lá irei... Pagou o chá e deu trez kopecks á pequena, que ficou contentissima. Já na rua, propôz esta, emquanto ia chapinhando com os pés descalços pela terra húmida: --Se a senhora quer, eu vou muito depressa a Darino, digo ás mulheres que lhe tragam cá as rendas... As mulheres vêem e a senhora não precisa fazer a viagem... Olhe que sempre são doze kilometros! --Não, minha lindinha, não é preciso, respondeu, continuando a caminhar ao lado da pequena. Acalmára-a o ar fresco da tardinha. Lentamente, formava vaga resolução confusa, mas que a satisfazia. Tal idéa ia germinando com força e, para lhe abreviar a definitiva fixidez, Pélagué ia sem cessar perguntando a si mesma: --Que fazer?... Proceder aberta, francamente?... Tinha caído completamente a noite, húmida e glacial. Brilhavam as janellas das cabanas com avermelhadas, baças, immoveis claridades. O gado fazia ouvir no silencio mugidos de indolencia. Aqui e ali, distinguiam-se breves exclamações. Esmagadora melancolia envolvia todo o logar. --É aqui! disse a rapariguinha. Sempre escolheu muito má casa! Este camponez é tão pobre!... E ás apalpadelas, procurou a porta abriu-a e gritou com voz esperta: --Tatiana, aqui está a sua hóspede! E logo deitou a correr. A sua vozinha vibrou ainda na escuridão: --Adeus! NOTAS DE RODAPÉ: [3] O _staroste_ é o chefe d’um _mir_, ou communa rural autónoma. N. do T. XVII Pélagué deteve-se no limiar a examinar o interior, abrigando os olhos sob a mão em pala. Era pequena e acanhada a choupana, mas de um aceio que logo saltava á vista. Uma mulher nova appareceu por detraz do fogão, cumprimentou em silencio e desappareceu de novo. A um canto, sentado a uma banca, sobre a qual havia um candieiro acceso, o dono da casa tamborilava com os dedos na madeira. Fitava demoradamente a recemchegada. --Entre! disse-lhe ao cabo de alguns momentos. Tatiana, vae chamar o Pedro, depressa! A mulher saíu rapidamente sem mesmo dispensar um simples olhar á viajante. Esta sentou-se n’um banco, em frente do aldeão e divagou a vista pelo aposento. Não via a sua mala. Reinava grave silencio na cabana; só o candieiro fazia ouvir um leve crepitar da chamma. A fisionomia d’aquelle homem, preoccupada e um tanto carrancuda, vacillava á luz mortiça, com feições mal definidas. --Então: Fala... Avia-te!... --E onde está a minha mala? perguntou logo Pélagué em voz alta e com severidade, sem ter bem consciencia do motivo por que assim falava. O campónio encolheu os hombros. Pensativo, respondeu: --Deixa estar que não está perdida! E acrescentou friamente e em voz baixa: --Eu disse diante da pequena que a mala estava vazia. Cá tinha as minhas razões. Ao contrário, você traz ali coisas bem pesadas... --E então? Levantou-se, approximou-se d’ella, curvou-se e inquiriu, baixando ainda mais a voz: --Conhece aquelle homem de ha pouco? Pélagué estremeceu, mas declarou com firmeza: --Conheço! Estas simples respostas parecia-lhe que a acalentavam interiormente, illuminando tudo em volta com a luz d’um heroísmo. Sorriu-se o campónio. --Eu bem a vi fazer-lhe um signal... E elle respondeu-lhe... Perguntei-lhe ao ouvido se conhecia a mulher que estava á porta da hospedaria... --E elle? interrogou com anciedade. --Elle disse só isto: «Somos em grande número...» Sim, foi isto que elle disse: «Somos em grande número...» Perscrutava com olhar interrogador a sua hóspede. Sorriu outra vez e proseguiu: --É uma grande força, aquelle homem!... Tem muita coragem; diz o que pensa! Batem-lhe, injuriam-no, mas não cede! Com o escutar aquelle falar ingenuo, com o ver aquellas feições grosseiras e aquelles olhos francos e claros, ia-se tranquillisando pouco a pouco Pélagué. O seu acabrunhamento e os seus receios dissipavam-se para dar logar a uma compaixão intensa e profunda para com Rybine. Foi assim que, com súbita e amarga ira, que não poude reprimir, ella exclamou em tom de lamento: --Aquelles monstros! Aquelles bandidos! E entrou a soluçar. O campónio deu alguns passos, abanando a cabeça com pezar. --É verdade!... O governo tem andado a arranjar temiveis inimigos! E de repente, voltando para junto d’ella, segredou: --Escute. Supponho que traz jornaes na mala... É certo? --É! respondeu Pélagué simplesmente. E limpava as lagrimas. --Era para elle que os trazia. O dono da casa carregou os sobrolhos, juntou na mão toda a barba em punhado e ficou-se calado, a olhar para um canto. --Nós tambem recebemos um... e folhetos, livros... Eu cá não sou muito instruido, mas tenho um amigo que o é. E minha mulher tambem me lê essas coisas. Calou-se de novo, pôz-se a pensar; depois perguntou: --E agora que vae fazer a tudo isso, á sua mala? A velha fitou-o, e, em tom de instigação: --Deixo-lha cá! O outro não pareceu surpreso, não protestou; apenas repetiu: --Deixa-a cá? Mas n’isto estendeu o pescoço para a porta, apurou o ouvido. --Vem ahi gente, segredou. --Quem? --Gente nossa, provavelmente... Entrou a mulher, seguida do campónio sardento. Este atirou o bonné para um canto, foi até junto do dono da casa e disse-lhe: --E então? O outro meneou a cabeça affirmativamente. --Ó, Stépane! lembrou a mulher. Talvez a nossa viajante tenha vontade de comer. --Não, muito obrigada, minha querida senhora. Voltou-se o segundo camponez para ella e em voz rápida, um tanto quebrada pela commoção: --Permitta que eu mesmo me apresente. Chamo-me Pedro Rabinine, por alcunha o _Sovela_. Percebo alguma coisa d’esses negocios... Sei ler e escrever e não sou um imbecil, para falar assim... Apertou a mão que Pélagué lhe estendera, saccudiu-lha, emquanto ia dizendo a Stépane: --Ora vê tu lá, Stépane! A esposa do nosso senhor e amo é uma bôa senhora, pois não é? E apezar d’isso, ella diz que todas estas coisas são tolices, extravagancias!... que são estudantes e garotos que se divertem a alvoroçar o povo. Mas não vimos nós dois, ainda agora, ser preso um homem de bem? E agora estás vendo esta mulher que já não é criança nenhuma e que tambem não me parece que seja fidalga, e que está do nosso lado... Não se offenda! Como se chama? Falava rápido, mas com voz distincta, quasi sem tomar folego; o queixo tremia-lhe nervosamente e com os olhos franzidos, perscrutava o rosto e toda a pessôa de Pélagué. Andrajoso, os cabellos em desalinho, dava a pensar que acabasse d’alguma lucta em que tivesse vencido o seu adversário e que o dominasse a alacre excitação d’uma victória. Agradou-se d’elle Pélagué por amor de tal vivacidade e principalmente por têl-o ouvido falar com simplicidade e franqueza desde o começo. Correspondeu com amigavel olhar ás suas bôas palavras. O outro saccudiu-lhe outra vez a mão e pôz-se a rir, n’um risinho secco e meigo, muito accentuado. --É negocio de seriedade, bem vês, Stépane. É coisa que a todos dá honra! Eu bem te dizia que o povo começava a fazer obra pelas suas mãos... A fidalga, essa, não quer dizer a verdade, porque isso ia prejudical-a. Mas o povo quer ir para a frente, está decidido a isso, sem lhe importarem perdas nem prejuizos, estás entendendo? Pois se elle leva má vida, se não tem senão prejuizos de todos os lados, se elle não sabe para onde se ha de voltar, pois que não houve outra coisa senão «Prende! Mata!» --Bem vejo! approvou o outro, abanando a cabeça. E acrescentou: --Está em cuidado por causa da mala. --Não se inquiete, está tudo em ordem, tiasinha! A sua mala foi para minha casa. Ha bocado, quando o Stépane me falou a seu respeito e me disse que tambem era cá dos nossos, que conhecia aquelle homem, disse-lhe eu: «Toma cuidado, Stépane! Nada de dar á lingua! Olha que é coisa séria!» Mas vocemecê, ainda agora, tiasinha, logo adivinhou tambem que a gente estava do seu lado. É que as caras da gente honrada conhecem-se n’um pronto, porque ellas não são muitas por essas ruas, ah, não!... A sua mala foi para minha casa! Sentou-se-lhe ao lado e alvitrou com uma sollicitação em cada olhar: --E se quer despejal-a, com todo o gosto a ajudamos... Precisam-se livros por cá. --Quer dar-nos tudo! declarou Stépane. --Está muito bem, tiasinha! Deixe, que havemos de saber empregal-os bem. E bruscamente, levantou-se, entrou a rir. Depois, passeando a passos largos pela cabana, satisfeito: --É o que se póde chamar um caso de pasmar... ainda que bem simples, afinal! Parte-se a corda n’um sítio e concerta-se n’outro. E a coisa assim não vae mal... Olhe que é muito bom, esse periódico, tiasinha; faz effeito, abre os olhos ao povo. Está visto que não agrada aos nossos senhores! Trabalho eu agora na casa d’um proprietário, a sete kilometros d’aqui; sou marceneiro... A mulher d’elle é boa creatura, forçoso é concordar; dá-nos livros... alguns bastante estúpidos. Vamo-os lendo e vamo-nos instruindo... Ficamos-lhe em geral reconhecidos. Mas quando eu lhe mostrei o tal jornal, zangou-se e disse: «Deixe isso, Pedro. Os que o escrevem não passam d’uns garotos e d’uns tolos, e com isso vocemecê não arranja senão desgostos... a cadeia e a Sibéria. Aqui tem o que lhe póde acontecer se continuar a ler esses papeis.» Apóz um instante de reflexão, perguntou: --Diga-me: aquelle outro... o homem... é da sua familia? --Não, respondeu Pélagué. Pedro pôz-se a rir só comsigo, muito satisfeito, sem que os outros soubessem porquê. Afigurou-se a Pélagué uma injustiça falar de Rybine como de qualquer estranho. --Não é da minha familia, explicou; mas ha muito que o conhecia... Respeito-o como se fôsse meu irmão... Mas não achava a expressão que buscára. Tal deficiencia tornava-se-lhe dolorosa; e não poude conter o pranto. Na choupana reinava melancolico silencio. Pedro inclinou a cabeça sobre o hombro; dir-se-ia que escutava o que quer que fôsse. Reclinado sobre um dos cotovellos, Stépane tamborilava. A mulher d’este, encostada ao fogão, conservava-se na sombra. Pélagué sentia-lhe o olhar fito e, por vezes, olhava tambem para ella, entrevia-lhe o rosto redondo, de pelle escura, nariz direito, o mento talhado em angulo e com uma expressão de attenta vigilancia nos olhos esverdinhados. --É portanto, um amigo! concluiu Pedro. É um homem de valor, por certo! Tem-se em grande conta e assim devem todos fazer. Aquillo é que é um homem! não é assim, Tatiana?... Que dizes? --É casado? interrompeu Tatiana. E franziu com força os labios delgados da sua bocca meuda. --É viuvo, respondeu a velha com tristeza. --Por isso tem tanta coragem! declarou Tatiana em tom profundo e grave. Um homem casado não se portava assim; tinha medo! --E então eu, não sou casado? E no entretanto... observou Pedro. --Basta! disse a mulher sem o fitar e com uma contorção de altivez nos labios. Que fazes tu? Falas muito e lês um livro de tempos a tempos! Não é por andares aos segredinhos com o Stépane, pelos cantos, que o povo é mais feliz. --Mas é que ha muito bôa gente que me dá attenção! contestou, offendido, o campónio. Fazes mal em falar-me d’essa maneira! Eu sou como uma espécie de fermento... Stépane olhava para sua mulher, sem uma palavra. Por fim, baixou a cabeça. --Para que se casa a gente do campo? perguntou ella. Porque precisam de quem trabalhe, dizem elles. Para trabalhar em quê? --Então tu não tens bastante em que te entretenhas? interrompeu Stépane, já zangado. --E para que serve esse trabalho? O povo continúa a viver na miseria! Nascem os filhos e nem sequer ha tempo para tratar d’elles, porque o trabalho urge, o trabalho, que nem nos dá o pão! E dito isto, foi sentar-se ao lado de Pélagué. N’uma obstinação que não lhe dava á voz nem tristeza nem lagrimas, proseguiu: --Eu tive dois... Um morreu escaldado pelo samovar, tinha dois annos; o outro nasceu morto... sempre por causa do maldito trabalho! Que felicidade me trouxe então o casamento? O que acho é que a gente do campo faz mal em casar: ficam de mãos amarradas, e ahi está! Se se conservassem livres, haviam de combater abertamente em prol da verdade, como esse homem que tu conheces... Não tenho razão, mãesinha? --Tens! declarou. Sim, minha querida; d’outra fórma não se podem vencer as contrariedades da vida. --E a senhora, tem marido? --Já morreu. Tenho um filho... --Onde está elle? Vive comsigo? --Está na cadeia! E no seu coração, um pacifico orgulho temperava a tristeza de que taes palavras vinham sempre acompanhadas. --É já a segunda vez que o encarceram por ter compreendido a verdade divina e por andar a semeal-a, abertamente, sem se poupar a fadigas!... O meu filho é moço, é bello rapaz e é intelligente! Foi d’elle a idéa de fundar um jornal; foi graças a elle que o Rybine se prestou a distribuil-o, havendo a notar que o Rybine tem duas vezes a idade d’elle! Vão julgal-o dentro em pouco, por tudo isso. Mas depois, quando o meu filho estiver na Sibéria, fugirá e voltará a continuar na campanha. --Temos já muita gente e o número augmenta sempre! Todos estão decididos a luctar até á morte, pela liberdade, pela verdade! Então, pôz de lado toda a prudencia. Não citou nomes, mas contou tudo o que sabia do trabalho minaz a que se andava procedendo em favor do povo. E ao entrar n’este assumpto tão caro ao seu espirito, punha nas palavras toda a energia, todo o excesso do amor que tão tarde brotára n’ella sob os repetidos golpes da adversidade. A voz affluia-lhe igual; accudiam-lhe agora as palavras com tranquilla facilidade, e quaes pérolas multicolores e irisadas, enfiava-as com rapidez no sólido fio do seu desejo de purificar a alma de toda a lama e de todo o sangue d’aquelle dia. Os aldeões como que tinham criado raizes nos sítios em que as suas primeiras palavras os haviam encontrado. Immobilisados, fitavam-na em grave compostura. Chegava a ouvir a respiração arquejante da mulher que se lhe sentava ao lado; e a attenção do auditório fortificava-lhe a crença nas coisas que dizia e promettia. --Todos os que se sentem esmagar pela injustiça e pela miseria, o povo inteiro, devem correr ao encontro dos que por elle morrem nas prisões ou nos cadafalsos. Não teem esses nenhum interesse pessoal em jogo. Explicam qual é o caminho que conduz á felicidade de todos, mas dizem abertamente quão difficil é esse caminho! Não constrangem ninguem, mas quando tomamos logar nas suas fileiras, nunca mais os abandonamos, pois vemos que teem razão, que esse caminho é o verdadeiro, e que não ha outro. Era grato ao coração da anciã realisar finalmente o seu desejo: ella própria falava agora ao povo, acerca da verdade! --Com taes amigos, póde o povo marchar sem receio: elles não cruzarão os braços sem que o povo se tenha conjugado n’uma só alma, sem que tenha bradado com uma voz unica: «Sou eu o supremo senhor; eu mesmo farei as leis, iguaes para todos!» Fatigada por fim, calou-se Pélagué. Tinha a serena certeza de que as suas palavras não se extinguiriam sem deixar vestigios. Os camponezes continuavam a fital-a, como se ainda a escutassem. Pedro cruzára os braços no peito e cerrára as palpebras, com um sorriso a brincar-lhe nas faces sardentas. Com o cotovello na meza, Stépane inclinára-se, adiantando todo o corpo, de pescoço estendido. Velava-lhe o rosto uma névoa, um aspecto de maior sisudez. Sentada junto d’ella, com os cotovellos firmados nos joelhos, Tatiana fitava os bicos dos sapatos. --Ah! ahi está! balbuciou Pedro. E sentou-se n’um banco, com precaução, a abanar a cabeça. Stépane endireitou lentamente o tronco, lançou rápido olhar a sua mulher e estendeu o braço, como se quizesse alcançar alguma coisa. --Com effeito, começou elle, meditativo, quem quizer metter hombros á empreza, é para se lhe entregar de toda a alma! Pedro interveio aqui, timidamente: --Está claro... e sem olhar para traz! --O negócio vae a bom caminho! continuou Stépane. --E em todo o mundo!... disse ainda Pedro. XVIII Recostada e com a cabeça reclinada na parede, escutava Pélagué as reflexões dos dois homens. Tatiana levantou-se, olhou em roda, tornou a sentar-se. Com um brilho metálico nas pupillas verdes, lançou olhares de desprezo aos dois. --Vê-se que tem sido muito infeliz! disse de súbito, voltando-se para Pélagué. --É verdade! --A senhora fala bem... As suas palavras vão direitas ao coração. Quando a gente a escuta, pensa: «Meu Deus! quem pudesse vêr, ainda que não fôsse senão uma vez, gente tão bôa, viver vida tão bella!» Como vivemos nós, aqui? Como uns carneiros! Eu sei ler e escrever... e leio livros... reflicto muito; ás vezes, tenho idéas que nem me deixam dormir de noite. E qual é o resultado de tudo isto? Se não reflicto, soffro, e soffro em vão; se reflicto, é a mesma coisa! De mais, tudo é baldado! Assim, esta gente do campo: trabalham, esfalfavam-se por amor d’um pedaço de pão... e nunca possuem nada!... E é isso o que os irrita; entram a beber, a bater uns nos outros... e lá vão outra vez para o trabalho. E o que se apura d’ahi? Nada. Falava assim, deixando transparecer a ironia no olhar e na voz grave e ampla, detendo-se por vezes, como para cortar as frases, tal a linha com que estivesse costurando. Os homens nada objectaram. O vento rufava nas vidraças, susurrava no colmo do tecto, e por momentos, soprava em brandas lufadas pela chaminé. Uivava um cão. Raras gottas de chuva vinham, como a custo, fustigar a janella. Oscillava a luz do candieiro, empallidecia e recomeçava de subito a brilhar, viva e igual. --E aqui está para que vivem os homens! E é curioso: persuado-me de que já sabia tudo isto! Todavia, nunca tinha ouvido nada parecido; nunca tinha tido idéas d’este genero... nunca! --Tratemos de cear, Tatiana, e de apagar o lume! interrompeu Stépane com voz abatida e vagarosa. Essa gente ha de pensar: «Os Tchoumakof tiveram o lume acceso até muito tarde!» Para nós, isso não teria importancia, mas é por causa da nossa visita. Talvez seja imprudente... A mulher logo se levantou, dando-se pressa em obedecer. --É certo! confirmou Pedro, com um sorriso. É preciso ter cuidado, agora! Quando se tiver feito nova distribuição do jornal... --Não é por mim que falo, declarou Stépane, mesmo se me prenderem, a desgraça não será grande! A vida d’um campónio nenhum valor tem. Experimentou Pélagué súbita compaixão por aquelle homem. E era mais viva do que pouco antes a sua simpatia por elle. Agora, que já tinha falado, sentia-se desajoujada do peso ignobil dos acontecimentos d’esse dia; sentia-se contente comsigo mesma e cheia d’um sentimento de benevolencia. --Não deve falar assim! disse ella. O homem nunca deve medir-se pelo valor que lhe attribuem aquelles que só o julgam por apparencias e d’elle só pretendem o sangue. Aprecie-se a si mesmo, na sua consciencia, não para os seus inimigos, mas para os seus amigos! --E onde estão esses amigos?! exclamou o camponez. Nunca os vi! --Mas se eu te digo que ha amigos do povo! --Haverá, mas não aqui; e essa é que é a desgraça! contestou Stépane, pensativo. --Pois bem! n’esse caso, é preciso que os criem. Reflectiu o outro e respondeu em voz baixa: --Sim... era o que se precisava. --Vamos para a mesa! propôz Tatiana. Durante a ceia, Pedro, a quem as exortações de Pélagué pareciam ter preoccupado, voltou a falar com animação: --Sabe, tiasinha? Olhe que é bom que se vá d’aqui cedo, para não ser notada. Vá á aldeia proxima; não vá á cidade; e tome uma carruagem. --Para quê? objectou o outro homem. Se eu próprio a levo comigo! --Nada d’isso! Se acontecesse alguma coisa, não faltaria quem indagasse se tinha passado a noite em tua casa...--«E para onde foi ella?» --«Levei-a á aldeia próxima».--Ah, foste tu? Pois vaes para a cadeia!...» Percebeste? E para que ha de a gente ter pressa de ir para a cadeia? Cada coisa a seu tempo!... Mas se tu declarares que ella dormiu cá em casa, que alugou carro e que tornou a ir-se embora, não te pódem fazer nada. Ninguem é responsavel pelo que fazem os viajantes. Se passam tantos cá pelo sitio!... --Já aprendeste a ter medo, Pedro? perguntou Tatiana, irónica. --É bom aprender de tudo! respondeu, dando uma punhada no joelho. É bom saber ter coragem e é bom tambem saber ter medo! Lembras-te como o escrivão lá do tribunal andou a incommodar e a perseguir o Baguanof por causa d’aquelle periodico? Pois agora, o Baguanof nem por todo o dinheiro do mundo tocaria sequer n’um d’esses papeis! Creia, bôa mulher: para mim, é coisa facil imaginar bôas artimanhas; todos o sabem cá no sitio. Sou capaz de distribuir livros e folhetos como ninguem... tantos quantos quizer! A nossa gente é pouco instruida e muito medrosa, é certo; todavia, a vida vae tão dura, que o homem sempre se vê obrigado a abrir os olhos e a informar-se do que se passa. E o livro responde-lhe francamente: «Muitas vezes, mais percebe o ignorante do que o homem instruido... principalmente se o instruido fôr um d’esses que abarrotam de fartura. Conheço bem o sitio e sei vêr com olhos de vêr! Póde uma pessoa ir arranjando a vida, mas com esperteza e muita habilidade, para não ir á forca logo d’uma assentada! As autoridades tambem percebem que as coisas vão mudadas, que o camponez anda sorumbático, pouco ri e é de poucas amabilidades... É que, em geral, passava-se bem sem as taes autoridades!... Ainda ultimamente, em Smoliakovo--um logarejosito perto d’aqui--vieram os homens para cobrar uns impostos. Os camponezes então foram a correr buscar cacetes. «Ah, bestas! Vocês revoltam-se contra o tzar!» gritou o commissário. E estava lá um rústico, um chamado Spivakine, que respondeu: «Vá você para o diabo com o seu tzar! Que vem a ser esse tzar que nos leva até á ultima camisa do corpo?» Ora aqui tem em que as coisas param, tiasinha. Escusado é dizer que o Spivakine foi preso e atirado para uma enxovia. Mas ficaram as palavras d’elle, e até as crianças já as repetem. Ficaram vivas, a bradar, essas palavras! Nem comia: falava, falava sempre, em murmurio rapido; os olhos, pretos e astuciosos, brilhavam-lhe, muito vivos. E importunava largamente Pélagué com mil observaçõesinhas sobre a vida do sitio, como se estivesse a despejar um sacco de moedas de cobre. Por duas vezes lhe disse Stépane: --Anda, come! Elle agarrava n’um pedaço de pão, n’uma colher, e espraiava-se de novo em considerações, falando, falando, como um pintasilgo a cantar. Terminada a ceia, finalmente, levantou-se de brusco, declarando: --É tempo de voltar para casa! Approximou-se de Pélagué e saccudiu-lhe a mão: --Adeus, tiasinha! Talvez nunca mais nos tornemos a ver... Sempre lhe quero dizer que tive muito prazer em travar relações comsigo e em ouvil-a falar... sim, senhora, muito prazer! Tem mais alguma coisa na mala alem dos livros? Um chale de lã? Está muito bem... um chale de lã, ouves, Stépane? Elle já lhe traz outra vez a sua mala. Vamos, Stépane! Adeus! Passe bem! Assim que os dois saíram, Tatiana tratou de preparar cama para a velha; foi acima do fogão e ao sotão buscar umas roupas e dispôl-as sobre o banco. --É um rapaz desembaraçado! observou Pélagué. A outra respondeu, interrompendo a tarefa para lhe lançar um olhar furtivo: --É muito leviano! Faz muita bulha, muita bulha, mas não passa d’ali! --E seu marido? perguntou Pélagué. --É um bom homem. Não bebe, e damo-nos muito bem. O unico defeito d’elle é ser de caracter fraco. Soergueu-se e proseguiu após um silencio: --De que se precisa agora? De sublevar o povo, é claro! Todos pensam n’isso... mas cada um para seu lado! E o que é necessário é que se fale n’isso bem alto; é forçoso que appareça alguem decidido a fazel-o. Sentou-se e perguntou sem transição: --A senhora disse que até já ha meninas finas e ricas a tratarem d’este negocio, e que vão fazer leituras politicas aos operários... E ellas não teem medo? não sentem repugnancia? E depois de ouvir attentamente a resposta de Pélagué, soltou profundo suspiro e continuou, com as palpebras cerradas e movendo devagarinho a cabeça: --Já li uma vez n’um livro que a vida não faz sentido. O que isto queria dizer percebi eu logo á primeira! Como se eu não soubesse o que é essa vida: a gente tem umas idéas, mas umas idéas desapegadas umas das outras, e que andam a vaguear como carneiros estúpidos sem pastor... Vagueiam, vagueiam... E não ha nada, não ha ninguem que as reuna... porque a gente não sabe o que ha de fazer para isso! Ora aqui está o que é uma vida que não faz sentido! A minha vontade era fugir para longe d’ella, sem mesmo olhar para traz!... Muito infeliz é a gente quando começa a perceber um poucochinho!... Esta magua, via-a Pélagué bem no brilho verde dos olhos da mulher, n’aquelle rosto magro; ouvia-a vibrar n’aquella voz. Pretendeu consolal-a, acalmal-a: --Mas a minha querida amiga compreende o que é necessário fazer-se... Tatiana interrompeu-a brandamente: --Mas se o que se precisa é saber-se como fazel-o!... Tem a sua cama pronta... deite-se! E dirigiu-se para o fogão, grave e concentrada. Pélagué deitou-se sem se despir. Tinha dôres nos ossos, quebrados de fadiga. Soltou um gemido debil. Tatiana apagou o candieiro. E assim que as trevas reinaram dentro da choupana, resoou novamente a sua voz grave e igual: --A senhora não reza... Eu tambem não acredito em Deus nem em milagres. Tudo isso foi inventado para nos metter medo, porque sabem que sômos estupidos! Pélagué, no seu leito improvisado, agitou-se, inquieta. Fitavam-na pela janella as trevas infinitas e, por entre o silencio, attritos, ruidos furtivos mal perceptiveis, perpassavam em torno. Com voz timida, murmurou: --Pelo que respeita a Deus, não sei que dizer... Mas creio em Jesus Christo e creio nas suas palavras: «Amar o proximo como a nós mesmos...» sim, eu creio n’isto! E de súbito, exclamou, perplexa: --Mas se Deus existe, porque nos abandonou? Porque não nos protege com o seu poder misericordioso? Porque consente que a humanidade se divida em duas castas? Porque consente o soffrimento humano, as torturas, as humilhações, a maldade e as ferocidades de toda a especie? Tatiana não respondeu. No escuro, Pélagué podia divisar-lhe o contorno vago do perfil erecto, que se desenhava em cinzento, no fundo negro do fogão. E assim se conservava, immovel. Muito angustiada, Pélagué cerrou as palpebras. De súbito, vibrou uma voz fria e dolorida: --Nunca perdoarei a morte dos meus filhos! Nem a Deus nem aos homens! Nunca! A anciã sentou-se no leito, condoída da intensidade d’aquella paixão. Lembrou com meiguice: --A senhora é nova; ainda ha de ter filhos... Apóz um silencio, a outra segredou: --Não! O medico disse que nunca mais poderia têl-os. Passou um rato a correr pelo chão. Um estalido secco e forte rasgou a immobilidade do silencio, e de novo se ficaram ouvindo distinctamente os mesmos attritos e o murmurio da chuva sobre o colmo, que, dir-se-ia, dedos finos e trémulos acariciavam. As bategas caíam tristemente sobre a terra e ritmavam o curso da longa noite d’outono. Mergulhada em pesada somnolencia, Pélagué ouviu uns passos ecoarem surdamente da parte de fóra e em seguida, no corredor. Abriu-se devagarinho a porta, e ouviu-se uma exclamação abafada: --Estás já deitada, Tatiana? --Não. --«Ella» está a dormir? --Sim, parece-me que sim... Brilhou uma claridade, que tremeluziu e logo se afogou nas trevas. O campónio approximou-se do leito da velha e compôz a capa de pelles que lhe cobria as pernas. Esta attenção impressionou profundamente Pélagué. Fechou de novo os olhos e sorriu. Stépane, sem fazer bulha, despiu-se e trepou para o sotão. Pélagué, immovel, prestava attento ouvido ás variantes preguiçosas do silencio somnolento. Na sua frente, nas trevas, via desenhar-se o rosto ensanguentado de Rybine. Chegou-lhe então aos ouvidos um leve murmurio que vinha do sotão: --Tu bem vês. Attenta n’essa gente que anda a trabalhar pelo bem de todos! Gente idosa, até, e que passou por mil desgostos e depois de moirejar toda uma vida! Chegou-lhes a sua occasião de descansar, mas bem vês como se aproveitam d’ella!... E tu, Stépane, estás ainda novo, és intelligente... e nada fazes! Respondeu a voz grossa do homem: --A gente não póde metter-se n’uma coisa d’essas sem pensar! Espera um pouco, que aquella canção já eu conheço ha muito! Sumiram se as vozes, mas depois recomeçaram. Dizia Stépane: --Aqui está o que deve fazer-se: primeiro, é preciso falar com cada homem em particular. Assim, por exemplo: com o Alécha Makof. É instruido, valente e anda ha muito, zangado contra as autoridades. Com o Sergio Chorine, tambem... É homem de juizo. Com o Kniazef, que é honrado e homem decidido! E para começar é bastante!... Depois, quando já tiver-mos um partidosinho, veremos... É preciso saber a direcção d’esta mulher, para chegarmos á fala com a gente a quem ella se referiu... Agarro no machado e vou-me de passeio até á cidade. Se te perguntarem, dizes que fui ganhar uns cobres como rachador de lenha. É bom tomarmos as nossas precauções. Tem a velha razão quando diz que cada qual é que dá a si o seu proprio valor... E quando se trata d’uma coisa d’estas, bom é que a gente dê a si grande preço, se se quizer metter na coisa!... Olha aquelle campónio, aquelle Rybine! Não era capaz de dobrar nem diante de Deus, quanto mais diante d’um commissário!... Aguenta-se firme, como se estivesse enterrado no chão até aos joelhos! E aquelle Nikita, an? Teve vergonha o homem!... E foi milagre que tal succedesse... Ah! se o povo entra no movimento á uma, muita gente ha de ir atraz d’elle! --Pois sim! Vêem espancar um homem e ficam para ali, de braços cruzados! --Não te exaltes, mulher! Olha, diz antes assim: «Deus seja louvado, que não foram vocês mesmos que o tosaram!» Pois se elles tanta vez obrigam o povo a bater nos presos! E o povo obedece! Lá no intimo, talvez chore de compaixão, mas vae batendo!... Não se atrevem a recusar-se áquella barbaridade, com medo de tambem apanharem para baixo! Ha ordem para um homem ser o que quizer: um porco, um lobo... mas não um homem--é proíbido! E quem desobedecer, livram-se logo d’elle com a maior facilidade! Nada!... É preciso arranjar as coisas de fórma a reunir muita gente e revoltar-se tudo ao mesmo tempo! Discorreu ainda por largo espaço. Umas vezes, falava tão baixinho, que Pélagué quasi não compreendia; outras, erguia a voz, grossa e sonora. A mulher então recommendava: --Devagar! Vaes accordal-a! Adormeceu profundamente a anciã. Foi como uma nuvem de oppressão que o somno se precipitou sobre ella, a envolveu e a arrebatou. Despertou-a Tatiana quando a aurora, pardacenta, entrava a mirar com gélidas pupillas as janellas da choupana. Por sobre a aldeia, no silencio frio, a voz bronzea do sino planára e ia a morrer. --Fiz-lhe uma gôta de chá; beba-o, se não logo no carro, vae ter frio. Emquanto alisava as barbas desgrenhadas, Stépane, todo alvoraçado, informava-se onde havia de procurar a sua hospede, na cidade. E parecia a Pélagué o rosto do campónio mais definido, mais simpatico do que na vespera. Ao tomar o chá, exclamou elle alegremente: --Como tudo isto é singular! O quê? perguntou Tatiana. --Este nosso encontro. É coisa tão simples, afinal!... --Na causa do povo tudo é d’uma simplicidade extraordinaria! disse Pélagué pensativa e em tom de grande convicção. Despediram-se então marido e mulher, sem gastar muitas palavras, antes manifestando com mil cuidados e attenções, sincera sollicitude. Já no carro, Pélagué pensava n’aquelle campónio e na sua maneira de trabalhar com prudencia, como uma toupeira, sem ruido e sem descanso. E continuava a ouvir a voz da mulher, descontente; revia o brilho secco e febril dos seus grandes olhos verdes. Quantos annos vivesse, tantos aquella paixão vingativa e feroz de mãe que chora os seus filhos, havia de viver-lhe na memoria. Lembrou-se depois de Rybine, do seu rosto, do seu sangue, d’aquelle ardente olhar, das frases que lhe ouvira e, de novo, o coração confrangeu-se-lhe no amargo sentimento da sua impotencia contra as féras. E em todo o percurso até á cidade, viu de contínuo, desenhado no fundo tristonho d’aquelle dia pardacento, o perfil robusto de Rybine, com a sua barba preta, a camisa em farrapos, mãos amarradas nas costas, os cabellos desgrenhados, a fisionomia illuminada pela colera e pela fé na sua missão. Pensava tambem nas innumeraveis aldeias e logarejos onde o povo esperava em segredo a vinda da propaganda de verdade; nos milhares de creaturas que trabalhavam silenciosas toda a sua vida sem saber porquê, sem uma esperança... Quando reflectia no resultado da sua viagem, sentia no intimo um contentamento meigo e irrequieto e decidia não mais pensar em Stépane nem na mulher. Avistou de longe os campanários e telhados da cidade, e grata sensação lhe reanimou o espirito inquieto, e lh’o tranquillisou: desfilavam-lhe pela memoria as fisionomias cheias de preoccupação de todos os que dia a dia iam ateando o fogo sagrado do pensamento e o espalhavam em scentelhas pelo mundo. E a alma d’aquella mãe transbordava da serena ambição de dar a todas aquellas creaturas toda a energia e todo o seu amor de mãe. XIX Veio abrir-lhe Nicolao, despenteado, com um livro na mão. --Já?! exclamou alegremente. Está bem!... Estou mais contente agora! Piscava os olhos, amigavelmente, por detraz dos oculos. Ajudou Pélagué a tirar a capa e disse-lhe, fitando-a affectuosamente: --Sabe? Vieram cá fazer uma busca esta noite. Eu perguntava a mim proprio porquê. Receei que lhe tivesse acontecido alguma coisa... Mas deixaram-me em paz, e logo soceguei: se a tivessem prendido, não me deixavam assim com certeza! Levou-a para a casa de jantar. Pelo caminho, ia contando animadamente: --Ainda assim, fui despedido da repartição. Pouco desgosto me dá... Estava já farto da estatistica do gado cavallar que não existe nas herdades!... Tenho mais que fazer! Attentando-se no aspecto da sala, dir-se-ia que mãos vigorosas, em estupido accesso de furia, haviam saccudido pela parte de fóra as paredes da casa, até tudo ficar em completa desordem. Os retratos jaziam pelo chão, os reposteiros e sanefas arrancados, pendiam em farrapos; em determinado sitio uma taboa do sobrado fôra levantada, o peitoril da janella, arrombado; ao pé do fogão, cinzas espalhadas. Na mesa, ao lado do samovar sem lume, estava loiça suja, presunto e queijo em cima d’um pedaço de papel, nacos de pão, livros e carvão, Pélagué sorriu. Nicolao mostrou-se confundido. --Fui eu que completei a desordem... mas não faz mal. Parece-me que voltam cá hoje, e tanto que nem ainda comi nada. E então fêz boa viagem? Esta pergunta como que a magoou pesadamente em pleno peito: de novo a imagem de Rybine se ergueu na sua memoria; sentiu-se culpada por não ter falado d’elle logo ao chegar. Approximou-se de Nicolao e entrou a contar-lhe tudo, deligenciando permanecer calma e não omittir pormenor algum. --Foi preso! Nicolao teve um sobresalto. --Preso! Mas como? Ella com um gesto, fêl-o calar e proseguiu, como se, face a face, o rosto da propria justiça se encontrasse na sua frente e a ella estivesse reclamando contra o supplício a que assistira. Nicolao, reclinado na cadeira escutava-a, fazia-se pallido e mordia os beiços. A certa altura, lentamente, tirou os oculos, pousou-os na meza, passou a mão pela cara, como se estivesse a limpal-a d’uma invisivel teia d’aranha. As feições accentuaram-se-lhe, as maçãs do rosto tornaram-se-lhe singularmente salientes, palpitaram-lhe as narinas. Era a primeira vez que Pélagué o via n’aquella excitação, o que não deixou de a assustar. Quando acabou a narrativa, viu-o levantar-se em silencio e pôr-se a caminhar em grandes passadas, de punhos cerrados nas algibeiras. Por fim, murmurou, comprimindo os dentes: --Deve ser um homem extraordinario!... Que heroismo! E vae soffrer n’uma prisão como soffrem todos os que a elle se assemelham! Depois, parou em frente da sua narradora; ajuntou com voz vibrante: --Evidentemente todos esses commissarios, esses officiaes, não passam d’uns instrumentos, d’uns cacetes de que sabe servir-se um patife intelligente, um domesticador de animaes! Mas urge dar cabo do animal, para o castigar de se ter deixado transformar em féra! Eu cá, matava-o logo, esse cão damnado! Enterrava mais profundamente os punhos nas algibeiras, tentando, mas de balde, reprimir aquella commoção de que Pélagué tambem se resentia. Tinha os olhos contraídos como laminas de facas. Entrou de novo a passear e ao mesmo tempo ia dizendo com frio rancor: --Ora vejam que coisa horrivel! Uma meia duzia d’homens espancam, suffocam e opprimem toda a gente, para defenderem o funesto poderio de que gozam sobre o povo! A ferocidade recrudesce, a crueldade torna-se lei universal! É para meditar!... Uns batem e procedem como bestas, porque estão certos da impunidade, porque os morde o desejo voluptuoso de torturar, como a repugnante volupia dos escravos a quem se permittia que manifestassem os instinctos servis e os habitos besteaes, em toda a sua hediondez! Os outros envenena-os a vingança, e ainda os terceiros, bestificados sob os maus tratados, tornam-se cegos, tornam-se mudos!... E assim pervertem o povo, um povo inteiro! Deteve-se novamente, agarrou a cabeça entre as mãos. --É para bestialisar, mesmo sem se querer, essa vida feroz! concluiu em voz baixa. Depois, dominou-se. Brilhava-lhe agora no olhar uma expressão decidida. E foi quasi com tranquillidade que fitou a velha, cujo rosto as lagrimas inundavam. --Não temos tempo a perder, Pélagué. Onde está a sua mala? --Na cosinha. --Está a casa cercada de espiões, não é possivel passar para fóra tal quantidade de impressos, sob pena de sermos vistos... Não sei onde os hei de occultar... Parece-me que a policia ha de voltar esta noite... Não quero que seja presa. Ainda que muito nos custe, vamos queimar tudo isso. --O quê? perguntou ella. --O que está dentro da mala. Foi então que ella compreendeu e, por grande que fôsse a sua tristeza, a ufania do bom exito da sua viagem fez-lhe aflorar ao rosto um sorriso. --Mas a mala não tem nada! Nem uma folha de papel! declarou, animando-se gradualmente. E, narrou a continuação das suas aventuras. Nicolao ouviu-a primeiro com inquietação, depois com surpresa. Por fim, interrompeu-a para exclamar: --É simplesmente maravilhoso! Tem uma sorte espantosa! Entrou a mover-se d’um lado para o outro, pasmado, e foi apertar-lhe a mão. --Chega a commover-me pela confiança que tem no povo! Que bella alma a sua!... Amo-a como nunca amei minha propria mãe! Ella tomou-o nos braços e por entre soluços de contentamento, approximou dos seus labios a cabeça de Nicolao. --Talvez me tivesse exprimido nesciamente, ha pouco! murmurou, commovido e desconcertado pela novidade do sentimento que experimentava. Pélagué, convencida de que Nicolao se sentia profundamente feliz, seguia-o com um olhar em que transparecia affectuosa curiosidade; queria compreender por que se mostrára tão apaixonadamente vibrante. --Em geral, tudo corre ás mil maravilhas! declarou elle, a esfregar as mãos, com um risinho caricioso. Sabe? Passei singularmente bem estes ultimos dias. Estive sempre com operarios; fiz-lhes umas leituras, conversámos, deram-me ensejo a que os observasse... Juntei no meu coração sensações admiraveis, tão puras e sãs!... Que bella gente! Tão francos, tão claros como os dias de maio! Falo dos operarios mais novos; são robustos, são sensiveis, teem sede de compreender tudo!... Ao vêl-os, adquire-se a certeza de que a Russia ha de vir a ser a mais brilhante democracia do mundo! Erguera o braço como para firmar um juramento. Passado um instante, continuou: --Como sabe, eu era funccionario n’uma repartição do estado. Foi ali que o meu feitio se azedou: no meio de algarismos e de papelada. Um anno d’aquella vida bastou para me deturpar o caracter. Porque eu estava habituado a viver entre o povo e quando me separo d’elle, sinto-me pouco á vontade. Sempre propendi com todas as minhas forças para a vida popular. E agora já posso viver de novo em liberdade, confraternisar com os operarios, ensinar-lhes o que sei! Compreende? Assim, estarei junto do proprio berço do ideal que vem surgindo, junto da propria energia creadora nascente. É o que me parece admiravelmente simples e bello e tambem terrivelmente excitante! Torna-se um homem mais novo, mais decidido, mais calmo, e disfructa de uma existencia integra! Aqui, riu, expansivo. E d’aquelle contentamento partilhava Pélagué. --E depois, que creatura excessivamente bôa a senhora é! declarou elle ainda. Tem em si uma força tão poderosa e tão seductora! Attrae a si as almas com tal persuasão! Sabe descrever tão completamente as pessoas! Sabe vêl-as tão bem! --Vejo a sua existencia e compreendo-o, meu amigo! --Todos a estimam... E que maravilhosa coisa é estimar uma creatura humana!... É tão bom! Se soubesse! --É o meu amigo que sabe ressuscitar os entes humanos d’entre os mortos! murmurou a anciã com calor, acariciando-lhe a mão. Meu amigo, quanto mais penso, mais vejo quanto ha a fazer e de quanta paciencia precisamos! E o que eu quero é que não perca a coragem. Oiça o resto... A mulher, ia eu dizendo, a mulher do tal camponez... Nicolao sentára-se ao lado d’ella. Tinha desviado o rosto prazenteiro, e passava a mão devagar pelos cabellos. Mas d’ahi a pouco tornava a dirigir o olhar para Pélagué, escutando avidamente a narrativa. --Que sorte admiravel! exclamou. Com effeito, era muito possivel que fôsse presa... Mas não! O que parece é que essa gente do campo tambem se vae mexendo. Não é para admirar, afinal! E essa tal mulher, parece que a estou vendo d’aqui. Sim, compreendo esse coração accêso em ira. E tem razão em dizer que uma dôr tão profunda jamais se extinguirá!... Precisavamos de quem se occupasse especialmente de animar essa gente do campo!... Gente! Muita gente! É o que nos falta e por toda a parte! A vida exige milhares de braços! --Para isso era necessario que o Pavel estivesse em liberdade... e o André tambem, aventou ella em voz baixa. Elle lançou-lhe rapido olhar e curvou a cabeça. --Olhe, sabe? Vou dizer-lhe a verdade, ainda que lhe custe: conheço bem o Pavel e estou certo de que vae recusar-se a fugir. O que elle pretende é ser julgado, quer exibir-se em todo o seu prestigio... e não renuncia a isso. É trabalho escusado!... Depois, fugirá da Sibéria... A mãe de Pavel murmurou: --Que se ha de fazer?... Elle sabe melhor do que eu o que deve decidir. Nicolao ergueu-se de chofre, novamente tomado de contentamento. Inclinou-se para ella e disse: --Graças a si, passei hoje instantes melhores... os melhores da minha vida, talvez!... Obrigado! Dê-me um abraço! E apertaram-se, silenciosos. --Como isto é bom! exclamou elle baixo. Pélagué deixára caír os braços e sorria em estos de felicidade. --Hum! murmurou Nicolao, fitando-a muito por detraz dos seus oculos. Ainda se esse tal camponez não tardasse em vir!... Porque é absolutamente preciso escrever um artigosinho ácerca do Rybine e distribuil-o pelas aldeias, o que não pode prejudicar o Rybine, visto que elle trabalha abertamente, por si mesmo, e que a causa do povo tem tudo a ganhar. Vou escrevel-o agora mesmo. A Lioudmila imprime-o ámanhã... Sim, mas como se hão de expedir os fasciculos? --Irei eu leva-los. --Não, obrigado! exclamou Nicolao com vivacidade. Não crê que o Vessoftchikof pudesse tomar esse encargo? --Quer que lhe fale n’isso? --Experimente e ensine-lhe como elle se ha de haver n’esse negocio. --E eu então, que faço? --Não lhe dê isso cuidado! E pôz-se a escrever. Emquanto desembaraçava a mesa das loiças e dos outros objectos, Pélagué não tirava a vista d’elle, seguindo a penna, que lhe tremia na mão e traçava no papel longas séries de palavras. Por vezes, um arrepio perpassava pela nuca do mancebo; outras vezes, projectava elle a cabeça para traz e ficava-se de olhos fechados. Pélagué sentiu-se emocionada. --Castigue-os! murmurou. Não os poupe, áquelles assassinos! --Aqui está! Está pronto! disse elle, levantando-se. Esconda este papel comsigo. Mas olhe que se a policia vem, hão de tambem querer revistal-a... --Leve-os o diabo! respondeu com o maior socego. Á noite, veio o doutor. --Porque anda a autoridade tão agitada? inquiriu elle, passeando pelo quarto. A noite passada fizeram-se sete buscas!... Onde está o doente? --Foi-se embora hontem! respondeu Nicolao. É sabbado hoje e não podia faltar á sessão de leitura, compreendes? --É uma estupidez ir para uma conferencia quando se tem a cabeça aberta! --Foi o que eu tentei demonstrar-lhe; mas nada consegui! --Era a vontade de ir fazer-se valente diante dos camaradas, disse Pélagué; de lhes mostrar que tambem já derramou o seu sangue pela grande causa! O doutor lançou-lhe um olhar, tomou uns ares de ferocidade e exclamou com os dentes cerrados: --Que sanguinárias creaturas vocês são! --Pois então, meu amigo, já nada tens a fazer aqui, e nós esperamos umas visitas. Vae-te embora! Pélagué, dê-lhe o papel. --Outra vez! exclamou o medico. --Vá! Toma e leva isto á imprensa. --Está dito; lá o levarei. Mais nada? --Sim... Está ali um espião defronte da casa. --Já o vi. E em minha casa tambem. Bem, até mais vêr! Até á vista, mulher cruel! Sabem, meus amigos? A desordem do cemitério veio mesmo a calhar, positivamente! Não se fala n’outra coisa em toda a cidade. Isto impressiona o povo e obriga-o a reflectir. O teu artigo a esse respeito estava muito bom e foi publicado em bella occasião. Eu sempre fui de opinião que uma bôa desordem era mais util do que uma má concordia... --Está bom, vae-te! --Estás hoje pouco amavel, homem! A sua mão, tiasinha! O pequeno andou como um pateta. Não sabes onde elle mora? Nicolao deu-lhe o endereço. --É preciso ir a casa d’elle amanhã... É um bello rapaz, não é verdade? --É verdade!... Excellente coração! --É preciso não o perder de vista, que elle não é tolo! disse o medico, ao saír. É justamente essa rapaziada que ha de formar o verdadeiro proletariado instruido, e occupar os nossos logares, quando nós nos fôrmos para o sitio onde não ha, segundo creio, differenças de castas... --Sempre estás um tagarella! --Sinto-me contente; por isso dou á lingua!... Cá vou, cá vou... Então, sempre contas ir para a cadeia? Desejo que descanses bem por lá. --Obrigado, mas não me sinto cansado. Pélagué escutava-os satisfeita por vêr os cuidados, em que ambos estavam, no ferido. Logo que saíu o médico, Nicolao e Pélagué sentaram-se á mesa e ficaram esperando as suas visitas nouturnas. Por muito tempo, em voz baixa, Nicolau esteve falando dos companheiros que viviam no exilio, dos que tinham fugido e continuavam trabalhando com nomes suppostos. As paredes nuas do aposento reflectiam-lhe o som abafado da voz, como se duvidassem d’aquellas singulares historias de heroes modestos e desinteressados, que haviam sacrificado todas as suas forças á grande obra do rejuvenescimento humano. Pélagué, mergulhada n’uma sombra de agradavel tepidez, sentia o coração encher-se-lhe de amôr por aquelles desconhecidos, que á sua imaginação se resumiam n’um sêr unico e immenso, dotado de máscula e inexgotavel força. Lentamente, mas sem nunca parar, tal sêr extraordinario caminhava pela terra, arrancando o bolor secular da mentira, descobrindo aos olhos do homem a verdade simples e positiva da vida, a qual a todos promettia libertar da avidez, do odio e da falsidade, trez monstros que haviam subjugado pelo horror o mundo inteiro. Esta visualidade gerava no intimo de Pélagué impressão identica á resentida n’outros tempos, quando ella, ajoelhada perante as imagens pias, terminava com uma oração de reconhecimento o seu dia, que lhe ficava assim parecendo menos árduo do que os outros. Agora, que o seu passado ia longe, este sentimento ampliava-se, fazia-se mais luminoso e mais jovial, penetrava mais fundo na sua alma, robustecia-se e exaltava-se mais e mais. --A policia não vem! exclamou Nicolao, interrompendo o fio das suas narrativas. Ella fitou-o um instante e após curto silencio: --Que vão para o inferno! --Está claro!... Vocemecê deve estar fatigada a valer, precisa de deitar-se. É robusta, ainda assim todos estes cuidados, todas estas inquietações... supporta-as admiravelmente. Só os cabellos é que lhe enbranqueceram muito depressa... Vá descansar, vá... Apertaram-se as mãos e separaram-se. XX Adormecera Pélagué, rápida e socegadamente, quando, de manhãsinha, a despertaram umas pancadas violentas na porta da cosinha. E succediam-se com teimosia. Ainda fazia escuro. Vestiu-se á pressa, correu a perguntar, atravez da porta: --Quem está ahi? --Eu! respondeu voz desconhecida. --Quem? --Abra! Abra! murmurou a mesma voz, agora sumida e supplicante. Pélagué puxou o ferrolho e empurrou a porta: E entrou Ignaty, a exclamar alegremente: --Ah! não me enganei! Cheguei a bom porto! Vinha coberto de lama até á cintura, o rosto desfigurado, fundas olheiras, e do bonné saíam-lhe em desordem os cabellos annellados. --Grande desgraça lá por casa! segredou logo ao fechar a porta. --Já sei... Ficou espantado e perguntou com um pestanejar de curiosidade: --Como assim?... Por quem? Contou-lhe Pélagué em breves palavras o encontro que tivera. --E os outros dois teus camaradas, tambem os prenderam? --Não estavam lá: tinham ido á junta d’inspecção. Prenderam cinco, contando com o Rybine. Fungou, n’um accesso de riso, e explicou: --Eu, como vê, escapei. Provavelmente andam em minha busca... Pois que procurem! Não volto para lá nem por todo o oiro do mundo! Ainda assim, ainda lá ficaram seis ou sete rapazes e uma rapariga, com quem se póde contar! --Mas como pudeste escapar? --Eu? exclamou Ignaty, sentando-se n’um banco e olhando em roda. Os policias vieram de noite, direitinhos á fabrica, mas um minuto antes já o guarda campestre tinha vindo a correr bater-nos na janella: «Attenção, rapaziada, vêm prendel-os!» Pôz-se a rir e a limpar a cara com a aba da blusa. E proseguiu: --O tio Rybine não é homem para perder a cabeça... E olhe que o provou!... Disse-me logo: Ignaty, corre á cidade! Lembras-te das duas mulheres que aqui estiveram? E escreveu qualquer coisa n’um papel, muito depressa... Toma, vae, adeus, meu irmão! disse-me elle. E deu-me um empurrão nas costas. Eu atirei-me para fóra da cabana, escondi-me entre umas moitas, puz-me a andar de gatas e ouvi chegar os guardas! Eram muitos, appareciam por todos os lados! Cercaram a fabrica. Eu estava por detraz d’uma sebe... passaram-me mesmo na frente. Depois, levantei-me e entrei a andar, a andar... Andei um dia e duas noites, sem parar. Estou estafado para uma semana; nem sinto as pernas! Mostrava-se satisfeito de si mesmo; illuminava-lhe um sorriso os grandes olhos escuros; tinha um tremor nos beiços grossos e vermelhos. --Vou-te fazer uma gôta de chá n’um pronto! disse Pélagué sollicita, agarrando no samovar. Mas emquanto esperas, vae-te lavando. Ficas melhor depois! --O que eu queria era dar-lhe o bilhete. Levantou com difficuldade uma das pernas, dobrou-a, collocou o pé sobre o banco, isto com innumeras caretas e gemidos, e começou a desenrolar uma das ligaduras, que lhe envolviam ambos os pés. Nicolao appareceu á porta. Ignaty, confuso, tornou a pôr o pé no chão; tentou levantar-se, mas cambaleou e caíu desamparadamente em cima do banco, ao qual se agarrou ás mãos ambas. --Ai, que cançado que eu estou! --Bom dia, camarada! disse-lhe Nicolao em tom amigavel e com um signal de cabeça. Espere, que eu o ajudo. Ajoelhou-se diante do operario e desenrolou rapidamente a ligadura, emporcalhada e húmida. --É necessario esfregar-lhe os pés com alcool. Ha de fazer-lhe bem, disse Pélagué. --Isso mesmo! approvou Nicolao. Ignaty fungou de novo, muito atrapalhado. Finalmente, achou Nicolao o bilhete; alisou-o, mirou-o um instante e apresentou-o á velha. --Aqui tem! É para si. --Leia. Elle approximou dos olhos o pedaço de papel sujo e amarrotado e leu: «Mãesinha: não deixes que se perca o nosso negocio. Diz a essa senhora que não se esqueça de fazer que se escreva sempre e muito, a respeito das nossas coisas. Peço-te. Adeus. Rybine.» --Bello rapaz! disse Pélagué com melancolia. Estavam a esganal-o e ainda elle se lembrava dos outros! Lentamente, Nicolao deixou descaír o braço em que tinha o bilhete, e a meia voz: --É espantoso! Ignaty olhava para um e outro, vermiculando devagar com os dedos emporcalhados do pé descalço. Pélagué, procurando occultar o rosto inundado de lagrimas, foi para elle com uma celha com agua. Sentou-se no chão e estendeu a mão para tomar a perna do homem. --Que quer fazer?... Não é preciso... --Deixa ver o pé, depressa. --Eu vou buscar o alcool, disse Nicolao. O rapaz mettia sempre mais a perna debaixo do banco, murmurando: --Não quero!... Então isso é coisa que se faça? Sem lhe responder, ella tratou de lhe desembaraçar das ligaduras o outro pé. O rosto redondo de Ignaty distendeu-se de espanto. Pélagué entrou a lavar o rapaz. --Sabes? disse ella com voz chorosa. O Rybine foi espancado!... --Palavra? exclamou Ignaty assustado. --É verdade. Quando chegou a Nikolsky, já elle vinha moído de pancada, e ainda alli, o sargento e o commissario lhe deram murros, pontapés... Estava todo coberto de sangue! --Ah, lá quanto a isso, é o officio d’elles, e conhecem-no a valer! exclamou o operario, sentindo um calafrio percorrer-lhe as espáduas. Tenho medo d’elles como do diabo! E os camponezes não lhe bateram? --Um só, á ordem do commissario. Os outros fizeram o seu dever; até não consentiram que continuassem a maltratal-o. --Sim... O campónio começa a compreender... --Tambem lá os ha muito intelligentes, n’essa villa... --E onde é que os não ha? Ha-os por toda a parte! Sim, sempre é forçoso que os haja; o difficil é descobril-os. Mettem-se ahi pelos cantos e ficam a remoer aquillo lá por dentro, cada um para seu lado. Não teem a coragem de se reunir! Nicolao trouxe uma garrafa d’alcool, deitou uns pedaços de carvão no samovar e saíu sem dizer palavra. Ignaty, que o seguira com a vista, curioso, perguntou em voz baixa: --É nosso mestre? --Na causa do povo não ha mestres, só ha camaradas! --É caso para pasmar! disse o operario, sorrindo entre perplexo e incredulo. --O quê? --Tudo isto!... D’um lado, dão bofetadas na gente, do outro, lavam-nos os pés... Haverá um meio-termo? A porta do aposento abriu-se de par em par e Nicolao respondeu: --Ha, sim, senhor! E esse meio-termo são os que lambem as mãos d’aquelles que os maltratam e sugam o sangue dos maltratados. Aqui tem o que é esse meio-termo! Ignaty fitou-o com deferencia e disse, após reflexão: --Isso agora é verdade! --Pélagué! instou Nicolao. Deve estar cansada... Deixe isso, que eu continúo. O rapaz encolheu as pernas com inquieto acanhamento. --Está pronto! respondeu ella, erguendo-se. Vá, Ignaty: levanta-te agora! O outro obedeceu, conservou-se um bocado n’um pé, ora no outro, firmando-se fortemente no sobrado, e declarou: --Até parece que ficaram novos! Obrigado!... Muito obrigado! Fez uma pausa e ainda murmurou, a olhar para a celha com a agua suja: --Nem sei como hei-de agradecer-lhe sufficientemente... Os trez passaram para a casa de jantar e almoçaram. Ignaty poz-se a contar em voz muito séria: --Fui eu que distribui os periodicos. Eu gosto muito de andar. O Rybine tinha-me dito: «Vae tu leval-os sósinho! Se fôres apanhado, não suspeitam de mais ninguem». --E ha muita gente que os leia? perguntou Nicolao. --Todos os que sabem lêr. Pensativo, Nicolao reflectiu: --Mas como havemos de arranjar que o fasciculo a propósito da prisão do Rybine chegue de pressa ás aldeias?... Ignaty apurára logo o ouvido. --Pois eu me encarrego d’isso hoje mesmo! Já ha prontos esses fasciculos? --Ha, sim. --Dê-mos, que eu os levo! propôz Ignaty com os olhos scintillantes, e a esfregar as mãos. Eu sei bem onde e como os hei-de levar!... Dê-os cá! Pélagué sorria, ouvindo-o falar assim. --Mas tu estás cansado e tens medo; fôste tu mesmo que disseste não querer voltar lá!... Elle produziu com os beiços um estalido, e, ao mesmo tempo que alisava com a alentada mão os caracoes do cabello, declarou em tom de seriedade e sangue-frio: --Estou cansado... Melhor, depois descansarei!... Quanto a ter medo, isso é verdade!... Pois se vocemecê acabou de contar que elles batem na gente até nos pôrem a escorrer sangue!... Quem é que tem vontade de ficar estropiado? Eu me arranjarei:--vou de noite... Sempre hei-de achar maneira de fazer o recado! Dê cá... Parto esta noite mesmo. Ficou um momento calado, de sobrolho franzido, e logo: --Vou d’aqui esconder-me na floresta. Depois, aviso os companheiros e digo-lhes: «Vão lá ter comigo e sirvam-se». É o melhor que ha a fazer! Se eu mesmo distribuisse os jornaes e fôsse apanhado, era uma pena por causa dos jornaes... Já ha tão poucos, que é preciso ter muita cautella com elles. --E o medo? Que fazes tu a elle? Inquiriu de novo Pélagué. Divertia-a deveras aquelle alentado rapagão de caracoes, pela sinceridade que vibrava na menor das suas palavras, pela sua fisionomia franca e pelas suas maneiras teimosas. --O medo é o medo e negocios são negocios! replicou elle, mostrando muito os dentes. Para que está a mangar comigo? Então, já viram?... Talvez não seja coisa de metter medo a uma pessôa?... Mas já que é preciso, atira-se a gente ao lume! Quando se trata d’um negocio d’estes... --Ah! meu filho! exclamou involuntariamente Pélagué, vencida pelo entusiasmo e o contentamento que elle lhe inspirava. Elle sorriu acanhado: --Ainda mais esta: eu, seu filho! Alguma criancinha, talvez?... Nicolao, que não deixára de observar o rapaz, com olhar amigo, interveio então: --Você não vae, homem! --Então, que devo fazer? Onde é preciso que vá? interrogou elle com inquietação. --Outro irá em seu logar e você ha de explicar-lhe meudamente como elle deve proceder. Quer fazer isto? --Está bem! respondeu Ignaty de má vontade, apóz um instante de hesitação. --Nós nos encarregamos de lhe fornecer documentos, para lhe arranjarmos um logar de guarda-matto. --E se fôr lá gente do campo apanhar lenha ou caçar clandestinamente, de os prender? Para isso não sirvo eu!... Os dois puzeram-se a rir, o que acabou por de todo atrapalhar o campónio, muito desgostoso. --Não tenha medo! disse-lhe Nicolao. Não ha de ter occasião para tal, creia! --Isso agora é differente! commentou Ignaty. E já mais tranquillo, sorriu-se para Nicolao, confiado e alegremente. --Eu sempre gostava mais de ir á fabrica; dizem que ha por lá camaradas bastante intelligentes... Parecia que no vasto peito lhe ardia um fogo, intermittente ainda e que se extinguia por alternativas, não deixando ver mais que o fumo da perplexidade e de inquietação. Pélagué levantou-se da mesa e foi á janella, dizendo, pensativa: --Como a vida é singular!... Por cada cinco vezes que rimos, choramos outras tantas!... Que coisa pouco agradavel!... Já acabaste, Ignaty? Vae dormir. --Não, senhora, não quero. --Vae dormir, já te disse. --Vocemecê é muito severa! Está bem, lá vou! E muito obrigado pelo seu chá, pelo assucar... e pela sua amisade! Deitou-se na cama de Pélagué. Resmungava coçando a cabeça: --Agora fica tudo a cheirar a alcatrão cá em casa... Olhe que faz mal em me amimar tanto, creia!... Eu não tenho somno... São ambos bôas pessoas... Já não percebo nada... parece que estou a cem mil kilometros da aldeia... E como elle falou bem a proposito no meio-termo... No meio-termo estão os que lambem as mãos dos que maltratam os outros... Demónio! E subitamente, com um ronco sonoro, arqueando muito as sobrancelhas e de bôca entreaberta, adormeceu. XXI N’essa noite, já muito tarde, encontrava-se Ignaty n’um subterraneo, sentado em frente de Vessoftchikof e segredava a este: --Quatro vezes, na janella do meio... --Quatro? repetia o bexigoso, com ares de grande concentração. --Sim; primeiro trez, assim... E bateu na meza com o dedo dobrado, emquanto contava: --Uma, duas, trez; e depois, mais uma vez, passado um instantinho... --Estou percebendo. --Ha de vir á porta um campónio de cabellos vermelhos, e ha de perguntar-lhe: «Vem por causa da parteira?» E você responde-lhe: «Sim, senhor, venho da parte do senhorio!» E não precisa mais, elle logo percebe do que se trata! N’este colloquio, approximavam as cabeças; ambos altos e alentados, falavam baixinho, abafando muito a voz. De pé, junto d’uma mesa, com os braços cruzados sobre o peito, Pélagué observava-os. Todos aquelles signaes cabalisticos, aquellas perguntas e respostas convencionadas d’antemão, lhe davam immensa vontade de rir. E pensava: «Não passam ainda d’umas crianças!» Um candieiro seguro na parede illuminava as sombrias manchas do bolor e as gravuras recortadas de jornaes. Pelo chão jaziam baldes amolgados, fragmentos de zinco; e divisava-se pela janella, no ceu muito escuro, uma grande estrella scintillante. Reinava em toda a quadra um forte cheiro a ferrugem, tintas d’oleo e humidade. Ignaty ostentava grosso sobretudo pelludo em que muito se comprazia; Pélagué via-o, volta e meia, acariciar com volupia a manga do espesso casacão e inclinar com custo o largo pescoço, para melhor se admirar. E um pensamento cantava no coração de Pélagué: «Filhos!... meus queridos filhos!...» --Ora aqui está! disse Ignaty, levantando-se. Então não se esqueça! Primeiro, ir a casa do Mouratof, perguntar pelo avô... --Cá estou lembrado! respondia Vessoftchikof. Mas Ignaty não se dava por crente, repetia-lhe outra vez todos os signaes combinados e todas as palavras de passe. Por fim, estendeu-lhe a mão. --Agora não falta mais nada! Adeus, camarada! Dê-lhes recommendações minhas! Olhe, diga-lhes assim: «O Ignaty está vivo e passa bem.» É boa gente, verá!... Mirou-se satisfeito, passou a mão pelo casacão e perguntou a Pélagué: --Posso ir-me embora? --E has de atinar com o caminho? --Está claro que sim!... Até mais vêr, camaradas! E lá se foi, aprumado, arqueando o peito, de chapeu novo á banda e as mãos enterradas nos bolsos. Na testa e nas fontes, os anneis dos cabellos, loiros e infantis, dansavam-lhe jovialmente. --Ora até que emfim já tenho tambem trabalho! exclamou Vessoftchikof, approximando-se da velha. Andava aborrecido; perguntava a mim mesmo para que tinha saído da cadeia. Não faço senão andar escondido!... Ao menos, na cadeia, sempre aprendia! O Pavel recheava-nos a cabeça que era um gosto! E o André tambem nos limpava as idéas, sim senhora!... E então, sempre se decidiu a fuga? Arranja-se isso? --Hei de sabel-o depois d’ámanhã! respondeu. E repetiu, suspirando, mau grado seu. --Depois d’ámanhã... O bexigoso approximou-se-lhe, descansou-lhe no hombro a alentada mão e opinou: --Podes dizer aos chefes que é coisa facil. Elles hão de dar-te ouvidos! Ora vê tu mesma: aqui está a muralha da cadeia, ao pé d’um lampeão. Em frente, ficam umas terras sem cultivo; á esquerda, o cemitério; á direita, uma rua e o resto da cidade. Vem um accendedor de candieiros mesmo de dia, dia claro, para limpar o lampeão; encosta a escada ao muro, sobe, engata ao espigão da muralha os ganchos d’uma escada de corda que ha de ficar para o lado do pateo, e está prompto! Elles, na cadeia, já hão de saber a hora combinada, pedem aos presos de crimes communs que armem qualquer desordem, ou armam-na elles mesmos, e entretanto, os que estiverem na combinação marinham pela escada e está tudo feito! E d’ali vem de passeio até á cidade, emquanto elles lá ficam a procural-os pelo cemitério e nas taes terras de baldio! Gesticulava com vivacidade, expondo este plano, aos olhos d’elle simples, claro e de extrema habilidade. Pélagué, que nunca conhecera n’elle mais que um rapagão tosco e desageitado, admirava-se de vêr aquelle rosto bexiguento tão cheio de vivacidade e intelligencia. D’antes, os minguados olhos de Vessoftchikof tudo fitavam com irritação e desconfiança; agora, era para crêr que outros os haviam substituido, rasgados e brilhantes de scintillações uniformes e severas que convenciam e emocionavam Pélagué. --Pensa bem: de dia é que ha de ser!... Sim, de dia! Quem ha de imaginar que um preso se atreva a fugir de dia, á vista de todo o pessoal da prisão? --E se os fusilassem? lembrou a mãe, horrorisada. --Quem? Se não ha soldados, e os carcereiros servem se dos revólvers para pregar pregos! --Quasi que estou achando tudo isso simples de mais!... --Pois é como te digo; tu verás! Fala n’isso aos outros. Eu já arranjei tudo: a escada de corda, os ganchos... Já falei cá com o meu hospedeiro; é elle que ha de fazer de limpa-candieiros. Para além da porta, mexia-se alguem entre accessos de tosse; ouvia-se um ruido de ferros velhos. --Ahi está elle, o hospedeiro! annunciou o bexigoso. Pela abertura da porta appareceu uma banheira de zinco, e uma voz encatarroada praguejou: --Entra, diabo! Depois, surgiu uma cara redonda e barbuda, de cabellos grisalhos, sem chapeu, d’expressão bonacheirona e grandes olhos esbogalhados. --Vessoftchikof foi ajudar o homem a fazer passar a banheira pela porta; depois, o recemchegado, grande latagão corcovado, poz-se a tossir com um grande entumecimento nas faces imberbes, escarrou e disse na mesma voz rouca: --Bôa noite! --Pois agora, pergunta-lhe! convidou o rapaz. --O quê? Que querem perguntar-me? --É a respeito da fuga da cadeia. --Ah, sim! disse o velho, limpando o bigode com os dedos sujos. --Quer saber, Jacob? Ella não acredita que seja facil arranjar! --Ah, não acredita? Pois se não acredita, é porque não quer a coisa. Mas nós dois, que queremos que isso se faça, acreditamos que seja facil! respondeu serenamente o homem. Foi tomado d’um accesso de tosse que o dobrou em anglo recto, e em seguida esteve muito tempo no meio da quadra a aspirar com força o ar e a esfregar o peito. Fitava Pélagué com olhos de espanto. --Mas não sou eu quem decide esta questão! observou ella. --Mas fala lá com os outros; dize-lhes que está tudo arranjado! Ah! se eu pudesse falar com elles, eu os convenceria! exclamou o bexigoso. Estendeu os braços em largo gesto e depois apertou-os como para abraçar qualquer coisa. Vibrava-lhe na voz um sentimento cuja energia assombrava Pélagué. --Vejam que mudança fez! pensou ella. E contestou em voz alta: --O Pavel e os companheiros é que hão de decidir. Meditativo, o outro ficou-se de cabeça baixa. --Quem é esse Pavel? interrogou o velho, tomando logar n’um banco. --É o meu filho. --Qual é o nome da familia? --Vlassof. Elle abanou a cabeça, puxou pela bolsa do tabaco e, emquanto enchia o cachimbo: --Tenho ouvido falar. O meu sobrinho conhece-o. O meu sobrinho tambem está na cadeia; chama-se Evetchenko. Conhece? Eu chamo-me Gadoune. D’aqui a pouco, está na cadeia! Então é que a gente ha de viver feliz e socegada, nós, os velhos! Um, da policia, prometteu que me havia de pregar com o sobrinho na Sibéria... E ha de cumprir a promessa, o excommungado! Entrou de fumar, escarrando para o chão de vez em quando. --Ah! ella não quer? continuou, virado para o rapaz. Isso é com ella!... O homem é livre! Quem está cansado, que se sente; quem estiver cansado de estar sentado, passeie!... Quem fôr roubado, que se cale; quem fôr tosado, soffra com resignação! E se o matarem, que se deixe caír!... Sempre é certo isto. Mas eu cá hei de fazer saír o meu sobrinho da cadeia. Olá, se hei-de!... Estas expressões incisivas, parecidas com latidos, tornaram Pélagué perplexa. As ultimas palavras do velho haviam até excitado n’ella uma tal ou qual inveja. Pela rua fóra, ao vento gélido e á chuva, ia pensando no Vessoftchikof. --Como elle está mudado!... Vejam aquillo! E ao lembrar-se de Gadoune, meditou com um sentimento quasi de religiosa piedade: --Ao que parece, não sou só eu que ando n’esta vida de promissão! Depois, a imagem de seu filho accudiu-lhe ao espirito: --Se elle consentisse, ao menos!... XXII No domingo seguinte, ao despedir-se de Pavel, na secretaría da cadeia, sentiu que elle lhe deixava na mão uma bolinha de papel, o que a fez estremecer de alvoroço. Lançou ao filho olhar interrogador e supplicante, mas Pavel não lhe deu resposta alguma. Nos olhos azues do filho nada viu além do sorriso sereno e decidido que conhecia bem. --Adeus! disse, suspirando. De novo, Pavel, ao estender-lhe a mão, deu ao rosto carinhosa expressão. --Adeus, mamã! Reteve ainda a mão do filho, á espera. --Não te inquietes... Não te zangues... supplicou elle. Estas palavras e o vinco de obstinação d’aquella fronte deram á mãe a resposta esperada. --Porque dizes isso? murmurou, baixando a cabeça. Que ha n’essas tuas palavras? E saíu rapida, sem o fitar para não traír com as lagrimas o seu estado de espirito. Pelo caminho, chegava-lhe a parecer que lhe doía a mão em que trazia o bilhete de seu filho; sentia o braço pesado como se lhe tivessem dado uma pancada no hombro. E, ao entrar em casa, entregou a Nicolao a bolinha de papel. Emquanto esperava que elle desdobrasse o papel, fortemente comprimido, ainda teve um novo vislumbre de esperança. Mas Nicolao disse-lhe: --Já o sabia! Aqui tem o que escreve: «Companheiros: não fugiremos; não devemos fazel-o; nenhum de nós se presta a isso. Perderiamos assim o respeito por nós mesmos. Tratem antes do camponez ultimamente preso. Merece a vossa sollicitude. É digno das vossas deligencias. Está soffrendo horrores, aqui. Todos os dias tem desaguisados com as autoridades. Já passou vinte e quatro horas no segredo. É torturado sem descanso. Todos nós intercederemos por elle. Consolem minha mãe; tratem d’ella com carinho. Contem-lhe tudo isto; ella ha de compreender. Pavel.» Pélagué ergueu a cabeça e com voz firme: --Contar-me, o quê? Já compreendi tudo! Nicolao virou de súbito as costas, puxou pelo lenço e assoou-se com ruido. Murmurou: --Sempre apanhei um defluxo!... Occultou os olhos com a mão, sob pretexto de compôr os oculos, e continuou, passeiando pelo quarto: --Olhe, sabe que mais?... Assim como assim, haviamos de nos saír mal da empreza! --Que importa! Pois que seja julgado! disse a mãe de Pavel com o peito a estalar de indefinida angustia. --Recebi ha pouco carta d’um collega de São Petersburgo. --Tambem da Sibéria se pode fugir, não é assim? --Com certeza... O meu collega diz-me que o processo cedo será julgado. O veredicto já é conhecido: o degredo para todos. Ora veja a senhora: aquelles patifes fazem da justiça uma comedia infame!... Está compreendendo? A sentença é lavrada em São Petersburgo, antes mesmo da decisão do jury! --Não pense mais n’isso, Nicolao! disse Pélagué resoluta. É inutil pretender consolar-me ou explicar-me seja o que fôr!... O Pavel nunca ha de fazer nada que não seja bem feito! E não se ha de apouquentar senão pelo que o mereça!... Aqui, deteve-se para tomar folego. --Assim como tambem nunca apouquenta os outros... E elle estima-me! Estima-me, sim! Não vê como se lembrou de mim? «Consolem-na», escreveu elle, an? Batia-lhe forte o coração; a violencia do seu sentir fazia-lhe um tanto andar a cabeça á roda. --Seu filho é uma bella alma! exclamou Nicolao com voz singularmente vibrante. Estimo-o e venero-o profundamente! --E se nós tratassemos do Rybine! alvidrou ella. O seu desejo era entrar immediatamente em acção, partir, caminhar até caír de fadiga, para depois adormecer satisfeita com o seu dia de trabalho. --Sim, com effeito! respondeu Nicolao, proseguindo no passeio pelo quarto. Que fazer n’este caso?... Eu preciso que a Sachenka... --Ella não tarda. Vem sempre que sabe que eu estive com o Pavel. De cabeça baixa, meditativo, sentou-se Nicolao no canapé, ao lado d’ella. Mordia os beiços e cofiava a barbicha. --Que pena minha irmã não estar por ahi!... Ella é que havia de tratar da fuga do Rybine. --Se fôsse possivel dar-lhe já fuga, emquanto o Pavel ainda ahi está... Havia de ficar tão contente! disse ella. Esteve um instante calada e, de repente, baixinho e com dolencia: --Não compreendo... Porque se recusa elle?... uma vez que tem possibilidade de o fazer?... Ressoou forte campainhada. Nicolao levantou-se de chofre. Olharam um para o outro. --É a Sachenka! disse Nicolao com voz debil. --Nem sei como lho hei de dizer! exclamou ella no mesmo tom. --É verdade... é difficil! --Tenho pena d’ella! A campainha vibrou outra vez, mas com menos força, como se a pessôa que se encontrava para alem da porta hesitasse tambem. Dirigiam-se os dois a abrir, mas, chegados á cosinha, deteve-se Nicolao e segredou-lhe: --É melhor ir a senhora só. --Recusa-se a fugir? perguntou a rapariga com decisão, tão depressa Pélagué lhe abriu a porta. --Recusa! --Bem o sabia! disse Sachenka simplesmente. Faz vento, chove... que abominavel tempo!... E elle está bom? --Está. --Contente e de saúde... como sempre! disse Sachenka a meia voz, ao mesmo tempo que examinava uma das mãos. --Manda-nos dizer que devemos dar fuga ao Rybine, annunciou a mãe de Pélagué, sem se atrever a fital-a. --Ah, sim? Pois é preciso levar esse plano a bom caminho! respondeu a rapariga com vagar. --Sou da mesma opinião! declarou Nicolao, apparecendo á porta. Boa noite, Sachenka! Ella estendeu-lhe a mão e perguntou: --E que obstaculo ha? Todos reconhecem que o projecto é engenhoso, não é assim? Eu sei que ê este o parecer de todos. --Mas quem ha de encarregar-se de o organisar? Andam todos tão occupados!... --Eu! disse com vivacidade a rapariga, pondo-se de pé. Eu tenho tempo. --Pois seja! Mas são precisos outros collaboradores... --Bem, eu os encontrarei! Vou tratar d’isso immediatamente. --Porque não descansa um pouco? propoz Pélagué. Ella sorriu e respondeu, deligenciando dar meiguice á voz: --Não se apouquente por minha causa... Não estou cansada... Apertou as mãos a ambos, silenciosa, e foi-se como viera, fria e de semblante carregado. Pélagué e Nicolao foram á janella para a vêr. Atravessou o pateo e sumiu-se para além da grade. Nicolao pôz-se a assobiar baixinho; em seguida, sentou-se á mesa e pegou na penna. --Ella quer tratar d’este negocio para distraír o seu desgosto! disse Pélagué, baixo. --É evidente! confirmou Nicolao. E, voltando-se para Pélagué, com o rosto bondosamente illuminado de um sorriso: --Este fel é que os seus labios não provaram, não é verdade?... Nunca andou a suspirar por um homem amado! --Que idéa! exclamou ella, agitando negativamente a mão. Eu, a suspirar? O que eu tinha era medo de que me obrigassem a casar com um ou com o outro. --Ninguem lhe agradava então?... Reflectiu e depois respondeu: --Não me lembro, meu amigo. É provavel que houvesse um que me agradasse mais do que os outros... E como não havia de ser assim?... Mas não me lembro. Fitou o seu interlocutor e resumiu com dolorosa melancolia: --Fui tão maltratada pelo meu marido, que tudo o que se passou antes d’elle é como se me tivesse apagado da lembrança. E ausentou-se por um instante. Quando voltou, disse-lhe Nicolao com affectuoso olhar, como para lhe suavisar as penosas recordações, com palavras repassadas de ternura e amor: --Quer saber? Tambem eu tive uma... historia... parecida com a da Sachenka. Amava uma menina, uma criatura deliciosa! Era ella a estrella da minha vida... Ha vinte annos que a conheço e a amo... porque a amo ainda hoje, para dizer a verdade; amo-a tanto como sempre a amei... de toda a minha alma, com gratidão! Pélagué via-lhe no olhar uma chamma viva e apaixonada. Elle descansára a cabeça nos braços apoiados ao espaldar da poltrona e olhava para longe, nem elle mesmo sabia para onde. Todo o seu corpo magro e delgado, mas robusto, parecia tender para um ponto fixo, tal a haste da planta virada para a luz do sol. --Mas então, case-se! aconselhou ella. --Oh! ha cinco annos que está casada! --Porque não casou com ella? Não o amava? Teve um momento de reflexão e respondeu: --Creio que me amava... Tenho mesmo a certeza! Porém, veja a senhora! fomos sempre infelizes: quando ella estava em liberdade, era eu que estava preso, e quando eu estava solto, era ella que estava na cadeia. Viviamos na mesma situação da Sachenka e do Pavel! Finalmente, mandaram-na por dez annos para a Sibéria... Tão longe!... Eu quiz seguil-a... Mas tivemos ambos vergonha, pelo nosso amor... E fiquei. No degredo, travou conhecimento com um dos meus camaradas, excellente rapaz. Evadiram-se juntos... e agora vivem no estrangeiro... Tirou os oculos e limpou-os; depois, examinou as lentes contra a luz e entrou de novo a esfregal-as. --Ah, meu caro amigo! disse affectuosamente Pélagué, abanando a cabeça. Lastimava-o Pélagué sinceramente, mas ao mesmo tempo, havia n’elle o que quer que era que a forçara a sorrir, com bondoso e maternal sorriso. Nicolao mudou logo de expressão, retomou a penna e batendo com ella, ao ritmo das frases, declarou: --Afinal, a vida de familia diminue a energia do revoluccionario; é certo, diminue-a sempre! Vem os filhos, o dinheiro rareia, é preciso trabalhar para ganhar o pão... E o verdadeiro revoluccionario deve desenvolver a sua energia sem desfallecimentos. E é preciso ganhar tempo para isso! Se nos deixamos ficar para traz, vencidos pelo cansaço, ou seduzidos pela possibilidade d’uma conquistasinha amorosa, traímos a bem dizer, a causa do povo! Falava com voz firme e, bem que o rosto se lhe conservasse pálido, mostrava no olhar uma decisão sem transigencias, inabalavel. De novo, violenta campainhada interrompeu as considerações de Nicolao. Era Lioudmila. Vinha com as faces muito vermelhas do frio. Emquanto tirava a capa de borracha, annunciou em tom de irritação: --Está marcado o dia do julgamento: é dentro d’uma semana! --Tem a certeza? gritou Nicolao do quarto, onde fôra. Pélagué correra para elle sem saber se era contentamento ou receio o que a impellia. Seguira-a Lioudmila. Esta continuava, com a sua voz grave, repassada de ironia: --Tenho, sim! O procurador substituto Chostak já lavrou o libello de accusação. No tribunal, diz-se abertamente que o veredicto já está pronunciado. Que significará isto? O governo terá medo de que os magistrados tratem os seus inimigos com excessiva benevolencia? Depois de ter pervertido os seus servidores com tanta perseverança e paciencia, ainda não estará seguro do seu servilismo? E dito isto, sentou-se no canapé e pôz-se a esfregar as cavadas faces; despedia do olhar sem brilho, infinito desprezo e a voz alteava-se-lhe cada vez mais irada. --Não gaste a sua polvora inutilmente, Lioudmila! aconselhou Nicolao. O governo não a ouve! As olheiras que assombreavam o rosto da mulher cavaram-se mais, cobrindo-lhe as feições d’uma névoa de ameaça. Mordendo os lábios, proseguiu: --Eu lucto contra o governo. Que elle me mate, bem vae: está no seu direito, pois que sou sua inimiga! Mas que não ande a corromper as criaturas para defender o poder; que não me obrigue a votar-lhe profundo desprezo; que não me envenene a alma com tal cinismo! Nicolao, por detraz dos seus oculos, fitou-a muito, com um franzir de palpebras e signaes approvativos. A outra continuou a discorrer, como se aquelles a quem odiava estivessem na sua presença. Pélagué escutava attentamente aquellas frases, mas sem as compreender. Machinalmente, a si mesma repetia as mesmas palavras: --O julgamento... dentro d’uma semana... O julgamento!... Não podia conjecturar o que ia passar-se, nem como os juizes tratariam seu filho. Mas sentia a imminencia d’alguma coisa implacavel, cuja crueza e cuja ferocidade deixavam de ser humanas. Os pensamentos baralhavam-lhe o cérebro, velavam-lhe a vista d’um vapor azulado e mergulhavam-na no que quer que fôsse frio, viscoso, que lhe causava arrepios, nauseas e, que, infiltrando-se-lhe no sangue, lhe chegava ao coração e suffocava n’ella todo o valor. XXIII Dois dias passou n’este nevoeiro de perplexidades e angustias. Ao terceiro, veio Sachenka dizer a Nicolao: --Está tudo prompto. É para hoje, á uma hora. --Já?! exclamou admirado. --Não era coisa muito complicada! Bastava que arranjasse fato para o Rybine e sitio para o esconder. Do resto encarregou-se o Gadoune. O Rybine não terá de andar mais que uns cem passos. O Vessoftchikof, disfarçado, está claro, irá ao encontro d’elle, fornecer-lhe-á um casacão e um bonné e dir-lhe á onde deve ir. Eu espero o Rybine e guial-o-ei. --Está muito bem... Quem é esse Gadoune? disse Nicolao. --Deve conhecel-o. É na loja d’elle que temos feito as leituras aos serralheiros... --Ah, já me lembro!... Um velhote exquisito... --Sim; é um retelhador, por officio; antigo soldado... De intelligencia pouco desenvolvida, nutre um odio inexgotavel contra todas as violencias, contra toda a oppressão. É um tanto ou quanto filósofo, rematou Sachenka, pensativa, a olhar pela janella. Ouvia-se Pélagué em silencio. Pouco a pouco, ia amadurecendo n’ella uma idéa vaga. --O Gadoune quer dar fuga ao sobrinho, o Evtchenko, aquelle ferreiro de quem tanto se agradavam todos pelo seu aceio e donaire, lembram-se? Nicolao affirmou com um gesto. --Pois tem tudo preparado na perfeição, continuou Sachenka; mas ainda assim, começo a duvidar do bom exito... Os presos passeiam todos á mesma hora. Quando virem a escada, ha de haver logo muitos a quererem fugir... Fechou os olhos e calou-se por instantes. Pélagué approximara-se d’ella. --... E hão de estorvar-se uns aos outros. Estavam agora os trez junto da janella, Nicolao e Sachenka á frente, Pélagué mais atraz. A conversação rapida dos dois primeiros despertava cada vez mais em Pélagué um vago sentimento... --Pois hei de lá ir! annunciou de subito. --Para quê? perguntou Sachenka. E Nicolao aconselhou: --Não, não, querida amiga! Podia acontecer-lhe alguma coisa. Não! Ella fitou-os a ambos e repetiu, mais baixo, com insistencia: --Sim, hei de ir! Os dois trocaram rapido olhar. Sachenka encolheu os hombros e commentou: --Compreende-se... Depois, voltando-se para ella e tomando-lhe do braço, inclinando-se-lhe ao ouvido, declarou com singeleza e cordealidade: --Mas olhe que eu previno-a: nada tem a esperar... --Minha querida! exclamou a mãe de Pavel, puxando-a para si, a tremer, leve-me comsigo!... Eu não a estorvo... É que eu queria vêr... Não creio, não julgo que seja possivel... uma evasão! --Ha de vir comnosco por força! limitou-se a dizer a rapariga para Nicolao. --Isso é com vocês as duas! respondeu elle, baixando a cabeça. --Mas olhe que não podemos ficar juntas. Vocemecê tem de andar pelos campos, pelos jardins. Vêem-se de lá os muros da cadeia, muito bem... D’outra fórma, arrisca-se a que lhe perguntem o que anda ali a fazer. Com serenidade, Pélagué exclamou: --Sempre hei de achar uma resposta! --Não se esqueça de que os vigias da cadeia conhecem-na! lembrou Sachenka. Se a vêem por ali... --Não hão de vêr-me! respondeu ella. E logo a seguir, a esperança que ella sempre acalentára sem mesmo, dar por tal, incendiou-se em viva chamma que toda a animou: --Quem sabe?... Talvez que elle tambem... pensava, emquanto se vestia apressadamente. Uma hora depois, encontrava-se ella em meio d’uns campos, perto da prisão. Soprava vento agreste, que lhe enfunava as saias, enrijecia o solo gelado, fazia oscillar o tapume velho d’um jardim, fustigava com violencia o muro da cadeia e penetrava no pateo interior, d’onde a vozearia subia, arrastada para o firmamento no seu irresistivel sopro. Corriam velozes as nuvens, deixando por vezes entrever a immensa profundidade do azul. A cidade estendia-se por detraz de Pélagué; e na sua frente, o cemiterio. A uns vinte passos para a direita, elevava-se a cadeia. Perto do cemiterio, dois soldados andavam a dar passeio a um cavallo. Caminhavam com pesado passo, assobiavam e riam. Obedecendo a instinctivo impulso, acercou-se dos dois homens e gritou-lhes: --Camaradas, viram a minha sobrinha? Não fugiu para aqui? --Não, não vimos, respondeu-lhe um. Afastou-se devagar, passou-lhes adiante e dirigiu-se para o muro do cemiterio, olhando sempre de soslaio. De súbito, sentiu vergarem-se-lhe as pernas e tornarem-se-lhe pesadas, como se o gelo lh’as tivesse pregado ao solo: à esquina da cadeia tinha apparecido um accendedor de candieiros, corcovado sob pequena escada, a correr, como todos elles costumam fazer. Toda a tremer de susto, olhou Pélagué para o lado dos soldados. Tinham ficado parados em certo sitio; o cavallo brincava, pulando-lhes á roda. Viu depois que o homem já tinha encostado a escada ao muro e por ella trepava sem pressa alguma. Viu-o fazer um signal com a mão, descer rápido, e sumir-se na esquina da cadeia. Pulsava violentamente o coração de Pélagué; os segundos decorriam com lentidão. A escada mal era visivel entre as grandes manchas da lama e da caliça escalavrada, que deixava a descoberto os tijolos. N’isto, surgiu na crista do muro a cabeça de Rybine, e logo o corpo appareceu, passou para o outro lado e deslisou. Segunda cabeça coberta de bonné de pello surgiu; rolou para o chão uma especie de novelo preto que logo se sumiu na esquina do edificio. Rybine aprumára-se e olhava em torno. Fez um signal com a cabeça. --Foge! foge! segredou Pélagué, batendo o pé. Tinha zumbidos nos ouvidos, parecia-lhe ouvir gritos, quando terceira cabeça, esta loira, emergiu do espigão do muro. Comprimindo o peito ás mãos ambas, Pélagué olhava, petrificada. A cara loira e imberbe teve um impulso para cima, como para se separar do corpo, e depois, desappareceu por detraz do muro. Os gritos de ha pouco faziam-se mais ruidosos e traduziam maior alvoroço; o vento levava-os pelo espaço, de mistura com trillos agudos de apitos. Rybine caminhou ao longo do muro e depois transpôz um terreno que separava a prisão dos predios da cidade. A Pélagué afigurava-se que ele ia muito devagar e de cabeça alta demais; com certeza as pessoas que com elle se cruzavam não lhe esqueceriam as feições. --Depressa!... Mais depressa! murmurou ella. No pateo da cadeia, houve qualquer coisa que se quebrou com ruido secco, ouviu-se um tenido agudo de vidros partidos. Firmando os pés no chão com toda a sua força, um dos soldados puxava pelo cavallo; o outro, de mão ao lado da bocca, gritava o que quer que fôsse na direcção do presidio, depois apurava o ouvido com a cabeça inclinada n’esse sentido. Em crispações de incerteza, a mãe de Pavel olhava para tudo aquillo; os seus olhos, que tudo haviam visto, em nada queriam crêr. A evasão, que ella imaginára coisa terrivel e complicada, effectuara-se tão rapida e simplesmente, que d’ella mal lhe restava consciencia. Em baixo, na rua, já não se divisava Rybine. Os unicos traseuntes eram agora um homem de elevada estatura, vestido de comprido sobretudo, e uma rapariguinha. Appareceram trez vigias á esquina. Corriam, apertando-se uns contra os outros, com o braço direito estendido para a frente. Um dos soldados precipitou-se ao encontro d’elles, o outro mal podia acompanhar o cavallo, que, caprichoso e rebelde, tentava recomeçar o brinquedo, esquivando-se e pulando. Pélagué julgava vêr tudo em volta d’ella oscillar. Os apitos rasgavam a atmosfera em trillos incessantes e desesperados. Compreendeu então o perigo que corria. Toda trémula, foi andando ao longo do tapume do cemiterio, sem perder de vista os guardas. Estes deitaram a correr para a outra esquina da cadeia e desappareceram, assim como os soldados. Logo depois viu o sub-director da prisão, que ella conhecia bem, tomar a mesma direcção. Trazia a farda desabotoada. Accudiam policias; formava-se um ajuntamento... O vento soprava, deslocando-se em redemoinhos, como se quizesse mostrar-se satisfeito; com elle chegavam aos ouvidos de Pélagué fragmentos d’exclamações confusas: --Ella ainda lá está! --A escada? --Vá para o diabo! Porque espera!... De novo retiniram apitos estridentes. Todo este tumulto era do agrado de Pélagué. Apressou o passo, ao mesmo tempo que ia pensando: --Logo, era possivel!... E se elle quizesse, tambem o tinha podido fazer! De repente, ao voltar uma esquina do tapume, embateu em dois guardas, acompanhados d’um policia. --Pára! gritou-lhe este, offegante. Não viste um homem de barba a correr? Não veio para aqui? Ella apontou para os campos e respondeu com todo o sangue frio: --Vi, sim, senhor. Foi para ali!... --Jégourof! berrou o policia. Vá! Corre! Apita! E ha muito tempo? --Ha de haver um minuto... Mas teve a voz dominada pelo estridor do apito. Sem esperar a resposta, o policia desatou a correr por entre os montões de lama gelada, agitando as mãos na direcção dos jardins. De cabeça baixa e apito na bocca, os outros precipitaram-se-lhe nas peugadas. Ficou um momento a seguil-os com a vista e voltou para casa. Sem que um pensamento particular predominasse n’ella, sentia, não obstante, o pezar por alguma coisa; havia no seu coração amargura e despeito. Ao chegar proximo da cidade, fêl-a parar um trem que ia passando. Ergueu a cabeça e viu na carruagem um rapaz de bigode loiro, rosto pálido e que revelava cançaso. Elle fitou-a tambem. Ia sentado de esguelha; era talvez por isso que parecia ter o hombro direito mais alto que o esquerdo. Nicolao recebeu Pélagué com um suspiro de alivio. --Chegou sã e salva? Então como se passou isso? --Parece que conseguiram o que queriam. E diligenciando rememorar os mais insignificantes pormenores, contou o que tinha visto, como se estivesse a repetir inverosimil historia. --Ora veja que temos sorte! disse Nicolao, esfregando as mãos. Mas que susto em que estive por sua causa! Nem póde imaginar! Nada receei com respeito ao julgamento. Quanto mais cedo fôr, tanto mais breve chegará o dia da libertação do seu Pavel, creia! Talvez até possa evadir-se quando fôr, a caminho da Sibéria... Quanto ao julgamento, aqui tem pouco mais ou menos o que é. Entrou a descrever-lhe o tribunal. A mãe de Pavel escutava-o, mas presentia que elle receava alguma coisa e diligenciava tranquillisal-a. --Está imaginando talvez que eu quero dirigir-me aos juizes, entregar-lhes algum memorial! disse ella. Nicolao levantou-se bruscamente, agitou a mão e exclamou em tom de melindre: --Que está dizendo? Nunca pensei n’isso! --Tenho medo, isso é certo! Tenho medo e não sei de quê! Calou-se. O olhar vagueava-lhe pelo aposento, ao accaso. --Em certas occasiões, quer-me parecer que hão de mofal-o, que hão de injurial-o e dizer-lhe: «Oh, campónio, filho de campónio! que descoberta foi essa agora?» E o Pavel é orgulhoso; ha de querer responder-lhes... Ou então é o André que vae para lá zombar d’elles. São todos tão entusiastas, tão francos e leaes, os nossos!... É por isso que eu digo comigo mesmo: «Se acontecesse alguma coisa, se um d’elles perdesse a paciencia, os outros haviam de apoiá-lo e lá os tinhamos todos condemnados... por maneira que nunca mais apparecessem!» Nicolao, sombrio, atormentando a barba, permanecia silencioso. --Não posso expulsar taes idéas d’esta cabeça! continuou ella mais baixo. É terrivel, uma audiencia! Vão para ali pôr-se a examinar tudo, a avaliar tudo... a procurar onde está a verdade! É deveras um horror!... Não é o castigo que amedronta, é o julgamento... a avaliação da verdade... Não sei como hei de dizer... Sentia que Nicolao não compreendia o seu terror, e isto ainda mais a embrulhava na demonstração. XXIV Este terror de Pélagué não fez senão augmentar durante os trez dias que a separavam da audiencia e, quando esta chegou finalmente, levava ella sobre si, para o tribunal, um fardo que toda a avergava. Cá fora, reconheceu varios dos seus antigos visinhos do arrabalde, inclinou-se em silencio para corresponder aos seus cumprimentos e abriu á pressa caminho por entre a multidão tristonha. Nos corredores e depois, na sala, topou com as familias dos seus. Falava-se abafando a voz; trocavam-se frases que ella não compreendia. D’aquella turba brotava pungente sentimento que se communicava a Pélagué e a opprimia ainda mais. --Senta-te! convidou Sizof, arranjando-lhe logar no banco, a seu lado. Obedeceu, compôz as dobras do vestido e olhou em torno. Divisava vagamente umas faxas verdes e encarnadas, umas manchas, uns fios amarellos e delgados, que brilhavam. --Foi o teu filho que levou o meu á perdição! murmurou uma mulher que lhe ficava perto. --Cala-te d’ahi, Nathalia! interrompeu Sizof com o semblante carregado. Pélagué ergueu a vista para aquella mulher: era a mãe de Samoílof. Um pouco mais adiante, estava o pae, calvo, de bello rosto ornado de espessa barba ruiva talhada em leque. Semi-cerrava as palpebras e olhava direito para diante de si, com um estremecimento involuntario de vez em quando. Pelas altas janellas entrava uma claridade uniforme e turva; escorregavam flocos de neve pelas vidraças. Entre as janellas, havia um immenso retrato do czar em grossa moldura doirada, e com reflexos oleosos na pintura; e a um e outro lado do quadro, occultavam a parede as pregas hirtas dos pesadissimos reposteiros que revestiam as janellas. Frente ao retrato, uma meza coberta de panno verde, occupava quasi toda a largura da sala; á direita, por detraz d’uma especie de gelosia gradeada, dois bancos de pau; á esquerda, duas filas de poltronas forradas de vermelho. Os officiaes de diligencias, de golas verdes e botões doirados iam e vinham pela sala, nos bicos dos pés. Na atmosfera, de equivoca pureza, perpassavam ruidos de vozes, cochichando baixinho; pairava, vindo ninguem saberia d’onde, um vago cheiro de farmácia. Todas aquellas côres vivas e aquellas scintillações offuscavam a vista; penetravam no peito os odôres do ambiente d’envolta com a respiração; o espirito sentia-se submerso n’uma especie de temor inexprimivel. De súbito, alguem começou a falar em voz alta. Toda a assistencia se pôz de pé. Pélagué teve um sobresalto e ergueu-se tambem, agarrada ao braço de Sizof. No canto esquerdo da sala, tinha-se aberto uma porta alta, dando passagem a um velhinho de oculos, muito alcachinado e de andar incerto. Umas escassas suissas tremiam-lhe dos lados da carinha de côr terrosa, o lábio superior, barbeado, quasi se lhe sumia na cavidade da bôca. As maçãs do rosto e o queixo comprimiam-se-lhe sobre a altissima gola da farda, dando a julgar que por baixo nada existia de pescoço. O velho caminhava sustido por um rapaz alto, de cara de porcelana, muito redonda e rosada. Atraz d’elles, vinham trez personagens revestidos de uniformes recamados de bordados e mais trez sujeitos á paisana. Por muito tempo, estiveram a deliberar entre si, em volta da mesa; depois, sentaram-se. Logo que todos tomaram os seus logares, um d’elles, rosto imberbe e com a farda desabotoada, entrou a falar ao velho, com uns modos de indifferente indolencia e movendo com custo os beiços entumecidos. O velho ia-o escutando. Conservava-se hirto e immovel, e Pélagué distinguia-lhe duas manchasinhas esbranquiçadas por detraz dos vidros dos oculos. Junto de estreita secretária, na extremidade da mesa, um homem alto e calvo folheava papeis, com uma tossinha sêcca. O velho fez um movimento para diante e começou a falar. A primeira palavra pronunciou-a elle distinctamente, mas as outras parecia que se sumiam ao sahir-lhe dos lábios delgados e sem côr. --Declaro... --Olha! segredou Sizof á sua visinha com uma leve cotovellada. E pôz-se de pé. Por detraz do gradeamento abrira-se uma porta que dera passagem a um soldado de espada desembainhada, ao hombro, e logo depois a Pavel, André, Fédia Mazine, os irmãos Goussef, Boukine, Samoílof e mais cinco rapazes desconhecidos de Pélagué. Pavel vinha a sorrir; André cumprimentou Pélagué com um aceno de cabeça. Aquelles rostos, aquelles sorrisos e gestos de animação fizeram parecer menos frio o silencio e tornaram a sala mais luminosa; suavisaram-se os reflexos opulentos de oiro dos uniformes; um alento de confiança, uma aragem de força viril penetraram o coração da mãe de Pavel, arrancando-a ao seu torpor. Por detraz d’ella, pelas bancadas onde até ali a turba se conservava acabrunhada, á espera, murmurios surdos e reprimidos iam respondendo ás saúdações dos reus. --E é que não teem medo! ouviu ella Sizof segredar-lhe, ao passo que á sua direita a mãe de Samoílof se desatava em soluços. --Silencio! gritou uma voz severa. --Tenho a prevenil-os... disse o velho. Pavel e André tinham ficado lado a lado; a seguir, estavam Mazine, Samoílof e os irmãos Goussef, todos na primeira bancada. André cortára a barba; mas o bigode crescera-lhe tanto, que as guias pendiam e reuniam-se, assemelhando-lhe a redonda cabeça á d’um gato. Trazia impressa na fisionomia uma expressão nova: nos vincos aos cantos da bôca, havia alguma coisa penetrante, irónica, e o olhar tornára-se-lhe sombrio. Mazine tinha agora o lábio superior sombreado por dois traços escuros, e o seu rosto engordára; o Samoílof tinha os mesmos cabellos, tão encaracolados como d’antes. O Ivan Goussef continuava a mostrar o mesmo amplo sorriso. --Fédia! Fédia! suspirou Sizof, baixando a cabeça. Pélagué respirava agora melhor. Apurava como podia, o ouvido ás perguntas indistinctas do velho, o qual interrogava os reus sem olhar para elles, com a cabeça entalada entre a gola da farda. Escutava as respostas breves e calmas que seu filho ia dando. Queria-lhe parecer que aquelle presidente e aquelles juizes não podiam ser más e crueis pessoas. Examinava-lhes pormenorisadamente as fisionomias, tentando perscrutar-lhes os sentimentos, e assomava-lhe ao coração uma nova alvorada de esperança. Indifferente, o homem da cara de porcelana estava lendo um documento; a sua voz circumspecta enchia a sala d’um tedio que causava somnolencias no publico. Em voz baixa e animadamente, quatro advogados conversavam com os réus; tinham todos uma gesticulação saccudida e veemente e faziam pensar em grandes passarolos negros. Á direita do velho, um juiz ventrudo, de olhinhos sumidos entre as papadas da gordura, enchia completamente toda a capacidade da poltrona; á esquerda, estava um homem alquebrado, de bigode vermelho, de rosto esmaecido. Reclinava com lassidão a cabeça no espaldar, de palpebras semi-cerradas, meditando. O procurador tambem apparentava cansaço, enfado e indifferença. Por detraz dos juizes, occupavam poltronas varios individuos: um robusto e esbelto homem estava acariciando uma das faces, com ares de grande concentração; o marechal da nobreza, já grisalho, de rosto rubicundo e comprida barba, divagava o olhar dos seus grandes olhos simplorios; o syndico do bailiado, a quem o enorme abdomen visivelmente incommodava, diligenciava disfarçal-o sob uma aba da blusa, que escorregava de contínuo. --Aqui não ha criminosos nem juizes! proclamou Pavel com voz firme. Aqui só ha captivos e vencedores! Fez-se silencio. Durante alguns segundos, o ouvido de Pélagué nada distinguiu além do ranger precipitado e estridente das pennas sobre o papel e das palpitações do seu proprio coração. O presidente do tribunal parecia que estava escutando ou esperando alguma coisa. Os juizes seus collegas agitaram-se nas poltronas. Elle então disse: --Sim!... André Nakhodka!... Reconhece... Ouviram-se vozes segredar: --Levanta-te!... Levante-se! André poz-se de pé com lentidão e ficou a olhar para o velho, de soslaio, emquanto frisava e desfrisava o bigode. --De que posso eu reconhecer-me culpado? disse, com um encolher de hombros, o russo-menor, na sua voz cantante e arrastada. Eu não matei, nem roubei: simplesmente protesto contra esta organisação da sociedade, que obriga os homens a explorarem-se e a assassinarem-se uns aos outros. --Limite-se a responder sim ou não! disse o velho com esforço mas perceptivelmente. Pélagué sentia que por detraz d’ella susurrava certa agitação; todos falavam baixinho e mexiam-se muito nas bancadas, como para desannuviarem os espiritos da teia d’aranha tecida pelo discurso enfadonho do homem de porcelana. --Vês como elles respondem? segredou Sizof para a mãe de Pavel. --Sim! --Fédia Mazine, responda! --Não quero! declarou Fédia peremptoriamente, pondo-se de pé. Estava muito córado pela commoção e com os olhos brilhantes. Sizof soltou um «Ah!» de mal contido espanto. --Não quiz defensor, portanto nada direi. Considero o julgamento d’este tribunal como illegitimo!... Quem são os senhores? Foi o povo quem lhes deu o direito de julgar-nos? Não, não foi o povo! Logo, não os conheço! Tornou a sentar-se e occultou o rosto rubro, por detraz do hombro de André. O juiz gordo curvou-se para o presidente, cochichando. O juiz de rosto esmaecido lançou uma olhadela obliqua para os réus e, com o lapis, passou um traço por cima do que quer que fôsse, escripto no papel que tinha em frente. O syndico do bailiado abanou a cabeça e removeu os pés do sitio em que os tinha, com precaução. O marechal da nobreza conversava com o procurador; o administrador da communa prestava attento ouvido ao que diziam e sorria, esfregando sempre uma das faces. De novo se ouviu a voz triste e sumida do presidente. Os quatro advogados escutavam attentos; os réus conversavam em segredo uns com os outros; Fédia continuava a occultar-se ás vistas, sorrindo, muito compromettido. --Então, não viste aquillo?... Falou melhor que todos os outros! murmurou Sizof ao ouvido da sua visinha. Ah, aquelle brejeiro! Pélagué sorriu sem o compreender. Tudo o que se estava passando não era para ella mais do que o prologo inutil e forçado d’alguma coisa terrivel, que, ao surgir, havia de esmagar todo o auditório sob gélido terror. Comtudo, as calmas respostas de Pavel e André manifestavam tanta firmeza e decisão, como se as tivessem pronunciado na modesta casinha do arrabalde e não perante juizes. A réplica enthusiasta e juvenil de Fédia tinha-a divertido immenso. Pairava na sala uma atmosfera de audácia e de mocidade, e, pela agitação de todo o auditório, Pélagué sentia que não era ella só que lhe sentia os effluvios. --A sua opinião? perguntou o velho. O procurador calvo ergueu-se com a mão apoiada na carteira e discursou com verbosidade, citando numeros. Nada havia n’aquella voz que infundisse terror. No emtanto, ao ouvil-o, Pélagué sentiu logo como uma punhalada no coração: era um vago presentimento de alguma coisa hostil e que se lhe afigurava ir desenvolvendo-se lentamente em uma fórma indefinivel. Examinava tambem os juizes, mas não os compreendia: ao contrario do que ella esperava, não os via zangar-se com Pavel e Fédia, nem proferir palavras injuriosas contra os réus; queria-lhe parecer que todas as perguntas que faziam não tinham para elles importancia alguma; dir-se-ia que era de má vontade que as formulavam e que lhes custava esperar as respostas; nada os interessava tudo sabiam já d’antemão. Agora estava um policia postado na frente d’elles e falava com uma voz de baixo profundo. --Toda a gente apontava Pavel Vlassof como o principal cabeça de motim. --E André Nakhodka? perguntou com indolencia o jury gordo. --Esse tambem. Levantou se um dos advogados e disse: --Dá-me licença?... O velho perguntou a alguem: --Não tem objecção a apresentar? Pélagué chegava a julgar que os juizes se achavam todos doentes. Traduzia-se um cansaço mórbido na menor das suas attitudes, nas vozes e nas fisionomias. Via-se que tudo os enjoava: os uniformes, a sala, os policias, os advogados, a obrigação de estarem ali sentados n’aquellas poltronas, de interrogarem e de ouvirem. Raras vezes Pélagué se encontrára na presença de gente de posição elevada e havia alguns annos que nem sequer a tinha visto, e assim, as feições dos juizes eram para ella como uma coisa inteiramente desconhecida, incompreensivel, mas mais compassiva do que severa. Estava agora a falar o official de cara amarellada que ella conhecia bem; referia-se a André e a Pavel, arrastando muito as palavras, emfaticamente. E emquanto o ouvia, Pélagué commentava comsigo mesma: --Não sabes nada d’isto, meu pateta! Deixára de sentir compaixão ou receio pelos que se sentavam por detraz do gradeamento; não temia pela sua sorte, e achava que lhes era inutil a sua piedade, mas todos elles lhe inspiravam admiração e um sentimento de amor que lhe acalentava docemente o coração. Jovens e robustos como eram, estavam sentados á parte, junto da parede e quasi nem intervinham na conversação monotona entre testemunhas e juizes, nas discussões dos advogados e do procurador. De vez em quando, um d’elles tinha um sorriso de desprezo e dizia baixo algumas palavras aos seus companheiros. André e Pavel, esses, falavam quasi continuadamente com um dos defensores, a quem Pélagué conhecia de o ter visto na vespera em casa de Nicolao e que por este era tratado de «camarada». Mazine, mais animado e irrequieto que os outros, prestava attento ouvido a esta conversa. De vez em quando, Samoílof segredava meia duzia de palavras ao ouvido de Ivan Gousef. E Pélagué, olhando para tudo, comparava, reflectia, sem que pudesse compreender aquella sensação de hostilidade que a invadia, nem achar termos para exprimil-a. Sizof chamou-lhe a attenção com ligeira cotovellada; virou-se para elle: estava com uns ares ao mesmo tempo satisfeitos e um tanto preoccupados. Segredava: --Olha para a presença de espirito com que elles estão, aquelles garotos, an? Parecem verdadeiros fidalgos, não é verdade? E no entretanto estão a ser julgados... para os ensinar a não se metterem no que não é da sua conta. Ella repetiu involuntariamente a si mesma: --Estão sendo julgados... Na sala, depunham testemunhas, com vozes incaracteristicas e atabalhoadas; os juizes iam sempre interrogando, indifferentes e mal humorados. O juiz gordo bocejava, dissimulando a bôca sob a mão inchada de cieiro; o seu collega dos bigodes ruivos tornára-se ainda mais lívido; por vezes, erguia o braço, premia fortemente uma das fontes com um dedo, e ficava-se a fitar o tecto com o olhar morto. De vez em quando, escrevia o procurador algumas linhas a lapis e depois recomeçava a cochichar com o marechal da nobreza. O administrador cruzára as pernas e tamborilava n’uma dellas, com o olhar fixado com gravidade no movimento dos dedos. Com o ventre descansando-lhe nos joelhos e sustentando-o prudentemente entre as duas mãos, o syndico do bailiado quedára-se de cabeça pendida; parecia ser elle o unico a escutar o murmurio monotono das vozes, além do velho, enterrado na poltrona e immovel como um catavento quando não sopra a brisa. Durou isto muito tempo e de novo o aborrecimento se apoderava do auditório. Pélagué sentia que a justiça, a justiça implacavel que põe friamente as almas a descoberto, que as examina, que tudo vê e tudo aprecia com os olhos incurruptiveis e tudo pesa com mão leal, não tinha ainda dado entrada n’aquella sala. Nada via por emquanto que a amedrontasse com uma manifestação de força ou de majestade. Rostos descoloridos, olhos sem brilho, vozes fatigadas, o indifferentismo tristonho d’uma tarde de outono, eis tudo o que presenceava. --Declaro... disse o velho com clareza; e em seguida, depois de ter abafado o resto da frase entre os delgados labios, ergueu-se. Logo a sala se encheu de rumores, suspiros, exclamações suffocadas, accessos de tosse e arrastar de pés. Os réus foram conduzidos para fóra do pretorio; ao saírem, faziam signaes com a cabeça e sorriam-se para parentes e amigos. Ivan Goussef chegou mesmo a gritar com affabilidade para quem quer que fôsse: --Não te deixes intimidar, camarada! Pélagué e Sizof saíram para o corredor. --Queres vir ao bufete, tomar chá? perguntou sollícito o velho operário. Temos hora e meia para esperar. --Não, obrigada. --Bem, então tambem eu não vou. Viste os rapazes, an? Falam como se elles fôssem os verdadeiros homens e os outros coisa nenhuma! Ouviste o Fédia, an? De bonné na mão, vinha chegando n’este momento o pae de Samoílof. Com um sorriso triste, perguntou: --Que dizem do meu filho? Não quiz advogado e recusa-se a responder... Foi elle que teve a idéa. O teu filho era pelos advogados, Pélagué; o meu disse que não os queria. E houve quatro que lhe seguiram o exemplo. A mulher esteve ao lado d’elle. Piscava de contínuo os olhos e limpava o nariz com a ponta do lenço. Samoílof reuniu na mão toda a barba, n’um punhado, e continuou: --Outra coisa que me dá que pensar: quando a gente olha para aquelles demónios, parece que elles fizeram tudo aquillo inutilmente, que comprometteram a sua vida sem necessidade e, de repente, fica-se a scismar se elles não terão razão... E é bom não esquecer que lá na fabrica, o partido d’elles aumenta continuadamente. De vez em quando, prendem-nos; mas nunca os apanham a todos, assim como nunca se apanham os peixes todos d’um rio! E a gente fica sempre a perguntar com os seus botões: «Quem sabe se elles dizem a verdade!» --Para nós, é difficil compreender esta questão! declarou Sizof. --Sim, é certo! acquiesceu o outro. A mulher interveio então, depois de ter respirado com ruido: --Parece que estão todos de perfeita saúde, estes malditos juizes!... E continuou, com um sorriso no seu rosto emmurchecido: --Não estejas zangada, Pélagué, por eu te dizer ha bocado que o Pavel era o culpado de tudo!... Para falar com franqueza, nem a gente sabe qual é o mais culpado! Ouviste o que os espiões e os policias contaram do nosso filho?... Claramente se via que tinha orgulho d’aquelle filho, embora ella própria talvez nem désse por isso; mas Pélagué, que avaliava bem tal sentimento, abriu-se em bondoso sorriso. --Os corações moços andam sempre mais próximos da verdade do que os velhos! disse ella em voz baixa. Passeava-se pelo corredor; formavam-se grupos em que se discutia concentradamente, todos pensativos e animados. Ninguem se conservava afastado, toda a gente sentia a necessidade de falar, de interrogar e de escutar o que se dizia. No estreito recinto da passagem, entre as duas paredes brancas, os grupos iam e vinham, como se, impellidos por violenta rajada, procurassem apoio n’alguma coisa firme e segura. O irmão mais velho de Boukine, um grande latagão de cara envelhecida prematuramente, gesticulava, virando-se com vivacidade para todos os lados. Protestava elle: --O syndico do bailiado nada tem a ver para o caso; não está aqui no seu logar! --Cala-te, Constantino! exortava o pae, um velhinho, sempre a olhar em volta, assustado. --Não, senhor, eu quero falar! Dizem que o anno passado matou um empregado... por causa da mulher d’este! Ora que espécie de juiz vem a ser aquillo, fazem favor de me dizer? A viuva do empregado vive agora com elle!... Que havemos de concluir?... Além d’isso, toda a gente sabe que é ladrão... --Ai, meu Deus!... Constantino!... --Tens razão, sim senhor! apoiou Samoílof. Tens razão! Não é um juiz sério!... Boukine, que tudo ouvira, approximou-se rápido, levando atraz de si numeroso grupo. Muito vermelho, de excitado, entrou de falar, com grandes gestos: --Quando se trata de assassinatos ou de roubos, são os jurados que julgam, quer dizer: a gente habitual, trabalhadores, burguezes... Agora, quando se trata dos que são contra o governo, quem os julga é o próprio governo!... Isto póde ser?... --Constantino! --Mas escuta, estão elles realmente contra o governo? Vê lá, que dizes? Não, espera! O Fédia Mazine tem razão. Se tu me offenderes e eu te der uma bofetada e se tu tiveres de me julgar, com certeza é a mim que chamarás culpado; e comtudo, quem insultou? Tu! Tu! Um guarda já idoso, de nariz adunco e peito ornado de medalhas, atravessou por entre o ajuntamento e foi dizer a Boukine, ameaçando-o com o dedo: --Olá! não grites! Onde imaginas que estás? É alguma taberna, aqui? --Queira perdoar, cavalheiro... Eu percebo bem. Ora escutem: se eu bater em alguem e esse alguem me retribuir as pancadas e se eu tiver de julgal-o depois, como é que podem imaginar... --Olha que te faço saír! disse o guarda severamente. --Saír? para onde? Porquê? --Para a rua! Que é para não berrares! Boukine circumvagou o olhar pelo auditório e commentou a meia voz: --Para elles, o essencial é que estejamos calados. --Ainda não o sabias? replicou o velho com rudeza. O outro baixou a voz. --E depois, porque é que o publico não póde assistir ás audiencias, mas tão somente os parentes? --Se ha justiça nos julgamentos, é para serem presenceados por todos! De que teem medo? E Samoílof apoiou, mas com mais vehemencia: --Isso é verdade! Estes tribunaes não satisfazem a consciencia pública. Pélagué desejava tambem repetir o que Nicolao lhe dissera ácerca da illegalidade do julgamento; mas não o havia compreendido bem e esquecera em parte as expressões empregadas por Nicolao. Para tentar rememoral-as, afastou-se da multidão e viu um rapaz de bigode loiro a observal-a. Trazia a mão direita mettida na algibeira das calças, o que fazia com que parecesse ter o hombro esquerdo mais baixo do que outro. Esta particularidade lembrou-se Pélagué que já era sua conhecida. Mas o homem virou-lhe as costas e, cançada do seu esforço de memoria, Pélagué logo se esqueceu d’elle. Instantes depois, distinguia um fragmento de conversa em segredo: --Aquella? Á esquerda? E alguem respondeu mais alto, com expansão: --Essa mesma. Olhou. O homem dos hombros de desigual altura estava ao lado d’ella e conversava com o seu visinho, um homem corpulento de barba preta, com umas enormes botas e casaco curto. Estremeceu. Ao mesmo tempo, sentia o desejo de falar nas crenças de seu filho, para ouvir as objecções que lhe pudessem apresentar e calcular a decisão do tribunal pelas opiniões dos que a rodeavam. --É isto por ventura fórma de julgar? começou ella a meia voz, prudentemente, dirigindo-se a Sizof. Não compreendo isto. Os juizes só tratam de averiguar o que fez cada um d’elles, mas não perguntam porque o fez. Será isto justo? diga lá! E são todos elles velhos! Para julgar gente nova são precisos homens novos! --Sim! disse Sizof. Torna-se-nos difficil compreender todo este negocio... muito difficil! E abanava a cabeça, pensativo. N’isto, o guarda abriu a porta da sala e gritou: --Entrem os parentes! Mostrem os seus bilhetes. Uma voz de mau humor commentou: --Os bilhetes... como no circo!... Sentia-se agora uma irritação geral e mal contida, uma colera vaga. Os curiosos manifestavam maior semceremonia do que pouco antes, faziam barulho, discutiam com os guardas. XXV Sizof retomou o seu logar resmungando. --Que tens? perguntou-lhe Pélagué. --Não tenho nada! O povo é estupido... Não sabe nada, vive ás apalpadellas. Resoou uma campainhada. Alguem annunciou com indifferença: --O tribunal! Todos se puzeram novamente de pé, como da primeira vez. Os juizes entraram pela mesma ordem e sentaram-se. Foram introduzidos os accusados. --Attenção agora! segredou Sizof. Vae falar o procurador. Pélagué estendeu o pescoço e toda se inclinou para a frente, immobilisada na espectativa do terrivel acontecimento imminente. De pé, virando a cabeça para o lado dos juizes, o procurador soltára um suspiro e entrára a falar, agitando a mão direita. Pélagué não percebeu as suas primeiras palavras. A voz do orador era facil e grossa, mas, tão depressa lhe affluia com rapidez, como afroixava. As palavras iam-se seguindo primeiro como em larga fita uniforme, depois, voavam, redemoinhavam, tal um enxame de negras moscas sobre um torrão d’assucar. Mas n’essas palavras não via Pélagué coisa alguma ameaçadora ou terrificante. Frias como neve, indecisas como cinza, iam-se succedendo e enchiam a sala de aborrecimento, de alguma coisa horripilante como uma poeira fina e sêcca. O discurso, abundante em palavras e falho de idéas, não chegava provavelmente aos ouvidos de Pavel e dos seus companheiros, os quaes, sem mostrarem a menor preoccupação, continuavam socegadamente a conversar entre si. Umas vezes, sorriam, outras, faziam-se muito sérios para conterem o sorriso. --Está mentindo! declarou Sizof baixinho. Pélagué não saberia dizer ao certo se assim era. Escutava o que elle dizia e compreendia que estava accusando toda a gente, sem se referir directamente a ninguem. Quando citava o nome de Pavel, punha-se a falar de Tédia; em seguida, depois de ter reunido estes, juntava-lhes Boukine. Dir-se-ia que mettia todos os accusados no mesmo sacco, apertados uns contra os outros. Mas o sentido externo das suas palavras não satisfazia Pélagué, como tambem não a perturbava nem mesmo impressionava. Comtudo, continuava esperando o pormenor terrivel, e procurava-o obstinadamente sob aquelle fluxo de palavras, no rosto do procurador, nos olhos, na voz, na mão muito branca que elle balanceava com lentidão. E sentia que estava ali, n’aquelle homem, a coisa assustadora, indefinivel e incompreensivel. De novo se lhe confrangeu o coração. Olhou para os jurados: o discurso estava-os claramente enfadando. Os seus rostos macillentos, terrosos, inanimados, não apparentavam expressão alguma; eram quaes manchas cadavéricas e immoveis. E aquellas faces, umas de nutrição enfermiça, outras, demasiado magras, sumiam-se cada vez mais em meio do cansaço que invadia a sala. O presidente não fazia um só movimento, estatico e hirto; por vezes, as manchasinhas pardacentas que lhe appareciam por detraz dos vidros dos oculos, sumiam-se-lhe na palidez do rosto. Perante esta indifferença glacial, esta frieza tíbia, Pélagué a si própria perguntava com desasocego: --Estarão elles verdadeiramente a julgar? De repente, como de improviso, terminou o procurador o seu libello. O magistrado inclinou-se perante os juizes, a esfregar as mãos. O marechal da nobreza fez-lhe com a cabeça um signal, ao mesmo tempo que rebolava as pupillas. O administrador da communa estendeu-lhe a mão e o syndico contemplou o seu abdomen, risonho. Mas via-se que os juizes não haviam ficado satisfeitos com o procurador: não tinham feito um só movimento. --Cão tinhoso! resmungou Sizof. --Tem a palavra... disse o velhinho, erguendo um papel até junto do rosto. Tem a palavra o defensor de... Fédossief, Markof, Zagarof. Levantou-se então o advogado que Pélagué vira em casa de Nicolao. Tinha uma cara cheia e aspecto bonacheirão; os olhinhos irradiavam, parecia ter nas orbitas dois pontos acerados, a cortarem no ar qualquer coisa, como laminas de tesoura. Entrou a falar sem pressa, em voz nítida e sonora; mas Pélagué não poude escutar o que dizia. Sizof segredava-lhe de lado: --Percebeste o que elle disse? Diz que são uns doidos, uns garotos de genio brigão. É do Fédia que elle quer falar! Acabrunhada pela sua cruel decepção, Pélagué não respondeu. Sentia-se mais e mais humilhada, e esta humilhação opprimia-lhe a alma. Compreendia agora porque esperava em vão a justiça, porque se enganara pensando assistir a uma discussão leal e séria entre a verdade que seu filho proclamava e a dos juizes. Imaginára que os juizes iam interrogar Pavel, demoradamente e com attenção, sobre a sua vida; que examinariam com olhos perspicazes todas as idéas, todos os actos de seu filho, e o emprego de todos os seus dias, e que, reconhecendo a sua hombridade, haviam de declarar convictamente: «Este homem tem razão.» Mas nada d’isso succedia. Era para crêr que os accusados e os juizes estivessem a cem leguas uns dos outros e ignorassem mutuamente as suas existencias. Fatigada pela tensão da espectativa, Pélagué deixára de acompanhar o debate. Pensava de si para comsigo, melindrada: --É então assim que se julga? O julgamento... E pareceu-lhe vazia e sem sentido esta palavra; soava como um vaso de barro, quebrado. --É bem feito! murmurou Sizof, approvando com a cabeça. --Parece que estão mortos, aquelles juizes! disse ella. --Elles já voltam a si! E com effeito, tornando a olhar para elles, viu-lhes nos rostos uma expressão de desasocego. Era outro advogado que falava, um homensinho de cara de fuinha, lívido e irónico. Os juizes interromperam-no logo. O procurador levantou-se de chofre e em voz rápida e zangada, ameaçou-o com uma autoação; depois, conferenciou com o velhinho. O advogado ficou-os escutando, com a cabeça respeitosamente inclinada; em seguida, proseguiu no uso da palavra. --Vae catando! vae catando! aconselhou Sizof. Vê se descobres onde está a alma!... Na sala crescia a animação; começava a nascer uma exaltação batalhadora. O advogado atacava os juizes por todas as fórmas, aguilhoava-lhes as carcomidas epidermes com ditos causticos. Os juizes parecia apertarem-se mais uns contra os outros, incharem e fazerem-se mais corpulentos, para resistirem áquelle chuveiro de piparotes, com toda a massa dos seus corpos amollentados e nullos. Pélagué examinava-os; pareciam intumecer cada vez mais, como se receassem que os botes do advogado lhes fizessem vibrar dentro do peito um eco capaz de lhes perturbar a soberana indifferença. Pavel pôz-se de pé. Estabeleceu-se súbito silencio. A mãe inclinou para a frente todo o corpo. Tranquillamente, Pavel declarou: --Pertencendo eu a um partido, só reconheço o tribunal d’esse partido. Não falo para defender-me, mas para satisfazer o desejo d’aquelles dos meus companheiros que tambem não quizeram ser defendidos. Vou tentar explicar-lhes o que os senhores não compreenderam. O procurador qualificou a nossa demonstração, sob o estandarte da democracia socialista, de revolta contra as autoridades supremas e falou constantemente de nós como de revoltados contra o czar. Devo declarar, comtudo, que, para nós, não é só o czar a grilheta a que anda amarrado o corpo da nação; o czar não é mais do que o primeiro élo d’essa cadeia, de que jurámos libertar o povo. Fizera-se mais profundo ainda o silencio, sob o império d’aquella voz varonil. A sala parecia tornar se mais vasta e Pavel afastar-se para longe do auditório, mais luminoso e inspirado. Pélagué foi tomada de uma sensação de frio. Os juizes agitavam-se pesadamente nas cadeiras, cheios de inquietação. O marechal da nobreza segredou algumas palavras ao juiz de modos indolentes; este abanou a cabeça e falou com o velhinho, a quem o juiz de aspecto doente estava tambem falando ao ouvido, do lado opposto. O presidente, vacillante na sua poltrona, para a direita e para a esquerda, dirigiu algumas palavras a Pavel, mas a voz sumiu-se-lhe no curso amplo e igual da exposição que o mancebo ia proferindo. --Somos socialistas. Significa isto que somos inimigos da propriedade particular, que promove a desunião entre os homens, os leva a armar-se uns contra os outros e cria uma rivalidade de interesses irreconciliaveis, que mente quando pretende dissimular ou justificar esta hostilidade e perverte os homens pela mentira, a hypocrisia e o ódio. Somos de opinião que a sociedade, considerando o homem unicamente como um meio de auferir riquezas, é anti-humana e torna se nos declaradamente hostil; não podemos acceitar a sua moral com duas caras, o seu cynismo sem vergonha e a crueldade com que trata as individualidades que lhe são adversas; queremos luctar, e havemos de luctar, contra todas as fórmas de subserviencia fisica e moral do homem, em uso n’esta sociedade, contra todos os métodos de fraccionar a collectividade em proveito da cubiça! Nós, os operários, somos quem pelo nosso trabalho tudo cria, desde as máquinas giganteas até aos brinquedos das crianças. E vêmo-nos privados do direito de luctar pela nossa dignidade de homens; Cada qual arroga-se o direito de nos transformar em instrumentos para attingir o seu fim! Queremos que nos dêem liberdade bastante para que se nos torne possivel, com o tempo, conquistar o poder. Quer-se o poder para o povo!... Aqui, sorriu Pavel e passou de vagar a mão pelos cabellos; a luz dos seus olhos azues brilhou com fulgor mais intenso. --Tenha a bondade... Não saia do assunto! disse-lhe o presidente em voz nítida e forte. Virava-se agora todo para Pavel e fitava-o. Pareceu a Pélagué distinguir-lhe nos olhos, até ali palidos e sem expressão, um brilho cúpido e de maldade. Todos os juizes tinham as attenções voltadas para o orador; os seus olhos pareciam colar-se-lhe, aderir-lhe fortemente ao corpo, para lhe sugarem o sangue e com elle reanimarem os seus membros exaustos. Pavel, firme e resoluto, estendeu para elles o braço e proseguiu com voz distincta: --Somos revolucionários e sêl-o-emos emquanto uns só tratarem de opprimir os outros. Havemos de luctar contra a sociedade, cujos interesses os senhores foram mandados que defendessem; a reconciliação só entre nós será possivel quando nós fôrmos vencedores. Porque havemos de ser nós os vencedores, nós, os opprimidos! Os mandatários de todos vós, senhores, não são tão fortes como se julgam. Essas riquezas que accumularam e na defeza das quaes sacrificam milhões de infelizes creaturas, essa força que lhes dá o poder sobre nós, criam entre elles alternativas de hostilidade e arruinam-nos, a elles, fisica e moralmente. A defeza do vosso poderio, senhores, exige uma constante tensão d’espirito; e, na realidade, vós, nossos senhores, sois todos mais escravos do que nós, porque são os vossos espiritos que jazem na oppressão, ao passo que nós só fisicamente somos opprimidos. Não podeis libertar-vos do jugo dos preconceitos e dos habitos, e isto mata-vos moralmente; emquanto a nós, nada nos impede que sejamos intimamente livres! E a nossa consciencia vae tomando vida, vae desenvolvendo se sem cessar; inflamma-se dia a dia e arrasta comsigo os melhores elementos, moralmente sãos, mesmo do próprio meio que é o vosso... E, se não, vêde: já não possuis ninguem que possa lutar em nome do vosso poderio contra a corrente das idéas; esgotastes já todos os argumentos capazes de vos protegerem dos ataques da justiça da história; nada mais podeis criar novo, no dominio da intellectualidade: sois uns estereis de espirito. As nossas idéas, pelo contrário, desenvolvem-se com força crescente, penetram nas massas populares e vão-nas dispondo para a lucta pela liberdade, lucta incarniçada, lucta implacavel! Não podereis travar este movimento, senão usando de crueldade e de cinismo. Mas o cinismo é evidente demais e a crueldade não faz senão irritar o povo. As mãos que hoje empregaes para nos suffocar, hão de ámanhã apertar as nossas mãos em fraterno amplexo. A vossa energia é a energia mecanica produzida pelo açambarcamento do oiro, e é essa energia que vos desune em grupos rivaes, destinados a aniquilarem se mutuamente. Emquanto que a nossa energia é a força viva e sem cessar crescente do sentimento de solidariedade que liga todos os opprimidos. Tudo o que praticaes é criminoso, porque só pensaes em escravisar o homem; o nosso empreendimento, esse, liberta o mundo dos monstros e fantasmas criados pelas vossas mentiras, pela vossa cupidez, pelo vosso ódio! Mas, em breve, a grande massa dos nossos artifices e camponezes ha de ser liberta e ha de criar um mundo livre, harmonioso e immenso. E assim ha de ser! Calou-se Pavel um instante e depois repetiu ainda com mais força: --E assim ha de ser! Os juizes cochichavam, com caretas estranhas, sem desviarem os olhos de Pavel. A mãe pensava de si para comsigo, que aquelles olhares infamavam o corpo vigoroso de seu filho, cuja saúde e fresca mocidade invejavam. Os réus tinham escutado attentos as palavras do seu companheiro. Pálidos ao principio, tinham agora nos olhares uma chamma de alacre contentamento. Pélagué devorára as frases de seu filho; gravavam-se lhe todas profundamente na memória. O velhinho por diversas vezes interrompeu Pavel, para lhe explicar ninguem saberia dizer o quê, d’uma das occasiões, esboçou até, um sorriso triste. Pavel escutava-o em silencio e logo retomava a palavra com voz severa mas serena. Todas as attenções convergiam para elle. Durou isto muito tempo. Por fim, o presidente gritou algumas palavras, ao mesmo tempo que estendia o braço na direcção do mancebo. Este respondeu em tom levemente ironico: --Eu vou concluir. Não foi idea minha offender pessoalmente os membros d’este tribunal, bem ao contrário: forçado a assistir a esta comédia a que chamaes uma audiencia, chego a sentir compaixão pelos senhores. A despeito de tudo, os senhores são homens e é sempre para nós uma humilhação ver homens, curvarem-se de tão vil maneira ao serviço da violencia e perderem a tal ponto a consciencia da sua dignidade humana... mesmo quando esses homens se mostram hostis aos nossos intentos... E sentou-se sem olhar para os juizes. A mãe conteve a respiração, fitando, anelante, aquelles de quem dependia a sorte de seu filho, e esperou. André, radiante, apertou vigorosamente a mão de Pavel. Samoílof, Mazine e todos os outros voltaram-se para elle. Pavel sorriu, um tanto constrangido pelo entusiasmo dos seus companheiros e olhando para a bancada em que se encontrava Pélagué, fez-lhe um signal de cabeça, como para perguntar: --Foi bem, assim? Ella respondeu-lhe com profundo suspiro de contentamento, fremente, inundada por uma ardente vaga de amor. --Ahi está! Vae começar o julgamento! segredou-lhe Sizof. O teu filho deixou-os em bonito estado, an? Ella abanou a cabeça sem responder, satisfeita de ter ouvido o filho falar com tal desassombro e talvez mais satisfeita ainda por elle ter terminado o discurso. Martelava-lhe no cérebro uma idéa fixa: --Meus filhos! que vae ser de vocês? O que seu filho dissera não era novo para ella; conhecia bem as suas opiniões; mas, fôra ali, perante aquelle tribunal, que pela primeira vez sentira a força convincente e extraordinaria das suas teorias. Impressionava-a a serenidade do mancebo, e no seu intimo, o discurso de Pavel aliava-se á firme convicção da victoria e dos justos direitos de seu filho, que lhe punham na alma a irradiação d’uma estrella. XXVI Julgava ella que os juizes iam discutir severamente com elle, replicar-lhe coléricos, e expôr os seus argumentos. Mas n’isto, levantou-se André, lançou um olhar de soslaio para o tribunal e começou: --Senhores defensores. --Quem o senhor tem na sua presença é o tribunal e não a defeza! gritou-lhe o juiz doente, com força, muito irritado. Pélagué percebia pela fisionomia de André que o que elle queria era gracejar; o bigode tremia-lhe de riso mal contido, e nos olhos, tinha uma expressão ao mesmo tempo felina e meiga, bem conhecida d’ella. Esfregou vigorosamente a cabeça com as compridas mãos e suspirou. --Pois é possivel? perguntou, ao mesmo tempo que saccudia a cabeça. Eu julgava que não era assim, que os senhores eram, não juizes, mas unicamente defensores!... --Queira fazer favor de se referir somente ao assunto principal! intimou o velhinho com seccura. --O assunto principal? Está bem. Quero pois crêr que os senhores são realmente juizes, isto é: pessoas independentes, leaes... --O tribunal não precisa da sua opinião! --Como? Não precisa d’um elogio d’estes!... Hum!... Todavia, eu continúo. Os senhores são homens que não estabelecem differença alguma entre amigos e inimigos, os senhores são inteiramente livres no seu juizo. Assim, teem agora na sua frente dois partidos: um queixa-se de que o roubam e o maltratam; o outro responde que tem o direito de roubar e de maltratar porque traz na mão uma espingarda. --Tem alguma coisa a dizer concernente ao processo? perguntou o velhinho, alteando a voz e com as mãos a tremer. Esta irritação satisfazia immenso Pélagué. Mas a fórma de proceder de André não lhe agradava; achava a discordante do discurso de Pavel. Preferia ouvir travar-se uma discussão séria e ponderada. O russo-menor fitou o velho, sem responder; em seguida, disse com gravidade: --O processo?... Para que lhe havia eu de falar do processo? O meu companheiro disse-lhes o que os senhores deviam saber já! O resto, outros lho dirão quando chegar o momento opportuno... O velhinho sobreergueu-se da poltrona e declarou: --Retiro-lhe a palavra!... Gregorio Samoílof! O russo-menor apertou com força os dentes e deixou-se caír pesadamente no banco. Ao lado d’elle, Samoílof pôz-se de pé, saccudindo os anneis do cabello. --O procurador disse que nós eramos uns selvagens, inimigos do progresso... --Fale só do que diz respeito á sua accusação! --Mas é justamente o que estou fazendo!... Não deve haver coisa alguma que não interésse á gente honesta... E peço-lhe o obsequio de não me interromper. Assim, pergunto eu aos senhores: qual vem a ser o grau das suas culturas intellectuaes? --Não estamos aqui para discutir comsigo! Voltemos ao assunto! disse o velho, mostrando rancorosamente os dentes. Os gracejos de André haviam manifestamente irritado os juizes e como que lhes tinham supprimido o que quer que fôsse das fisionomias. Agora, nos rostos terrosos, appareciam-lhes manchas sanguineas, brilhavam-lhes os olhares com scintillações frias e implacaveis. O discurso de Pavel tambem os havia encolerisado, mas o tom de energia em que fôra dito, reprimira-lhes o rancor e forçára-lhes o respeito. O russo-menor, porém, conseguira quebrar esta contenção e puzera a descoberto o que sob ella se occultava. Com crispações nas fisionomias, os juizes segredavam entre si, tinham gestos mais saccudidos, denunciadores da raiva que lhes ia no íntimo. --Os senhores educam espiões, pervertem mulheres e donzellas, collocam o homem sério na situação d’um gatuno, d’um assassino, envenenam-no com a aguardente, deixam-no apodrecer nas masmorras!... As guerras internacionaes, a mentira, o deboche, o embrutecimento de todo o paiz--aqui está a vossa civilisação! Sim, somos inimigos de tal civilisação! --Tenha a bondade!... gritou o velhinho, saccudindo ameaçador o queixo. Samoílof, rubro, o olhar em fogo, entrou a gritar ainda mais alto do que elle. --Mas a civilisação que nós amamos e respeitamos é a outra, a que foi criada pelos que vós atirastes para as masmorras ou para os hospitaes de doidos... --Retiro-lhe a palavra!... Fédia Mazine! O rapazinho levantou-se de chofre, como uma sovela a saír d’um furo e exclamou com voz saccudida: --Eu... juro!... Eu bem sei, os senhores vão condemnar-nos! Suffocou; fez-se branco, só se lhe viam os olhos, muito brilhantes. Estendeu o braço e proseguiu: --Dou-lhes a minha palavra d’honra! Mandem-me para onde quizerem, que eu hei-de fugir, hei de voltar, hei-de dedicar-me sempre pela causa do povo... pela liberdade da nação... toda a minha vida! Dou-lhes a minha palavra d’honra! Sizof soltou um gritinho. Toda a assistencia, revolucionada por vaga excitação, se mexia com um ruido surdo e singular. Chorava uma mulher; alguem tossia, suffocando. Os guardas, alternadamente olhavam para os réus com um espanto estupido e para a multidão do público, furiosos. Os juizes agitaram-se; o velho gritou: --Goussef Yvan! --Não falo! --Goussef Vassili! --Não quero responder! --Bouckine Fédor! Loiro e meio descorado, ergueu-se pesadamente e disse com lentidão, meneando a fronte: --Os senhores deviam envergonhar-se!... Eu, que não passo d’um ignorante, compreendo ainda assim o que deve ser a justiça! Levantou o braço acima da cabeça e calou-se, com as palpebras semi-cerradas, como se estivesse vendo qualquer coisa muito ao longe. --Que diz? gritou o velho com attónito exaspero, reclinando-se na poltrona. Olhe que você!... Boukine deixou-se caír no banco tristemente. Havia nas suas palavras desacompanhadas de significação, alguma coisa immensa e importante, e ao mesmo tempo uma censura ingénua e penalisada. Foi esta a impressão que todos receberam. Os próprios juizes apuraram o ouvido, como para distinguirem um éco mais nitido de tal discurso. Nas bancadas reservadas ao público, tudo se calou; apenas ficou resoando um leve ruído de chôro. Depois sorriu-se o procurador e encolheu os hombros; o marechal da nobreza tossiu; de novo se elevaram susurros que serpenteavam vagamente pela sala. Pélagué inclinou-se para Sizof e perguntou-lhe: --Os juizes falarão? --Não; está tudo terminado. Só falta pronunciar o veredicto. --E não ha mais nada? --Não! Pélagué não podia acreditar. A mãe de Samoílof agitava-se anciosamente, tocando em Pélagué com o cotovello e com o hombro, e perguntando em voz baixa ao marido: --Mas, como? É possivel? --Bem vês! --E o que é que vão fazer ao nosso filho? --Cala-te! Deixa-me! --Percebia-se que no público alguma coisa se havia perdido, anniquilado ou transformado. Os olhos desvairados, pestanejavam como se ardente lareira se lhes tivesse incendiado na frente. Embora não compreendessem o grande sentimento que acabava de despontar n’elles tão bruscamente, os curiosos iam, sem dar por isso, fragmentando-o em sensações evidentes, accessiveis e futeis. O irmão de Boukine dizia a meia voz, sem constrangimento algum: --Perdão! Porque não os deixam falar? O procurador disse tudo o que quiz e durante todo o tempo que quiz! Perto da bancada estava uma sentinella. O soldado murmurava, agitando o braço: --Silencio! silencio! O pae de Samoílof inclinou-se para traz, e, disfarçado com as costas da mulher, continuou a pronunciar em voz surda frases entrecortadas: --Evidentemente!... Admittindo que elles sejam culpados, o dever do tribunal era deixal-os explicar-se... Contra quem se revoltaram elles? Contra tudo! Eu gostava de compreender, afinal! Porque isto tambem me interessa... De que lado está a verdade? Sim, eu queria compreender... É preciso que os deixem explicar-se! --Silencio! gritou de novo a sentinella, ameaçando-o com um dedo. Sizof abanava a cabeça, apouquentado. Pélagué não perdia de vista os juizes. Notava-lhes a crescente excitação, via-os falar uns com os outros, mas não podia comprehender o que diziam. O susurro frio e escorregadio das suas vozes perpassava-lhe pelo rosto, fazia-lhe tremer nervosamente as faces e provocava-lhe na bôca uma sensação desagradavel. Afigurava-se-lhe que estavam falando todos elles do corpo de seu filho e do dos seus companheiros, d’aquelles corpos robustos, dos seus músculos e dos seus membros cheios de vermelho sangue e de força vivente. Estes corpos deviam excitar n’elles uma inveja impotente e malvada, uma avidez ardente de esgotados e doentes. Falavam com estalidos sêcos dos lábios, com o pezar de não possuirem aquelles músculos, capazes de trabalhar e de enriquecer, de gozar e de criar. Agora, iam aquelles corpos saír da circulação activa da vida, renunciavam a ella, ninguem poderia mais chamar-lhes seus, aproveitar a sua força, nem absorvel-os. E era por isso que inspiravam aos velhos magistrados a animosidade vingativa e desconsolada das feras já sem forças que teem diante de si a carne fresca, mas já não dispõem da energia sufficiente para d’ella se apoderarem. E quanto mais Pélagué olhava para elles, mais esta idéa grosseira e singular se accentuava no seu espirito. Parecia-lhe que estavam patenteando claramente a sua rapacidade e a sua sanha de esfomeados, capazes, em tempos idos, de comer muito. Ella, a mulher e mãe, para a qual o corpo do filho tinha sido sempre e a despeito de tudo, mais querido do que a própria alma, sentia-se horrorisada com os olhares sem viço que perpassavam pelo rosto d’elle, tateando o peito, os hombros, os braços, roçando-se pela ardente pelle, como em busca de uma possibilidade de se reanimarem, de requentarem o sangue das suas veias endurecidas, dos seus músculos gastos de homens semi-mortos. Parecia a Pélagué que o seu filho sentia aquelles contactos frios e que estremecia quando para ella olhava. O mancebo fixava em sua mãe os olhos um tanto fatigados, mas calmos e affectuosos. Por momentos, sorria-lhe e fazia-lhe um signal de cabeça. --Em breve estarei em liberdade! dizia este sorriso, que era uma caricia para o coração de Pélagué. N’este comenos, levantaram-se os juizes todos ao mesmo tempo. Pélagué seguiu-lhes instinctivamente os movimentos. --Vão-se embora! disse Sizof. --Para os condemnar! perguntou ella. --Sim... Dissipára-se de súbito a tensão de espirito em que até ali estivera; pesado cansaço lhe invadiu o corpo; aljofraram-lhe a fronte gotas de suor. Um sentimento de cruel decepção e de humilhação impotente brotou no seu coração e depressa se transformou em profundo desprezo pelos juizes e pelo seu julgamento. Assaltou-a violenta dôr nas fontes; esfregou a testa com a palma da mão e olhou em torno: os parentes dos réus tinham-se approximado do gradeamento, a sala enchia-se de um ruído surdo de conversações. Ella caminhou tambem para o filho, apertou-lhe a mão e entrou a chorar, tomada a um tempo, de desgosto e de contentamento. Pavel dirigiu-lhe algumas palavras de confôrto. André ria e gracejava. Mais por hábito do que por desgosto, todas as mulheres choravam. O que se sentia não era aquella dôr que atordoa como estúpido golpe descarregado bruscamente na cabeça: tinha-se a consciencia da triste necessidade de abandonar os filhos, mas esta magua confundia-se, sumia-se nas impressões que eram filhas da opportunidade. Os paes olhavam para os filhos com uma expressão em que a desconfiança que lhes era inspirada pela mocidade e pela consciencia da propria superioridade, se confundia singularmente com uma espécie de respeito por elles. Ao mesmo tempo que a si próprios perguntavam com tristeza como passariam elles agora a viver, os velhos olhavam com curiosidade para aquella nova geração que discutia audaciosamente a possibilidade d’uma existencia differente d’aquella e melhor. Não sabiam exprimir o que sentiam, pois faltava-lhes para tanto o hábito; as palavras corriam abundantes, das bôcas, mas não se falava mais do que de coisas vulgares, de fatos e roupas, de cuidados necessarios; aconselhavam até os condemnados a não irritarem inutilmente os superiores. --Todos andamos cansados d’isto! disse Samoílof ao filho. Nós tanto como elles! O mais velho dos Boukine agitava a mãe e exortava o mais novo: --Ahi está a justiça d’essa gente! Custa acceital-a! O rapaz respondeu: --Has de tratar bem do estorninho, sim?... Gostava tanto d’elle! --Ainda ha de ser vivo quando voltares! Sizof tomára pela mão o sobrinho e dizia com vagar: --Então foi assim que tu fizeste, Fédia? Foi assim? Fédia curvou-se para elle e segredou-lhe o que quer que fôsse ao ouvido, com um riso de esperteza. O soldado que lhes estava próximo sorriu tambem, mas logo retomou os seus ares de gravidade e resmungou. Pélagué limitava-se, como os outros, a conversar ácerca de arranjos de roupas e cuidados de saúde, mas no coração reprimia mil interrogações relativas a Pavel, a Sachenka e a si própria. E sob as suas palavras banaes, lentamente se desenvolvia o sentimento de immenso amor que dedicava ao filho, o ardente desejo de o captivar, de viver no seu coração. A espectativa do acontecimento terrivel desapparecera, deixando unicamente, apóz si, um arrepio desagradavel, quando se lembrava dos juizes, agora ausentes. Sentia nascer em si uma intensa alegria luminosa, mas não a compreendia e isto trazia-a perturbada. Viu que o russo-menor falava muito com todos os que o rodeavam, e entendendo que elle, mais do que Pavel, precisava de confôrto, disse-lhe: --Não me agradou a audiencia! --Porquê, mãesinha?! exclamou André. É um moinho velho, mas vae sempre moendo! --É uma coisa, afinal, que não mette medo algum, e é incompreensivel! Nem ao menos se procura averiguar a verdade! disse ella hesitante. --Oh! Era isso o que queria? exclamou André. Mas então imagina que alguem se importa aqui com a verdade? Pélagué suspirou. --Eu imaginava que isto fôsse coisa muito séria... mais séria ainda do que na igreja!... Que se celebrava o culto da verdade!... --Querida mãe: onde a verdade é respeitada sabemol-o nós! disse Pavel em voz baixa e no tom de quem perguntasse sem affirmar. --E a mãesinha tambem o sabe! acrescentou o russo-menor. --O tribunal! Correram todos para os seus logares. Com uma das mãos apoiada na mesa, o presidente occultou a cara por detraz d’um papel e pôz-se a ler com uma voz debil qual zumbido: «O Tribunal... depois de ter deliberado...» --É a condemnação! disse Sizof, apurando o ouvido. Fez-se silencio. Todos se haviam posto de pé, com os olhos fitos no velhinho. Sêcco e hirto, assemelhava-se este a um cacete sobre o qual mão invisivel se apoiasse. Os juizes estavam tambem de pé; o syndico do bailiado, com a cabeça pendente no hombro, dirigia o olhar para o tecto; o administrador da communa cruzava os braços no peito; o marechal da nobreza afagava a barba. O juiz com cara de doente, o seu collega barrigudo e o procurador, olhavam todos na direcção dos accusados. E por detraz dos juizes, por cima das suas cabeças, apparecia o czar, de uniforme encarnado. Um insecto ia-lhe marinhando pela cara, pálida e indifferente; uma teia d’aranha balouçava ao vento. «são condemnados a deportação para a Sibéria»... --O degredo! disse Sizof com um suspiro de alivio. Finalmente, já passou, Deus louvado! Muita gente esperava os trabalhos forçados. Isto assim, já não é tão mau, tiasinha; não vale mesmo nada! --Eu já o adivinhava, disse Pélagué baixinho. --Assim como assim, agora é certo!... Mas vá lá a gente saber, com uns juizes d’estes! Voltou-se para os condemnados, a quem faziam já abandonar o pretorio, e disse alto: --Até á vista, Fédia!... Até á vista, vocês todos! Que Deus os proteja! Pélagué fez um signal de cabeça a Pavel e aos seus companheiros. A sua vontade era chorar, mas conteve-a uma espécie de vergonha. XXVII Ao sair do tribunal, ficou Pélagué admiradissima com vêr que já a noite caíra sobre a cidade, os candieiros das ruas accesos; as estrellas scintillando no céu. Nas circumvisinhanças do palácio da justiça, formavam-se pequenos agrupamentos; na gélida atmosfera, ouvia-se o ruído da neve rangendo sob o andar; vozes de gente nova interpellavam-se mutuamente. Approximou-se de Sizof um homem coberto com um capuz cinzento e perguntou em voz rápida: --Qual foi a sentença? --O degredo. --Para todos elles? --Para todos... --Obrigado! O homem afastou-se. --Bem vês! disse Sizof á mãe de Pavel. Bem vês como isto os interessa. De súbito, encontraram-se cercados por uma dúzia de rapazes e raparigas. Entraram a chover as exclamações, que attraíam ainda mais gente para o grupo. Sizof e Pélagué tiveram de parar. Todos queriam conhecer a sentença, saber como se tinham comportado os réus, quem tinha pronunciado discursos e sobre que assunto. E em todas estas perguntas vibrava a mesma nota de curiosidade ávida e sincera. --É a mãe do Pavel Vlassof! gritou uma voz. Calaram-se todos á uma. --Permitta que lhe aperte a mão! E logo uma mão sólida se lhe apoderou da sua, com vigor. A mesma voz continuou, trémula de entusiasmo: --O seu filho será para nós todos um nobre exemplo! --Viva o operariado russo! gritou uma voz vibrante. --Viva a revolução! --Morra a autocracia! Multiplicavam-se os brados, cada vez mais violentos; rebentavam pelo ar, cruzando-se; accudia gente de todos os lados e apinhava-se em torno de Sizof e Pélagué. Os apitos dos policias rasgavam o ar, mas sem conseguirem dominar o borborinho. O velho ria. Quanto a Pélagué, parecia-lhe tudo aquillo um bello sonho. Sorria, apertava centenas de mãos, cumprimentava. Comprimiam-lhe a garganta lagrimas de felicidade; vergavam-lhe as pernas de cansadas, mas o seu coração, transbordando de triumfante alegria, reflectia as suas impressões como o claro espelho da água d’um lago. Perto d’ella, uma voz clara exclamou em tom enervado: --Companheiros! amigos! O monstro que devora o povo russo, satisfez hoje mais uma vez os seus appetites!... --Vamo-nos embora! disse Sizof. N’esse mesmo instante, appareceu Sachenka. Agarrou Pélagué por um braço e puxou-a para o passeio opposto, aconselhando: --Venha... A policia póde atirar-se para cima de nós e bater-nos... Ou vão prender-nos... E então? Foi o degredo, não foi? Para a Sibéria? --Sim, é verdade!... --E elle que fez? Falou? Eu já sei tudo, afinal... É elle o mais valoroso tambem, é certo! É sensivel e terno, mas sempre se acanha quando tem de manifestar os seus sentimentos. É firme e resoluto como a própria verdade!... É um grande homem, e tudo reside n’elle... tudo! Mas a maior parte das vezes, elle próprio se constrange... com o receio de não se entregar todo elle, d’alma e coração, á causa do povo... Eu sei-o bem! Estas palavras d’amor, segredadas em um desabafo de paixão, acalmaram Pélagué, reanimando-lhe as desfallecidas forças. --Quando vae encontrar-se com elle? perguntou á rapariga, em voz baixa e affectuosa, puxando-a muito para si. Sachenka respondeu, com o olhar fito na sua frente, e com tranquilla decisão: --Tão depressa encontre quem se encarregue do meu trabalho! Porque em breve me tocará a vez de responder em juizo... Hão de mandar-me tambem para a Sibéria. Direi então que desejo ser deportada para o sitio em que elle estiver... Por detraz das duas mulheres ouviu-se então a voz de Sizof: --Faça-lhe os meus cumprimentos!... Chamo-me Sizof. Elle conhece-me: sou tio do Fédia Mazine. Sachenka parou para se voltar e estender-lhe a mão: --Eu conheço o Fédia. O meu nome é Sachenka. --E o seu nome de familia? Ella lançou-lhe um breve olhar, e respondeu: --Não tenho familia. Já não tenho pae. --Morreu? --Não, está vivo! declarou já excitada. E alguma coisa obstinada, teimosa, lhe vibrou na voz e transpareceu nas feições. É um proprietario rural, e é chefe do districto. Agora, rouba a gente do campo... e maltrata-a! --Ah! proferiu Sizof arrastadamente. E apóz silencio, ajuntou, ao mesmo tempo que examinava a rapariga de soslaio: --Bem, então, adeus, tiasinha! Eu vou por aqui!... Apparece para tomar chá e cavaquear um pedaço... quando quizeres!... Até mais vêr, minha menina!... A menina é muito severa para com o seu pae!... Está claro que isso é lá comsigo!... --Se seu filho fôsse um homem inutil, prejudicial aos outros, o senhor dizia-o? exclamou Sachenka, com paixão. --Dizia, sim, senhora! respondeu o velho, depois de hesitar um momento. --Por consequencia, a verdade merecer-lhe-ia mais apreço do que o seu filho. Pois a mim merece-me mais apreço do que o meu pae... O outro abanou a cabeça, e em seguida, suspirando: --Ah! é astucioso, sim, senhora! Se tem assim resposta para tudo, os velhos não pódem resistir-lhe! Sabe atacar pela certa! Até mais vêr! Desejo-lhe todas as felicidades possiveis... Mas seja mais condescendente com as pessôas sim? Que Deus vá comsigo! Adeus, Pélagué! Se falares com o Pavel, diz-lhe que ouvi o seu discurso... Não percebi tudo... Até me metteu medo em certas occasiões, mas o que elle disse é a verdade! Ergueu o bonné e desappareceu, sem se apressar, na volta da esquina. --Deve ser um bom homem! observou Sachenka, seguindo-o com olhar risonho. Parecia a Pélagué vêr no rosto da sua companheira expressão mais meiga e melhor do que de costume... Chegadas a casa, sentaram-se no canapé, muito uma á outra. Pélagué referiu-se de novo aos planos de Sachenka. Com as espessas sobrancelhas muito erguidas, pensativa, a outra olhava para distante com os seus grandes olhos de sonho. Lia-se-lhe no pálido rosto uma pacífica concentração d’espírito. --Mais tarde, quando tiverem filhos, tambem eu para lá irei, para tratar d’elles. E não havemos de viver peor lá do que vivemos aqui... O Pavel ha de encontrar trabalho; é muito habilidoso. Sachenka olhava agora para ella, perscrutando-lhe os pensamentos. Interrogou: --Não deseja então ir juntar-se a elle desde já? Respondeu, com um suspiro: --Para quê? Nada mais iria fazer-lhe do que causar-lhe incómmodo, caso elle quizesse fugir. E depois, elle não mo consentia... Murmurou Sachenka: --Não, com effeito... --Além d’isso eu tenho que fazer aqui, accrescentou a mãe de Pavel com um tanto de ufania. --Sim, é verdade! secundou, pensativa, a outra. E sabe trabalhar muito bem... Mas de repente estremeceu, como se acabasse de libertar-se de um peso qualquer, e logo annunciou com simplicidade, a meia voz: --Decididamente, elle não se demora na Sibéria... Ha de fugir... É certo! --Mas, então, que ha de ser feito de si? E a creança, se a tiverem? --Não sei; veremos. O que eu não quero é que elle viva em cuidados por minha causa. Dou-lhe plena liberdade para fazer o que quizer, em qualquer occasião que seja. Não sou mais do que uma simples correligionaria. Bem sei que me ha de ser terrivelmente custoso deixal-o... mas hei de saber conformar-me... Não quero importunal-o em coisa alguma, isso não! Sentia Pélagué que Sachenka era capaz de executar o que dizia. Cheia de commiseração por ella, tomou-a nos braços: --Minha querida... Muito tem que soffrer!... Sachenka sorriu com meiguice; comprimiu-se toda contra o corpo de Pélagué; subiu-lhe o rubor ás faces. --Isso ainda vem longe... Mas não julgue que seja um sacrificio penoso para mim. Sei o que faço, sei com o que posso contar, serei feliz se elle se considerar feliz comigo... O meu desejo, o meu dever, é aumentar a sua energia, dar-lhe toda a felicidade que esteja em meu poder, muita felicidade! Amo-o muito... e elle ama-me, que sei eu! Retribuir-nos-emos dos nossos sentimentos, enriquecer-nos-emos mutuamente, tanto quanto pudermos; e, se assim fôr necessario, separar-nos-emos como bons amigos... Por entre um sorriso de felicidade, a mãe disse lentamente: --Eu irei juntar-me a vocês ambos... Talvez eu tambem seja exilada... E por muito tempo as duas mulheres permaneceram estreitamente abraçadas, sem uma palavra, pensando n’aquelle que amavam. O silencio, a tristeza, uma tépida suavidade, as envolviam. Nicolao chegou n’este comenos, fatigadissimo. Rapidamente, emquanto se despia, foi dizendo: --Sachenka, vá-se depressa, se não depois talvez já não tenha tempo! Desde esta manhã andam dois espiões a seguir-me tão ás claras que me cheira a mandado de prisão... Tenho um presentimento... Deve-nos ter acontecido alguma infelicidade, onde, ainda não sei... A propósito: ahi tem o discurso do Pavel; foi decidido imprimil-o. Leve-o á Lioudmila, supplique-lhe que o componham o mais breve possivel. O seu Pavel falou muito bem, Pélagué!... Sachenka, tome cuidado com os espiões! Espere, leve tambem estes papeis; dê-os ao doutor, por exemplo. E ao dizer isto, esfregava vigorosamente uma contra a outra as mãos, que trazia regeladas. Em seguida, foi á mesa, abriu as gavetas, d’onde extraíu varios documentos. Preoccupadissimo e com os cabellos em desalinho, entrou a folheal-os á pressa, rasgou uns, emmaçou outros. --Olhem que não ha ainda muito tempo que eu puz tudo isto em ordem, e vejam que montão enorme cá tenho outra vez! Demónio!... Talvez fôsse melhor não dormir cá esta noite, Pélagué! Que lhe parece? Não é das melhores coisas ter de assistir a essa comédia, os guardas são capazes de a levar tambem... e é absolutamente necessário que vá por esses campos distribuir o discurso do Pavel... --Ora adeus! porque é que me haviam de prender? contestou ella. E d’ahi, talvez se engane, talvez não venha ninguem... Nicolao redargiu em tom de confiança e agitando a mão: --O meu faro nunca me enganou!... Alem d’isso, vocemecê podia auxiliar a Lioudmila! Vá-se emquanto é tempo ainda... Na satisfação de ir cooperar na impressão do discurso de seu filho, ella respondeu: --Pois se assim é, cá me vou. Mas olhe que não é porque tenha medo... E com admiração de si própria, proferiu estas palavras em voz baixa mas decidida: --Agora, já não tenho medo de nada!... Deus louvado! já sei tudo o que queria... --Ás mil maravilhas! exclamou Nicolao, sem a fitar. Ah! diga-me onde está a minha roupa branca e a minha mala. A senhora de tudo tem cuidado com tal carinho, que me vejo de todo incapaz de descobrir o que é minha propriedade pessoal! Eu vou preparar-me. Os polícias é que vão ter uma desagradavel surpresa! Sachenka ia queimando no fogão os papeis rasgados. Quando os viu de todo consumidos, teve o cuidado de misturar as cinzas com as do combustivel. --Vá, Sachenka, vá! disse-lhe Nicolao com um aperto de mão. Até á vista! Não se esqueça de me mandar livros, se fôr publicada qualquer coisa de novidade e intensa. Até á vista, cara correligionaria! E trate sobretudo de ter prudencia... --Julga estar muito tempo na prisão? perguntou Sachenka. --O demónio que o julgue! Bastante tempo, com certeza... Teem diversos pecadinhos a censurar-me... Pélagué, saia ao mesmo tempo com Sachenka. É mais difficil seguir duas pessôas. --Bem! concordou ella. Eu já me visto. Observára Nicolao attentamente, e nada anormal descobrira n’elle, a não ser a preoccupação que lhe velava o olhar bondoso e complacente. Não lhe vira apparentar emoção alguma. Igualmente attencioso para com todos, affectuoso e metódico, sempre socegado e solitário, levava a mesma existencia, misteriosa no seu fôro íntimo e como que antepondo-se a todas as deligencias alheias. Pélagué estimava-o tal qual elle era, com um amor prudente, que parecia duvidar de si mesmo. E agora experimentava por Nicolao uma compaixão indizivel; mas dominava-a porque sabia que se elle lh’a notasse, havia de commover-se e tornar-se um pouco ridículo, como habitualmente. Não era sob este aspecto que Pélagué o queria vêr. Já vestida, voltou ao gabinete. Nicolao estava apertando a mão de Sachenka. Dizia-lhe: --Optimamente! Estou certo de que ha de ser bom para elle, como para si... Um poucochinho de felicidade pessoal nunca causa damno... Mas olhe que não é bom que seja demasiada, para não perder o valor. Está pronta, mãesinha! Acercou-se d’ella, compondo os óculos. --Bem! Então, até á vista!... d’aqui a trez, quatro ou seis mezes. É muito tempo!... Que de coisas se podem fazer em seis mezes! Poupe-se, sim? Peço-lh’o. Vá lá! Venha um abraço! Passou os robustos braços em torno do pescoço de Pélagué e fitando-lhe muito os olhos, disse com um riso muito franco: --Parece-me que estou apaixonado por si... Não faço senão abraçal-a! Sem lhe responder, ella beijou-o na testa e nas faces. As mãos tremiam-lhe: deixou-as pender para que elle não o notasse. --Então, vae partir?... Ás mil maravilhas!... Mas tome cautella, seja prudente! Olhe: mande um rapazito aqui ámanhã pela manhã; a Lioudmila tem um lá em casa. Por elle ficará sabendo o que se tiver passado. Bem, até mais vêr, camaradas! Tudo vae bem!... Que tudo continue bem, é o que se quer! Pela rua, commentava Sachenka em voz baixa: --Com aquella mesma simplicidade é capaz de ir para a morte, se fôr preciso... Só com um pouco de pressa, como ainda agora. Quando lhe chegasse a sua hora final, ajustava os óculos, dizia assim: «Ás mil maravilhas!» e morria! --Amo-o devéras! segredou Pélagué. --Pois a mim, causa-me espanto! Quanto a amal-o, não! Estimo-o, simplesmente. Acho-o muito sêco, ainda que lhe encontre certa bondade e ás vezes até alguma ternura. Mas não possue em si bastante humanidade... Parece-me que vamos sendo seguidas. Separemo-nos. Não vá a casa da Lioudmila, se desconfiar que a vigiam... --Bem sei! respondeu ella. Mas Sachenka insistiu ainda: --Não vá para casa d’ella... Se tal succeder, venha antes para a minha. Até mais vêr! Virou-se rápida e voltou pelo mesmo caminho. A outra gritou-lhe: --Até á vista! XXVIII Minutos depois, aquecia-se Pélagué junto do fogão, no quarto de Lioudmila. Vestida de preto, esta ultima passeava devagar pelo estreito aposento, que enchia com o rugir das suas saias e com a soberania da sua voz autoritária. No fogão, a lenha estralejava e assobiava, aspirando o ar do quarto. Vibrava a voz igual e monótona da dona da casa: --Os homens são infinitamente mais tôlos do que maus. Não sabem vêr senão o que lhes fica perto, o que teem ao seu alcance immediato!... Ora tudo o que nos fica próximo é mesquinho; só o que se encontra afastado tem valor. Na realidade, seria vantajoso para todos que a vida se tornasse mais facil e as creaturas mais intelligentes... Mas para chegarmos a isso, forçoso é renunciar por emquanto a viver com tranquilidade. Aqui, estacou de súbito em frente de Pélagué e accrescentou mais baixo, como para desculpar-se: --Dou-me com tão pouca gente!... Quando alguem vem a minha casa, ponho-me logo a discursar!... É ridículo, não é? --Ora essa! Porquê? Diligenciava Pélagué descobrir onde era que Lioudmila imprimia os folhetos, mas não via em torno de si nada extraordinario. No quarto, com trez janellas para a rua, havia um canapé, um armário com livros, uma mesa, cadeiras, uma cama encostada a uma das paredes; n’um dos cantos, o lavatório, n’outro, o fogão; pelas paredes fotografias. Tudo isto com apparencia de novo, sólido e aceado. E n’este conjunto, a figura quasi monástica da dona do aposento era principalmente o que impunha severo aspecto. Presentia-se haver n’aquelle quarto o que quer que fôsse misterioso e occulto. Olhou depois para as portas: penetrára no quarto por uma d’ellas--a que abria para uma exigua casa de entrada; perto do fogão, havia outra, alta e estreita. --Vim para tratar de certo negócio... disse ella um tanto confusa, ao ver que Lioudmila a estava observando. --Já sei. Ninguem vem a minha casa com outro motivo. Pareceu a Pélagué vibrar na voz da sua interlocutora uma intenção singular; via-lhe um sorrisinho nas delgadas commissuras dos lábios, e as pupilas, baças habitualmente, brilhavam-lhe por detraz dos vidros da luneta. Desviou portanto o olhar e apresentou-lhe o manuscrito com o discurso de Pavel. --Aqui está. Pedem-lhe que o imprima o mais depressa que possa. E narrou os preparativos a que Nicolao procedera, prevendo a sua captura. Sem dizer uma palavra, Lioudmila entalou o papel no cinto e sentou-se n’uma cadeira. Agitavam-se-lhe pelo rosto impassivel os reflexos do lume. --Quando os polícias vierem a minha casa, faço fogo para cima d’elles! declarou. Tenho o direito de defender-me contra a violencia e o dever de luctar contra ella, visto que instigo tambem os outros a fazel-o! A vermelhidão das chammas desappareceu-lhe do rosto, o qual voltou a mostrar-se severo e um pouco altivo. «Deve ser bem trabalhosa a vida que levas»--foi o súbito pensamento que accudiu ao espirito de Pélagué, acompanhado d’um sentimento d’affeição. Ella pôz-se a lêr o discurso de Pavel, primeiro, sem vontade, depois, curvando-se cada vez mais sobre o papel. Ia atirando rapidamente para o chão as folhas já lidas. Finda a leitura, levantou-se, endireitou o tronco e foi para a outra: --Está muito bom! Ahi está do que eu gosto! É nitido e claro! Inclinou a cabeça e reflectiu um instante. --Não quiz falar-lhe do seu filho: nunca o vi e não me agradam as conversas tristes. Eu sei o que se sente quando vemos um dos nossos ir para o degredo!... Diga-me: é agradavel ter-se um filho como elle? --Sim, muito agradavel! --E deve ser coisa terrivel tambem?... Com um sereno sorriso, Pélagué respondeu: --Não; agora já não... Lioudmila alisou com a mão, muito morena, os cabellos penteados em bandós; depois, voltou-se para a janella: palpitava-lhe nas faces uma leve sombra apaixonada. --Vamos imprimir isso... Quer ajudar-me? --Certamente! --Vou compôr o mais depressa possivel. Deite-se; o dia deve-lhe ter sido fatigante. Vê-se que está cansada. Deite-se n’aquella cama, que eu não durmo hoje. Talvez tenha de a accordar de noite, para me auxiliar. Antes de adormecer, apague o candieiro. Accrescentou duas achas ao lume e saíu pela porta estreita, praticada ao lado do fogão, que tornou a fechar cuidadosamente apóz si. Pélagué seguira-a com o olhar. E emquanto se despia, pensava maquinalmente na sua hospedeira: «É um caracter severo... E vê-se que soffre, a pobre senhora!» O cansaço esvaía-lhe a cabeça; no entretanto, sentia o coração singularmente calmo; no seu espirito, tudo se illuminava com suave e cariciosa luz. Pélagué conhecia já aquella tranquillidade, que segue sempre ás grandes commoções; antigamente, inquietava-a, mas agora, fazia que a sua alma se expandisse, revigorada em forte e puro sentimento. Apagou o candieiro, deitou-se na cama muito fria, encolheu-se, aconchegando a si os cobertores e adormeceu logo em profundo somno. Quando descerrou os olhos, estava o quarto banhado da claridade gélida e branca d’um desanuviado dia d’inverno. Estendida no canapé, com um livro na mão, Lioudmila fitava-a com uma expressão de ternura que a transfigurava. --Deus meu! exclamou Pélagué, confundida. Quanto tempo eu dormi! É muito tarde, pois não é? --Bom dia! respondeu-lhe Lioudmila. Vão dar as dez horas. Levante-se para irmos almoçar. --Porque não me accordou? --Tive idéa d’isso; mas a senhora mostrava um sorriso tão bonito, emquanto dormia... N’um movimento ágil do seu corpo robusto e flexivel, Lioudmila levantou-se, approximou-se do leito, curvou-se sobre o rosto d’ella; e Pélagué poude distinguir nos olhos sem brilho da sua hospedeira alguma coisa familiar, amigavel, compreensivel. --... que não quiz despertal-a... Era um bello sonho que estava tendo, com certeza... --Não, senhora; não sonhei com coisa alguma. --Pois é pena... Mas gostei de vêr aquelle seu sorriso: achei-o tão meigo, tão santo! E Lioudmila poz-se a rir, um rir aveludado e discreto. --Entrei a pensar em si, na sua vida... Porque a sua existencia deve ser ardua! Pélagué contraíu os sobrolhos, pensativa. --Não sei! respondeu, hesitante. Ha momentos em que me parece que sim... mas não é verdade! Ha tantas coisas... coisas espantosas e graves, que se seguem com tanta rapidez umas ás outras!... Subia-lhe ao peito a onda de excitação que ella conhecia bem, enchendo-lho d’imagens e de pensamentos. Sentou-se na cama e deu-se pressa em revestir de palavras as suas idéas. --Tudo o que estamos presenceando caminha para o mesmo fim, como o fogo, quando arde uma casa, tende sempre a subir! Aqui, abre caminho, mais além, brilha intensamente, sempre mais violento, sempre mais luminoso... Ha tanta coisa que custa vêr! Se soubesse!... Essa pobre gente soffre, é incommodada, espiada... Batem-lhes, batem-lhes com crueldade... Elles, então, occultam-se a todas as vistas, passam a viver como frades. Quantas alegrias ha que lhe são defezas!... E é triste assim, a vida! Lioudmila ergueu com vivacidade a cabeça e fitou Pélagué com profundo olhar. --Não é de si que está falando! observou em voz baixa. --De mim!... repetiu ella, emquanto se ia vestindo. E póde alguem collocar-se á parte, quando o nosso coração ama alguma coisa, quando este ou aquelle nos é querido, quando se sente medo e compaixão por todos?... Tudo isto se nos entrechoca na alma, attraída assim para cada um d’esses infelizes... Como podemos collocar-nos á parte? Para nos refugiarmos onde? Já meio vestida, permaneceu um instante pensativa no meio do quarto. E subitamente, afigurou-se-lhe que já não era ella a mesma creatura que tanto se inquietára e alarmára pela sorte de seu filho; tal personalidade já não existia, tinha-se desapegado e afastado d’ella. Escutou-se então a si própria, no desejo de saber o que se passava no seu íntimo, embora receasse despertar outra vez o seu velho sentimento de anciedade. --Em que está pensando? perguntou-lhe Lioudmila affectuosamente. --Nem eu sei! Calaram-se as duas, olharam uma para a outra e sorriram. Depois, Lioudmila abalou do quarto, murmurando: --Que estará fazendo o meu samovar? Pélagué olhou então pela janella. Lá fóra, reinava a frialdade d’um luminoso dia d’inverno. Ella, no âmago do coração, sentia tambem uma claridade igual áquella, mas quente. O seu desejo seria falar de tudo; demorada e jovialmente, n’um vago sentimento de gratidão por tudo o que baixára á sua alma, tornando-lha assim bem formada. Sentiu, o que havia muito não lhe succedia, um desejo de rezar. Veiu-lhe então á lembrança um rosto moço e imberbe; na sua memória ecoou uma voz delgada: «É a mãe do Pavel Vlassof...» Scintillavam os meigos olhos joviaes de Sachenka; desenhava-se o negro perfil de Rybine; sorria o rosto valoroso e bronzeado de Pavel; Nicolao piscava os olhos, acanhado. E de repente, todos aquelles rostos amigos foram eclipsados em meio d’um suspiro ligeiro mas de significação profunda; baralharam-se, confundiram-se em uma nuvem transparente e multicolor, que envolvia o coração em um sentimento de paz. --O Nicolao tinha razão! disse Lioudmila ao regressar ao quarto. Foi preso, não ha duvida possivel! Conforme me recommendou, mandei um rapazito a casa d’elle. Já voltou. Diz que estão lá agentes de polícia escondidos no páteo; que viu um por detraz da porta da rua. Os espiões vigiam ao de redor da casa; o pequeno conhece-os. --Ah! limitou-se Pélagué a dizer, com um meneio de cabeça. Pobre Nicolao! --N’estes ultimos tempos, elle fazia muitas prelecções aos operários da cidade; estava desmascarado; era tempo e mais que tempo que desapparecesse! proseguiu Lioudmila em tom sombrio mas sereno. Os companheiros andavam sempre a dizer-lhe que saísse da cidade; elle não quiz dar-lhes ouvidos!... A minha opinião é que, em taes casos, o que se deve não é aconselhar as pessôas, mas obrigal-as! Á porta appareceu um rapazito de cabello preto, pelle rosada, nariz aquilino e bonitos olhos azues. --Quer que traga o samovar? perguntou com voz sonora. --Traz, sim, Sérgio, se fazes favor. É meu discipulo... Não o conhecia? --Não. --Tenho-o mandado algumas vezes a casa do Nicolao. Pélagué, entretanto, achava Lioudmila muito mudada, parecia-lhe mais singela de maneiras, mais compreensivel. Havia nos movimentos graciosos do seu esbelto corpo, belleza e força, a attenuarem o que no rosto pálido tinha de severidade. Com a noite perdida as olheiras haviam-se-lhe cavado mais. Sentia-se-lhe nos modos um esforço continuado, como se na sua alma vibrasse uma corda em demasiada tensão. O rapaz trouxe o samovar. --Sérgio, olha a senhora Pélagué Vlassof, a mãe do operário que foi hontem condenado. A criança inclinou-se em silencio, apertou a mão de Pélagué, tornou a saír e voltou trazendo pão. Sentou-se tambem á mesa. Emquanto ia servindo o chá, Lioudmila aconselhou Pélagué a não voltar para casa sem que se soubesse quem era a pessôa alvejada pelas deligencias policiaes. --Talvez seja a senhora mesma... Hão de querer interrogal-a. --Que me importa! redarguiu ella. Se for prêsa, a desgraça não será grande! Só o que desejava era que o discurso do Pavel estivesse já distribuido... --Já está composto. Ámanhã teremos exemplares bastantes para a cidade e para os arrabaldes... e tambem para o resto do districto. Conhece a Natacha? --Ora se conheço! --Pois é preciso que lhe leve os folhetos. A criança estava lendo um jornal. Parecia não ouvir o que diziam, mas de quando em quando, erguia os olhos para Pélagué. Esta, quando lhe surpreendia aquelle olhar tão vivo, sentia-se agradavelmente commovida. A joven senhora falou novamente de Nicolao, sem lamentar sequer a sua captura, o que de toda a maneira pareceu a Pélagué naturalissimo. O tempo dir-se-ia passar mais veloz; era perto do meio dia quando terminaram o almoço. XXIX De repente ouviu-se bater na porta, rapidamente. Levantou-se a criança e dirigiu interrogador olhar á dona da casa. --Abre, Sérgio! Quem poderá ser? Com o maior socego, introduziu a mão na algibeira do vestido e disse á sua hospede: --Se fôr a polícia, colloque-se ali n’aquelle canto. E tu, Sérgio... --Bem sei! respondeu a criança, baixando a voz. E saíu. Pélagué sorria. Não a impressionavam taes preparativos; não tinha o presentimento d’uma desgraça. Quem entrou afinal foi o doutor. Annunciou logo com precipitação: --O Nicolao foi preso!... Ah, está por cá, tiasinha?... Não estava em casa quando o levaram? --Não, senhor; foi elle que me mandou para aqui. --Hum!... Não me parece que isso lhe seja de grande utilidade... Esta noite, uns rapazes imprimiram com gelatina quinhentos exemplares do discurso do Pavel. O trabalho ficou bom, está bem impresso, lê-se bem. Tencionam distribuil-os pela cidade, esta noite. Não sou d’essa opinião: para a cidade são preferiveis os folhetos impressos; os outros é que devem ser expedidos para toda a parte. --Eu os vou levar á Natacha! Dê-mos! exclamou Pélagué com vivacidade. O seu grande desejo era fazer circular o mais depressa possivel o discurso de Pavel; inundar a terra com as palavras de seu filho. E fitava o médico attentamente, com olhar quasi supplicante. --Não sei se será prudente que a senhora se metta agora n’essa empreza! disse, indeciso. E puxou pelo relógio.--São onze horas e quarenta e trez minutos... O comboio parte ás duas e cinco; póde chegar ao seu destino ás cinco e quinze... Ia chegar de noite, mas não era muito tarde... Além do que, não é isto o essencial... --Não, não é isso o essencial! repetiu Lioudmila, franzindo o sobrolho. --Então o que é? perguntou Pélagué, approximando-se d’elles. O essencial é que a distribuição seja bem feita... e eu sei como me hei de haver! A dona da casa attentou n’ella fixamente e declarou, passando a mão pela testa: --É perigoso... --Porquê? exclamou a outra. --Aqui tem porquê! expôz o doutor com voz precipitada e desigual. Vocemecê desappareceu de casa uma hora antes da prisão do Nicolao. D’aqui a pouco, vae ser vista lá na fabrica, onde é tão conhecida. Logo depois de lá chegar, entram a apparecer os folhetos revolucionarios... Tudo isso são indícios que se lhe vão apertar na garganta como um laço corredio... --Mas é que não hão de dar por mim! objectou ella com animação crescente. Se fôr presa quando de lá voltar, e me perguntarem onde estive... Interrompeu-se um momento e proseguiu: --Sempre hei de achar resposta! Por exemplo: posso ir da fabrica directamente ao arrabalde. Conheço lá um sujeito chamado Sizof. Pois digo que logo em seguida ao julgamento fui para casa do Sizof, por me achar incommodada com o desgosto soffrido... Tambem elle está muito pezaroso: o sobrinho foi condenado juntamente com o Pavel!... Digo que estive todo este tempo em casa d’elle, e elle ha de confirmar o que eu disser... Bem vêem! E porque os sentisse cederem aos seus argumentos, esforçava-se por convencel-os e falava com crescente calor. Por fim, acquiesceram. --Que se ha de fazer? Pois vá! concordou o doutor, mas de má vontade. Lioudmila conservava-se em silencio; passeava pelo quarto, meditativa. O rosto assombreára-se-lhe, as faces haviam-se-lhe cavado; os músculos do pescoço pareciam ter-se distendido, como se a cabeça se tivesse bruscamente tornado mais pesada e tombasse irresistivelmente para o peito. O forçado consentimento do doutor arrancára a Pélagué profundo suspiro. --Andam todos a animar-me! disse, sorrindo. Mas os senhores são os primeiros que não se poupam! --Isso não é assim! replicou o doutor. Poupamo-nos todos; temos o dever de nos poupar. E as nossas censuras nunca serão demasiadas para aquelles que se expõem inutilmente! Por consequencia lá se lhe irão levar os folhetos á estação. Explicou-lhe o que tinha a fazer e em seguida accrescentou, fitando-a bem de frente: --O que desejo é que se saia bem! Está satisfeita, não é assim? E foi-se descontente. Logo que ouviu fechar se a porta, Lioudmila approximou-se de Pélagué. --A senhora é uma excellente mulher!... Eu compreendo-a... Travou-lhe depois do braço, e ambas entraram a passear pelo aposento. --Tambem eu tenho um filho. Tem já doze annos. Mas vive com o pae. Meu marido é procurador substituto; talvez seja já procurador effectivo, não sei... E aquella criança está na sua companhia... Quantas vezes pergunto a mim mesma qual será o seu futuro!... Teve na voz, desfallecida, uma commoção, e depois proseguiu baixinho, de novo meditativa: --Se elle está sendo educado por um inimigo figadal d’aquelles que me são queridos, d’aquelles que eu considero como as melhores creaturas da terra!... E assim, meu filho póde vir a ser meu inimigo tambem... Não me é licito trazel-o para a minha companhia, pois que vivo com nome supposto. E ha oito annos já que o vi pela ultima vez!... Quanto tempo! Oito annos! Ao pé da janella, parou e ficou a olhar para o pálido e desolado céu. --Se elle vivesse comigo, sentir-me-ia mais forte. Mesmo se morresse, ficaria mais aliviada... Apóz um instante de silencio, ergueu a voz para explicar: --Porque então, ficaria sabendo que só estava morto; porque não poderia tornar-se n’um inimigo d’aquillo que é superior ao próprio amor materno, de tudo o que na vida ha mais precioso!... --Minha querida amiga! murmurou brandamente Pélagué, sentindo o coração confranger-se-lhe de dó. --A senhora é feliz! proseguiu Lioudmila com um sorriso. É admiravel vêr uma mãe e um filho caminharem lado a lado... É raro! --Sim, é certo; é delicioso! exclamou Pélagué. E explicou, baixando a voz, como para confiar um segredo: --É como se tivessemos uma segunda vida! A senhora, Nicolao, todos, emfim, os que luctam pela verdade, estão comnosco!... E assim, tornamo-nos mais intimos uns dos outros... E eu compreendo-os... não o que dizem, mas tudo o mais, sim, compreendo-o!... Tudo! --Ah, é assim? exclamou a joven senhora. É assim!... E logo Pélagué, pousando-lhe a mão no hombro: --Os nossos filhos vão em marcha pela terra! Eis o que eu compreendo! Vão em marcha pela terra, por toda a terra e em toda a parte caminham para o mesmo fim! Arremessam se ao assalto os melhores corações e os espiritos mais leaes, sem olharem para traz de si, para tudo o que é mau e sinistro. E avançam, avançam... Debeis ou robustos todos dedicam as suas inteiras forças á mesma causa: a justiça! Juraram triunfar da desgraça; armaram-se para aniquílar o infortúnio da humanidade: querem vencer o horror e hão de vencêl-o! «Havemos de accender um novo sol» disse-me um d’elles. E hão de accendêl-o! «Havemos de reunir num só todos os corações despedaçados!» disse outro. E hão de fazel-o! Ergueu o braço para o ceu: --Além ha um sol! E, batendo no peito, concluiu: --E aqui, outro se ha de accender, mais brilhante que o do ceu, o sol da felicidade humana, que eternamente illuminará a terra inteira e aquelles que a habitam, com a luz do amor de cada creatura por todos e por tudo! E Pélagué evocava as palavras das orações esquecidas para entusiasmar a sua nova fé e lançava-as do coração como scentelhas: --Os nossos filhos, caminhando pela senda da razão e da verdade, levam o amor a todas as coisas, criam um novo ceu, accendem o lume sagrado e incorruptivel que brota da alma, do âmago do coração. E é assim que nos é offerecida uma vida nova no apaixonado amor dos nossos filhos pelo mundo inteiro. E quem poderia extinguir este amor? Quem? Existe força superior a esta? Quem poderia vencel-a? Foi a própria terra que a gerou e a vida inteira exige a sua victória... a vida inteira! Pélagué afastou-se de Lioudmila e sentou-se, offegante, quebrada pela sua commoção. A joven senhora afastou-se tambem de mansinho, com precaução, como se receasse quebrar alguma coisa. No seu passo agil, atravessou o quarto, fixando para longe d’ali o olhar profundo dos seus olhos sem brilho. Parecia ainda mais delgada, mais hirta e mais alta. Tinha na cara chupada e severa uma expressão concentrada, comprimia nervosamente os lábios. O silencio acabára por apaziguar a exaltação de Pélagué. A meia voz, n’um tom de receio, perguntou: --Talvez eu dissesse coisas que não deveria ter dito. Lioudmila voltou-se com vivacidade, lançou-lhe um olhar assustado e exclamou: --Não! é assim mesmo! é assim mesmo!... Mas não falemos mais n’isso! Fiquem as suas palavras taes quaes as pronunciou, sim! E proseguiu depois, já mais calma: --É forçoso partir... A estação fica longe d’aqui. --Sim, vou já partir! Como me sinto contente! Se soubesse!... Levo comigo as palavras do meu filho, as palavras do meu sangue! É como se levasse a minha alma! Sorria. Mas este sorriso não produziu mais que um pálido reflexo na fisionomia de Lioudmila. Pélagué sentia aquella frieza regelar-lhe a sua própria alegria. Assim, sentiu o desejo súbito de communicar áquella alma severa o seu ardor, abraçar-se com ella, afim de a fazer sentir em unísono com o seu coração de mãe. Tomou a mão de Lioudmila e disse, apertando-lha com fôrça: --Minha querida! Como é bom saber que ha na vida luz para todos os homens e que, com o tempo, elles hão de acabar por vêl-a, por fundirem n’ella as suas almas e por arderem todos da mesma chamma inextinguivel! O seu rosto bondoso tremia de entusiasmo; os seus olhos radiantes e as suas sobrancelhas agitavam-se, como para dar azas ao brilho das pupillas. Sentia-se enebriada pela sublimidade dos seus ideaes, em que punha toda a ardencia do coração, tudo o que experimentára, e encerrava nos rijos e limpidos cristaes das palavras illuminadas as idéas que floresciam e desabrochavam mais e mais no seu coração outonal, illuminado pelo sol da fôrça creadora. --É como se para nós tivesse nascido um novo Deus! Tudo para todos, todos para tudo, a vida inteira em um só, em cada um a vida inteira! E cada um para a vida inteira! É assim que eu compreendo; é para isso que vós todos andaes pela terra, eu bem o vejo! Em verdade, todos sois camaradas, todos sois da mesma familia, porque todos sois os filhos da mesma mãe: a verdade! Foi a verdade que vos gerou e é pela sua fôrça que viveis! Pélagué retomou alento e continuou, com um gesto largo que parecia abarcar tudo! --E quando a mim própria pronuncio esta palavra «camaradas» parece-me ouvil-os caminhar. De toda a parte vem em multidão. Oiço um ruido atroador e alegre, como se os sinos de todas as igrejas da terra entrassem a tocar! Conseguira o que desejava: animára-se o rosto de Lioudmila; os lábios tremeram-lhe; uma apóz outra, rolaram-lhe dos olhos pesados lagrimas crístallinas. Então, Pélagué tomou-a entre os braços; teve um riso silencioso, meigamente ufana da victória obtida pelo seu coração. Ao afastarem-se as duas mulheres, Lioudmila fitou Pélagué e perguntou em voz baixa: --Sabe que é muito agradavel estar na sua companhia? E a si própria respondeu, rematando: --Sim, parece que se está no cimo de uma alta montanha, ao nascer da aurora... XXX Lá fóra, o ar sêco e glacial fustigava o corpo, irritava a garganta e o nariz; suffocava a respiração. Pélagué parou a certa altura, olhando em torno: perto d’ali, á esquina d’uma rua, estava um cocheiro com um bonné de pello; mais longe, caminhava um homem, todo corcovado, com a cabeça encolhida entre os hombros. Um soldado corria, aos pulos, esfregando as orelhas. «Provavelmente mandaram-no á loja, a comprar alguma coisa!» pensou ella. Escutava com satisfação o ruído da neve que se lhe quebrava sob os passos. Em breve chegou á estação; o comboio ainda não estava formado; no entretanto, havia já muita gente na sala de espera da terceira classe, enfumaçada e suja. O frio para lá escorraçára os trabalhadores do caminho de ferro; e tambem vinham aquentar-se ali, cocheiros e individuos mal vestidos, sem eira nem leira. Tambem ali se encontravam viajantes: alguns campónios, um negociante gordo, vestido de espessa capa de pelles, um padre com a sua filha, uma rapariguita de rosto pálido, cinco ou seis soldados e alguns burguezes com ares de atarefados. Fumava-se, conversava-se, bebia-se aguardente ou chá. Junto ao bufete, ouviam-se grandes gargalhadas; pairava por cima das cabeças o fumo do tabaco em densas nuvens. Ao abrir-se, a porta chiava, e quando a tornavam a fechar, batia com estrondo e as vidraças resoavam e tremiam. Assaltava violentamente as narinas um cheiro a tabaco e a peixe salgado. Pélagué sentou-se perto da porta, bem em evidencia, e esperou. Quando entrava alguem, envolvia-a uma lufada d’ar frio; a sensação era agradavel: respirava n’esses momentos a plenos pulmões. Apparecia gente em pesados trajos, carregada de embrulhos; prendiam se desastradamente na porta, praguejavam, atiravam os seus fardos para o chão; depois limpavam da geada a gola e as mangas dos casacões, limpavam as barbas ou os bigodes, resmungando. Um rapaz, que trazia uma mala amarella, entrou, e depois de olhar rapidamente em torno, foi direito a Pélagué. --A Moscou? perguntou elle a meia voz. --Sim! a casa de Tania. --Ahi tem! E dito isto, collocou a mala sobre o banco, ao lado d’ella, tirou um cigarro da algibeira, accendeu-o rapidamente e tornou a saír por outra porta, depois de ter erguido levemente o bonné. Pélagué passou a mão pelo coiro frio da mala e encostou-se a ella. Satisfeita, emfim, pôz-se a examinar quem estava. Instantes depois, levantou-se e foi sentar-se n’outro banco, mais próximo da saída. Levava a mala n’uma das mãos com a maior serenidade, de cabeça levantada e fitando as caras que lhe passavam ao alcance da vista. Um homem vestido d’um casaco curto e com a cabeça enterrada na gola, erguida, deu-lhe um encontrão e afastou-se sem dizer uma palavra, levando simplesmente a mão ao bonné. Pareceu-lhe tel-o já visto. Voltou-se e viu que elle a estava observando. Sentiu-se como trespassada por aquelle olhar claro; a mala entrou a tremer-lhe na mão, como se tivese repentinamente aumentado de peso. --Onde vi eu aquelle homem? perguntava a si mesma, como para repellir a sensação desagradavel que lhe subia do peito até á garganta e lhe enchia a bocca de amargo travor. Apoderou-se d’ella um desejo irresistivel de se voltar e de olhar mais uma vez para elle: o homem continuava no mesmo logar, firmando-se ora n’um pé, ora no outro e parecia indeciso. Introduzira a mão direita entre os botões do casaco e conservava a outra na algibeira, o que fazia parecer que tinha o hombro direito mais alto do que o esquerdo. Devagar, Pélagué caminhou até um banco, sentou-se lentamente, com precaução, como se receasse quebrar alguma parte do corpo. A sua memória, despertada por um agudo presentimento de desgraça, evocava dois aspectos d’este homem: o primeiro datava do dia da evasão de Rybine; o outro, da vespera. Lembrava-se ter visto no tribunal, ao lado d’aquelle individuo o agente de polícia a quem fornecera a errada indicação sobre o caminho que Rybine tomára na sua fuga. Tornára-se pois conhecida, andava vigiada, era certo! --Estarei eu apanhada? perguntou a si mesma. E respondeu, sentindo-se estremecer: «Talvez ainda haja meio... Não, decididamente estou apanhada, não ha nada a fazer...» Olhou em roda, mas não viu nada suspeito. Uma apóz outra, como scentelhas, surgiam-lhe e apagavam-se-lhe várias idéas dentro do cérebro. --Deixar a onda?... Ir-me embora? Mas logo outra scentelha mais viva brilhou: «As palavras do meu filho... atiral-as assim fóra! Deixal-as em semelhantes mãos!» E chegou a mala mais para si. «E se eu agarrasse n’ella e deitasse a fugir!...» Chegava-lhe a parecer não serem seus os próprios pensamentos, que alguem lh’os introduzia no cerebro, á fôrça. Eram como queimaduras a corroerem-lhe dolorosamente a cabeça e o coração, levando-a para longe de si mesma, para longe de Pavel, de tudo o que já fazia parte integrante do seu coração. Sentia que uma fôrça hostil a opprimia obstinadamente, lhe pezava nos hombros e no peito, a aviltava, mergulhando-a em frio terror. Incharam-se-lhe as veias das fontes, subiu-lhe á cabeça intenso calor. Então, d’um só impulso vigoroso que a ergueu de chofre, suffocou em si todos estes lampejos de tibieza, covardes e astuciosos, ordenando a si própria com autoridade: «Não sejas a vergonha do teu filho!» Aos seus olhos appareceu então um olhar tímido e desconsolado. Passou-lhe pela memória a imagem de Rybine. Estes poucos segundos de hesitação bastaram para fortalecer n’ella todas as crenças. O coração pulsou-lhe com mais regularidade. --Que irá acontecer? perguntou a si mesma, olhando em torno. O espião acabava de chamar um guarda; segredava a este o que quer que fosse, designando-a com o olhar. O guarda observou Pélagué e recuou. Approximou-se outro guarda e pôz-se a escutar o que diziam. Era um velho robusto, grisalho e de comprida barba. Fez um signal com a cabeça ao espião e adiantou-se para o banco em que Pélagué se sentava. O espião desappareceu como por encanto. O velho caminhava sem pressa alguma, perscrutando attentamente com olhar irritado a fisionomia de Pélagué. Ella encolheu-se toda no fundo do banco. «Com tanto que não me batam!... Deus permitta que não me batam!» O guarda parou junto d’ella e, apóz silencio, perguntou com severidade: --Que estás tu a olhar? --Nada... --Está bem... Ladra! Então és velha e andas n’essa vida?! Com estas palavras julgou Pélagué que recebia uma bofetada. Irritadas e roucas, faziam doer, como se lhe rasgassem as faces e arrancassem os olhos. --Ladra, eu?! Mentes! gritou com toda a fôrça dos pulmões. Tudo o que a rodeava lhe parecia mover-se descompassadamente entre o redemoinho da sua indignação; sentia o coração atordoado pela amargura da injuria. Agarrou na mala, que logo se abriu por si. --Olha! Olhem todos! exclamou, pondo-se em pé e agitando acima da cabeça um maço de proclamações. Atravez dos zumbidos de que tinha cheios os ouvidos, ouvia as exclamações das pessoas que accudiam de todos os lados. --Que se passa? --É um agente da polícia secreta... --Mas que aconteceu? --Dizem que roubou, aquella mulher... --Aquella mulher? --Mas ella protesta. --Ora adeus! Com aquelle todo tão respeitavel! --Quem foi que prenderam? --Eu não sou ladra! repetia ella com voz forte e serenando pouco a pouco com o ver a attitude dos curiosos que a rodeavam em compacto círculo. --Hontem foram condemnados alguns presos politicos e entre elles o meu filho... O meu filho chama-se Vlassof. Pronunciou um discurso: aqui o teem! Ia leval-o á gente do povo, para que o leia e reflicta nas verdades que elle encerra! E porque um dos circumstantes, com precaução, tomasse um dos fasciculos que ella tinha na mão, agitou os outros e atirou-os por sobre o ajuntamento. --Estás livre de receber felicitações pela maneira por que os distribuiste! commentou a medo uma voz. --Cuidado, que vae acontecer alguma! aconselhou outra voz. Pélagué via que cada qual tratava de se apoderar dos papeis e de escondel-os nas algibeiras ou no peito. Mais animosa, entrou a tomar maços e maços de dentro da mala e a atiral-os á direita e á esquerda, nas mãos ávidas e ligeiras que se lhe estendiam. --Sabem porque condemnaram o meu filho e os que com elle estavam? Vou dizer-vol-o! Creiam n’este coração de mãe! Condemnaram-nos porque vos traziam a todos a santa verdade! E hontem mesmo eu vi como essa verdade triunfou!... Ninguem póde luctar contra ella, ninguem! A multidão, que se conservava muda de assombro, engrossava cada vez mais, cercando Pélagué d’uma cadeia de seres viventes. --A pobreza, a fome, a doença--eis o que o trabalho nos rende! Tudo é contra nós. De dia para dia, morremos sob o trabalho, soffremos fome e frio, prostrados sempre no lôdo e no ludíbrio; e são outros que se fartam e se divertem á custa do nosso labor!... Como cães presos pela trela, immobilisam-nos na ignorancia; nós nada sabemos e, na nossa covardia, de tudo temos medo! A nossa vida é uma noite, uma noite escura! É um pezadello horrendo!... Pois não é verdade? --Sim! responderam algumas vozes surdas. --Fecha-lhe a bôca! Por detraz do ajuntamento, Pélagué avistou o espião acompanhado por dois guardas. Deu-se pressa em distribuir os últimos maços, mas quando a sua mão chegava mais uma vez á mala, sentiu o contacto de outra mão. --Levem tudo! Levem tudo! disse ella, curvando-se. Para transformar esta vida, para libertar todos os homens, para os resuscitar d’entre os mortos, como eu resuscitei, nasceram creaturas filhas de Deus que andam a semear pelo mundo a verdade santa. Operam em segredo, pois, como bem sabem, ninguem póde dizer a verdade, sem que seja logo perseguido, suffocado, atirado para uma enxovia, mutilado! A verdade da existencia e a liberdade são inimigas para todo o sempre irreconciliaveis d’aquelles que nos governam, d’aquelles que nos opprimem. E são crianças, são creaturas purissimas e luminosas que vos annunciam a verdade. Graças a ellas, ella ha de chegar emfim ás nossas miseraveis existencias, ella ha de vir acalentar-nos e confortar-nos; ha de libertar-nos da oppressão das autoridades e de todos os que lhes venderam a alma! Creiam! --Bravo, velha! gritou um. Outro entrou a rir. --Vamos, dispersem! regougaram os guardas, afastando brutalmente a multidão. O agrupamento recuou, resmungando, impedindo os guardas entre a massa da gente e tolhendo-lhes os movimentos, mesmo sem querer. Sentiam-se dominados por aquella mulher de cabellos grisalhos, olhar de franqueza e modos bondosos. Indifferentes uns aos outros, isolados pela vida, confundiam-se agora em um todo, acalentados pelo ardor d’aquella palavra que muitos esperavam, sem duvida, ha muito tempo. Os que ficavam mais perto de Pélagué permaneciam em silencio. Pélagué sentia-lhes os olhares attentos fitos sobre si e o bafo das respirações. --Sobe para o banco! gritou-lhe um. --Vae-te d’aqui, velha! --Vaes ser suffocada! --Que insolente! --Fala depressa, que elles ahi vem! --Deixem o caminho livre! Vamos, a andar! gritavam outros guardas, chegados n’este comenos. Já em numero crescido, estes desviavam a multidão com mais violencia ainda; toda aquella gente molestada, agarrava-se a quem lhe ficava próximo. Parecia a Pélagué ter na frente como que um férvido cachão e que todos estavam prontos a compreendel-a e a acredital-a. O seu desejo era dizer ali, depressa, tudo o que sabia, todos os poderosos pensamentos que lhe subiam harmoniosamente, sem esforço, do âmago do coração; mas faltava-lhe a voz, não lhe saíam do peito mais que sons roucos, entrecortados e trémulos. --A palavra do meu filho é a palavra pura d’um filho do povo, d’uma alma integra! Pela audacia se reconhecem os que são íntegros; pela verdade, quando ella o exija, sacrificam-se intrepidamente! Entre o ajuntamento, olhos juvenis fitavam-na, a um tempo com entusiasmo e terror. Recebeu uma pancada no peito, cambaleou e caíu para cima do banco. Por sobre as cabeças agitavam-se as mãos dos guardas, os quaes agarravam brutalmente os circumstantes pela nuca ou pelos hombros e atiravam-nos para o lado, arrancavam das cabeças os bonnés e arremessavam-nos ao longe. Pélagué sentiu confundirem-se e vacillarem as coisas em frente dos olhos, mas dominou a fadiga e serviu-se ainda da pouca voz que lhe restava. --Povo, reune as tuas fôrças em uma só fôrça! Caíu-lhe no pescoço e saccudiu-a a mão enorme e encarniçada d’um guarda. --Cala-te! Foi bater com a nuca de encontro á parede. Durante um instante, teve o coração envolvido n’uma névoa de ardente terror, mas este vapor logo se dissipou ao entusiasmo que a aquecia. --Anda para a frente! disse o guarda. --...Não ha soffrimento mais amargo que o que dia a dia devora o coração e exaure o peito... O espião precipitou-se ao encontro d’ella e brandindo o punho em frente da cara da presa, gritou com voz aguda: --Cala-te, canalha! Os olhos de Pélagué abriram-se desmedidamente e scintillaram; as maxillas tremiam-lhe. Firmou os pés no lagedo escorregadio e gritou: --Não se mata uma alma resuscitada! --Cadella! Com pequeno impulso, o capitão bateu-lhe no rosto. --É bem feito para essa velha porca! gritou uma voz. Uma coisa negra e vermelha cegou por instantes Pélagué; encheu-lhe a bocca o sabor salgado do sangue. Reanimou a uma explosão d’exclamações: --Você não tem direito de bater! --Camaradas! --Que vem a ser isso? --Ah, patife! --Dá-lhe! --... Não é com sangue que se ha de suffocar a razão! Empurravam-na pelas costas, pelo pescoço, batiam-lhe na cabeça e no peito; tudo oscillava e se sumia no sombrio turbilhão dos gritos, dos lamentos e dos silvos dos apitos. Alguma coisa espessa e que a ensurdecia lhe penetrava nos ouvidos e lhe enchia a garganta até á suffocação. O solo fugia-lhe debaixo das pernas, que vergavam, o corpo tiritava-lhe sob o aguilhão dos ferimentos; tropega e exausta, Pélagué cambaleava. Mas continuava a distinguir em volta de si numerosos olhares onde brilhava o entusiasmo decidido que ella conhecia bem e que tão querido era ao seu coração. Levaram-na aos encontrões para uma das portas. Ella poude desembaraçar uma das mãos e agarrou-se ao batente. --... Nem mesmo sob um mar de sangue a verdade desapparecerá... Descarregaram-lhe logo uma pancada na mão. --Só conseguis congregar os ódios, insensatos que sois! E este ódio, este rancor, ha de subverter-vos!... O guarda agarrou-a pela garganta e entrou a apertar-lh’a cada vez com mais violenta pressão. N’um estertor, balbuciou: --Os desgraçados... Respondeu-lhe alguem com prolongado soluço. FIM Notas Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos. Página 17: “Esmagar-te-ão. morrerás!” foi substituído por “Esmagar-te-ão. E morrerás!” Página 19: “Quando casei,” foi substituído por “Quando cresci” Página 63-64: “trez annos; sado” foi substituído por “trez annos; fui casado” Página 70: A referencia ao rodapé foi adicionada no texto. Página 122: “se não, me abraçava” foi substituído por “se não, não me abraçava” O texto original falta dois parágrafos na página 122, imediatamente antes do capítulo XX. Isso foi mantido na versão digital. Na versão original, a numeração dos capítulos na segunda parte pula o número XIII. Isso foi mantido na versão digital. Página 377: “Eu percebo n ” foi substituído por “Eu percebo bem” *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A MÃE *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. 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