The Project Gutenberg eBook of Infanta: tragédia

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Title : Infanta: tragédia

Author : Manuel de Figueiredo

Release date : September 13, 2022 [eBook #68985]

Language : Portuguese

Original publication : Portugal: Ed. Lusitania

Credits : Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK INFANTA: TRAGÉDIA ***

[Pg 1]

INFANTA

[Pg 2]


DO AUTOR

Oração da Raça 1918
Infanta 1921
a seguir :
O Rei Luziada

EDIÇÕES LUSITANIA
Rua Arco do Limoeiro, 17, 1.ᵒ-Lisboa


Todos os direitos reservados

[Pg 3]


INFANTA

TRAGEDIA POR

MANUEL DE FIGUEIREDO

[Pg 4]


[Pg 5]

Diz a Lenda que certo Poeta se apaixonou por uma filha do Rei D. Manuel I, o Venturoso. Chamava-se a Princeza, Beatriz e o Poeta, Bernardim.

A Infanta foi Duqueza de Saboia, e, exilada no seu Ducado humilde e pobre, deu provas de grande engenho e sabedoria, mas a sua vida, dizem as Chrónicas e a Lenda foi triste e saudosa ...


Este livro não é, nem mesmo em sua origem, a historia do amor do Poeta e da Princeza, ou uma evocação da côrte manuelina.

Só depois de abstractamente ter «vivído» o sonho das Descobertas e das Conquistas, e de ter encontrado, para mim, o seu significado, procurei as personagens, [Pg 6] fixei os seus valores, defini as suas atitudes e os seus gestos.

Tem portanto este livro um sentido mais alto e mais profundo. É a Tragédia d'um momento que passou e a crença, a fé, a certeza, n'um momento que ha-de vir. É o triumpho eterno da Raça perante o Mundo, os Homens, e o Destino.


Não fiz nem quiz fazer theatro. As personagens têem um sentido mais symbolico do que humano.

A minha Alma viveu o momento passado e visionou o momento futuro:—o Triumpho espiritual da Raça!


[Pg 7]

DRAMATIS PERSONAE

INFANTA
POETA
NAUTA
ASTROLOGO
PINTOR
UM BANDARRA
O PHYSICO D'EL-REI

AIAS, NOBRES, PAGENS, GENTE DO POVO, MARITIMOS, MULHERES, SOLDADOS E VELHOS.

[Pg 9]


[Pg 11]

Salla ampla, forrada d'Arrazes, abrindo para uma larga arcaria praticável. Por entre as columnatas e os rendilhados da balaústrada, avista-se o rio espraiado e colorido. Hora de sol-poente. Na distancia, terras em bruma.

[Pg 12]

PINTOR— na arcaria

O Céu está um boqueirão de fogo. E no movimento constante do vai-vem das aguas, os reflexos de luz estão bailando como se fôra um bailado de pedrarias a arder.

Sinto que os meus olhos enlouquecem de tanta luz, de tanta côr...

POETA— que se aproximou

Olha antes, álêm, os galeões que hão-de levar a Princeza!

Sem vellas, lembram ossadas...

[Pg 13]

Envolvem-nos as sombras, e as sombras são caricias de abandono e esquecimento, adormecendo meus olhos magoados...

PINTOR— surprêso

Para que continuar sonhando?...

POETA— n'uma exaltação quási desvairada

Sonhar é bem differente!

É crear um mundo nosso, onde uma só alma exista, e n'essa alma, a alegria e a dôr do Universo. É modelar o nosso sonho numa imagem, e nessa imagem viver milhares de vidas!... Vivê-las encantado n'um momento, soffrê-las perdidamente até á loucura, resurgi-las depois em novas formas, para de novo as soffrer e exaltar!...

[Pg 14]

O sonho que é attingido, que se deixa tocar, desfaz-se, aniquila-se, em esquecimento, em abandono.

Para viverem, meus sonhos em cada hora se transformam.

A imagem é sempre a mesma, é sempre Ella; n'Ella os encarno e lhes dou vida...

PINTOR

E é assim que pouco a pouco vai morrendo o amor desvairado d'outr'ora?...

POETA— sereno, quasi indifferente

Adormecendo, dizei antes, que morrer é apenas um gesto; o vôo necessário para uma vida maior.

Morre-se na vida infinitamente. Morre-se sempre para viver... até ser attingida a luz final, suprema, em que vida e sonho se confundem...

Na imagem, na sua imagem mystica, dulcissima, o [Pg 15] meu amor é sempre o mesmo; na alma, maior, sempre maior...

PINTOR

Mas para que soffrer, agora que vai partir, tão doidamente?

POETA— muito calmo

Para a remir em minha dôr! Exalta-la no meu coração—altar do seu sacrificio!

Para a santificar na minha alma!

n'uma mudança brusca

Conheces bem as terras para onde vai. Por lá andaste, peregrino annos e annos e d'ellas tens dito maravilhas...

[Pg 16]

PINTOR

Minhas palavras, de tão pouco que dizem, são quási mentirosas...

POETA

Eu nunca sahí d'esta cidade de maravilha e de encanto, mas n'ella tenho sentido, vivido, o mundo inteiro!

em exaltação

Que importa o mundo?! As maravilhas estranhas de que fallais que importam?

A vida estonteante, allucinada, que me cerca, tem para mim, agora, a indifferença da morte e é de agonia a alegria em que vivo! Ando a enterrar a toda a hora as minhas dôres. Sou um eterno coveiro, e cavo fundo, fundo, mas os sonhos—ai de mim!—tambem teem alma!

Como hei-de enterrar minhas saudades!?

[Pg 17]

com dolorosa serenidade

Vai partir... Longe, alguem a espera!... E vai tê-la em seus braços, possui-la!...

Amar, é a dor mais forte e mais profunda, a dor que humanisa a creatura e a torna mulher.

Ella será mulher tambem... Mas a sua alma—eu sei, eu sinto—estará longe, estará distante, indecisa, como receosa de acordar para a vida, receosa de adormecer na morte!

n'um esforço de recordar, materialisando

Nunca os seus olhos serenos, suavissimos, de princeza e de menina, me olharam. Se os encontro, fogem, receosos...

Não sei o que elles buscam olhando os longes?! Ficam vagos, anciosos, illuminados, distantes... Olhar immenso, olhar profundo, visionario, de sonho, d'amor e de triumpho!

Nunca os seus olhos me olharam assim! Parecem sorver a luz! Embebem-se de luz como o céu ao acordar; [Pg 18] são sombras de soes os olhos d'ella! Prendem-se na distancia, e assim presos, de encantados, por largo tempo nada vêem! E como ella fica então queda e hieratica!

dolorosamente

Para a sonhar de novo, em nova forma, anniquilo a minha carne, despedaço-a!

Nunca mais a verei olhando os longes, assim immaterial, assim divina...

Vai partir... Um principe a espera... Para que veio até mim quem tão alto nasceu?!

PINTOR— suavemente

E para que tão alto erguer os olhos? Há, na Terra, imagens que são sombras; lindas para ver, não para sonhar!...

Fóra, vozes, entrecortadas, gritam

[Pg 19]

O POVO

A armada!—A armada que volta!—A frota toda!—A nau S. Bento!—Santa Maria da Barca!—O galeão maior!—Deus os levou, Deus os trouxe na sua guarda!—Deus é Pae!—Deus é bom!—Pela Virgem Mãe!—Pelas Cinco Chagas!—Milagre!—Milagre!—A armada!—A frota toda!—A armada!—Vinde ver!—Milagre!—Milagre!—Deus os salvou!—Deus os trouxe na sua mão...

Continuam vozes

PINTOR

Não ouves?...

indo á arcaria

Na frota que entra a todo o pano, de tão vermelhas que veem, as vellas lembram enormes labaredas!...

[Pg 20]

POETA— longe, distante, com dôr que tenta visionar para soffrer, continuando intimos pensamentos

Há-de tocá-la!... Há-de beijá-la... Far-se-há carne tambem a sua alma!...

ao pintor, que de novo se aproximou

Aquellas vozes?!

PINTOR

De longe que estavas nem me ouviste... A frota grande que volta e entra a barra:—o povo, de joelhos, rezando na praia.

Escuta... vem gente...

POETA— depois de curta hesitação, indo á arcaria, dominado

Encantamento da morte!

[Pg 21]

Pagens afastam o largo reposteiro de brocado. Entram, lentamente, a Infanta, suas aias e alguns nobres. O Poeta e o Pintor, de joelhos, beijam as mãos á Princeza—esguia, branca, serena, triumphal.

INFANTA

É «Frol de la mar» que vem entrando?

PINTOR

Se os meus olhos não mentem, julgo ser...

UM NOBRE— na arcaria

O galeão maior... Santhiago... Santa Maria da Barca... A nau São Bento... Toda a frota.

[Pg 22]

UMA AIA

A Senhora ouviu os nossos rogos pelos que andavam perdidos por sôbre as aguas do mar...

OUTRA AIA

Levou-os e trouxe-os em sua guarda...

INFANTA— que lentamente se aproximara da arcaria, depois de um longo silencio, com deslumbramento e mysticismo .

É mais, muito mais do que uma armada entrando de novo a barra!

Ha almas n'aquellas vellas:—sinto-as, vivem, palpitam em mim!

exaltando-se

São como mãos do Destino aquellas naus! Ellas andam [Pg 23] buscando, a toda a hora, o mundo maior que Deus creou! Andam buscando, perdidas entre as ondas, os reinos da luz e do mystério, os reinos das pedrarias e do oiro!

Errantes, sem rumo, á aventura, foram quebrando o feitiço ás ilhas perdidas do mar! As ilhas, castellos encantados, que, por nossa voz, despertam a cantar! São como nossas mãos aquellas naus!

Dia a dia, andam realizando o nosso sonho! Abrindo nossos olhos deslumbrados ante horizontes novos e estranhos! Por ellas, transfigurado, o mundo acorda, desperta, da noite negra! Por ellas o mar e a terra são maiores! Por ellas o céu tem mais estrellas!

São como mãos do Destino aquellas naus! São como nossas mãos! São como mãos de Deus!

nos olhares deslumbrados da côrte passam, por momentos, as palavras da Infanta.

Ao Poeta

Que faz alêm, na praia, o povo?!

[Pg 24]

POETA

Chora saudades...

INFANTA

Chorar?! E de joelhos?!...

POETA

Rezam...

INFANTA— quási com violencia

Mas para que rezar, chorando?! Eu rezo erguendo um cantico em minha alma deslumbrada.

Se fossem esquifes as caravellas e as naus, como rezar? Como rezar pelos mortos?

[Pg 25]

Só o sol é triumphante e glorioso! E é n'aquella luz de poente, n'aquelle céu em fogo, triumphal, supremo, que eu rezo a minha oração.

Em vez de cantarem a morte gloriosa, rezam pedindo a vida humilde que renuncia ao sonho creador... Ajoelham-se... Cegam os olhos, baixam-nos para a terra, quando os deviam abrir á luz e erguê-los para o Céu!

UMA AIA

Perdoai, mas o povo, Senhora, é simples demais para comprehender...

INFANTA

Mas não para sentir! As arvores não veem o sol, mas sentem-no e adoram-no, e para elle estendem sempre [Pg 26] seus ramos, e para elle vão crescendo sempre, para mais o sentir e adorar!

A intelligencia vê, o sentimento adivinha!

E o mundo, por nós, é maior, mais bello, em cada dia! Communga em nós a toda a hora, e por nós se redime e engrandece!

olhando vagamente em seu redor

Olho os montes d'alem, aquellas terras, o rio e a casaria e tudo que me cerca, tudo, tudo, tem para mim o encantamento de um mysterio no maravilhoso de uma revelação. Tudo ri e canta e vibra e se espiritualiza em reflexos!

Só o povo chora e reza! Sente dôr o povo? São de dôr as suas orações? Em vez de entoar canticos reza ladainhas?

á côrte

E vós?! Acaso não sentis como eu tambem? Olhando as náus, só vêdes náus?!

[Pg 27]

sahindo fóra, á arcaria

Olhai agora. Vêde, como ellas vêem! A Cruz n'aquellas vellas ganhou azas. Está mais perto do Céu, é mais divina!

com violencia

Não sentis em verdade como eu?

Não olhais para aquellas naus como milagres de Deus?!

Não comprehendeis que é um mundo de phantasmas, tenebroso, horrendo, sombrio, que desappareceu, illuminado por nova luz, por nossa luz? Que o novo mundo que nasce em novos povos, em novas terras, em novos ideais, é nossa creação?!

em exaltação crescente, com violencia maior, n'uma alucinação

Onde estão os mares de sangue? Os mares de fogo? Os deuses infernais, os gigantes disformes, horrorosos, os negros boqueirões dos abysmos profundos?! Ilhas de morte! terras de fogo! brumas eternas! onde estais?!... onde estais?!...

[Pg 28]

UMA AIA— baixo, a outra aia

Como desvaira...

POETA— a meia voz, ao pintor

E sempre longe... cada vez mais longe de nós!...

INFANTA— mais calma, continuando

É um mundo de sangue e de morte, creado pelos homens, que desapparece. É um mundo novo de vidas novas que nasce, e em que se ergue bem alta, na tragedia suprema de luctar e vencer, a luz de Deus!

Os deuses infernais onde estão elles?!

São como nossas mãos, são como mãos de Deus, aquellas naus!...

[Pg 29]

POETA

Mas ha cadaveres, Senhora, boiando no mar...

INFANTA

Que importa triumphar ou morrer, quando, na morte e na victoria, se reza o mesmo cantico, vivendo o mesmo sonho?! Se, para alem da morte, a alma continua, e da vida ficou, em rasto triumphal, uma Via-Lactea de Herois, perpetuando...

ao pintor

Fixai bem a armada...

PINTOR

Meus olhos, em seu deslumbramento, estão cegos, Senhora!

[Pg 30]

Movimento entre o povo, sussurro, vozes...

UMA VOZ— atona, sombria

Dia e noite, ha uma estrada de luar por sobre as águas... São os mortos que vão a enterrar... São os mortos, amantes das vagas... Cortejo de naufragos, por cyrios de luar alumiados...

Olhae, olhae agora... É a estrada da Morte que a armada vem seguindo...

INFANTA— com horror

O agoiro...

UMA AIA

Vinde, Senhora, não lhe deis ouvidos.

[Pg 31]

UM NOBRE

Que os pagens o mandem afastar...

INFANTA— em grande exaltação

Que o afastem. Que se cale. Que ninguem o ouça. Mente!... Mente!...

caindo em si, n'uma mudança brusca, novamente serena

Calai-vos. Eu quero ouvir, quero entendê-lo. Como disse elle? Cortejo de naufragos...

A VOZ— novamente

Mas qual rumo seguir? Olhai! não vedes?! É a Morte que vem por timoneira...

[Pg 32]

A luz, pouco a pouco, torna-se crepuscular. O rio escurece. As terras, na distancia, desapparecem na bruma.

VOZES DO POVO— desencontradas

Cala-te!—Cala-te!—Mau agoiro!—Pelas Cinco Chagas!...—Pela Virgem Mãe!...—Misericordia!—Misericordia!...

INFANTA

O povo nem o olha; tem-lhe medo!

De rastos, de joelhos, a gritar misericordia! Que estranho e desvairado está o povo!

O «BANDARRA»— afastando-se

Mas para que rezais?... para que chorais?!

[Pg 33]

Olhai o sol, olhai a luz! É tudo oiro... é tudo oiro!... O despertar não tarda, mas ainda não veio...

Por que chorais? É tudo oiro... Toca a cantar... toca a bailar, que ainda é folia...

Olhai!... porque rezaes?! Bailai!... Bailai!...

VOZES DO POVO— a distancia, entrecortadas

Por Santhiago!—Pela Virgem Mãe!...—Misericordia!—Christo, ouvi-nos!—Christo, valei-nos!—Christo, ajudai-nos!—Ave agoirenta!...

INFANTA

Que tem o povo? Que loucura a d'elle! Que estranha voz! Quem o entendeu?

olhando em roda

Ninguem?! E mestre Lopo onde está? Ide chamá-lo...

[Pg 34]

ao Poeta e ao Pintor

Ficai...

a um fidalgo

Trazei-mo aqui.

A VOZ DO «BANDARRA»— ainda mais distante

Porque rezais? É tudo oiro... é tudo oiro... Toca a cantar... Ide bailar... Toca a cantar que ainda é folia!...

Curto silencio. A tarde continua escurecendo.

INFANTA— recordando, como n'um sonho

Quando eu, criança ainda, ia com El-Rei meu Pae ver chegar as naus, o povo não rezava, não chorava... Cantava e ria o povo; e era ainda cantando que resava! [Pg 35] Agora chora!... Porque estranha loucura chora o povo agora?! Que vê, que sente, elle?!

A terra tem o mesmo encanto e a mesma alegria o céu! É o mesmo scenario de magia. E o povo chora... e o povo reza...

Parece não vêr o que o cerca; fica como cego a ouvir o agoureiro. Chamam-lhe a Ave-agoirenta; receiam-no, temem-no, acreditam n'elle!

Mas que verdade, teem, acaso, as suas fallas?! A sua voz, fria e distante, lembra morte, é certo. É uma voz d'alem tumulo, d'alem vida—prophetica! Ainda a julgo estar ouvindo!...

UMA AIA

Desviai de vós, Senhora, tão negro imaginar. Para que recordar palavras doidas? Para que estar, Senhora, a dar-lhe ouvidos?!

[Pg 36]

INFANTA— impressionada

Palavras doidas sim, palavras doidas!... Se não fôra o tom da sua voz! Como ella é fria, fria, e lembra a Morte!

UM VELHO PHYSICO— rudemente

A Morte não vê, não falla, não ouve. É cega, é surda, é muda a Morte! Para que estar, Senhora, imaginando que ella pode fallar na voz de um doido?

Eu, que sou physico d'El-Rei, e já um velho, a quem a morte de manso vem tomando, por vezes, estudando as caveiras interrogo-me!

Olho-as bem... Vejo n'ellas o meu dia de amanhã, e não as olho com horror; pelo contrario, vejo-as com amor, com simpathia... e até, recordando as minhas dôres, acaricio-as!

[Pg 37]

As orbitas não teem olhos; as boccas não teem lingua; os ouvidos são buracos apenas. Não podem ouvir, nem ver, nem fallar!

Porque, Senhora!? Porque a Morte é paz, socego, anulamento; é nada... Os mortos dormem e não querem que os acordem. Que se importam elles dos vivos, se repousam!?... Deixai a voz do doido...

INFANTA— serenamente

Porque só olhaes e interrogaes caveiras não podeis comprehender os mysterios que nos cercam. Só mestre Lopo, que lê nos astros, poderá dizer toda a verdade.

Docemente, na distancia, os sinos tocam as Trindades.

Ave-Marias! Rezemos...

pondo as mãos, em prece, mysticamente

E um anjo do Senhor, cheio de luz, desceu dos Céus á Terra e disse: «Ave-Maria cheia de graça, o Senhor é comtigo...»

[Pg 38]

Silencio. A corte ajoelha e reza por momentos; os pagens, acendem luzes.

INFANTA— finda a oração, indo á arcaria

Como é grande a calma religiosa d'esta hora!

Como anoiteceu depressa! A terra dorme já em sombra e bruma. Só o rio e o céu teem ainda luz!

PINTOR

Tudo adormece em silencio, tudo dorme...

Só eu fico ancioso esperando a madrugada! Tenho ancia de luz como as flores e as aves! As sombras são negras, entristecem-me; fico como cego. Só no sol, só nas côres, sinto a vida e tenho alegria e ancia de viver.

[Pg 39]

POETA

A luz só a adoro, só a sinto, no adormecer suave d'esta hora, em que a natureza inteira está tambem de mãos postas a rezar!

Luz que queima, que enlouquece, e tudo revela, tudo acorda, eu a maldigo!

Luz que é fogo em minha alma, e maravilha em meus olhos, eu a odeio.

Mas esta, em que a saudade se deixou cruxificar, e tem mãos de mysterio e acaricia, e vem de manso afagar meus olhos, embalando meu sonho pela noite fora, e em negrumes abafa minha dôr, dando-me paz, serenidade, calma, esta, Senhora minha, eu a adoro, eu a bendigo.

INFANTA

Mas porque odiar assim a luz, assim a vida?

[Pg 40]

POETA— com intensão

Porque acorda... Porque tece feitiços de loucura... Porque illumina, revela, transfigura. Porque cria sonhos. Imagens que são reaes e que se afastam, que vemos e não podemos alcançar...

Odeio a luz, Senhora, porque ella illumina o meu soffrer, e entra em meu coração e abre-o de par em par ao soffrimento!

Porque estendo os braços, anciosos, loucos, e meus braços se perdem no ar!...

Vejo o meu sonho e não o alcanço... Tenho-o junto a mim e está distante... E soffro mais ainda!

Antes a noite! Vejo-o, sinto-o, palpita e vive em mim, como se meu coração ganhasse azas e em meu peito ficassem a bater, como a quererem livrarem-no da Morte, antes da Morte vir e lhe tocar!

[Pg 41]

INFANTA

Mas se sonhais... O sonho é pensamento, não se vê, nem se alcança, só pode ser imaginar...

POETA— muito calmo

Senhora, perdoai... Tendes razão, por certo. Mas foram meus olhos, de encantados, que peccaram, foram meus olhos que sonharam primeiro.

Elles viram, sentiram, deslumbraram-se. Que culpa teem elles?! Depois... minha alma enlouquecida, encheu-se de sombras e de dôr!

E a Dôr é a grande alma do Universo, que entrando em nós toma-nos todo, torna-nos meninos em seus braços, e fica a embalar-nos para a Morte, a cantar e a chorar!...

[Pg 42]

Senhora, por muito alto que estais, perdoae ter-vos fallado de mim...

Um longo silencio.

VOZES DO POVO— mais dolorosas, mais espaçadas, mais distantes

Pela Virgem Mãe...—Por Santhiago...—Miserere nobis...—Misericordia!...

INFANTA— com forçada naturalidade, como querendo, fallando, affastar seus pensamentos

E sempre o povo!... Escutai... ainda se ouve... Só o sinto rezar, só o ouço chorar!... Assim só se reza pelos mortos...

Mestre Lopo entende o povo?!

[Pg 43]

POETA

Mestre Lopo nunca vê o povo. Foge da multidão com horror, quasi com medo.

Sosinho, em silencio, olha as estrellas toda a noite. E levado por ellas, em seus roteiros, é um caminheiro do céu, a desvendar segredos de Deus!

INFANTA

Oh! quem me dera ver como elle vê! Desvendar o mysterio... mas eu olho o céu e nada vejo.

O PHYSICO

Comprehender estrellas, em verdade vos digo, Senhora, que não entendo. Parece-me phantasia ou loucura de astrologo.

[Pg 44]

POETA

Olhá-las e escutá-las!... Quantas vezes meus olhos, pela noite, as teem ouvido...

UMA AIA

Que dizem ellas?

POETA— indiferente

Trovas... Talvez as minhas...

O vozear do povo toma-se mais intenso.

INFANTA

O povo... o povo, que desvairado está! Que loucura a d'elle! Não o entendo, nunca o vi assim!

[Pg 45]

UM NOBRE

Chora e reza, mas acreditae, Senhora, que não sabe porque o faz. Chora e reza como poderia cantar e bailar...

INFANTA

O povo é adivinho,—todos dizem... Sente apenas. O povo chora; soffre. Reza; tem medo. A alma do povo é de presagios.

A mestre Lopo, que entra

Bemvindo sejaes Mestre Lopo.

ASTROLOGO— ajoelhando e beijando-lhe a mão

Em que vos posso servir, Senhora Infanta?

[Pg 46]

INFANTA

Dizendo-me o que dizem as estrellas...

ASTROLOGO— hesitando

O que dizem?! Em verdade vos digo, Senhora, que não sei.

INFANTA

Porque não dizer a verdade?! Porque fingir não saber?!

vincando as palavras, com intenção

Não ha presagios negros pelo céu?...

ASTROLOGO— mais hesitante ainda

Presagios!... Muito ao longe, talvez... De distantes que estão ainda os não poude comprehender.

[Pg 47]

INFANTA

Mas porque chora o povo?

Porque reza chorando? Porque, de joelhos, pede misericordia? Porque em grita desvairada, louco, transfigurado, parece ver naufragios?! É a armada que entra triumphal e dir-se-hia estar vendo entrar esquifes...

E o agoireiro! Mestre Lopo, dizei-me, se sabeis, que sentido querem ter as suas fallas?

ASTROLOGO

Não sei, não sei!... O povo sente, Senhora, e eu só sei comprehender os mystérios do céu.

O povo sente a morte já?! Ainda está longe, muito longe, mas foi isso que o agoireiro quiz dizer.

A armada vai fundear, e o povo bailará ao redor dos que chegaram... O povo é bailador. Ainda é folia.

[Pg 48]

Bailará á luz dos archotes, dos brandões, logo, no terreiro. E o agoireiro julgará ver, não archotes, mas cyrios...

INFANTA— serenamente

Quereis dizer... É a Morte que vem?!

ASTROLOGO

De manso, a rastejar... E vem tão linda! Cobrem-na brocados, pedrarias... Nem parece ella! Mas não me deis ouvidos, que isto diz o povo e não estrellas...

A Princesa pouco a pouco transfigurou-se; parece nem vêr, nem ouvir.

Approxima-se de novo da arcaria. O povo está silencioso. A côrte segue-a. Hierática e serena, fita longamente as naus, negras e vagas, levemente tocadas pela luz quási extinta do crepusculo.

[Pg 49]

INFANTA— violentamente

Dominar! vencer!—razão suprema, humana, do destino dos homens sobre a terra. Transfiguração do triumpho em soffrimento, exaltação da morte pela morte, da alma pela vida!

Vencer o mar, desvendar os mysterios, por ancia de luctar e renuncia de viver a vida passageira, vencendo da morte o esquecimento! Ha uma Via-Lactea de guerreiros mortos a envolver o mundo, um enterro de naufragos a povoar o mar!

Por nós o mar tornou-se Humano!

Por nós o mundo é já Divino!?...

Silencio profundo de assombro e de terror, como se mãos mysteriosas, invisiveis, a todos prendessem. Immobilidade completa: nem um gesto; olhares que a medo se interrogam.

A vida arrasta-se sem fim; momentos são horas.

[Pg 50]

Sem ruído, entra um pagem; queda-se surpreso por instantes, olha em roda, e, lentamente, de manso, acerca-se da aia; fallam baixo, muito baixo.

A AIA— hesitante, approximando-se da Infanta, a custo, como receando

El-Rei, meu Senhor e vosso Pae, espera-vos para seroar...

A Infanta não a ouve; continúa extática. O silencio é agora maior e mais pesado.

A AIA— mais hesitante, mais baixo

Senhora, perdoae... mas El-Rei, meu Senhor e vosso Pae, espera-vos para seroar...

[Pg 51]

Numa immobilidade de estatua, a Princeza continúa olhando as naus.

Silenciosas, inconscientes e hesitantes, como somnambulas, dominadas, as aias afastam-se, abrindo alas. A Infanta desperta. Olha, cansada, os que a rodeiam. Interroga-os com um olhar: comprehende, tem um gesto vago de recusa, fixa mais uma vez o rio e os longes, e, deixando-se ir como arrastada, sahe, seguida da côrte. Os pagens levam os candelabros. A luz do crepusculo é extinta. Só negrumes. Nas columnatas bruxoleam vagos clarões.

A VOZ DO BANDARRA— fóra

Bailai, bailai, que ainda é folia!!...

Acendei cyrios... Trazei mais cyrios... Acendei mais...

O povo, com os que desembarcaram das naus, canta e dança, no terreiro, á luz d'archotes.

[Pg 53]


[Pg 55]

Uma das sallas da camara da Infanta, abrindo sobre o rio por duas grandes janellas abertas de par em par.

Forram-na brocados de seda branca e oiro palido; veludos doirados cobrem os coxins. Na parede da esquerda, ao centro, sobre um estrado, uma cadeira de espaldar alto, coberta de pano de oiro, tendo por fundo uma tapeçaria armoriada e, a encimá-la, um docel de lhama. Mesa rendilhada de marfim e embutidos d'oiro, ao centro, sobre uma alcatifa oriental.

Á direita e á esquerda portas cobertas por damascos brancos, brazonados.


É uma salla de luar em que o outomno deixou cair as folhas...

[Pg 56]

Aias trabalham afanosas, em silencio, dobrando grandes peças de brocado d'oiro, de lhama prateada, de sedas damascadas. Outras, sentadas nos degraus do estrado, escolhem joias, que passam de mão em mão, e que a aia Leonor—pequenina como feita para o dedal—entrega á princeza.—Escurece.

Uma das aias canta em surdina :

« Estava a bella Infanta »
« No seu jardim assentada »
« Com o pente d'oiro fino »
« Seus cabellos penteava. »
« Deitou os olhos ao mar »
« Viu vir uma nobre armada; »
« Capitão que n'ella vinha »
« Muito bem que a governava. »

[Pg 57]

INFANTA— com abandono, deixando cair lentamente pedras soltas, uma a uma, na mão da aia

São como gottas de sangue estes rubis... Pedaços de céu estas saphiras... Lágrimas de estrella os diamantes...

UMA AIA— acercando-se da janella aberta

Já vai anoitecendo... É sempre o rio o mais lindo vitral a esta hora.

INFANTA

O entardecer é feito de vitrais...

A AIA

Até o casario, em reflexos, parece feito de crystal.

[Pg 58]

OUTRA AIA

E o luar já vem de manso. Para os lados d'alem, por traz d'aquellas serras, ha uma luz azulada, um vago clarão...

OUTRA AIA

Arrefece.

á Infanta

Que a aragem fresca e leve, que vem do mar a esta hora, vos não faça mal, Senhora!

INFANTA

Socegai...

Lisboa, ao luar, é uma cidade d'almas, acaricia.

bruscamente

O mar, Leonor, quando fez mal?

reparando num collar de esmeraldas que a aia segura, [Pg 59] pegando n'elle, e passando-as uma a uma pelos dedos, como contas de um rosario, depois de um momento de silencio, como se fallasse para si, sonhando alto

Ha vagas mais verdes e mais lindas ainda que estas esmeraldas... Eu gosto das esmeraldas porque me lembram o mar. O mar é verde, sempre verde; eu nunca vi o mar azul,—azul é o céu e o rio.

Olhar o mar não é ir vê-lo de longe, é ir até elle, até bem junto d'elle, é vê-lo e senti-lo em cada vaga que vem bater na penedia e desfeita se espraia pela areia... É vê-lo soffrer! É vê-lo luctar! Ondas que veem, que se espraiam, que vão, que voltam, que luctam sempre, e não repousam e não descançam em eterno soffrer!...

Silencio. Voltando-se para a aia Leonor

Tu tambem vês, Leonor, como os mais, o mar azul?

Tu tambem crês que o mar, o verdadeiro mar, é aquelle que se estende sereno até ao horizonte distante, azul, muito azul?

[Pg 60]

A AIA

Eu vejo o mar azul...

INFANTA

Tu olhas o céu no mar, diz antes, mas diz tambem que nunca viste o mar.

A AIA

Eu nunca soube ver como vós, Senhora!

INFANTA

Por que tens medo de ir até á praia e de estar junto d'elle, como eu, quando as vagas veem umas sobre outras, enormes como vellas ao vento, bramindo, rugindo... São mãos potentosas, gigantes, que se desfazem em espuma.

Nunca olhaste de frente as vagas?! Nunca as viste, [Pg 61] Leonor, em transparencia?! Pois são verdes, mais verdes e mais lindas ainda que estas esmeraldas!

A AIA

Eu nunca soube ver o mar...

depois de um silencio, procurando n'um anel de opala os reflexos, e mostrando-a á princeza

Como é mysteriosa e tentadora! Se as pedrarias tivessem vida ... se ellas morressem ... eu diria que tinham escolhido as opalas para sarcophagos das suas cores...

OUTRA AIA

Trazem desgraça as opalas. São como maus olhados... Teem fogo ... queimam...

INFANTA

São lindas! São phosphorescentes como o mar em noites negras!... [Pg 62] Mas escurece... Os pagens que tragam os candelabros. O nauta, dentro em pouco, estará comnosco...

UMA AIA

Já ha luar. O rio e o ceu estão de lhama...

INFANTA

Pouzem as minhas joias; não as guardem...

A AIA

E o diadema?

INFANTA— atenta

Tambem... pousai tudo... deixai ficar...

levantando-se e acercando-se dos vitrais, após curto silencio

Tantas luzes, alem, subindo a encosta! Quasi se apagam... [Pg 63] scintillam mais, agora... Vão em filha... par a par...

chamando a aia

Repara, Leonor. O que será?

A AIA— hesitante

Talvez o Santo Viatico... talvez procissão... Mas o rio está tão lindo!

Olhai antes o rio...

INFANTA— já não a ouvindo, attenta, em expressão de dôr

Mas ouve-se cantar. Não ouves? Cantam ou rezam?

A AIA- insistindo

Olhai antes o rio... aquellas naus...

[Pg 64]

INFANTA— sem a ouvir

Porque será, Leonor, que os cantos de hoje são tristes, sempre tristes?! Porque foge o povo do sol e só canta e baila pela noite, como hontem?!

Parece ter medo da luz e só gostar de se esconder nas sombras... Os seus bailados, á luz dos archotes, lembram rondas de mortos, de phantasmas...

E se mestre Lopo tivesse razão?

agarrando-se á aia, com horror

Não respondes? Tambem tu acreditas, Leonor?!

em grande exaltação

Acaso as caravellas mentem?! Acaso os mundos novos não existem, e são alucinações e são chimeras?!

depois de um silencio

E as novas estrellas!? Que dizem ellas? Quem as ouve? Quem as procura entender?

Leonor, tu não respondes!... Tambem tu julgas?! Tambem tu acreditas?!...

[Pg 65]

A AIA— meigamente

Mas socegai... Bem sabeis... eu não sei.

INFANTA— repentinamente calma, noutro tom

Olha a sombra d'aquellas naus, alem. São sombras d'azas, voam sempre!

Mestre Lopo engana-se, as estrellas enganam-no.

Ouve-se de novo o canto, mais distintamente:—é como um côro

Aquellas luzes, aquelle canto, fazem-me mal. Fechem os vitrais por agora...

A AIA— baixo, a outra aia, emquanto a Infanta volta para a cadeira de espaldar

Não percebeu... Rezemos baixo... É um homem da armada, um mareante, que vai a enterrar...

[Pg 66]

A OUTRA AIA— com desalento

Mais um!... Mais um!... E já são tantos!

Batidos pelo luar os vitrais illuminam-se.

INFANTA

Como são lindos assim, estes vitrais!

A AIA— depois de um momento, como a findar as orações

Lembram até, pela suavidade do colorido, as illuminuras do vosso livro d'horas...

INFANTA

O luar que as illumina é um luar de reflexos, um luar d'aguas. Abrem sobre o rio...

[Pg 67]

As janellas d'este paço estão mais altas que as de nenhum outro; quando d'ellas me acerco eu vejo o mundo!... e sinto-o e ouço-o palpitar em seus anceios—coração do Homem e de Deus!

n'um recordar enternecido, saudosissimo

Deitam sobre o rio as janellas d'este paço... E foi d'ellas, de junto d'esses vitrais, que eu ainda tamanina, de olhos muito abertos, deslumbrados, vi chegar as naus e caravellas que foram um dia em busca do imperio, por mares distantes... ignorados... mysteriosos...

em recolhimento de intimos pensamentos, passando pelos dedos as perolas do collar

É um rosario de saudades o meu collar... São contas de saudade as minhas perolas...


Os olhos da princeza, fixos, pasmados, revêem o passado. As aias trocam olhares, fallam a medo... Um silencio de vida adormecida.

[Pg 68]

De repente, distinctamente, gritos da multidão, ululante, desvairada, fanatica, sanguinaria.

A MULTIDÃO

Á morte!—Á morte!...—Herejes malditos!—Filhos de Satanaz!...—Perros tinhosos!—Bruxos de perdição!—Malditos!—Malditos!—Por Jesus Christo!—Pelos nossos filhos!—Á morte!—Á morte!...

UMA AIA— abrindo uma das janellas, espreitando receosa, e fechando-a em seguida

O povo anda perseguindo mais uma vez os Christãos-Novos...

INFANTA— com soffrimento e como despertando d'um grande sonho

Os Christãos-Novos! Julgara ter ouvido gritos de combate em terras de além-mar...

[Pg 69]

Muito de manso entram os pagens com os candelabros; fallam baixo as aias. Um grande silencio religioso .

UMA AIA— á Infanta

O nauta aguarda, Senhora, as vossas ordens...

INFANTA

Entregaste-lhe as minhas prendas? E ao pintor? E ao poeta?

a um signal afirmativo da aia

Que venham em bôa hora!

As aias, sem ruido, todas de branco, veem cercar a Infanta, sentando-se uma a uma nos degraus do estrado. Sobre a mesa, dispersas, brilham as pedrarias. Á luz dos candelabros os diamantes do diadema scintillam em fogo vivo. A cruz, a esphera, e as quinas dos vitrais, em [Pg 70] coloridos suavissimos, são brazões de luar, brazonando o Infinito .

Entram o Nauta, o Astrologo, o Pintor, o Poeta e alguns nobres .

O NAUTA— ajoelhando, tirando a espada da bainha e pousando-a no degrau do estrado

É vossa a minha espada...

INFANTA

Que São Jorge proteja a tua espada...

PINTOR— beijando a mão á princesa

As minhas graças, Senhora, pelas mercês e honras que de vós recebi.

INFANTA

Uma lembrança...

[Pg 71]

POETA— ajoelhando

Bendita sejais, Senhora, eternamente, entre as mulheres...

INFANTA

Uma lembrança...

ASTROLOGO

As minhas bençãos vão para vós, Senhora!

INFANTA

Que Deus as confirme... Queria que viesseis para ouvir tambem, e ouvindo, dizer ás estrellas, a grande, a eterna prophecia.

fitando-o

Não acreditais?!

[Pg 72]

Ao nauta

Travara-se o combate... Contai...

Silencio. Todos cercam o estrado; só o nauta fica frente á Infanta .

O NAUTA— alheado

Como dizer-vos?... Era como se o mar, desobediente a Deus, entrasse pela terra dentro em furia insana... Cada homem, Senhora, era uma onda potentosa, gigante e indomavel.

INFANTA— enlevada

Somos como o mar! O mar humanizou-se em nós... Temos a voz do mar em nossas almas, temos a força das ondas em nossos braços!...

silencio

Ias dizendo...

[Pg 73]

NAUTA

Que tão grande era a força dos guerreiros que dir-se-hia que a força do mar estava n'elles! Os que ficaram na armada não fallavam, e eu mesmo, por mim, não sei se viviam. Eu não sabia onde estava, se no céu, se na terra, ao ver tanta façanha! Não sentia o corpo, e ainda agora penso se não foi sonho ou visão tudo o que vi!

Em nosso redor só havia gritos:—gritos de triumpho, gritos de dôr, gritos de morte! Por São Jorge os nossos abriam clareiras na multidão alucinada. Por Christo tocavam as trombetas, abafando o canto plangente, o choro louco, das mulheres, das crianças e dos velhos. As lanças e as espadas reluziam ao sol como rubis, mas o sangue não abafava o grito agudo e frio do bater dos ferros, do chocar das laminas! Gritos, só gritos, Senhora, em meu redor!

De repente, entre as gentes no combate, avistei o grande [Pg 74] Capitão, cercado, perdido, abandonado, entre as lanças dos cavalleiros arabes... Quantas lanças? Não sei! Mas eram muitas, todas cruzadas! Era como um silveiral de lanças em seu redor... Lanças que caíram uma a uma, como se fôra tojo a ser rossado!

INFANTA

Deixai a batalha... Em nossos braços os montantes sempre foram foices de rossar lanças... Já de volta ao galeão, o Guerreiro dizia-vos?...

O NAUTA

Que o imperio ainda estava por formar... Que ia mais alem do que julgavamos. E disse então d'esta guiza, ainda me lembro, ainda me parece tê-lo em minha frente, estar a ouvi-lo:

—Tenho que obedecer á voz do meu Destino. Escutar o sonho que me chama para novos soffrimentos, maiores [Pg 75] feitos. Em mãos de infieis estão ainda os Logares Santos. Milhares de homens lá foram para arranca-los ás profanações e nunca Deus quiz que seus desejos fossem realizados. Só um povo de gigantes e de eleitos pode remir as Terras Santas. E nunca um povo lá foi, só foram homens, crentes peregrinos, sonhadores guerreiros, de terras diferentes e estranhas! Eis o Imperio que eu quero formar. Imperio eterno de redempção eterna! Os mundos novos não bastam. Este Imperio é grande para os homens, não para Deus! Fechar os mares em nossas mãos foi empreza facil. A empreza maior é a de maior sacrificio. Esquecerei até ao fim a dôr e o soffrimento dos homens, porque morrer é não realizar o sonho idealizado... Não vamos para a conquista de mais terras;—vamos buscar a eternidade!

ASTROLOGO

Vã gloria a dos homens!... Louco engano de cuidarem eterna a fama de um momento.

[Pg 76]

INFANTA

A alma dos povos vive sempre, passa de geração em geração.

ASTROLOGO

E a memoria dos homens passa breve...

INFANTA

Os crentes não esquecem.

ao nauta

Ias dizendo...

NAUTA— sereno, mas vincando as palavras quasi violentamente

Que era maior ainda, em sonho, em força e em audacia do que o sonho dos cruzados, o sonho do [Pg 77] guerreiro! Ligar todo o Imperio, e sobre elle estender, em benção de eterna protecção, a sombra suavissima da Cruz, bem alta alevantada nas terras remidas dos Santos Logares!... O Imperio de Christo sobre a Terra!

INFANTA— ás aias, numa exaltação de deslumbramento e mysticismo

Abri os vitrais para que o mundo ouça tambem...

ASTROLOGO

Ou para que chegue a este paço, o canto fatal dos Reis-cegos...

O NAUTA— violentamente

Cantaram, é certo... É lenda velha que elles annunciam a morte dos eleitos.

[Pg 78]

exaltando-se

A lenda cumprir-se-ha talvez, mas que importa?! O Imperio já está formado, já existe. É nosso o mar oriental e ocidental, de lés a lés, de cabo a cabo, e por essa costa fóra, ao brazeiro do sol, mil padrões de gloria, marcam os roteiros onde chegaram naus, caravellas, mareantes!

Os mortos mandam eternamente na terra. As almas dos herois e dos santos não morrem; vivem em alma junto dos homens e de Deus! O sonho da vida continúa na morte e cada brazão das quinas é feito de almas:—o sonho d'um santo ou de um heroi!...

POETA

O brazão fatal das Cinco Chagas...

ASTROLOGO

Calvario eterno, de soffrimento eterno, em que a alma deste povo, dia a dia, anda a ser crucificada...

[Pg 79]

INFANTA— bruscamente

Deixai os presagios...

ao nauta

Contai a vizão...

Pelas janellas abertas entra o luar em grandes manchas azuladas .

NAUTA— serenamente, seguro de si, numa certeza religiosa

Como Eleito do Destino, já na conquista da cidade, por graça de Deus, lhe fôra dado vêr Santhiago a seu lado, combatendo os moiros, de armadura branca e de vermelha cruz no manto branco. Havia uma Via-Lactea de conchas luminosas a marcar o roteiro do santo; e n'essas estrellas, o Guerreiro vira naus e caravellas! Esta foi a visão primeira, ante-manhã; depois rubro do sol, aureolado de sol, faiscante de sol, entrara na cidade...

[Pg 80]

após curto silencio

Agora o milagre não foi só para o Guerreiro; nós vimos tambem, eu vi tambem. No céu, para o horizonte, para os lados onde fica a Terra Santa, uma cruz immensa de sangue gottejante, abriu os braços... Enchia o céu... como se o céu fosse a vella maior de uma nau! Tangeu o côro das trombetas, ressoou pelo ar o estrondo das bombardas... E nós vimos, e eu vi, até ser sol-poente, a Cruz a gotejar no ceu azul e immenso a marcar-nos o caminho que o Guerreiro horas antes traçara. Foi então, Senhora, que eu, nós todos que o cercavamos, nos sentimos como elle, eleitos cavalleiros, mysticos cruzados, ungidos pelo Destino!...

á côrte

É esta a nossa fé:—se ousais nega-la, mentis aos homens e mentis a Deus!

Silencio profundo e longo. A Infanta tem o olhar distante e vago preso ao céu. As aias, baixo, murmuram [Pg 81] orações. O nauta, olhar de illuminado, é como cego... O silencio parece não ter fim. O luar, é branco, muito branco.

POETA— baixo, acercando-se do astrologo

A cruz a gottejar!... Repara na noite: o luar cahe como agua das fontes e é mais branco e mais frio do que um marmore...

ASTROLOGO

Cadaveres rosados e quentes onde os vistes, amigo?

INFANTA— como despertando, n'uma exaltação

Não acreditais? Negais tambem?! Negais tudo, até os milagres!? Não acreditais tambem n'elles?!... Negais?!...

[Pg 82]

ASTROLOGO— sereno

Eu creio e porque creio, Senhora, entendo bem... Ha mortos no mar, mortos na terra!... Vã cubiça e vã gloria, levou-nos á loucura...

NAUTA

Cavar leiras de terra, como quem cava sepulturas, é destino dos homens, mas nunca o foi dum povo.

ASTROLOGO— continuando, como se não tivesse ouvido o nauta

A antiga fé está perdida. Os herois, deslumbrando-se com os seus feitos, imaginam-se santos!...

com vehemencia

Porque vencem os homens julgam vencer o proprio Deus! Dantes morriam em santidade nos conventos, [Pg 83] longe do mundo, e chorando e rezando remiam o homem!

Mas era d'antes... Agora...

NAUTA— desabridamente

Morrem a lutar, a batalhar...

ASTROLOGO— sereno

A matar... a escravisar...

INFANTA

Imaginais então?

[Pg 84]

ASTROLOGO

Que é de sangue como a cruz gottejante, este imperio, o nosso imperio, Senhora!

NAUTA— num grito

Por minha fé o juro... Mentis!...

Silencio de espanto, prolongado e doloroso. Olhares que receiam encontrar-se; gestos que receiam acordar o silencio; estatuas...

INFANTA— suavemente, n'uma exaltação mystica, n'uma oração

Sangue bemdicto, porque vive eternamente e revive [Pg 85] a cada hora, em novas estrellas, novos mundos, novos povos!

em exaltação maior, levantando-se

Sangue bemdicto porque floresce. É sangue de sacrificio; almas dadas a Deus para remir outras almas, corpos dados ao mar para buscar outras vidas!...

Com a cabeça deitada para traz, os braços erguidos, as mãos em concha, tocando-se ao de leve, como ofertando rithualmente um calix :

Sangue que eu adoro e que eu bemdigo...

ASTROLOGO— n'uma immobilidade de estatua, com firmesa

Sangue de morte e vã gloria que uma sombra negra envolve, perde e esquece...

[Pg 86]

NAUTA— como louco

Mentira!... Traição!... Mentira!...

INFANTA— estatica, hirta, desce os degraus do estrado. Olha em roda como petrificada; fitando o Astrologo, friamente, quasi serena

E para alem dessa sombra, se Ella existe?...

ASTROLOGO

É tudo sombra; nada sei, nada vejo, para além...

INFANTA

Nada mais dizem as estrellas?!

[Pg 87]

ASTROLOGO— frio, vincando as palavras

Nada mais.

INFANTA— com infinito orgulho

Pouco dizem... e o nosso Imperio transfigurou o mundo!

ASTROLOGO

As maldições do Destino não perdoam...

INFANTA— quasi violentamente

O Destino, por nós, já foi vencido.

[Pg 88]

ASTROLOGO— sereno, fitando-a

Os homens enganam-se...

A côrte entreolha-se, vazia. A Infanta acerca-se do diadema. Pega n'elle quasi a medo. Os seus dedos esguios mal lhe tocam. Beija-o. Sempre hirta e estática, junto da janella aberta, frente á noite, ergue-o em sacrificio, em elevação, ergue-o bem alto! O luar escorre-lhe pelos braços. As pedrarias scintillam intensamente. Em sagração, como se fosse poisá-lo em pedra d'ara, colloca-o nos seus cabellos negros. Assim coroada, não vê, não ouve. O sonho encarnou-se no seu coração em soffrimento amargurado. Em face da certeza do Astrologo, ella busca uma certeza maior que a domine.

INFANTA— n'uma vibração profunda, intensissima—a sua alma frente a frente ao destino de milhares [Pg 89] d'almas, abrangendo n'uma vizão a vida toda, o passado e o futuro, echo perdido duma voz prophetica :

E as estrellas mentem!...

Queda-se estática; o luar embranquece-a como um marmore. Ha claridades deslumbrantes e extranhas nos seus olhos muito abertos, sempre fixos.


Estremece como labareda batida pelo vento: desmaia. Os olhos sempre abertos, sempre fixos.

As aias amparam-na, aflictas, emquanto a côrte sae desordenada, buscando o physico. Os pagens approximam luzes; cerram os vitrais.


Na Infanta os reflexos são aureolas; divinisam-na...

[Pg 91]


[Pg 93]

Um alto de collina, arido, de hervas maninhas e rasteiras, tendo ao centro um cruzeiro tosco de granito escuro.

Manhã de sol fulgurante e quente.

Da direita alta vem um carreiro estreito, que cortando a scena de lado a lado, segue até ao rio, que se estende da esquerda ao fundo, espraiado e muito azul, em grande perspectiva, até ao mar.

Ha uma nevoa azulada envolvendo os montes distantes da margem oposta, suavisando-lhes os contornos dos cabeços.

Entre as naus e caravellas, mais junto da praia, um galeão; nos mastros, sem vellas, estandartes reaes e mil bandeiras...

Junto ao cruzeiro, gente do povo, em grupo, conversando.


[Pg 94]

UMA MULHER— que chega

Ainda estão na igreja. El-Rei, a côrte toda, commungou. Mas a Senhora Infanta, bastava vê-la, de joelhos, de mãos postas a rezar, era mesmo uma santinha!

OUTRA MULHER

Pois se ella é tão linda!

OUTRA MULHER

E sempre tão triste que até faz dó!

UM MARITIMO— como procurando dar ternura á sua voz forte e enternecendo-se pouco a pouco

Pois haviam de a vêr como eu a vi, um dia, junto ao mar. Então ella estava alegre e o mar estava mau.

[Pg 95]

O mar é como os homens, tem tambem as suas zangas, os seus ralhos. As ondas cresciam sempre, tão grandes como torres e vinham avançando pela praia dentro, cada vez mais, cada vez mais... E a Senhora Infanta a olhá-las de frente e tão esquecida, que uma vaga mais forte a molhou toda! E ella sem se mexer, sempre quêda a olhá-las, assim a modos como uma santa no altar!

A Senhora Infanta não tem medo do mar. Se a deixassem era capaz de ir como nós á aventura... Quem a viu como eu a vi nesse dia, e não soubesse quem ella era, havia de cuidar que tinha nascido no mar—que tinha sido embalada, não por aias, mas por ondas!

OUTRO MARITIMO— com enthusiasmo e ternura

E sempre foi assim! Ainda tamanina, quando chegavam as naus—as que tinham ido sem rumo e traziam novas terras a esta terra—já a Senhora Infanta [Pg 96] ao lado de El-Rei as ficava a olhar, de olhos muito abertos, cheios de riso. E queria saber tudo—como fôra, o que viramos, como eram as nossas terras, onde ficavam... o que nos acontecera...—e a ouvir-nos contar nossa aventura, os seus olhos enchiam-se ainda mais de riso.

UMA MULHER

Pois agora vai triste. Eu vi-a passar para a igreja. Não olhava, não sorria... Os olhos muito abertos, olhando sempre em frente, muito brilhantes... até me fez chorar... Nunca vi olhos assim! E toda de branco! Parecia enfeitiçada!...

UM VELHO

Deixai lá... Ella tambem gosta desta loucura em que vivemos. Nunca se importou a Senhora Infanta dos que morrem no mar, dos que lá ficam nessas terras [Pg 97] distantes a combater! Morrem: deixá-lo! A Senhora Infanta é como as mais; não se importa!...

VOZES

Calai-vos! Calai-vos!—Ave de mau agoiro!—Nós tambem temos filhos! Nós tambem temos mortos!...

O VELHO

Mas não chorais como eu...

VOZES

Calai-vos... Calai-vos!...

OUTRO VELHO— com violencia

É assim, é assim mesmo. Quem se importa já da terra!? Quem a lavra e a amanha com amor? É esta [Pg 98] Babilonia que nos perde! Aqui é a torre de Babel. Só se vê estrangeiros, só se ouvem linguas estranhas que ninguem entende e que—Deus louvado!—nem parecem de gente!

D'antes a nossa terra era só nossa, tinha as portas fechadas por castellos. Agora é de todos... Perros malditos!

UM MARITIMO

Porque fosteis então batalhar em terra alheia?...

OS DOIS VELHOS

Para servir a Deus e a El-Rei; e El-Rei ia comnosco, e tambem batalhava!...

UMA MULHER

Ouvi. Tocam os sinos... El-Rei, a côrte toda, vai saír... vão, até embarcar, em procissão.

[Pg 99]

O grupo vai augmentando; junta-se mais povo.

OUTRA MULHER

A Senhora Infanta vai como morta! Chamais doido a quem diz verdades. Não acreditais, mas é assim. Não sou Ave-agoirenta, não; mas isto é um enterro.

OUTRA MULHER

É o castigo de Deus! Andamos levados pelo Demo, sempre a tentar ao Senhor...

VOZES

Calai-vos!... Calai-vos!...

UMA MULHER— da frente do grupo

Já sahiram da igreja... lá sae El-Rei... a Rainha, os Principes...

[Pg 100]

OUTRA VOZ

E a Senhora Infanta vem á frente, reparai... vêde se não é como eu dizia. Vai a enterrar, vai como morta...

O Senhor Bispo vem tambem... Atraz a cleresia, toda a côrte...

OUTRA MULHER

É uma procissão... é um enterro...

UM VELHO

Sabeis as prophecias?

VOZES

Contai... dizei... contai...

[Pg 101]

O VELHO— hesitante

No céu, para os que sabem lêr nos astros, ha presagios maus! Quem não tem visto estes dias a lua ao nascer tinta de sangue?! É sangue de infieis, sangue de moirama ou sangue nosso? Ninguem sabe... ninguem!...

E diz-se que hade vir um Principe de tentação para nos perder. Um Principe loiro como o sol, que nos ha-de tentar! E com elle nós iremos todos, a cantar, buscar a morte! Os infieis serão na mão do Senhor o seu instrumento de castigo! O Senhor castigará nossa soberba com aquelles que abatemos!...

VOZES

Piedade, Senhor!...—Tende compaixão de nós!...—Misericordia!...—Piedade!...

[Pg 102]

O VELHO

E o castigo do Senhor será terrivel e a sua colera não terá limites porque judeus, feitos Christãos, andam a blasphemar o Santo Nome de Deus!

VOZES

Malditos sejam!...—Santo é o Nome de Deus!—Que as penas do inferno sejam poucas para elles...—Que sejam malditos!—Mil vezes malditos!

O VELHO— continuando

E as aguas secarão nas levadas e nas fontes... E o sol queimará os milharais e as searas; e as vides ficarão secas e mirradas... Os gados não terão pastos, os homens não terão pão, e a peste os levará...

[Pg 103]

VOZES— desvairadas, amarguradas, agonisantes

Calai-vos!...—Maldição!...—Piedade!...—Maldição!...—Antes a morte...—Vêr morrer os nossos filhos...—Piedade!—Piedade!—Maldição!

O VELHO— continuando a custo

E será então que um rei virá—rei estranho, gente inimiga, homens d'armas—conquistar este reino de cadaveres...

Será então que um rei virá matar um Rei que não morre... a quem a Morte não matou...

VOZES— de soffrimento, de desespero, de confiança e de odio

Maldição!...—Piedade!—Piedade!—Que Deus seja comnosco...—Que os herejes sejam mortos!...—Que sejam malditos!—Que sejam queimados...—Que [Pg 104] Christo reine em nossos corações!—Que a Sua lei seja cumprida!...—Deus é comnosco!...—Deus é Pae!...—Deus é bom...

UM MARITIMO MOÇO— com vehemencia

Quem sabe o que é do dia d'amanhã... Esses horrores que dizeis quem os prophetisou? Quem pode dizer o destino dos homens e pode conhecer a vontade de Deus? Só quem não andou embarcado e não viu os Mundos Novos que são nossos, essas terras estranhas por nós descobertas, só quem não sahiu deste torrão de terra abençoado para servir a Deus e a El-Rei n'esse imperio imenso que fica para alem,

apontando

para as bandas donde nasce o sol; só quem não luctou com o mar e o venceu, pode acreditar nas negras prophecias!...

[Pg 105]

VOZES

Dizes bem...—É assim mesmo.—Dizes bem...

O MARITIMO

Deixai, que o mundo é nosso, porque nós o descobrimos e lhe demos vida por nossas vidas! O mundo é nosso filho, tem o nosso sangue!

As mulheres rezam baixo.

VOZES

Dizes bem...—É assim... é assim...

UMA MULHER

Ouvi como o povo canta em redor da Princeza... E Ella nem os ouve, nem os vê.

[Pg 106]

O MARITIMO

Os olhos dos marinheiros andam sempre errantes... No mar os olhos não se prendem, que o mar é todo igual. Só á noite as estrellas do ceu prendem os olhos! A Senhora Infanta é como nós; tem olhos de marinheiro, olhos errantes!

Silencio. Uma nuvem ligeira escureceu o sol, assombreando a terra.

A VOZ DO «BANDARRA»— não muito longe

Cautella, Senhor Rei!... Cuidado!... O mar nunca perdôa, os mortos nunca esquecem! Olhai que ides tambem a naufragar... Nós todos somos naufragos, cadaveres para o mar!...

VOZES— entre o povo aqui e alem

Senhor Deus misericordia! Pae do Céu misericordia!—Por [Pg 107] nossos filhos... Por El-Rei...—Miserere nobis!—Misericordia! Misericordia!

UMA MULHER

El-Rei parou... todo o cortejo... seguem... continuam...

OUTRA MULHER

Que a Virgem Nossa Senhora proteja a Senhora Infanta!...

As mulheres ajoelham; os homens descobrem-se e alto, em côro:—Avé Maria, cheia de graça...

Mestre Lopo, o astrologo, o poeta e o pintor apparecem pela direita, a caminho da praia. Ao verem o povo de [Pg 108] joelhos, param e descobrem-se. Rezam tambem. Acabada a oração põem-se de novo a caminho; o poeta fica...

PINTOR— voltando-se

Ficais aqui?

POETA— docemente

Para que ir comvosco?!

Eu ando agora a viver o sonho d'Ella!... Em tudo que me cerca eu vejo-a sempre, mais pura, mais santa, mais perfeita! D'aqui eu vejo o mar e o mar é a sua alma, a nossa alma, o sonho maior que transfigurou o mundo e sobre o mundo ficará eternamente! O sonho creador e redemptor!...

ASTROLOGO

Já não acreditais nas prophecias?

[Pg 109]

POETA

O sonho é a unica certeza em face dos homens e do Destino...

ASTROLOGO

E nas estrellas?...

POETA

Mentem tambem. Mentiram sempre... Ella o disse, Ella o revelou ás nossas almas!...

O pintor e o astrologo afastam-se apressados. O poeta, lentamente, aproxima-se do cruzeiro.

VOZES

Afastem-se!...—Abram alas!...—Já ahi vem El-Rei...—Afastem-se...—Abram alas...

[Pg 110]

Os grupos afastam-se em silencio, abrindo alas. Pela esquerda, rodeada das suas aias, toda de branco, hierática, serena, suavissima, sem um gesto, sem um sorriso, e d'um olhar divino, triumphal—olhar cheio de visões gloriosas, de claridades infinitas, de sonhos revelados, e de certezas eternas—apparece a Infanta...

Os homens descobrem-se, as mulheres atiram flores ao caminho, juncam o caminho de flores, e quêdos; silenciosos, ficam a olhá-la, espantados, como se estivessem em face d'um milagre, d'uma apparição divina!

VOZES DOS MARITIMOS

Viva a Senhora Infanta!—Viva a nossa Princeza!—Que Deus guarde a nossa Santinha!—Que Nossa Senhora a proteja! Que os anjos a levem em sua guarda!—Como vai linda!...—Como Ella vai!...—Que a [Pg 111] estrella do norte seja seu guia... Que as ondas a embalem...—Viva a nossa Princeza!—Viva a Senhora Infanta!...

As vellas vão pouco a pouco subindo nos mastros e, como azas enormes, enchem o céu.

Junto ao cruzeiro, alheio, indifferente, distante, o Poeta continua olhando os longes...

[Pg 112]

ACABOU DE SE IMPRIMIR
ESTE LIVRO
NAS OFICINAS GRAFICAS
DA RUA FORMOSA, NUMERO 50,
DA CIDADE DE LISBOA,
NOBRE E LEAL,
AOS QUATORZE DIAS DO MEZ
DE NOVEMBRO
DO ANO DA GRAÇA DE
MCMXXI


Notas

Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos.