The Project Gutenberg eBook of O Cortiço This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: O Cortiço Author: Aluísio Azevedo Release date: October 20, 2022 [eBook #69187] Language: Portuguese Original publication: Brazil: H. Garnier Credits: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by Gallica, Bibliothèque nationale de France.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O CORTIÇO *** ALUIZIO AZEVEDO O CORTIÇO QUARTA EDIÇÃO RIO DE JANEIRO H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR 71, Rua do Ouvidor, 71 E 6, Rue des Saints-Pères, 6 PARIS «Periculum dicendi non recuso.» (CICERO.) «La vérité, toute la vérité, rien que la vérité.» (_Droit criminel._) «Os meus honrados collegas do jornalismo, e todos esses grandes publicistas que fatigam o céo e a terra para provar que esta em que estamos é a verdadeira epoca de transição, esses nos dirão se a Providencia andaria bem ou mal se hoje suscitasse um novo Timon da verdadeira raça das furias, que com as pontas viperinas do azorrague vingador lacerasse sem piedade os crimes e os vicios que a deshonram.» (JOÃO FRANCISCO LISBOA, _Jornal de Timon_. Prospecto--Obras completas, 1° vol., pag. 12.) «Ung oyseau qui se nomme cigale estoit en un figuier, et François tendit sa main et appella celluy oyseau, et tantost il obeyt et vint sur sa main. Et il lui deist: Chante, ma seur, et loue nostre Seigneur. Et adoncques chanta incontinent, et ne sen alla devant quelle eust congé.» (JACQUES DE VORAGINE, _La Légende Dorée_. Traduction française.) INDICE CAPITULO I CAPITULO II CAPITULO III CAPITULO IV CAPITULO V CAPITULO VI CAPITULO VII CAPITULO VIII CAPITULO IX CAPITULO X CAPITULO XI CAPITULO XII CAPITULO XIII CAPITULO XIV CAPITULO XV CAPITULO XVI CAPITULO XVII CAPITULO XVIII CAPITULO XIX CAPITULO XX CAPITULO XXI CAPITULO XXII CAPITULO XXIII O CORTICO I João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco annos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro de Botafogo; e tanto economisou do pouco que ganhára n'essa duzia de annos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro. Proprietario e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se á labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delirio de enriquecer, que affrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da propria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um sacco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lh'a, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fóra e amigada com um portuguez que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. Bertoleza tambem trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguezada do bairro. De manhã vendia angú, e á noite peixe frito e iscas de figado; pagava de jornal a seu dono vinte mil réis por mez, e, apezar d'isso, tinha de parte quasi que o necessario para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia legua, puxando uma carga superior ás suas forças, cahio morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta. João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante directo dos soffrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abrio-se com elle, contou-lhe a sua vida de amofinações e difficuldades. «Seu senhor comia-lhe a pelle do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar p'rali, todos os mezes, vinte mil réis em dinheiro!» E segredou-lhe então o que já tinha junto para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fôra roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. D'ahi em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era elle quem tomava conta de tudo que ella produzia, e era tambem quem punha e dispunha dos seus peculios, e quem se encarregava de remetter ao senhor os vinte mil réis mensaes. Abrio-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até á venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de «Seu João,» como ella dizia. Seu João debitava methodicamente essas pequenas quantias n'um quaderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escripto e em letras cortadas de jornal: «Activo e passivo de Bertoleza.» E por tal fórma foi o taverneiro ganhando confiança no espirito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava d'elle, cegamente, todo e qualquer arbitrio. Por ultimo, se alguem precisava tratar com ella qualquer negocio, nem mais se dava ao trabalho de procural-a, ia logo direita a João Romão. Quando deram fé estavam amigados. Elle propoz-lhe morarem juntos, e ella concordou de braços abertos, feliz em metter-se de novo com um portuguez, porque, como toda a cafusa, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instinctivamente o homem n'uma raça superior á sua. João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio parallelamente á rua, sendo a parte da frente destinada á quitanda e a do fundo para um dormitorio que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza. Havia, além da cama, uma commoda de jacarandá muito velha com maçanetas de metal amarello já mareadas, um oratorio cheio de santos e forrado de papel de côr, um bahú grande de couro crú taxeado, dous banquinhos de páo feitos de uma só peça e um formidavel cabide de pregar na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita. O vendeiro nunca tivera tanta mobilia. --Agora, disse elle á crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vae ficar fôrra; eu entro com o que falta. N'esses dias elle sahio muito á rua, e uma semana depois appareceu com uma folha de papel toda escripta, que leu em voz alta á companheira. --Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida á leitura, que ella ouvio entre lagrimas agradecidas. Agora está livre! De ora avante o que você fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o captiveiro de pagar os vinte mil réis á peste do cego! --Coitado! A gente se queixa é da sorte! Elle, como meu senhor, exigia o jornal, exigia o que era seu! --Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova! Contra todo o costume, abrio-se n'esse dia uma garrafa de vinho do Porto, e os dous beberam-n'a em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta de liberdade era obra do proprio João Romão, e nem mesmo o sello, que elle entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar á burla maior formalidade, representava despeza, porque o esperto aproveitára uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do facto; o que lhe constou, sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo. --O cego que venha buscal-a aqui, se fôr capaz!... desafiou o vendeiro de si para si. Elle que caia n'essa e verá se tem ou não para peras! Não obstante, só ficou tranquillo de todo d'ahi a tres mezes, quando lhe constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que receiar: dous pandegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos annos áquella parte. «Ora! bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto tempo!» Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel triplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; ás quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os freguezes e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava occupado lá por fóra; fazia a sua quitanda durante o dia no intervallo de outros serviços, e á noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava figado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar á praia do Peixe. E o demonio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e concertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo o mez de alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado. João Romão não sahia nunca a passeio, nem ia á missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitandas eguia direitinho para a caixa economica e d'ahi então para o banco. Tanto assim que, um anno depois da acquisição da crioula, indo em hasta publica algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir tres casinhas de porta e janella. Que milagres de esperteza e de economia não realizou elle n'essa construcção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fóra d'horas, junto com a amiga, furtavam á pedreira do fundo, da mesma forma que subtrahiam o material das casas em obra que havia por ali perto. Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor successo, graças á circumstancia de que n'esse tempo a policia não se mostrava muito por aquellas alturas. João Romão observava durante o dia quaes as obras em que ficava material para o dia seguinte, e á noite lá estava elle rente, mais a Bertoleza, a removerem taboas, tijolos, telhas, saccos de cal, para o meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor. Depois, um tomava uma carga e partia para casa, emquanto o outro ficava de alcatéa ao lado do resto, prompto a dar signal em caso de perigo; e, quando o que tinha ido voltava, seguia então o companheiro, carregado por sua vez. Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavallos de páo, o banco ou a ferramenta dos marceneiros. E o facto é que aquellas tres casinhas, tão engenhosamente construidas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão. Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, á proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o numero dos moradores. Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a occasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os freguezes, roubando nos pezos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as proprias despezas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bella pedreira, que elle, todos os dias, ao cahir da tarde, assentado um instante á porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça. Pôz lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lagedos e parallelepipedos, e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso que, dentro de anno e meio, arrematava já todo o espaço comprehendido entre as suas casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte de frente em plano enxuto e magnifico para construir. Justamente por essa occasião vendeu-se tambem um sobrado que ficava á direita da venda, separado d'esta apenas por aquellas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do predio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janellas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante portuguez, estabelecido na rua do Hospicio com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no casarão, mudar-se-hia elle para lá com a familia, pois que a mulher, Dona Estella, senhora pretenciosa e com fumaças de nobreza, já não podia supportar a residencia no centro da cidade, como tambem sua menina, a Zulmirinha, crescia muito pallida e precisava de largueza para enrijar e tomar corpo. Isto foi o que disse o Miranda aos collegas, porém a verdadeira causa da mudança estava na necessidade, que elle reconhecia urgente, de afastar Dona Estella do alcance dos seus caixeiros. Dona Estella era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze annos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo anno de matrimonio, o Miranda pilhou-a em flagrante delicio de adulterio; ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mandal-a para o diabo junto com o cumplice; mas a sua casa commercial garantia-se com o dote que ella trouxera, uns oitenta contos em predios e acções da divida publica, de que se utilisava o desgraçado tanto quanto lhe permittia o regimen dotal. Além de que, um rompimento brusco seria obra para escandalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escandalo domestico ficava muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a idéa de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e affeito á hombridade de portuguez rico que já não tem patria na Europa. Acovardado defronte d'estes raciocinios, contentou-se com uma simples separação de leitos, e os dous passaram a dormir em quartos separados. Não comiam juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida, quando qualquer inesperado acaso os reunia a contra gosto. Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco a pouco se foi transformando em repugnancia completa. O nascimento de Zulmira veio aggravar ainda mais a situação; a pobre criança, em vez de servir de elo aos dous infelizes, foi antes um novo isolador que se estabeleceu entre elles. Estella amava-a menos do que lhe pedia o instincto materno por suppol-a filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser seu pae. Uma bella noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta e cinco annos, sentio-se em insupportavel estado de lubricidade. Era tarde já e não havia em casa alguma criada que lhe pudesse valer. Lembrou-se da mulher, mas repellio logo esta idéa com escrupulosa repugnancia. Continuava a odial-a. Entretanto este mesmo facto de obrigação em que elle se collocou de não servir-se d'ella, a responsabilidade de desprezal-a, como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fructo prohibido. Afinal, coisa singular, posto que moralmente em nada diminuisse a sua repugnancia pela perjura, foi ter ao quarto d'ella. A mulher dormia a somno solto. Miranda entrou pé ante pé e approximou-se da cama. «Devia voltar!... pensou. Não lhe ficava bem aquillo!...» Mas o sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, immovel, a contemplal-a no seu desejo. Estella, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda não pôde resistir, atirou-se contra ella, que, num pequeno sobresalto, mais de sorpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciencia de tudo aquillo. Ah! ella contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procural-a de novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao desejo. Consummado o delicto, o honrado negociante sentio-se tolhido de vergonha e arrependimento. Não teve animo de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado. Oh! como lhe doia agora o que acabava de praticar na cegueira da sua sensualidade. --Que cabeçada!... dizia elle agitado. Que formidavel cabeçada!... No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silencio, como se nada de extraordinario houvera entre elles acontecido na vespera. Dir-se ia até que, depois d'aquella occurrencia, o Miranda sentia crescer o seu odio contra a esposa. E, á noite d'esse mesmo dia, quando se achou sozinho na sua cama estreita, jurou mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca mais, praticar semelhante loucura. Mas, d'ahi a um mez, o pobre homem, acommettido de um novo accesso de luxuria, voltou ao quarto da mulher. Estella recebeu-o d'esta vez como da primeira, fingindo que não acordava; na occasião, porém, em que elle se apoderava d'ella febrilmente, a leviana, sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo sopeava. O pobre diabo desnorteou, devéras escandalisado, soerguendo-se, brusco, n'um estremunhamento de somnambulo acordado com violencia. A mulher percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir; passou-lhe rapido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos. Não se fallaram. Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada; descobrio n'ella o capitoso encanto com que nos embebedam as cortezãs amestradas na sciencia do gozo venereo. Descobrio-lhe no cheiro da pelle e no cheiro dos cabellos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro halito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delirio, com verdadeira satisfação de animal no cio. E ella tambem, ella tambem gozou, estimulada por aquella circumstancia picante do resentimento que os desunia; gozou a deshonestidade d'aquelle acto que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo d'aquelle seu inimigo odiado, achando-o tambem agora, como homem, melhor que nunca, suffocando-o nos seus abraços nús, mettendo-lhe pela bocca a lingua humida e em braza. Depois, n'um arranco de corpo inteiro, com um soluço guttural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se n'um abandono de pernas e braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda ella agonisante, como se a tivessem crucificado na cama. A partir d'essa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do quarto da mulher, estabeleceu-se entre elles o habito de uma felicidade sexual, tão completa como ainda não a tinham desfrutado, posto que no intimo de cada um persistisse contra o outro a mesma repugnancia moral em nada enfraquecida. Durante dez annos viveram muito bem casados; agora, porém, tanto tempo depois da primeira infidelidade conjugal, e agora que o negociante já não era acommettido tão frequentemente por aquellas crises que o arrojavam fora d'horas ao dormitorio de Dona Estella; agora, eis que a leviana parecia disposta a reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na occasião em que estes subiam para almoçar ou jantar. Foi por isso que o Miranda comprou o predio vizinho a João Romão. A casa era boa; seu unico defeito estava na escassez do quintal; mas para isso havia remedio: com muito pouco compravam-se umas dez braças d'aquelle terreno do fundo, que ia até á pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado em que ficava a venda. Miranda foi logo entender-se com o Romão e propoz-lhe negocio. O taverneiro recussou formalmente. Miranda insistio. --O senhor perde seu tempo e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza. Nem só não cedo uma pollegada do meu terreno, como ainda lhe compro, sem o quizer vender, aquelle pedaço que lhe fica ao fundo da casa! --O quintal? --É exacto. --Pois você quer que eu fique sem chacara, sem jardim, sem nada? --Para mim era de vantagem... --Ora, deixe-se d'isso, homem, e diga lá quanto quer pelo que lhe propuz. --Já disse o que tinha a dizer. --Ceda-me então ao menos as dez braças do fundo. --Nem meio palmo! --Isso é maldade de sua parte, sabe? Eu, se faço tamanho empenho, é pela minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espaço para alargar-se. --E eu não cedo, porque preciso do meu terreno! --Ora qual! Que diabo póde lá você fazer ali? Uma porcaria de um pedaço de terreno quasi grudado ao morro e aos fundos de minha casa! quando você, aliás, dispõe de tanto espaço ainda! --Hei de lhe mostrar se tenho ou não o que fazer ali! --É que você é teimoso! Olhe, se me cedesse as dez braças do fundo, a sua parte ficaria cortada em linha recta até á pedreira, e escusava eu de ficar com uma aba de terreno alheio a metter-se pelo meu. Quer saber? não amuro o quintal sem você decidir-se! --Então ficará com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a dizer já disse! --Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Você ali não póde construir nada! Ou pensará que lhe deixarei abrir janellas sobre o meu quintal?... --Não preciso abrir janellas sobre o quintal de ninguem! --Nem tão pouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janellas da esquerda! --Não preciso levantar parede d'esse lado... --Então que diabo vai você fazer de todo este terreno?... --Ah! isso agora é cá comigo!... O que fôr soará! --Pois creia que se arrepende de não me ceder o terreno!... --Se me arrepender, paciencia! Só lhe digo é que muito mal se sahirá quem quizer metter-se cá com a minha vida! --Passe bem! --Adeus! Travou-se então uma lucta renhida e surda entre o portuguez negociante de fazendas por atacado e o portuguez negociante de seccos e molhados. Aquelle não se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o pedaço de terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, não perdia a esperança de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou tres braças aos fundos da casa; parte esta que, conforme os seus calculos, valeria oiro, uma vez realizado o grande projecto que ultimamente o trazia preoccupado--a creação de uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquella miuçalha de cortiços que alastravam por Botafogo. Era este o seu ideal. Havia muito que João Romão vivia exclusivamente para essa idéa; sonhava com ella todas as noites; comparecia a todos os leilões de materiaes de construcção; arrematava madeiramentos já servidos; comprava telha em segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo depositado no seu extenso chão vasio, cujo aspecto tomava em breve o caracter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade de objectos que ali se apinhavam accumulados: taboas e sarrafos, troncos d'arvore, mastros de navio, caibros, restos de carroças, chaminés de barro e de ferro, fogões desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de arêa e terra vermelha, aglomerações de telhas velhas, escadas partidas, depositos de cal, o diabo emfim; ao que elle, que sabia perfeitamente como essas coisas se furtavam, resguardava, soltando á noite um formidavel cão de fila. Este cão era pretexto de eternas resingas com agente do Miranda, a cujo quintal ninguem de casa podia descer, depois das dez horas da noite, sem correr o risco de ser assaltado pela féra. --É fazer o muro! dizia João Romão, sacudindo os hombros. --Não faço! replicava o outro. Se elle é questão de capricho, eu tambem tenho capricho! Em compensação, não cahia no quintal do Miranda gallinha ou frango, fugidos do cercado do vendeiro, que não levasse immediato sumiço. João Romão protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vinganças terriveis, fallando em dar tiros. --Pois é fazer um muro no gallinheiro! repontava o marido de Estella. D'ahi a alguns mezes, João Romão, depois de tentar um derradeiro esforço para conseguir algumas braças do quintal do vizinho, resolveu principiar as obras da estalagem. --Deixa estar, conversava elle na cama com a Bertoleza; deixa estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mas seis, oito, todo o quintal e até o proprio sobrado talvez! E dizia isto com uma convicção de quem tudo póde e tudo espera da sua perseverança, do seu esforço inquebrantavel e da fecundidade prodigiosa do seu dinheiro, dinheiro que só lhe sahia das unhas para voltar multiplicado. Desde que a febre de possuir se apoderou d'elle totalmente, todos os seus actos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniario. Só tinha uma preoccupação: augmentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os peiores legumes, aquelles que, por máos, ninguem compraria; as suas gallinhas produziam muito e elle não comia um ovo, do que no emtanto gostava immenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquillo já não era ambição, era uma molestia nervosa, uma loucura, um desespero de accumular, de reduzir tudo a moeda. E seu typo baixote, socado, de cabellos á escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda ás hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquillo de que elle não podia apoderar-se logo com as unhas. Entretanto, a rua lá fóra povoava-se de um modo admiravel. Construia-se mal, porém muito; surgiam chalets e casinhas da noite para o dia; subiam os alugueis; as propriedades dobravam de valor. Montára-se uma fabrica de massas italianas e outra de vélas, e os trabalhadores passavam de manhã e ás Ave-Marias, e a maior parte d'elles ia comer á casa de pasto que João Romão arranjára aos fundos da sua venda. Abriram-se novas tavernas; nenhuma, porém, conseguia ser tão afreguezada como a d'elle. Nunca o seu negocio fora tão bem, nunca o finorio vendêra tanto; vendia mais agora, muito mais, que nos annos anteriores. Teve até de admittir caixeiros. As mercadorias não lhe paravam nas prateleiras; o balcão estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar, vintem por vintem, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a burra, aos cincoenta e aos cem mil réis, e da burra para o banco, aos contos e aos contos. Afinal, já lhe não bastava sortir o seu estabelecimento nos armazens fornecedores; começou a receber alguns generos directamente da Europa: o vinho, por exemplo, que elle d'antes comprava aos quintos nas casas de atacado, vinha-lhe agora de Portugal ás pipas, e de cada uma fazia tres com agua e cachaça; e despachava facturas de barris de manteiga, de caixas de conserva, caixões de phosphoros, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias. Creou armazens para deposito, abolio a quitanda e transferio o dormitorio, aproveitando o espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e ganhou mais duas portas. Já não era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de tudo: objectos de armarinho, ferragens, porcelanas, utensilios de escriptorio, roupa de riscado para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, chapéos de palha proprios para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de chifre, lenços com versos de amor, e anneis e brincos de metal ordinario. E toda a gentalha d'aquellas redondezas ia cahir lá, ou então ali ao lado, na casa de pasto, onde os operarios das fabricas e os trabalhadores da pedreira se reuniam depois do serviço, e ficavam bebendo e conversando até ás dez horas da noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito em azeite e dos lampeões de kerosene. Era João Romão quem lhes fornecia tudo, tudo, até dinheiro adiantado, quando algum precisava. Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado não fosse inteirinho para ás mãos do velhaco. E sobre este cobre, quasi sempre emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mez, um pouco mais do que levava aos que garantiam a divida com penhores de oiro ou prata. Não obstante, as casinhas do cortiço, á proporção que se atamancavam, enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas seccassem. Havia grande avidez em alugal-as; aquelle era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dous passos da obrigação. O Miranda rebentava de raiva. --Um cortiço! exclamava elle, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquelle vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janellas!... Estragou-me á casa, o malvado! E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o pó que lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal barulho dos pedreiros e carpinteiros que levavam a martellar de sol a sol. O que aliás não impedio que as casinhas continuassem a surgir, uma após outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali afóra, desde a venda até quasi ao morro, e depois dobrassem para o lado do Miranda e avançassem sobre o quintal d'este, que parecia ameaçado por aquella serpente de pedra e cal. O Miranda mandou logo levantar o muro. Nada! aquelle demonio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de visitas! E os quartos do cortiço pararam emfim de encontro ao muro do negociante, formando com a continuação da casa d'este um grande quadrilongo, especie de pateo de quartel, onde podia formar um batalhão. Noventa e cinco casinhas comportou a immensa estalagem. Promptas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma taboleta amarella, em que se lia o seguinte, escripto a tinta encarnada e sem ortographia. «Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras.» As casinhas eram alugadas por mez e as tinas por dia: tudo pago adiantado. O preço de cada tina, mettendo a agua, quinhentos réis; sabão á parte. As moradoras do cortiço tinham preferencia e não pagavam nada para lavar. Graças a abundancia d'agua que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concurrencia ás tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre ellas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputal-os. E aquillo se foi constituindo n'uma grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de tres e quatro palmos, que appareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o reverbero das claras barracas de algodão crú, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gottejantes giráos, cobertos de roupa molhada, scintillavam ao sol, que nem lagos de metal branco. E n'aquella terra encharcada e fumegante, n'aquella humidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontanea, ali mesmo, d'aquelle lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. II E durante dous annos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquella exhuberancia brutal de vida, aterrado defronte d'aquella floresta implacavel que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janellas, e cujas raizes, peiores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em torno d'ella, rachando o solo e abalando tudo. Posto que lá na rua do Hospicio os seus negocios não corressem mal, custava-lhe a soffrer a escandalosa fortuna do vendeiro «aquelle typo! um miseravel, um sujo, que não puzera nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa com uma negra!» Á noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando elle, recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar estendido n'uma preguiçosa, junto á mesa da sala de jantar, e ouvia, a contra-gosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem n'uma exhalação forte de animaes cansados. Não podia chegar á janella sem receber no rosto aquelle bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito. E depois, fechado no quarto de dormir, indifferente e habituado ás torpezas carnaes da mulher, isento já dos primitivos sobresaltos que lhe faziam, a elle, ferver o sangue e perder a tramontana, era ainda a prosperidade do vizinho o que lhe obcecava o espirito, ennegrecendo-lhe a alma com um feio resentimento de despeito. Tinha inveja do outro, d'aquelle outro portuguez que fizera fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; d'aquelle outro que, para ser mais rico tres vezes do que elle, não teve de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de algum fazendeiro freguez da casa! Mas então, elle, Miranda, que se suppunha a ultima expressão da ladinagem e da esperteza; elle, que, logo depois do seu casamento, respondendo para Portugal a um ex-collega que o felicitava, dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada de dinheiro, cujas redeas um homem fino empolgava facilmente; elle, que se tinha na conta de invencivel matreiro, não passava afinal de um pedaço d'asno comparado com o seu vizinho! Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se escravo de uma brasileira mal educada e sem escrupulos de virtude! Imaginára-se talhado para grandes conquistas, e não passava de uma victima ridicula e soffredora!... Sim! no fim de contas qual fôra a sua Africa?... Enriquecêra um pouco, é verdade, mas como? a que preço? hypothecando-se a um diabo, que lhe trouxera oitenta contos de réis, mas incalculaveis milhões de desgostos e vergonhas! Arranjára a vida, sim, mas teve de aturar eternamente uma mulher que elle odiava! E do que afinal lhe aproveitára tudo isso? Qual era afinal a sua grande existencia? Do inferno da casa para o purgatorio do trabalho e vice-versa! Invejavel sorte, não havia duvida! Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem sequer gozava o prazer de ser pae. Se ella, em vez de nascer de Estella, fora uma engeitadinha recolhida por elle, é natural que a amasse, e então a vida lhe correria de outro modo; mas, n'aquellas condições, a pobre criança nada mais representava que o documento vivo do ludibrio materno, e o Miranda estendia até á innocentezinha o odio que sustentava contra a esposa. Uma espiga a tal da sua vida! --Fui uma besta! resumio elle, em voz alta, apeiando-se da cama, onde se havia recolhido inutilmente. E pôz-se a passeiar no quarto, sem vontade de dormir, sentindo que a febre d'aquella inveja lhe estorricava os miolos. Feliz e esperto era o João Romão! esse, sim, senhor! Para esse é que havia de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje tão livre e desembaraçado como no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu! esse, sim, que era moço e podia ainda gozar muito, porque, quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe sahisse uma outra Estella, era só mandal-a p'ra o diabo com um pontapé! Podia fazel-o! Para esse é que era o Brasil! --Fui uma besta! repisava elle, sem conseguir conformar-se com a felicidade do vendeiro. Uma grandissima besta! No fim de contas que diabo possuo eu?... Uma casa de negocio, da qual não posso separar-me sem comprometter o que lá está enterrado! um capital mettido n'uma rêde de transacções que não se liquidam nunca, e cada vez mais se complicam e mais me grudam ao estupor d'esta terra, onde deixarei a casca! Que tenho de meu, se a alma do meu credito é o dote, que me trouxe aquella sem vergonha, e que a ella me prende como a peste da casa commercial me prende a esta Costa d'Africa?... Foi da suppuração fetida d'estas idéas que se formou no coração vasio do Miranda um novo ideal--o titulo. Faltando-lhe temperamento proprio para os vicios fortes que enchem a vida de um homem; sem familia a quem amar e sem imaginação para poder gozar com as prostitutas, o naufrago agarrou-se áquella taboa, como um agonisante, consciente da morte, que se apega á esperança de uma vida futura. A vaidade de Estella, que a principio lhe tirava dos labios incredulos sorrisos de mofa, agora lhe comprazia á farta. Procurou capacitar-se de que ella com effeito herdara sangue nobre, e que elle, por sua vez, se não o tinha herdado, trouxera-o por natureza propria, o que devia valer mais ainda; e desde então principiou a sonhar com um baronato, fazendo d'isso o objecto querido da sua existencia, muito satisfeito no intimo por ter afinal descoberto uma coisa em que podia empregar dinheiro, sem ter, nunca mais, de restituil-o á mulher, nem ter de deixal-o a pessoa alguma. Semelhante preoccupação modificou-o em extremo. Deu logo para fingir-se escravo das conveniencias, affectando escrupulos sociaes, empertigando-se quanto podia e disfarçando a sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de superioridade condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda, cumprimentava-o com protecção, sorrindo sem rir e fechando logo a cara em seguida, muito serio. Dados os primeiros passos para a compra do titulo, abrio a casa e deu festas. A mulher, posto que lhe apontassem já os cabellos brancos, rejubilou com isso. Zulmira tinha então doze para treze annos e era o typo acabado da fluminense; pallida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das palpebras e dos labios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom humido das flores nocturnas, uma brancura fria de magnolia; cabellos castanho claro, mãos quasi transparentes, unhas molles e curtas, como as da mãe, dentes pouco mais claros do que a cutis do rosto, pés pequenos, quadril estreito, mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos. Por essa época, justamente, chegava de Minas, recommendado ao pae d'ella, o filho de um fazendeiro importantissimo que dava bellos lucros á casa commercial do Miranda e que era talvez o melhor freguez que este possuia no interior. O rapaz chamava-se Henrique, tinha quinze annos e vinha terminar na côrte alguns preparatorios que lhe faltavam para entrar na academia de medicina. Miranda hospedou-o no seu sobrado da rua do Hospicio, mas o estudante queixou-se, no fim de alguns dias, de que ahi ficava mal accommodado, e o negociante, o quem não convinha desagradar-lhe, carregou com elle para a sua residencia particular de Botafogo. Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas de menina. Parecia muito cuidadoso dos seus estudos e tão pouco extravagante e gastador, que não despendia um vintem fóra das necessidades de primeira urgencia. De resto, a não ser de manhã para as aulas, que ia sempre com o Miranda, não arredava pé de casa senão em companhia da familia d'este. Dona Estella, ao cabo de pouco tempo, mostrou por elle estima quasi maternal e encarregou-se de tomar conta da sua mesada, mesada posta pelo negociante, visto que o Henriquinho tinha ordem franca do pae. Nunca pedia dinheiro; quando precisava de qualquer coisa, reclamava-a de Dona Estella, que por sua vez encarregava ao marido de compral-a, sendo o objecto lançado na conta do fazendeiro com uma commissão de usurario. Sua hospedagem custava duzentos e cincoenta mil réis por mez, do que elle todavia não tinha conhecimento, nem queria ter. Nada lhe faltava, e os criados da casa o respeitavam como a um filho do proprio senhor. Á noite, ás vezes, quando o tempo estava bom, Dona Estella sahia com elle, a filha e um moleque, o Valentim, a darem uma volta até á praia, e, em tendo convite para qualquer festa em casa das amigas, levava-o em sua companhia. A criadagem da familia do Miranda compunha-se de Izaura, mulata ainda moça, moleirona e tola, que gastava todo a vintemzinho que pilhava em comprar capilé na venda de João Romão; uma negrinha virgem, chamada Leonor, muito ligeira e viva, lisa e secca como um moleque, conhecendo de orelha, sem lhe faltar um termo, a vasta technologia da obscenidade, e dizendo, sempre que os caixeiros ou os freguezes da taberna, só para mexer com ella, lhe davam atracações: «Oia, que eu me quexo ao juiz de orfe!» e finalmente o tal Valentim, filho de uma escrava que foi de Dona Estella e a quem esta havia alforriado. A mulher do Miranda tinha por este moleque uma affeição sem limites: dava-lhe toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o comsigo a passeio, trazia-o bem vestido e muita vez chegou a fazer ciumes á filha, de tão solicita que se mostrava com elle. Pois se a caprichosa senhora ralhava com Zulmira por causa do negrinho! Pois, se quando se queixavam os dous, um contra o outro, ella nunca dava razão á filha! Pois se o que havia de melhor na casa era para o Valentim! Pois, se quando foi este atacado de bexigas e o Miranda, apezar das supplicas e dos protestos da esposa, mandou-o para um hospital, Dona Estella chorava todos os dias e durante a ausencia d'elle não tocou piano, nem cantou, nem mostrou os dentes a ninguem? E o pobre Miranda, se não queria soffrer impertinencias da mulher e ouvir semsaborias defronte dos criados, tinha de dar ao moleque toda a consideração e fazer-lhe humildemente todas as vontades. Havia ainda, sob as telhas do negociante, um outro hospede alem do Henrique, o velho Botelho. Este porém na qualidade de parasita. Era um pobre diabo caminhando para os setenta annos; antipathico, cabello branco, curto e duro como escova, barba e bigode do mesmo theor; muito macilento, com uns oculos redondos que lhe augmentavam o tamanho da pupilla e davam-lhe á cara uma expressão de abutre, perfeitamente de accordo com o seu nariz adunco e com a sua bocca sem labios; viam-se-lhe ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio. Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu de Braga enterrado nas orelhas. Fôra em seu tempo empregado do commercio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na Africa, negociando negros por sua conta. Atirou-se muito ás especulações; durante a guerra do Paraguay ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desillusões, cheio de hemorrhoidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava á sombra do Miranda, com quem por muitos annos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a principio por acaso e mais tarde por necessidade. Devorava-o, noite e dia, uma implacavel amargura, uma surda tristeza de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos, por não lhe ter sido possivel empolgar o mundo com as suas mãos hoje inuteis e tremulas. E, como o seu actual estado de miseria não lhe permittia abrir contra ninguem o bico, desabafava vituperando as idéas da época. Assim, eram ás vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando, entre outros assumptos palpitantes, vinha á discussão o movimento abolicionista que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco. Então o Botelho ficava possesso e vomitava phrases terriveis, para a direita e para a esquerda, como quem dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava imprecações, aproveitando aquella valvula para desafogar o velho odio accumulado dentro d'elle. --Bandidos! berrava apoplectico. Cafila de salteadores! E o seu rancor irradiava-lhe dos olhos em settas envenenadas, procurando cravar-se em todas as brancuras e em todas as claridades. A virtude, a belleza, o talento, a mocidade, a força, a saude, e principalmente a fortuna, eis o que elle não perdoava a ninguem, amaldiçoando todo aquelle que conseguia o que elle não obtivéra; que gosava o que elle não desfructára; que sabia o que elle não aprendêra. E, para individualisar o objecto do seu odio, voltava-se contra o Brasil, essa terra que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enriquecer os portuguezes, e que, no emtanto, o deixára, a elle, na penuria. Seus dias eram consumidos do seguinte modo: acordava ás oito da manhã, lavava-se mesmo no quarto com uma toalha molhada em espirito de vinho; depois ia ler os jornaes para a sala de jantar, a espera do almoço; almoçava e sahia, tomava o bonde e ia direitinho para uma charutaria da rua do Ouvidor, onde costumava ficar assentado até ás horas do jantar, entretido a dizer mal das pessoas que passavam lá fóra, de fronte d'elle. Tinha a pretenção de conhecer todo o Rio de Janeiro e os podres de cada um em particular. Ás vezes, poucas, Dona Estella encarregava-o de fazer pequenas compras de armarinho, o que o Botelho desempenhava melhor que ninguem. Mas a sua grande paixão, o seu fraco, era a farda, adorava tudo que dissesse respeito ao militarismo, posto que tivéra sempre invencivel medo ás armas de qualquer especie, mórmente ás de fogo. Não podia ouvir disparar perto de si uma espingarda, enthusiasmava-se porém com tudo que cheirasse a guerra; a presença de um official em grande uniforme tirava-lhe lagrimas de commoção; conhecia na ponta da lingua o que se referia á vida de quartel; distinguia ao primeiro lance d'olhos o posto e o corpo a que pertencia qualquer soldado, e, apezar dos seus achaques, era ouvir tocar na rua a corneta ou o tambor conduzindo o batalhão, ficava logo no ar, e, muita vez, quando dava por si, fazia parte dos que accompanhavam a tropa. Então, não tornava para casa emquanto os militares não se recolhessem. Quasi sempre voltava d'essa loucura ás seis da tarde, moido a fazer dó, sem poder ter-se nas pernas, estrompado de marchar horas e horas ao som da musica de pancadaria. E o mais interessante é que elle, ao vir-lhe a reacção, revoltava-se furioso contra o maldito commandante que o obrigára áquella estopada, levando o batalhão por uma infinidade de ruas e fazendo de proposito o caminho mais longo. --Só parece, lamentava-se elle, que a intenção d'aquelle malvado era dar-me cabo da pelle! Ora vejam! Tres horas de marche-marche por uma soalheira de todos os diabos! Uma das birras mais comicas do Botelho era o seu odio pelo Valentim. O moleque causava-lhe febre com as suas petulancias de mimalho, e, velhaco, percebendo quanto ellas o irritavam, ainda mais abusava, seguro na protecção de Dona Estella. O parasita de muito que o teria estrangulado, se não fôra a necessidade de agradar a dona da casa. Botelho conhecia as fallas de Estella como as palmas da propria mão. O Miranda mesmo, que o via em conta de amigo fiel, muitas e muitas vezes lh'as confiára em occasiões desesperadas de desabafo, declarando francamente o quanto no intimo a desprezava e a razão porque não a punha na rua aos pontapés. E o Botelho dava-lhe toda a razão; entendia tambem que os serios interesses commerciaes estavam acima de tudo. --Uma mulher n'aquellas condições, dizia elle convicto, representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora, você o que devia era nunca chegar-se para ella... --Ora! explicava o marido. Eu me sirvo d'ella como quem se serve de uma escarradeira! O parasita, feliz por ver quanto o amigo aviltava a mulher, concordava em tudo plenamente, dando-lhe um carinhoso abraço de admiração. Mas por outro lado, quando ouvia Estella fallar do marido, com infinito desdem e até com asco, ainda mais resplandecia de contente. --Você quer saber? affirmava ella, eu bem percebo quanto aquelle traste do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me dá como a primeira camisa que vesti! Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não podemos viver sem o esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que me cahio em sorte, quer goste d'elle quer não goste! juro-lhe, porém, que, se consinto que o Miranda se chege ás vezes para mim, é porque entendo que paga mais á pena ceder do que puxar discussão com uma besta d'aquella ordem! O Botelho, com a sua encanecida experiencia do mundo, nunca transmittia a nenhum dos dous o que cada qual lhe dizia contra o outro; tanto assim que, certa occasião, recolhendo-se á casa incommodado, em hora que não era do seu costume, ouvio, ao passar pelo quintal, sussurros de vozes abafadas que pareciam vir de um canto afogado de verdura, onde em geral não ia ninguem. Encaminhou-se para lá em bicos de pés e, sem ser percebido, descobrio Estella entalada entre o muro e o Henrique. Deixou-se ficar espiando, sem tugir nem mugir, e, só quando os dous se separaram, foi que elle se mostrou. A senhora soltou um pequeno grito, e o rapaz, de vermelho que estava, fez-se côr de cera; mas o Botelho procurou tranquillisal-os, dizendo em voz amiga e mysteriosa: --Isso é uma imprudencia o que vocês estão fazendo!... Estas coisas não é d'este modo que se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa... Pois n'uma casa, em que ha tantos quartos, é lá preciso vir metterem-se n'este canto do quintal?... --Nós não estávamos fazendo nada! disse Estella, recuperando o sangue frio. --Ah! tornou o velho, apparentando summo respeito: então desculpe, pensei que estivessem... E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo, porque acho isso a coisa mais natural do mundo e entendo que d'esta vida a gente só leva o que come!... Se vi, creia, foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar com a vida de cada um!... A senhora está moça, está na força dos annos; seu marido não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah! isto é o mundo, e, se é torto, não fomos nós que o fizemos torto!... Até certa idade todos temos dentro um bichinho carpinteiro, que é preciso matar, antes que elle nos mate! Não lhes doam as mãos!... apenas acho que, para outra vez, devem ter um pouquito mais de cuidado e... --Está bom! basta! ordenou Estella. --Perdão! eu, se digo isto, é para deixal-os bem tranquillos a meu respeito. Não quero, nem por sombra, que se persuadam de que... O Henrique atalhou, com a voz ainda commovida: --Mas, acredite, seu Botelho, que... O velho interrompeo-o tambem por sua vez, passando-lhe a mão no hombro e affastando-o comsigo: --Não tenha receio, que não o comprometterei, menino! E, como já estivessem distantes de Estella, segredou-lhe em tom protector: Não torne a fazer isto assim, que você se estraga... Olhe como lhe tremem as pernas! Dona Estella acompanhou-os a distancia, vagarosamente, affectando preoccupação em compor um ramalhete, cujas flores ella ia colhendo com muita graça, ora toda vergada sobre as plantas rasteiras, ora pondo-se na pontinha dos pés para alcançar os heliotropos e os manacás. Henrique seguio o Botelho até ao quarto d'este, conversando sem mudar de assumpto. --Você então não falia n'isto, hein? Jura? perguntou-lhe. O velho tinha já declarado, a rir, que os pilhára em flagrante e que ficára bom tempo a espreita. Fallar o que, seu tolo?... Pois então quem pensa você que eu sou?... Só abrirei o bico se você me der motivo para isso, mas estou convencido que não dará... Quer saber? eu até sympathiso muito com você, Henrique! Acho que você é um excellente menino, uma flôr! E digo-lhe mais: hei de proteger os seus negocios com Dona Estella... Fallando assim, tinha-lhe tomado as mãos e affagava-as. --Olhe, continuou, acariciando-o sempre; não se metta com donzellas, entende?... São o diabo! Por dá cá aquella palha fica um homem em apuros! agora quanto ás outras, papo com ellas! Não mande nenhuma ao vigario, nem lhe dôa a cabeça, porque, no fim de contas, nas circumstancias de Dona Estella, é até um grande serviço que você lhe faz! Meu rico amiguinho, quando uma mulher já passou dos trinta e pilha a geito um rapazito da sua idade, é como se descobrisse oiro em pó! sabe-lhe a gaitas! Fique então sabendo de que não é só a ella que você faz o obsequio, mas tambem ao marido: quanto mais escovar-lhe você a mulher, melhor ella ficará de genio, e por conseguinte melhor será para o pobre homem, coitado! que tem já bastante com que se aborrecer lá por baixo, com os seus negocios, e precisa de um pouco de descanço quando volta do serviço e mette-se em casa! Escove-a, escove-a! que a porá macia que nem velludo! O que é preciso é muito juizinho, percebe? Não faça outra criançada como a de hoje e continue para diante, não só com ella, mas com todas as que lhe cahirem debaixo da aza! Vá passando! menos as de casa aberta, que isso é perigoso por causa das molestias; nem tão pouco donzellas! Não se metta com a Zulmira! E creia que lhe fallo assim, porque sou seu amigo, porque o acho sympathico, porque o acho bonito! E acarinhou-o tão vivamente d'esta vez, que o estudante, fugindo-lhe das mãos, affastou-se com um gesto de repugnancia e desprezo, emquanto o velho lhe dizia em voz comprimida: --Olha! Espera! Vem cá! Você é desconfiado!... III Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janellas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormio de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentia ainda na indolencia da neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se á luz loira e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada, que ficára de vespera nos córadoiros, humedecia o ar e punha-lhe um fartum acre de sabão ordinario. As pedras do chão, esbranquiçadas no logar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma pallidez grisalha e triste, feita de accumulações de espumas seccas. Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de somno; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as chicaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, supplantando todos os outros; trocavam-se de janella para janella as primeiras palavras, os bons dias; reatavam-se conversas interrompidas á noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá de dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de gallos, cacarejar de gallinhas. De alguns quartos sabiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os loiros, á semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se á luz nova do dia. D'ahi a pouco, em volta das bicas era um zum-zum crescente; uma agglomeração tumultuosa de machos e femeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incommodamente, debaixo do fio d'agoa que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que ellas despiam, suspendendo o cabello todo para o alto do casco; os homens, esses não se preoccupavam em não molhar o pello, ao contrario mettiam a cabeça bem debaixo da agoa e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sahir sem treguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. O rumor crescia, condensando-se; o zum-zum de todos os dias accentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruido compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não fallava, gritava-se. Sentia-se n'aquella fermentação sanguinea, n'aquella gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triumphante satisfação de respirar sobre a terra. Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas, fazendo compras. Duas janellas do Miranda abriram-se. Appareceu n'uma a Izaura, que se dispunha a começar a limpeza da casa. --Nhá Dunga! gritou ella para baixo, a sacudir um panno de mesa; se você tem cús-cús de milho hoje, bata na porta, ouvio? A Leonor surgio logo tambem, enfiando curiosa a carapinha por entre o pescoço e o hombro da mulata. O padeiro entrou na estalagem, com a sua grande cesta á cabeça e o seu banco de páo fechado debaixo do braço, e foi estacionar em meio do pateo, a espera dos freguezes, pousando a canastra sobre o cavallete que elle armou promptamente. Em breve estava cercado por uma nuvem de gente. As crianças adulavam-no, e, á proporção que cada mulher ou cada homem recebia o pão, disparava para casa com este abraçado contra o peito. Uma vacca, seguida por um bezerro amordaçado, ia, tilintando tristemente o seu chocalho, de porta em porta, guiada por um homem carregado de vasilhame de folha. O zum-zum chegava ao seu apogeu. A fabrica de massas italianas, ali mesmo da visinhança, começou a trabalhar, engrossando o barulho com o seu arfar monotono de machina a vapor. As corridas até á venda reproduziam-se, transformando-se n'um verminar constante de formigueiro assanhado. Agora, no logar das bicas apinhavam-se latas de todos os feitios, sobresahindo as de kerozene com um braço de madeira em cima; sentia-se o trapejar da agoa cahindo na folha. Algumas lavadeiras enchiam já as suas tinas; outras estendiam nos córadoiros a roupa que ficára de molho. Principiava o trabalho. Rompiam das gargantas os fados portuguezes e as modinhas brasileiras. Um carroção de lixo entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido de uma algazarra medonha algaraviada pelo carroceiro contra o burro. E, durante muito tempo, fez-se um vae-vem de mercadores. Appareceram os taboleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; só não vinham hortaliças, porque havia muitas hortas no cortiço. Vieram os ruidosos mascates, com as suas latas de quinquilharia, com as suas caixas de candieiros e objectos de vidro e com o seu fornecimento de caçarolas e chocolateiras de folha de Flandres. Cada vendedor tinha o seu modo especial de apregoar, destacando-se o homem das sardinhas, com as cestas do peixe dependuradas, á moda de balança, de um páo que elle trazia ao hombro. Nada mais foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e guttural para surgirem logo, como por encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram correndo acercar-se d'elle com grande familiaridade, roçando-se-lhe nas pernas arregaçadas e miando supplicantemente. O sardinheiro os affastava com o pé, emquanto vendia o seu peixe á porta das casinhas, mas os bichanos não desistiam e continuavam a implorar, arranhando os cestos que o homem cuidadosamente tapava mal servia ao freguez. Para ver-se livre por um instante dos importunos era necessario atirar para bem longe um punhado de sardinhas, sobre o qual se precipitava logo, aos pulos, o grupo dos pedinchões. A primeira que se pôz a lavar foi a Leandra, por alcunha a «Machona», portugueza feroz, berradora, pulsos cabelludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do marido, Anna das Dores, a quem só chamavam a «das Dores» e outra donzella ainda, a Nênêm, e mais um filho, o Agostinho, menino levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a mãe. A das Dores morava em sua casinha á parte, mas toda a familia habitava no cortiço. Ninguem ali sabia ao certo se a Machona era viuva ou desquitada; os filhos não se pareciam uns com os outros. A das Dores, sim, affirmavam que fôra casada e que largára o marido para metter-se com um homem do commercio; e que este, retirando-se para a terra e não querendo soltal-a ao desamparo, deixara o socio em seu logar. Teria vinte e cinco annos. Nênêm desesete. Espigada, franzina e forte, com uma prôazinha de orgulho da sua virgindade, escapando como enguia por entre os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar. Engommava bem e sabia fazer roupa branca de homem com muita perfeição. Ao lado da Leandra foi collocar-se á sua tina a Augusta Carne Molle, brasileira, branca, mulher de Alexandre, um mulato de quarenta annos, soldado de policia, pernostico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado e um luxo de calças brancas emgommadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço. Tambem tinham filhos, mas ainda pequenos, e um dos quaes, a Jujú, vivia na cidade com a madrinha que se encarregava d'ella. Esta madrinha era uma cocote de trinta mil réis para cima, a Léonie, com sobrado na cidade. Procedencia franceza. Alexandre, em casa, á hora de descanso, nos seus chinellos e na sua camisa desabotoada, era muito chão com os companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o costume de fustigar as calças de brim, ninguem mais lhe via os dentes e então a todos fallava tezo e por cima do hombro. A mulher, a quem elle só dava tu quando não estava fardado, era de uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade sem merito, porque vinha da indolencia do seu temperamento e não do arbitrio do seu caracter. Junto d'ella pôz-se a trabalhar a Leocadia, mulher de um ferreiro chamado Bruno, portugueza pequena e socada, de carnes duras, com uma fama terrivel de leviana entre as suas visinhas. Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas virtudes de que só ella dispunha para benzer erysipelas e cortar febres por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia, grossa, triste, com olhos desvairados, dentes cortados á navalha, formando ponta, como dentes de cão, cabellos lisos, escorridos e ainda retintos apezar da idade. Chamavam-lhe «Bruxa.» Depois seguiam-se a Marciana e mais a sua filha Florinda. A primeira, mulata antiga, muita séria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre humida das consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o máo humor punha-se logo a espanar, a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria a buscar um balde d'agua e descarregava-o com furia pelo chão da sala. A filha tinha quinze annos, a pelle de um moreno quente, beiços sensuaes, bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca. Toda ella estava a pedir homem, mas sustentava ainda a sua virgindade e não cedia, nem á mão de Deus Padre, aos rógos de João Romão, que a desejava apanhar a troco de pequenas concessões na medida e no peso das compras que Florinda fazia diariamente á venda. Depois via-se a velha Isabel, isto é, Dona Isabel, porque ali na estalagem lhe dispensavam todos certa consideração, privilegiada pelas suas maneiras graves de pessoa que já teve tratamento: uma pobre mulher comida de desgostos. Fôra casada com o dono de uma casa de chapéos, que quebrou e suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de francez. Tinha uma cara macilenta de velha portugueza devota, que já foi gorda, bochechas molles de pellangas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da bocca como saquinhos vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos e engolidos pelas palpebras. Puxava em bandós sobre as fontes o escasso cabello grisalho untado de oleo de amendoas doces. Quando sahia á rua punha um eterno vestido de seda preta, achamalotada, cuja saia não fazia rugas, e um chale encarnado que lhe dava a todo o corpo um feitio pyramidal. Da sua passada grandeza só lhe ficára uma caixa de rapé de oiro, na qual a inconsolavel senhora pitadeava agora, suspirando a cada pitada. A filha era a flôr do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha, Bonita, posto que enfermiça e nervosa ao ultimo ponto; loira, muito pallida, com uns modos de menina de boa familia. A mãe não lhe permittia lavar, nem engommar, mesmo porque o medico o prohibira expressamente. Tinha o seu noivo, o João da Costa, moço do commercio, estimado do patrão e dos collegas, com muito futuro, e que a adorava e conhecia desde pequenita; mas Dona Isabel não queria que o casamento se fizesse já. É que Pombinha, orçando aliás pelos dezoito annos, não tinha ainda pago á natureza o cruento tributo da puberdade, apezar do zelo da velha e dos sacrificios que esta fazia para cumprir á risca as prescripções do medico e não faltar á filha o menor desvelo. No emtanto, coitadas! d'aquelle casamento dependia a felicidade de ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em casa de um tio seu, de quem mais tarde havia de ser socio, tencionava, logo que mudasse de estado, restituil-as ao seu primitivo circulo social. A pobre velha desesperava-se com o facto e pedia a Deus, todas as noites, antes de dormir, que as protegesse e conferisse á filha uma graça tão simples que elle fazia, sem distincção de merecimento, a quantas raparigas havia pelo mundo; mas, a despeito de tamanho empenho, por coisa nenhuma d'esta vida consentiria que a sua pequena casasse antes de «ser mulher», como dizia ella. E «que deixassem lá fallar o doutor, entendia que não era decente, nem tinha geito, dar homem a uma moça que ainda não fora visitada pelas regras! Não! Antes vel-a solteira toda a vida e ficarem ambas curtindo para sempre aquelle inferno da estalagem!» Lá no cortiço estavam todos a par d'esta historia: não era segredo para ninguem. E não se passava um dia que não interrogassem duas e tres vezes á velha com estas phrases: --Então? já veio? --Porque não tenta os banhos de mar? --Porque não chama outro medico? --Eu, se fosse a senhora, casava-os assim mesmo! A velha respondia dizendo que a felicidade não se fizera para ella. E suspirava resignada. Quando o Costa apparecia depois da sua obrigação para visitar a noiva, os moradores da estalagem cumprimentavam-no em silencio com um respeitoso ar de lastima e piedade, empenhados tacitamente por aquelle caiporismo, contra o qual não valiam nem mesmo as virtudes da Bruxa. Pombinha era muito querida por toda aquella gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quizessem ouvir. Presavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permittia certo luxo relativo. Andava sempre de botinas ou sapatinhos com meias de côr, seu vestido de chita engommado; tinha as suas joiazinhas para sahir á rua, e, aos domingos, quem a encontrasse á missa na egreja de São João Baptista, não seria capaz de desconfiar que ella morava em cortiço. Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, côr de espargo cozido e com um cabellinho castanho, deslavado e pobre, que lhe cahia, n'uma só linha, até ao pescocinho molle e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarisado que ellas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença d'elle fallavam de coisas que não exporiam em presença de outro homem; faziam-no até confidente dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o não revoltava, nem commovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se disputavam, era sempre Albino quem tratava de reconcilial-os, exhortando as mulheres á concordia. D'antes encarregava-se de cobrar o rol das collegas, por amabilidade; mas uma vez, indo a uma republica de estudantes, deram-lhe lá, ninguem sabia porque, uma duzia de bolos, e o pobre diabo jurou então, entre lagrimas e soluços, que nunca mais se incumbiria de receber os róes. E d'ahi em diante, com effeito, não arredava os pésinhos do cortiço, a não ser nos dias de carnaval, em que ia, vestido de dansarina, passear á tarde pelas ruas e á noite dansar nos bailes dos theatros. Tinha verdadeira paixão por esse divertimento; ajuntava dinheiro durante o anno para gastar todo com a mascarada. E ninguem o encontrava, domingo ou dia de semana, lavando ou descansando, que não estivesse com a sua calça branca engommada, a sua camisa limpa, um lenço ao pescoço, e, amarrado á cinta, um avental que lhe cahia sobre as pernas como uma saia. Não fumava, não bebia espiritos e trazia sempre as mãos geladas e humidas. N'aquella manhã levantára-se ainda um pouco mais languido que de costume, porque passára mal a noite. A velha, Isabel, que lhe ficava ao lado esquerdo, ouvindo-o suspirar com insistencia, perguntou-lhe o que tinha. Ah! muita molleza de corpo e uma pontada no vazio que o não deixava! A velha receitou diversos remedios, e ficaram os dois, no meio de toda aquella vida, a fallar tristemente sobre molestias. E, emquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocadia, a Bruxa, a Marciana e sua filha, conversavam de tina a tina, berrando e quasi sem se ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte d'ellas, separado pelos giráos, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fóra, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando logar ao lado umas das outras, entre uma agitação sem tregoas, onde se não distinguia o que era galhofa e o que era briga. Uma a uma occupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos do cortiço sahiam homens para as suas obrigações. Por uma porta que havia ao fundo da estalagem desappareciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha agora o retinir dos alviões e das picaretas. O Miranda, de calças de brim, chapéo alto e sobrecasaca preta, passou lá fóra, em caminho para o armazem, acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera de serviço essa madrugada, entrou solemne, atravessou o pateo, sem fallar a ninguem, nem mesmo á mulher, e recolheu-se á casa, para dormir. Um grupo de mascates, o Delporto, o Pompéo, o Francesco e o Andréa, armado cada qual com a sua grande caixa de bugigangas, sahio para a perigrinação de todos os dias, altercando e praguejando em italiano. Um rapazito de paletó entrou da rua e foi perguntar á Machona pela inhá Rita. --A Rita Bahiana? Sei cá! Faz amanhã oito dias que ella arribou! A Leocadia explicou logo que a mulata estava com certeza de pandega com o Firmo. --Que Firmo? interrogou Augusta. --Aquelle cabravasco que se mettia ás vezes ahi com ella. Diz que é torneiro. --Ella mudou-se? perguntou o pequeno. --Não, disse a Machona; o quarto está fechado, mas a mulata tem coisas lá. Você o que queria? --Vinha buscar uma roupa que está com ella. --Não sei, filho, pergunta na venda ao João Romão, que talvez te possa dizer alguma coisa. --Ali? --Sim, pequeno, n'aquella porta, onde a preta do taboleiro está vendendo! Ó diabo! olha que pizas a boneca de anil! Já se vio que sorte? Parece que não vê onde piza este raio de criança! E, notando que o filho, o Agostinho, se approximava para tomar o logar do outro que já se ia:--Sahe d'ahi, tu tambem, peste! Já principias na reinação de todos os dias? Vem para cá, que levas! Mas, é verdade, que fazes tu que não vaes regar a horta do Commendador? --Elle disse hontem que eu agora fosse á tarde, que era melhor. --Ah! E amanhã, não te esqueças, recebe os dois mil réis, que é fim do mez. Olha! Vae lá dentro e diz a Nênêm que te entregue a roupa que veio hontem á noite. O pequeno afastou-se de carreira, e ella lhe gritou na pista.--E que não ponha o refogado no fogo sem eu ter lá ido! Uma conversa cerrada travára-se no resto da fila de lavadeiras a respeito da Rita Bahiana. --É doida mesmo!... censurava Augusta. Metter-se na pandega sem dar conta da roupa que lhe entregaram... Assim ha de ficar sem um freguez... --Aquella não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Póde haver o serviço que houver, apparecendo pagode, vae tudo pr'o lado! Olha o que sahio o anno passado com a festa da Penha!... --Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma pouca vergonha! Est'ro dia, pois você não vio? levaram ahi n'uma bebedeira, a dansar e cantar á viola, que nem sei o que parecia! Deus te livre! --Para tudo ha horas e ha dias!... --Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é apparecer quem puxe por ella! --Ainda assim não é má creatura... Tirante o defeito da vadiagem... --Bom coração tem ella, até de mais, que não guarda um vintém pr'o dia d'amanhã. Parece que o dinheiro lhe faz comichão no corpo! --Depois é que são ellas!... O João Romão já lhe não fia! --Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as mãos; quando ella tem dinheiro é porque o gasta mesmo! E as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas e ceroulas, esfogueadas já pelo exercicio. Ao passo que, em torno da sua tagarelice, o cortiço se enbandeirava todo de roupa molhada, donde o sol tirava scintillações de prata. Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos córadoiros tinha reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao nascente, caiadinhas de novo, reverberavam illuminadas, offuscando a vista. Em uma das janellas da sala de jantar do Miranda, Dona Estella e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas a limarem as unhas, conversavam em voz surda, indifferentes á agitação que ia lá em baixo, muito esquecidas na sua tranquillidade de entes felizes. Entretanto, agora o maior movimento era na venda á entrada da estalagem. Davam nove horas e os operarios das fabricas chegavam-se para o almoço. Ao balcão o Domingos e o Manoel não tinham mãos a medir com a criadagem da visinhança; os embrulhos de papel amarello succediam-se, e o dinheiro pingava sem intermittencia dentro da gaveta. --Meio kilo de arroz! --Um tostão de assucar! --Uma garrafa de vinagre! --Dois martellos de vinho! --Dois vintens de fumo! --Quatro de sabão! E os gritos confundiam-se numa mistura de vozes de todos os tons. Ouviam-se protestos entre os compradores: --Me avie, seu Domingos! Eu deixei a comida no fogo! --O peste! dá cá as batatas, que eu tenho mais o que fazer! --Seu Manoel, não me demore essa manteiga! Ao lado, na casinha de pasto, a Bertoleza, de saias arrepanhadas no quadril, o cachaço grosso e negro, reluzindo de suor, ia e vinha de uma panella á outra, fazendo pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores assentados num compartimento junto. Admittira-se um novo caixeiro, só para o frege, e o rapaz, a cada commensal que ia chegando, recitava, em tom cantado e estridente, a sua interminavel lista das comidas que havia. Um cheiro forte de azeite frito predominava. O paraty circulava por todas as mezas, e cada caneca de café, de louça espessa, erguia um vulcão de fumo tresandando a milho queimado. Uma algazarra medonha, em que ninguem se entendia! Crusavam-se conversas em todas as direcções, discutia-se a berros, com valentes punhados sobre as mesas. E sempre a sahir, e sempre a entrar gente, e os que sahiam, depois d'aquella comesaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia, a arrotar. N'um banco de páo tosco, que existia do lado de fóra, junto á parede e perto da venda, um homem, de calça e camisa de zuarte, chinellos de couro crú, esperava, havia já uma boa hora, para fallar com o vendeiro. Era um portuguez de seus trinta e cinco a quarenta annos, alto, espadaúdo, barbas asperas, cabellos pretos e mal tratados cahindo-lhe sobre a testa, por debaixo de um chapéo de feltro ordinario; pescoço de touro e cara de Hercules, na qual os olhos todavia, humildes como os olhos de um boi de canga, exprimiam tranquilla bondade. --Então ainda não se póde fallar ao homem? perguntou elle, indo ao balcão entender-se com o Domingos. --O patrão está agora muito occupado. Espere! --Mas são quasi dez horas e estou com um gole de café no estomago! --Volte logo! --Moro na cidade nova. É um estirão d'aqui! O caixeiro gritou então para a cozinha, sem interromper o que fazia: --O homem que ahi está, seu João, diz que se vae embora! --Elle que espere um pouco, que já lhe fallo! respondeu o vendeiro no meio de uma carreira. Diga-lhe que não vá! --Mas é que ainda não almocei e estou aqui a tinir!... observou o hercules com a sua voz grossa e sonora. --Ó filho, almoce ahi mesmo! Aqui o que não falta é de comer. Já podia estar aviado! --Pois vá lá! resolveu o homemzarrão, sahindo da venda para entrar na casa de pasto, onde os que lá se achavam o receberam com ar curioso, medindo-o da cabeça aos pés, como faziam sempre com todos os que ahi se apresentavam pela primeira vez. E assentou-se a uma das mezinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe a lista dos pratos. --Traga lá o pescado com batatas e venha um martello de vinho. --Quer verde ou virgem? --Venha o verde; mas anda com isso, filho, que já não vem sem tempo! IV Meia hora depois, quando João Romão se vio menos occupado, foi ter com o sujeito que o procurava e assentou-se defronte d'elle, cahindo de fadiga, mas sem se queixar, nem se lhe trahir na physionomia o menor symptoma de cansaço. --Você vem da parte do Machucas? perguntou-lhe. Elle fallou-me de um homem que sabe calçar pedra, lascar fogo e fazer lagedo... --Sou eu. --Estava empregado n'outra pedreira? --Estava e estou. Na de São Diogo, mas desgostei-me d'ella e quero passar adiante. --Quanto lhe dão lá? --Setenta mil réis. --Oh! Isso é um disparate! --Não trabalho por menos... --Eu, o maior ordenado que faço é de cincoenta. --Cincoenta ganha um macaqueiro... --Ora! tenho ahi muitos trabalhadores de lagedo por esse preço! --Duvido que prestem! Aposto a mão direita em como o senhor não encontra por cincoenta mil réis quem dirija a broca, pese a polvora e lasque fogo, sem lhe estragar a pedra e sem fazer desastres! --Sim, mas setenta mil réis é um ordenado impossivel! --N'esse caso vou como vim... Fica o dito por não dito! --Setenta mil réis é muito dinheiro!... --Cá por mim, entendo que vale a pena pagar mais um pouco a um trabalhador bom, do que estar a soffrer desastres, como o que soffreu sua pedreira a semana passada! Não fallando na vida do pobre de Christo que ficou debaixo da pedra! --Ah! O Machucas fallou-lhe no desastre? --Contou-m'o, sim senhor, e o desastre não aconteceria se o homem soubesse fazer o serviço! --Mas setenta mil réis é impossivel. Desça um pouco! --Por menos não me serve... E escusamos de gastar palavras! --Você conhece a pedreira? --Nunca a vi de perto, mas quiz me parecer que é boa. De longe cheirou-me a granito. --Espere um instante. João Romão deu um pulo á venda, deixou algumas ordens, enterrou um chapéo na cabeça e voltou a ter com o outro. --Ande a ver! gritou-lhe da porta do frege, que a pouco e pouco se esvaziara de todo. O cavouqueiro pagou doze vintens pelo seu almoço e acompanhou-o em silencio. Atravessaram o cortiço. A labutação continuava. As lavadeiras tinham já ido almoçar e tinham voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chapéo de palha, apezar das toldas que se armaram. Um calor de caustico mordia-lhes os toutiços em brasa e scintillantes de suor. Um estado febril apoderava se d'ellas n'aquelle rescaldo; aquella digestão feita ao sol fermentava-lhes o sangue. A Machona altercava com uma preta que fôra reclamar um par de meias e destrocar uma camisa; a Augusta, muito molle sobre a sua taboa de lavar, parecia derreter-se como cebo; a Leocadia largava de vez em quando a roupa e o sabão para coçar as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo mormaço; a Bruxa monologava, resmungando n'uma insistencia de idiota, ao lado da Marcianna que, com o seu typo de mulata velha, um cachimbo ao canto da bocca, cantava toadas monotonas do sertão: «Maricas tá marimbando. Maricas tá marimbando, Na passage do riacho Maricas tá marimbando.» A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem fadigas, assobiava os chorados e lundús que se tocavam na estalagem, e junto d'ella, a melancolica senhora Dona Isabel suspirava, esfregando a sua roupa dentro da tina, automaticamente, como um condemnado a trabalhar no presidio; ao passo que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de homem lymphatico, batia na taboa um par de calças, no rhythmo cadenciado e miudo de um cozinheiro a bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e elle, de vez em quando, suspendia o lenço do pescoço para enxugar a fronte, e então um gemido suspirado subia-lhe aos labios. Da casinha numero 8 vinha um falsete agudo, mas afinado. Era a das Dores que principiava o seu serviço; não sabia engommar sem cantar. No numero 7 Nênêm cantarolava em tom muito mais baixo; e de um dos quartos do fundo da estalagem sahia de espaço a espaço uma nota aspera de trombone. O vendeiro, ao passar por detrás de Florinda, que no momento apanhava roupa do chão, ferrou-lhe uma palmada na parte do corpo então mais em evidencia. --Não bula, hein?!... gritou ella, rapido, erguendo-se teza. E, dando com João Romão:--Eu logo vi! Leva implicando aqui com a gente e depois, vae-se comprar na venda, o safado rouba no peso! Diabo do gallego! Eu não te quero, sabe? O vendeiro soltou-lhe nova palmada com mais força e fugio, porque ella se armára com um regador cheio d'agoa. --Vem p'ra cá, se és capaz! Diabo da peste! João Romão já se havia afastado com o cavouqueiro. --O senhor tem aqui muita gente!... observou-lhe este. --Oh! fez o outro, sacudindo os hombros, r disse depois com empafia:--Houvesse mais cem quartos que estariam cheios! Mas é tudo gente séria! Não ha chinfrins n'esta estalagem; se apparece uma rusga, eu chego, e tudo acaba logo! Nunca nos entrou cá a policia, nem nunca la deixaremos entrar! E olhe que se divertem bem com as suas violas! Tudo gente muito boa! Tinham chegado ao fim do pateo do cortiço e, depois de transporem uma porta que se fechava com um pezo amarrado a uma corda, acharam-se no capinzal que havia antes da pedreira. --Vamos por aqui mesmo que é mais perto, aconselhou o vendeiro. E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim quente e trescalante. Meio dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava á luz irreconciliavel de dezembro, n'um dia sem nuvens. A pedreira, em que ella batia de chapa em cima, cegava olhada de frente. Era preciso martyrisar a vista para descobrir as nuances da pedra; nada mais que uma grande mancha branca e luminosa, terminando pela parte de baixo no chão coberto de cascalho miudo, que ao longe produzia o effeito de um betume cinzento, e pela parte de cima na espessura compacta do arvoredo, onde se não distinguiam outros tons mais do que nodoas negras, bem negras, sobre o verde-escuro. Á proporção que os dois se aproximavam da imponente pedreira, o terreno ia-se tornando mais e mais cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se de uma poeira clara. Mais adiante, por aqui e por ali, havia muitas carroças, algumas em movimento, puxadas a burro e cheias de calhaus partidos; outras já promptas para seguir, a espera do animal, e outras enfim com os braços para o ar, como se acabassem de ser despejadas n'aquelle instante. Homens labutavam. Á esquerda, por cima de um vestigio de rio, que parecia ter sido bebido de um trago por aquelle sol sedento, havia uma ponte de taboas, onde tres pequenos, quasi nús, conversavam assentados, sem fazer sombra, illuminados a prumo pelo sol do meio dia. Para adiante, na mesma direcção, corria um vasto telheiro, velho e sujo, firmado sobre columnas de pedra tosca; ahi muitos portuguezes trabalhavam de canteiro, ao barulho metallico do picão que feria o granito. Logo em seguida, surgia uma officina de ferreiro, toda atravancada de destroços e objectos quebrados, entre os quaes avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois homens, de corpo nú, banhados de suor e alumiados de vermelho como dous diabos, martellavam cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali mesmo, perto d'elles, a forja escancarava uma guela infernal, d'onde sahiam pequenas linguas de fogo, irrequietas e gulosas. João Romão parou á entrada da officina e gritou para um dos ferreiros: --Ó Bruno! Não se esqueça do varal da lanterna do portão! Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho. --Já lá fui ver, respondeu o Bruno. Não vale a pena concertal-o; está todo comido de ferrugem! Faz se-lhe um novo, que é melhor! --Pois veja lá isso, que a lanterna está a cahir! E o vendeiro seguio adiante com o outro, emquanto atrás recomeçava o martellar sobre a bigorna. Em seguida via-se uma miseravel estrebaria, cheia de capim secco e excremento de bestas, com logar para meia duzia de animaes. Estava deserta, mas, no vivo fartum exhalado de lá, sentia-se que fora habitada ainda aquella noite. Havia depois um deposito de madeiras, servindo ao mesmo tempo de officina de carpinteiro, tendo á porta troncos d'arvore, alguns já cerrados, muitas taboas empilhadas, restos de cavernas e mastros de navio. D'ahi á pedreira restavam apenas uns cincoenta passos e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra moida que sujava como a cal. Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro afeiçoavam lagedos a ponta de picão; mais adiante faziam parallelepipedos a escopro e macete. E todo aquelle retimtim de ferramentas, e o martellar da forja, e o côro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda zuada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a idéa de uma actividade feroz, de uma luta de vingança e de odio. Aquelles homens gottejantes de suor, bebedos de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de demonios revoltados na sua impotencia contra o impassivel gigante que os contemplava com desprezo, imperturbavel a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito. O membrudo cavouqueiro havia chegado á fralda do orgulhoso monstro de pedra; tinha-o cara a cara, medio-o de alto abaixo, arrogante, n'um desafio surdo. A pedreira mostrava n'esse ponto de vista o seu lado mais imponente. Descomposta, com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira e desassombrada, affrontando o céo, muito ingreme, lisa, escaldante e cheia de cordas que mesquinhamente lhe escorriam pela cyclopica nudez com um effeito de teias de aranha. Em certos logares, muito alto do chão, lhe haviam espetado alfinetes de ferro, amparando, sobre um precipicio, miseraveis taboas que, vistas cá de baixo, pareciam palitos, mas em cima das quaes uns atrevidos pigmêos de forma humana equilibravam-se, desfechando golpes de picareta contra o gigante. O cavouqueiro meneou a cabeça com ar de lastima. O seu gesto desaprovava todo aquelle serviço. --Veja lá! disse elle, apontando para certo ponto da rocha. Olhe pr'aquillo! Sua gente tem ido ás cegas no trabalho d'esta pedreira! Deviam atacal-a justamente por aquel'outro lado, para não contrariar os veios da pedra. Esta parte aqui é toda granito, é a melhor! Pois olhe só o que elles têm tirado de lá--umas lascas, uns calháos que não servem para nada! É uma dôr de coração ver estragar assim uma peça tão boa! Agora o que hão de fazer d'essa cascalhada que ahi está senão macacos? E brada aos céos, creia! ter pedra d'esta ordem para empregal-a em macacos! O vendeiro escutava-o em silencio, apertando os beiços, aborrecido com a idéa d'aquelle prejuizo. --Uma porcaria de serviço! continuou o outro. Ali onde está aquelle homem é que deviam ter feito a broca, porque a explosão punha abaixo toda esta aba que é separada por um veio. Mas quem tem ahi o senhor capaz de fazer isso? Ninguem; porque é preciso um empregado que saiba o que faz; que, se a polvora não fôr muito bem medida, nem só não se abre o veio, como ainda succede ao trabalhador o mesmo que succedeu ao outro! É preciso conhecer muito bem o trabalho para se poder tirar partido vantajoso d'esta pedreira! Boa é ella, mas não nas mãos em que está! É muito perigosa nas explosões; é muito em pé! Quem lhe lascar fogo não póde fugir senão para cima pela corda, e se o sujeito não fôr fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz! E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como o proprio cascalho, um parallelipipedo que estava no chão:--Que digo eu?! Cá está! Macacos de granito! Isto até é uma coisa que estes burros deviam esconder por vergonha! Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que ella dava depois, formando um angulo obtuso, é que se via quanto era grande. Suava-se bem antes de chegar ao seu limite com a matta. --Que mina de dinheiro!... dizia o homemzarrão, parando enthusiasmado defronte do novo panno de rocha viva que se desdobrava na presença d'elle. --Toda esta parte que se segue agora, declarou João Romão ainda não é minha. E continuaram a andar para diante. D'este lado multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros trabalhavam á sombra d'ellas, indifferentes áquelles dois. Viam-se panellas ao fogo, sobre quatro pedras, ao ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos paes. De mulher nem signal. De vez em quando, na penumbra de um ensombro de lona, dava-se com um grupo de homens, comendo de cocaras defronte uns dos outros, uma sardinha na mão esquerda, um pão na direita, ao lado de uma garrafa d'agua. --Sempre o mesmo serviço mal feito e mal dirigido!... resmungou o cavouqueiro. Entretanto, a mesma actividade parecia reinar por toda a parte. Mas, lá no fim, debaixo dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns trabalhadores dormiam á sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o alto, o pescoço entumecido de cordoveias grossas como enxarcias de navio, a bocca aberta, a respiração forte e tranquilla de animal sadio, n'um feliz e plethorico resfolgar de besta cansada. --Que relaxamento! resmungou de novo o cavouqueiro. Tudo isto está a reclamar um homem tezo que olhe a sério para o serviço! --Eu nada tenho que ver com este lado! observou Romão. --Mas lá da sua banda hão de fazer o mesmo! Olaré! --Abusam, porque tenho de olhar pelo negocio lá fora... --Commigo aqui é que elles não fariam cera. Isso juro eu! Entendo que o empregado deve ser bem pago, ter para a sua comida á farta, o seu gole de vinho, mas que deve fazer serviço que se veja, ou, então, rua! Rua, que não falta por ahi quem queira ganhar dinheiro! Auctorise-me a olhar por elles e verá! --O diabo e que você quer setenta mil réis... suspirou João Romão. --Ah! nem menos um real!... Mas commigo aqui ha de ver o que lhe faço entrar pr'algibeira! Temos cá muita gente que não precisa de estar. Para que tanto macaqueiro, por exemplo? Aquillo é serviço para descanço; é serviço de criança! Em vez de todas aquellas lesmas, pagas talvez a trinta mil reis... --É justamente quanto lhes dou. --... melhor seria tomar dois bons trabalhadores de cincoenta, que fazem o dobro do que fazem aquelles monos e que podem servir para outras coisas! Parece que nunca trabalharam! Olhe, é já a terceira vez que aquelle que alli está deixa cahir o escopro! Com effeito! João Romão ficou calado, a scismar, emquanto voltavam. Vinham ambos pensativos. --E você, se eu o tomar, disse depois o vendeiro, muda-se cá para estalagem? --Naturalmente! não hei de ficar lá na cidade nova, tendo o serviço aqui!... --E a comida, forneço-a eu?... --Isso é que a mulher é quem a faz; mas as compras sahem-lhe da venda... --Pois está fechado o negocio! deliberou João Romão, convencido de que não podia, por economia, dispensar um homem d'aquelles. E pensou lá de si para si: «Os meus setenta mil reis voltar-me-hão á gaveta. Tudo me fica em casa!» --Então estamos entendidos?... --Estamos entendidos! --Posso amanhã fazer a mudança? --Hoje mesmo, se quizer; tenho um commodo que lhe ha de calhar. É o numero 35. Vou mostrar-lh'o. E, aligeirando o passo, penetraram na estrada do capinzal com direcção ao fundo do cortiço. --Ah! é verdade! como você se chama? --Jeronymo, para o servir. --Servir a Deus. Sua mulher lava? --É lavadeira, sim senhor. --Bem, precisamos ver-lhe uma tina. E o vendeiro empurrou a porta do fundo da estalagem, d'onde escapou, como de uma panella fervendo que se destapa, uma baforada quente, vozeria tresandante á fermentação de suores e roupa ensaboada seccando ao sol. V No dia seguinte, com effeito, ali pelas sete da manhã, quando o cortiço fervia já na costumada labutação, Jeronymo apresentou-se junto com a mulher, para tomarem conta da casinha alugada na vespera. A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta annos, boa estatura, carne ampla e rija, cabellos fortes de um castanho fulvo, dentes pouco alvos, mas solidos e perfeitos, cara cheia, physionomia aberta; um todo de bonhomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela bocca numa sympathica expressão de honestidade simples e natural. Vieram ambos á boléa da andorinha que lhes carregou os trens. Ella trazia uma saia de sarja roxa, cabeção branco de panninho de algodão e na cabeça um lenço vermelho de alcobaça; o marido a mesma roupa do dia anterior. E os dois apearam-se muito atrapalhados com os objectos que não confiaram dos homens da carroça; Jeronymo abraçado a duas formidaveis mangas de vidro, das primitivas, d'essas em que se podia á vontade enfiar uma perna; e a Piedade atracada com um velho relogio de parede e com uma grande trouxa de santos e palmas bentas. E assim atravessaram o pateo da estalagem, entre os commentarios e os olhares curiosos dos antigos moradores, que nunca viam sem uma pontinha de desconfiança os inquilinos novos que surgiam. --O que será este pedaço d'homem? indagou a Machona da sua visinha de tina, a Augusta Carne-molle. --A modos, respondeu esta, que vem pr'a trabalhar na pedreira. Elle hontem andou por lá um rôr de tempo com o João Romão. --Aquella mulher que entrou junto será casada com elle? --E de crer. --Ella me parece gente das ilhas. --Elles o que têm é muito bons trastes de seu! interveio a Leocadia. Uma cama que deve de ser um regalo e um toucador com um espelho maior do que aquella peneira! --E a commoda, você vio, nhá Leocadia? perguntou Florinda, gritando para ser ouvida, porque entre ella e a outra estavam a Bruxa e a velha Marcianna. --Vi. Rico traste! --E o oratorio, então? Muito bonito!... --Vi tambem. E obra de capricho. Não! elles, sejam lá quem fôr, são gente arranjada... Isso não se lhes póde negar! --Se são bons ou máos só com o tempo se saberá!... arriscou Dona Isabel. --Quem vê cara não vê corações ... sentenciou o triste Albino, suspirando. --Mas o numero 35 não estava occupado por aquelle homem muito amarello que fazia charutos?... inquirio Augusta. --Estava, confirmou a mulher do ferreiro, a Leocadia, porém creio que arribou, devendo não sei quanto, e o João Romão então esvaziou-lhe hontem a casa e tomou conta do que era d'elle. É! accudio a Machona; hontem, pelo cahir das duas da tarde, o Romão andava ahi as voltas com os cacarecos do charuteiro. Quem sabe, se o pobre homem não levou a breca, como succedeu aquel'outro que trabalhava de ourives? --Não! Este creio que está vivo... --O que lhe digo é que aquelle numero 35 tem máo agouro! Eu cá por mim não o queria nem de graça! Foi lá que morreu a Maricas do Farjão! Tres horas depois, Jeronymo e Piedade achavam-se installados e dispunham-se a comer o almoço, que a mulher preparara o melhor e o mais depressa que poude. Elle contava aviar até á noite uma infinidade de coisas, para poder começar a trabalhar logo no dia seguinte. Era tão methodico e tão bom como trabalhador quanto o era como homem. Jeronymo viéra da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena, tentar a vida no Brazil, na qualidade de colono de um fazendeiro, em cuja fazenda moirejou durante dois annos, sem nunca levantar a cabeça, e donde afinal se retirou de mãos vazias e com grande birra pela lavoura brasileira. Para continuar a servir na roça tinha que sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com elles no mesmo meio degradante, encurralado como uma besta, sem aspirações, nem futuro, trabalhando eternamente para outro. Não quiz. Resolveu abandonar de vez semelhante estupor de vida e atirar-se para a côrte, onde, diziam-lhe patricios, todo o homem bem disposto encontrava furo. E, com effeito, mal chegou, devorado de necessidades e privações, metteu-se a quebrar pedra n'uma pedreira, mediante um miseravel salario. A sua existencia continuava dura e precaria; a mulher já então lavava e engommava, mas com pequena freguezia e mal paga. O que os dois faziam chegava-lhes apenas para não morrer de fome e pagar o quarto da estalagem. Jeronymo, porém, era perseverante, observador e dotado de certa habilidade. Em poucos mezes se apoderava do seu novo officio e, de quebrador de pedra, passou logo a fazer parallelepipedos; e depois foi se ageitando com o prumo e com a esquadria e metteu-se a fazer lagedos; e finalmente, á força de dedicação pelo serviço, tornou-se tão bom como os melhores trabalhadores de pedreira e a ter salario igual ao d'elles. Dentro de dois annos, distinguia-se tanto entre os companheiros, que o patrão o converteu n'uma especie de contra-mestre e elevou-lhe o ordenado a setenta mil réis. Mas não foram só o seu zelo e a sua habilidade o que o pôz assim para a frente; duas outras coisas contribuiram muito para isso: a força de touro que o tornava respeitado e temido por todo o pessoal dos trabalhadores, como ainda, e talvez principalmente, a grande seriedade do seu caracter e a pureza austera dos seus costumes. Era homem de uma honestidade a toda a prova e de uma primitiva simplicidade no seu modo de viver. Sahia de casa para o serviço e do serviço para a casa, onde nunca ninguem o vira com a mulher senão em boa paz; traziam a filhinha sempre limpa e bem alimentada, e, tanto um como o outro, eram sempre os primeiros á hora do trabalho. Aos domingos iam ás vezes á missa ou, á tarde, ao passeio publico; n'essas occasiões, elle punha uma camisa engommada, calçava sapatos e enfiava um paletó; ella o seu vestido de ver a Deus, os seus oiros trazidos da terra, que nunca tinham ido ao monte de soccorro, máo grado as difficuldades com que os dois lutaram a principio no Brazil. Piedade merecia bem o seu homem, muito diligente, sadia, honesta, forte, bem acommodada com tudo e com todos, trabalhando de sol a sol e dando sempre tão boas contas da obrigação, que os seus freguezes de roupa, apezar d'aquella mudança para Botafogo, não a deixaram quasi todos. Jeronymo, ainda na cidade nova, logo que principiara a ganhar melhor, fizéra-se irmão de uma ordem terceira e tratára de ir pondo alguma coisinha de parte. Metteu a filha num collegio, «que a queria com outro saber que não elle, a quem os paes não mandaram ensinar nada.» Por ultimo, no cortiço em que então moravam, a sua casinha era a mais decente, a mais respeitada e a mais confortavel; porém, com a morte do seu patrão e com uma reforma estupida que os successores d'este realisaram em todo o serviço da pedreira, o colono desgostou-se d'ella e resolveu passar para outra. Foi então que lhe indicaram a do João Romão, que, depois do desastre do seu melhor empregado, andava justamente á procura de um homem nas condições de Jeronymo. Tomou conta da direcção de todo o serviço, e em boa hora o fez, porque dia a dia a sua influencia se foi sentindo no progresso do trabalho. Com o seu exemplo os companheiros tornavam-se igualmente serios e zelosos. Elle não admittia relaxamentos, nem podia consentir que um preguiçoso se demorasse ali tomando o logar de quem precisava ganhar o pão. E alterou o pessoal da pedreira, despedio alguns trabalhadores, admittio novos, augmentou o ordenado dos que ficaram, estabelecendo-lhes novas obrigações e reformando tudo para melhor. No fim de dois mezes já o vendeiro esfregava as mãos de contente e via, radiante, quanto lucrara com a acquisição de Jeronymo; tanto assim que estava disposto a augmentar-lhe o ordenado para conserval-o em sua companhia, «Valia a pena! Aquelle homem era um achado precioso! Abençoado fosse o Machucas que lh'o enviára!» E começou a distinguil-o e respeital-o como não fazia a ninguem. O prestigio e a consideração que Jeronymo gosava entre os moradores da outra estalagem d'onde vinha, foi a pouco e pouco se reproduzindo entre os seus novos companheiros de cortiço. Ao cabo de algum tempo era consultado e ouvido, quando qualquer questão difficil os preoccupava. Descobriam-se defronte d'elle, como defronte de um superior; até o proprio Alexandre abrira uma excepção nos seus habitos e fazia-lhe uma ligeira continencia com a mão no boné, ao atravessar o pateo, todo fardado, por occasião de vir ou de ir para o serviço. Os dois caixeiros da venda, o Domingos e o Manoel, tinham enthusiasmo por elle. «Aquelle é que devia ser o patrão, diziam. É um homem sério e destemido! Com aquelle ninguem brinca!» E, sempre que a Piedade de Jesus ia lá a taverna fazer as suas compras, a fazenda que lhe davam era bem escolhida, bem medida ou bem pezada. Muitas lavadeiras tomavam inveja d'ella, mas Piedade era de natural tão bom e bemfazejo que não dava por isso e a maledicencia murchava antes de amadurecer. Jeronymo acordava todos os dias ás quatro horas da manhã, fazia antes dos outros a sua lavagem á bica do pateo, soccava-se depois com uma boa palangana de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e, em mangas de camisa de riscado, a cabeça ao vento, os grossos pés sem meias mettidos em um formidavel par de chinellos de couro crú, seguia para a pedreira. A sua picareta era para os companheiros o toque de reunir. Aquella ferramenta movida por um pulso de Hercules valia bem os clarins de um regimento tocando alvorada. Ao seu retinir vibrante surgiam do chaos opalino das neblinas vultos côr de cinza, que lá iam, como sombras, galgando a montanha, para cavar na pedra o pão-nosso de cada dia. E, quando o sol desfechava sobre o pincaro da rocha os seus primeiros raios, já encontrava de pé, a bater-se contra o gigante de granito, aquelle misero grupo de obscuros batalhadores. Jeronymo só voltava á casa ao descahir da tarde, morto de fome e de fadiga. A mulher preparava-lhe sempre para o jantar alguma das comidas da terra d'elles. E ali, n'aquella estreita salinha, socegada e humilde, gosavam os dois, ao lado um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia inteiro de canceiras ao sol. E, defronte do candieiro de kerosene, conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava no collegio e que só os visitava aos domingos e dias santos. Depois, até ás horas de dormir, que nunca passavam das nove, elle tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da sua terra. Era n'esses momentos que dava plena expansão ás saudades da patria, com aquellas cantigas melancolicas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrazadas da America para as aldeias tristes da sua infancia. E o canto d'aquella guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto mar, quando a tempestade agita as negras azas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva com os seus gemidos presagos, tontas como se estivessem fechadas dentro de uma abobada de chumbo. VI Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor. As tinas estavam abandonadas; os córadoiros despidos. Taboleiros e taboleiros de roupa engommada sahiam das casinhas, carregados na maior parte pelos filhos das proprias lavadeiras que se mostravam agora quasi todas de fato limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de côr. Desprezaram-se os grandes chapéos de palha e os aventaes de aniagem; agora as portuguezas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens vistosas e as brazileiras haviam penteado o cabello e pregado nos cachos negros um ramalhete de dois vintens; aquellas traçavam no hombro chales de lã vermelha, e estas de crochet, de um amarello desbotado. Viam-se homens de corpo nú, jogando a placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma arvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhe murros, a praguejar, e as crianças berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona estava n'um reboliço, porque a familia ia sahir a passeio; a velha gritava, gritava Nênêm, gritava o Agostinho. De muitas outras sahiam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se harmonicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone. Os papagaios pareciam tambem mais alegres com o domingo e lançavam das gaiolas phrases inteiras, entre gargalhadas e assobios. Á porta de diversos commodos, trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de meia lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornaes ou livros; um declamava em voz alta versos d'«Os Luziadas», com um empenho feroz, que o punha rouco. Transparecia n'elles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo. As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca, fervendo ao fogo. Do sobrado do Miranda só as duas ultimas janellas já estavam abertas e, pela escada que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de agoas servidas. Sentia-se n'aquella quietação do dia inutil a falta do resfolegar afflicto das machinas da visinhança, com que todos estavam habituados. Para além do solitario capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu somno de pedra; mas, em compensação, o movimento era agora extraordinario á frente da estalagem e á entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão, olhar quem passava; ao lado d'ellas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço engommado ao pescoço, entretinha-se a chupar balas de assucar, que comprara ali mesmo ao taboleiro de um baleiro freguez do cortiço. Dentro da taverna, os martellos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vintens de paraty ou laranginha succediam-se por cima do balcão, passando das mãos do Domingos e do Manoel para as mãos ávidas dos operarios e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pandega. A Izaura, que fôra n'um pulo tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta com os apalpões que lhe davam. Leonor não tinha um instante de socego, saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos callosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarral-a; e insistia na sua ameaça do costume: «que se queixava ao juiz de orfe!» mas não se ia embora, porque defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos. Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de pasto ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas sempre em mangas de camisa, apparecia de espaço a espaço, servindo os commensaes; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao fogão, mexendo as panellas e enchendo os pratos. Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquella confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Bahiana, que voltava depois de uma ausencia de mezes, durante a qual só déra noticias suas nas occasiões de pagar o aluguel do commodo. Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme samburá carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por entre folhas de alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando com as risonhas côres dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de abobora vermelha. --Põe isso tudo ahi n'essa porta. Ahi no numero 9, pequeno! gritou ella ao moleque, indicando-lhe a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto.--Podes ir embora, carapeta! Desde que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um côro de saudações. --Olha! quem ahi vem! --Olé! Bravo! É a Rita Bahiana! --Já te faziamos morta e enterrada! --E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?... --Então, coisa ruim! por onde andaste atirando esses quartos? --D'esta vez a coisa foi de esticar, hein?! Rita havia parado em meio do pateo. Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas d'ella. Não vinha em trajo de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o pé sem meia n'um chinello de polimento com enfeites de marroquim de diversas côres. No seu farto cabello, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ella respirava o asseio das brazileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromaticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril bahiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo á mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua physionomia com um realce fascinador. Acudio quasi todo o cortiço para recebel-a. Choveram abraços e as chufas do bom acolhimento. Por onde andara aquelle diabo, que não apparecia para mais de tres mezes? --Ora, nem me falles, coração! Sabe? pagode de roça! Que hei de fazer? é a minha cachaça velha!... --Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, creatura? --Em Jacarepaguá. --Com quem? --Com o Firmo... --Oh! Ainda dura isso? --Cala a bocca! A coisa agora é seria! --Qual! Quem mesmo? tu? Passa fóra! --Paixões da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por anno! Não contando as miudas! --Não! isso é que não! Quando estou com um homem não olho p'ra outro! Leocadia, que era perdida pela mulata, saltára-lhe ao pescoço ao primeiro encontro, e agora, defronte d'ella, com as mãos nas cadeiras, os olhos humidos de commoção, rindo, sem se fartar de vel-a, fazia-lhe perguntas sobre perguntas: --Mas porque não te mettes tu logo por uma vez com o Firmo? porque não te casas com elle? --Casar? protestou a Rita. N'essa não cáe a filha de meu pae! Casar? livra! Para que? para arranjar captiveiro? Um marido é peior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! qual! Deus te livre! Não ha como viver cada um senhor e dono do que é seu! E sacudio todo o corpo n'um movimento de desdem que lhe era peculiar. --Olha só que peste! considerou Augusta, rindo, muito molle, na sua honestidade preguiçosa. Esta tambem achava infinita graça na Rita Bahiana e seria capaz de levar um dia inteiro a vel-a dansar o chorado. Florinda ajudava á mãe a preparar o almoço, quando lhe cheirou que chegara a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cahir-lhe nos braços. A propria Marcianna, de seu natural sempre triste e mettida comsigo, appareceu á janella, para saudal-a. A das Dôres, com as saias arrepanhadas no quadril e uma toalha por cima amarrada pela parte de traz e servindo de avental, o cabello ainda por pentear, mas entrouxado no alto da cabeça, abandonou a limpeza que fazia em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe uma palmada e gritar-lhe no nariz: --D'esta vez tomaste um fartão, hein, mulata assanhada?... E, ambas a cahirem de riso, abraçaram-se em intimidade de amigas, que não têm segredos de amor uma para a outra. A Bruxa veio em silencio apertar a mão de Rita e retirou-se logo. --Olha a feiticeira! bradou esta ultima, batendo no hombro da idiota. Que diabo você tanto reza, tia Paula? Eu quero que você me dê um feitiço para prender meu homem! E tinha uma phrase para cada um que se aproximasse. Ao ver Dona Isabel, que appareceu toda cerimoniosa na sua saia da missa e com o seu velho chale de Macáo, abraçou-a e pedio-lhe uma pitada, que a senhora recusou, resmungando: --Sae d'ahi, diabo! --Cadê Pombinha? perguntou a mulata. Mas, nessa occasião, Pombinha acabava justamente de sahir de casa, muito bonita e asseiada com um vestido novo de setineta. As mãos occupadas com o livro de rezas, o lenço e a sombrinha. --Ah! Como está chique! exclamou a Rita, meneando a cabeça. É mesmo uma flor!--E logo que Pombinha se pôz ao seu alcance, abraçou-lhe a cintura e deu-lhe um beijo.--O João Costa se não te fizer feliz como os anjos sou capaz de abrir-lhe o casco com o salto do chinello! Juro pelos cabellos do meu homem!--E depois, tornando-se séria, perguntou muito em voz baixa á Dona Isabel:--Já veio?...--ao que a velha respondeu negativamente com um desconsolado e mudo abanar de orelhas. O circumspecto Alexandre, sem querer declinar da sua gravidade, pois que estava fardado e prompto para sahir, contentou-se em fazer com a mão um cumprimento á mulata, ao qual retrucou esta com uma continencia militar e uma gargalhada que o desconcertaram. Iam fazer commentarios sobre o caso, mas a Rita, voltando-se para o outro lado, gritou: --Olha o velho Liborio! Como está cada vez mais duro!... Não se entrega por nada o demonio do judeu! E correu para o lugar, onde estava, aquecendo-se ao bello sol de abril, um octogenário, secco, que parecia mumificado pela idade, a fumar n'um resto de cachimbo, cujo pipo desapparecia na sua bocca já sem labios. --Ê! ê! fez elle, quando a mulata se approximou. --Então? perguntou Rita, abaixando-se para tocar-lhe no hombro. Quando é o nosso negocio?... Mas você ha de deixar-me primeiro abrir o bahuzinho de folha!... Liborio rio-se com as gengivas, tentando apalpar as coxas da Bahiana, por caçoada, affectando luxuria. Todos acharam graça n'esta pantominice do velhinho, e então, a mulata, para completar a brincadeira, deu uma volta entufando as saias e sacudio-as depois sobre a cabeça d'elle, que se fingio indignado, a fungar exageradamente. E entre a alegria levantada pela sua reapparição no cortiço, a Rita deu conta do que pintára na sua ausencia; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o entrudo que fizera pelo Carnaval. Tres mezes de folia! E, afinal, abaixando a voz, segredou ás companheiras que á noite teriam um pagodinho de violão. Podiam contar como certo! Esta ultima noticia causou verdadeiro jubilo no auditorio. As patuscadas da Rita Bahiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguem como o diabo da mulata para armar uma funcção que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que «era aquella franqueza! emquanto houvesse dinheiro ou credito, ninguem morria com a tripa murcha ou com a guéla secca!» --Diz me cá, ó Leocadinha! quem são aquelles jururús que estão agora no 35? indagou ella, vendo o Jeronymo á porta de casa com a mulher. --Ah! explicou a interrogada, é o Jeronymo e mais a Piedade, um casal que inda não conheces. Entrou ao depois que arribaste. Boa gente, coitados! Rita carregou para dentro de seu commodo as provisões que trouxera; abrio logo a janella e poz-se a cantar. Sua presença enchia de alegria a estalagem toda. O Firmo, o mulato com quem ella agora vivia mettida, o demonio que a desencabeçara para aquella maluqueira de Jacarepaguá, ia lá jantar esse dia com um amigo. Rita declarava isto ás companheiras, amolando uma faquinha no tijollo da sua porta, para escamar o peixe; emquanto os gatos, aquelles mesmos que perseguiam o sardinheiro, vinham, um a um, chegando-se todos só com o ruido da afiação do ferro. Ao lado direito da casinha da mulata, no numero 8, a das Dores preparava-se tambem para receber n'esse dia o seu amigo e dispunha-se a fazer uma limpeza geral nas paredes, nos tectos, no chão e nos moveis, antes de metter-se na cozinha. Descalça, com a saia levantada até ao joelho, uma toalha na cabeça, os braços arregaçados, viam-na passar de carreira, de casa para a bica e da bica outra vez para casa, carregando pezados baldes cheios d'agoa. E d'ahi a pouco appareciam ajudantes gratuitos para os arranjos do jantar, tanto do lado da das Dores, como do lado da Rita Bahiana. O Albino encarregou-se de varrer e arrumar a casa d'esta, entretanto que a mulata ia para o fogão preparar os seus quitutes do norte. E veio a Florinda, e veio a Leocadia, e veio a Augusta, impacientes todas ellas pelo pagode que havia de sahir á noite, depois do jantar. Pombinha não appareceu durante o dia, porque estava muito occupada, aviando a correspondencia dos trabalhadores e das lavadeiras: serviço este que ella deixava para os domingos. N'uma pequena mesa, coberta por um pedaço de chita, com o tinteiro ao lado da caixinha de papel, a menina escrevia, emquanto o dono ou dona da carta dictava em voz alta o que queria mandar dizer á familia ou a algum máo devedor de roupa lavada. E ia lançando tudo no papel, apenas com algumas ligeiras modificações, para melhor, no modo de exprimir a idéa. Prompta uma carta, subscriptava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro, ficando a sós com um de cada vez, pois que nenhum d'elles queria dar o seu recado em presença de mais ninguem senão de Pombinha. De sorte que a pobre rapariga ia accumulando no seu coração de donzella toda a summula d'aquellas paixões e d'aquelles resentimentos, ás vezes mais fetidos do que a evaporação de um lameiro em dias de grande calor. --Escreva lá, Nhan Pombinha! disse junto d'ella um cavouqueiro, coçando a cabeça; mas faça letra grande, que é pr'a mulher entender! Diga-lhe que não lhe mando d'esta feita o dinheiro que me pedio, porque agora não no tenho e estou muito acossado de apertos; mas que lh'o prometto pr'o mez. Ella que se va arrajando por lá, que eu cá sabe Deus como me coso; e que, se o Luiz, o irmão, resolver de vir, que m'o mande dizer com tempo, para ver se se lhe dá furo á vida por aqui; que isto de vir sem inda ter pr'onde, é fraco negocio, porque as coisas por cá não correm lá para que digamos! E depois que Pombinha escreveu, accrescentou: --Que eu tenho sentido muito a sua falta d'ella; mas tambem sou o mesmo e não me metto em porcarias e relaxamentos; e que tenciono mandar buscal-a, logo que Deus me ajude, e a Virgem! Que elle não tem de que se arreliar por mór do dinheiro não ir d'esta; que, como lá diz o outro: quando não ha el-rei o perde! Ah! (ia esquecendo!) quanto á Libania, é tirar d'ahi o juizo! que a Libania se atirou aos cães e faz hoje má vida na rua de São Jorge; que se esqueça d'ella por vez e perca o amor ás duas coroas que lhe emprestou! E a menina escrevia tudo, tudo, apenas interrompendo o seu trabalho para fitar, com a mão no queixo, o cavouqueiro, á espera de nova phrase. VII E assim ia correndo o domingo no cortiço até ás tres da tarde, horas em que chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquelle o violão e o outro o cavaquinho. Firmo, o actual amante de Rita Bahiana, era um mulato pachola, delgado de corpo e agil como um cabrito; capadocio de marca, pernostico, só de maçadas, e todo elle se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos annos, mas não parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas e braços finos, pescoço estreito, porém forte; não tinha musculos, tinha nervos. A respeito de barba, nada mais que um bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro; grande cabelleira encaracolada, negra e bem negra, dividida ao meio da cabeça, escondendo parte da testa e estufando em grande gaforina por debaixo da aba do chapéo de palha, que elle punha de banda, derreado sobre a orelha esquerda. Vestia, como de costume, um paletó de lustrina preta já bastante usado, calças apertadas nos joelhos, mas tão largas na bainha que lhe enguliam os pésinhos seccos e ligeiros. Não trazia gravata, nem collete, sim uma camisa de chita nova e ao pescoço, resguardando o collarinho, um lenço alvo e perfumado; á bocca um enorme charuto de dois vintens e na mão um grosso porrete de Petropolis, que nunca socegava, tantas voltas lhe dava elle a um tempo por entre os dedos magros e nervosos. Era official de torneiro, official perito e vadio; ganhava uma semana para gastar n'um dia; ás vezes porém os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e então elle fazia como n'aquelles ultimos tres mezes; afogava-se n'uma boa pandega com a Rita Bahiana. A Rita ou outra «O que não faltava por ahi eram saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na bocca do diabo!» Nascera no Rio de Janeiro, na Côrte; militara dos doze aos vinte annos em diversas maltas de capoeiras; chegára a decidir eleições nos tempos do voto indirecto. Deixou nome em varias freguezias e mereceu abraços, presentes e palavras de gratidão de alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso a sua época de paixão politica; mas depois desgostou-se com o systema de governo e renunciou ás lutas eleitoraes, pois não conseguira nunca o logar de continuo n'uma repartição publica--o seu ideal!--Setenta mil reis mensaes; trabalho das nove ás tres. Aquella amigação com a Rita Bahiana era uma coisa muito complicada e vinha de longe; vinha do tempo em que ella ainda estava chegadinha de fresco da Bahia, em companhia da mãe, uma cafusa dura, capaz de arrancar as tripas ao Manduca da Praia. A cafusa morreu e o Firmo tomou conta da mulata; mas pouco depois se separaram por ciumes, o que aliás não impedio que se tornassem a unir mais tarde, e que de novo brigassem e de novo se procurassem. Elle tinha «paixa» pela Rita, e ella, apezar de voluvel como toda a mestiça, não podia esquecel-o por uma vez; mettia-se com outros, é certo, de quando em quando, e o Firmo então pintava o caneco, dava por páos e por pedras, enchia-a de bofetadas, mas, afinal, ia procural-a, ou ella a elle, e ferravam-se de novo, cada vez mais ardentes, como se aquellas turras constantes reforçassem o combustivel dos seus amores. O amigo que Firmo trazia aquelle domingo em sua companhia, o Porfiro, era mais velho do que elle e mais escuro. Tinha o cabello encarapinhado. Typographo. Afinavam-se muito os dois typos com as suas calças de bocca larga e com os seus chapéos ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: não dispensava a sua gravata de côr saltando em laço frouxo sobre o peito da camisa; fazia questão da sua bengalinha com cabeça de prata e da sua piteira de ambar e espuma, em que elle equilibrava um cigarro de palha. Desde a entrada dos dois, a casa da Rita esquentou. Ambos tiraram os paletós e mandaram vir Paraty, «a abrideira pr'a muqueca Bahiana.» E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão. Ao lado chegava tambem o homem da das Dôres, com um companheiro do commercio; vinham vestidos de fraque e chapéo alto. A Machona, Nênêm e o Agostinho, já de volta do seu passeio á cidade, lá estavam ajudando. Ficariam para o regabofe. Um rumor quente, do dia de festa, ia-se formando n'aquelle ponto da estalagem. Tanto n'uma casa, como na outra, o jantar seria ás cinco horas. Rita «botou» vestido branco, de cambraia, encanudado a ferro. Leocadia, Augusta, o Bruno, o Alexandre e o Albino jantariam com ella no numero 9; e no numero 8, com a das Dôres, ficariam, além dos parentes d'esta, Dona Isabel, Pombinha, Marcianna e Florinda. Jeronymo e sua mulher foram convidados para ambas as mezas, mas não acceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar a tarde ao lado um do outro, tranquillamente, como sempre, comendo em boa paz o seu cozido á moda da terra e bebendo o seu quartilho de verde pela mesma infusa. Entretanto, os dois jantares visinhos principiaram ruidosos logo desde a sôpa e assanharam-se progressivamente. Meia hora depois vinha das duas casas uma algazarra infernal. Fallavam e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. Cá de fóra sentia-se perfeitamente o prazer que aquella gente punha em comer e beber á farta, com a bocca cheia, os beiços envernisados de molho gordo. Alguns cães rosnavam á porta, roendo os ossos que traziam lá de dentro. De vez em quando, da janella de uma das casas apparecia uma das moradoras, chamando a visinha, para entregar um prato cheio, permutando as duas entre si os quitutes e as petisqueiras em que eram mais peritas. --Olha! gritava a das Dôres para o numero 9, diz á Rita que prove d'esse zôrô, pr'a ver que tal o acha, e que o vatapá estava muito gostoso! Se ella tem pimentas, que me mande algumas! Do meio para o fim do jantar o barulho em ambas as casas era medonho. No numero 8 berravam-se brindes e cantos desafinados. O portuguez amigo da das Dôres, já desengravatado e com os braços á mostra, vermelho, lustroso de suor, intumescido de vinho virgem e leitão de forno, repotreava-se na sua cadeira, a rir forte, sem calar a bocca, com a camisa a espipar-lhe pela braguilha aberta. O sujeito que o accompanhára fazia fosquinhas a Nênêm, protegido no seu namoro por toda a roda, desde a respeitavel Machona até ao endemoninhado Agostinho, que não ficava quieto um instante, nem deixava socegar a mãe, gritando um contra o outro como dois possessos. Florinda, sempre muito risonha e esperta, divertia-se a valer e, de vez em quando, levantava-se da mesa, para ir de carreira levar lá fora ao numero 12 um prato de comida á sua velha que, á ultima hora, vindo-lhe o aborrecimento, resolvêra não ir ao jantar. Á sobremesa o esfogueado amigo da dona da casa exigio que a amante se lhe assentasse nas coxas e dava-lhe beijos em presença de toda a companhia, o que fez com que Dona Isabel, impaciente por afastar a filha d'aquelle inferno, declarasse que sentia muito calor e que ia lá para a porta esperar mais á fresca o café. Em casa da Rita Bahiana a animação era ainda maior. Firmo e Porfiro faziam o diabo, cantando, trocando bestialogicos, arremedando a falla dos pretos cassanges. Aquelle não largava a cintura da mulata e só bebia no mesmo copo com ella; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o affectadamente, para fazer rir á sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o cavaco. Leocadia, a quem o vinho produzia delirios de hilaridade, torcia-se em gargalhadas, tão fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em que ella estava; e, muito lubrificada pela bebedeira, punha os pezados pés sobre os de Porfiro, roçando as pernas contra as d'elle e deixando-se apalpar pelo capadocio. O Bruno, defronte d'ella, rubro e suado como se estivesse a trabalhar na forja, fallava e gesticulava sem se levantar, praguejando ninguem sabia contra quem. O Alexandre, á paizana, assentado ao lado da mulher, conservava quasi toda a sua seriedade e pedia que não fizessem tanto barulho porque podiam ouvir da rua. E notou, em voz mysteriosa, que o Miranda tinha vindo já espiar por varias vezes da janella do sobrado. --Que espie as vezes que quizer! bradou a Rita. Pois então a gente não é senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos que entender?... Que vá pr'o diabo que o lixe! Eu não como nem bebo do que é d'elle! Os dois mulatos e o Bruno tambem eram da mesma opinião. «Pois então! Desde que se não offendia, nem prejudicava a safardana nenhum com aquelle divertimento, não havia de que fallar!» --E que não entiquem muito, ameaçou o Firmo, que commigo é nove! E o trunfo é páos! O Porfiro exclamou: --Se se incommodam com a gente ... os incommodados são os que se mudam! Ora pistolas! --O domingo fez-se pr'a gosar!... resmungou o Bruno, deixando cahir a cabeça nos braços crusados sobre a mesa. Mas ergueu-se logo, cambaleando, e acrescentou, despindo o braço direito até ao hombro:--Elles que se façam finos, que os racho! O Alexandre procurou acalmal-o, dando-lhe um charuto. Em uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma nova sobremesa, engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos mascates, onde o Delporto, o Pompêo, o Francesco e o Andréa representavam as principaes figuras. Todos elles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas; quasi, porém, que se lhes não podiam ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo. De quando em quando, de entre o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, tão estridente que provocava replica aos papagaios e aos perus da visinhança. E, d'aqui e d'ali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados cá e lá pela estalagem. Havia nos operarios e nos trabalhadores decidida disposição para pandegar, para aproveitar bem, até ao fim, aquelle dia de folga. A casa de pasto fermentava revolucionada, como um estomago de bebado depois de grande brodio, e arrotava sobre o pateo uma baforada quente e ruidosa que entontecia. O Miranda appareceu furioso á janella, com o seu typo de commendador, a barriga empinada pr'a frente, de paletó branco, um guardanapo ao pescoço e um trinchante empunhado na destra, como uma espada. --Vão gritar pr'a o inferno, com um milhão de raios! berrou elle, ameaçando para baixo. Isto tambem já é de mais! Se não se calam, vou d'aqui direito chamar a policia! Sucia de brutos! Com os berros do Miranda muita gente chegou á porta de casa, e o côro de gargalhadas, que ninguem podia conter n'aquelle momento de alegria, ainda mais o pôz fóra de si. --Ah, canalhas! O que eu devia fazer era atirar-lhes d'aqui, como a cães damnados! Uma vaia unisona echoou em todo o pateo da estalagem, emquanto em volta do negociante surgiam varias pessoas, puxando-o para dentro de casa. --Que é isso, Miranda! Então! Estás agora a dar palha?... --O que elles querem é que encordôes!... --Saia d'ahi, papáe! --Olhe alguma pedrada, esta gente é capaz de tudo! E via-se de relance Dona Estella, com a sua pallidez de flôr meio fanada, e Zulmira, livida, um ar de fastio a fazel-a feia, e o Henriquinho, cada vez mais bonito, e o velho Botelho, indifferente, a olhar para toda esta porcaria do mundo com o profundo desprezo dos que já não esperam nada dos outros, nem de si proprio. --Canalhas! repisava o Miranda. O Alexandre, que fôra de carreira enfiar a sua farda, apresentou-se então e disse ao negociante que não era prudente atirar insultos cá pr'a baixo. Ninguem o tinha provocado! Se os moradores da estalagem jantavam em companhia de amigos, lá em cima o Miranda tambem estava comendo com os seus convidados! Era máo insultar, porque palavra puxa palavra, e, em caso de ter de depor na policia, elle, Alexandre, deporia a favor de quem tivesse razão!... --Fomente-se! respondeu o negociante, voltando-lhe as costas. Já se vio chubregas mais atrevido?! exclamou Firmo, que até ahi estivera calado, á porta da Rita, com as mãos nas cadeiras, a fitar provocadoramente o Miranda. E gritando mais alto, para ser bem ouvido:--Facilita muito, meu boi manso, que te escorvo os galhos na primeira occasião! O Miranda foi arrancado com violencia da janella, e esta fechada logo em seguida com estrondo. --Deixa lá esse labrego! resmungou Porfiro, tomando o amigo pelo braço e fazendo-o recolher-se á casa da mulata. Vamos ao café, é o que é, antes que esfrie! Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se diversos moradores do cortiço, jornaleiros de baixo salario, pobre gente miseravel, que mal podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia entre elles um só triste. A mulata convidou-os logo a comer um bocado e beber um trago. A proposta foi acceita alegremente. E a casa d'ella nunca se esvasiava. Anoitecia já. O velho Liborio, que jamais ninguem sabia ao certo onde almoçava ou jantava, surgio do seu buraco, que nem jaboti quando vê chuva. Um typão, o velho Liborio! Occupava o peior canto do cortiço e andava sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e a outro, como um mendigo, chorando miserias eternamente, apanhando pontas de cigarro para fumar no cachimbo, cachimbo que o sumitico roubára de um pobre cego decrepito. Na estalagem diziam todavia que Liborio tinha dinheiro aferrolhado, contra o que elle protestava resentido, jurando a sua extrema penuria. E era tão feroz o demonio n'aquella fome de cão sem dono, que as mães recommendavam ás suas crianças todo o cuidado com elle, porque o diabo do velho, quando via algum pequeno desacompanhado, punha-se logo a rondal-o, a cercal-o de festas e a fazer-lhe ratices para o engabelar, até conseguir furtar-lhe o doce ou o vintemzinho que o pobrezito trazia fechado na mão. Rita fel-o entrar e deu-lhe de comer e de beber; mas sob condição de que o esfomeado não se soccasse demais, para não rebentar ali mesmo. Se queria estoirar, fosse estoirar para longe! Elle pôz-se logo a devorar, sofregamente, olhando inquieto para os lados, como se temesse que alguem lhe roubasse a comida da boca. Engolia sem mastigar, empurrando os bocados com o dedo, agarrando-se ao prato e escondendo nas algibeiras o que não podia de uma só vez metter para dentro do corpo. Causava terror aquella sua implacavel mandibula, assanhada e devoradora; aquelle enorme queixo, avido, ossudo e sem um dente, que parecia ir engolir tudo, tudo, principiando pela propria cara, desde a immensa batata vermelha e grelada, que ameaçava já entrar-lhe na boca, até as duas bochechinhas engelhadas, os olhos, as orelhas, a cabeça inteira, inclusive a sua grande calva, lisa como um queijo e guarnecida em redor por uns pellos puídos e ralos como farripas de côco. Firmo propoz embebedal-o, só para ver a sorte que elle daria. O Alexandre e a mulher oppuzeram-se, mas rindo muito; nem se podia deixar de rir, apezar do espanto, vendo aquelle resto de gente, aquelle esqueleto velho, coberto por uma pelle secca, a devorar, a devorar sem tregoas, como se quizesse fazer provisão para uma outra vida. De repente, um pedaço de carne, grande de mais para ser ingerido de uma vez, engasgou-o sériamente. Liborio começou a tossir, afflicto, com os olhos sumidos, a cara tingida de uma vermelhidão apopletica. A Leocadia, que era quem lhe ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas. O glutão arrevessou sobre a toalha da mesa o bocado de carne já meio triturado. Foi um nojo geral. --Porco! gritou Rita, arredando-se. --Pois se o bruto quer socar tudo ao mesmo tempo! disse Porfiro. Parece que nunca vio comida, este animal! E notando que elle continuava ainda mais sofrego por ter perdido um instante:--Espera um pouco, lobo! Que diabo! A comida não foge! Ha muito ahi com que te fartares por uma vez! Com effeito! --Beba agoa, tio Liborio! aconselhou Augusta. E, boa, foi buscar um copo d'agoa e levou-lh'o á boca. O velho bebeu, sem despregar os olhos do prato. --Arre diabo! resmungou Porfiro, cuspindo para o lado. Este é mesmo capaz de comer-nos a todos nós, sem achar espinhas! Albino, esse, coitado! é que não comia quasi nada e o pouco que conseguia metter no estomago fazia-lhe mal. Rita, para bulir com elle, disse que semelhante fastio era gravidez com certeza. --Você já começa, hein?... balbuciou o pobre moço, esgueirando-se com a sua chicara de café. --Olha, cuidado! gritou-lhe a mulata. Pouco café, que faz mal ao leite, e a criança póde sahir trigueira! O Albino voltou para dizer muito serio á Rita que não gostava d'essas brincadeiras. Alexandre, que havia accendido um charuto, depois de offerecer outros, galantemente, aos companheiros, arriscou, para tambem fazer a sua pilheria, que o sonso do Albino fôra pilhado ás voltas com a Bruxa no capinzal dos fundos da estalagem, debaixo das mangueiras. Só a Leocadia achou graça n'isto e rio a bandeiras despregadas. Albino declarou, quasi chorando, que elle não mexia com pessoa alguma, e que ninguem, por conseguinte, devia mexer com elle. --Mas afinal, perguntou Porfiro, é mesmo exacto que este pamonha não conhece mulher?... --Elle é quem póde responder! accudio a mulata. E esta historia vae ficar hoje liquidada! Vamos lá, ó Albino! confessa-nos tudo, ou mal te terás de haver com a gente! Se eu soubesse que era para isto que me chamaram, não tinha vindo cá, sabe? gaguejou o lavadeiro, amuado. Eu não sirvo de palito! E ter-se-ia retirado chorando, se a Rita não lhe cortasse a sahida, dizendo, como se fallasse a uma creatura do seu sexo, mais fraca do que ella: --Ora não sejas tôlo! Deixa-te ficar ahi! Se deres o cavaco é peior! Albino limpou as lagrimas e foi assentar-se de novo. Entretanto, a noite fechava-se, refrescando a tarde com o sudoeste. Bruno roncava no logar em que tinha jantado. A Leocadia passára livremente a perna para cima da de Porfiro, que a abraçava, bebendo paraty aos calices. Mas o Firmo lembrou que seria melhor irem lá para fóra; e todos, menos o Bruno, dispozeram-se a deixar a sala, emquanto o velho Liborio pedia a Alexandre um cigarro para despejar no cachimbo. Servido, o filante desappareceu logo, correndo ao faro de outros jantares. Rita, Augusta e Albino ficaram lavando a louça e arrumando a casa. Lá fóra o côro dos italianos se prolongava n'uma cadencia monotona e arrastada, em que havia muito pezo de embriaguez. Junto á porta de varias casas faziam-se grupos de pessoas assentadas em cadeiras ou no chão; mas a roda da Rita Bahiana era a maior, porque fóra engrossada pelos convivas da das Dôres. O fumo dos cachimbos e dos charutos elevava-se de toda a parte. Decrescera o ruido geral; fazia-se a digestão; já ninguem discutia e todos conversavam. Accendeu-se o lampeão do pateo. Illuminaram-se diversas janellas das casinhas. Agora, no sobrado do Miranda é que era o maior barulho. Sahia de lá uma terrivel gritaria de hippes e burrahs, virgulada pelo desarolhar de garrafas de champanha. --Como elles atacam!... observou Alexandre, já de novo sem farda. --E no emtanto reprovam que a gente coma o que é seu com um pouco mais de alegria! commentou a Rita. Uma sucia! Fallou-se então largamente a respeito da familia do Miranda, principalmente de Dona Estella e do Henrique. A Leocadia afiançou que, uma occasião, espiando por cima do muro, trepada n'um montão de garrafas vazias que havia no pateo do cortiço, vira a sirigaita com a cara agarrada á do estudante, aos beijos e aos abraços, que era obra; e assim que os dois deram fé que ella os espreitava, deitaram a fugir que nem cães apedrejados. A Augusta Carne-molle benzeu-se, com uma invocação á Virgem Santissima, e o companheiro do amigo da das Dôres, que insistia no seu namoro com a Nênêm, mostrou-se muito admirado com a noticia, «suppunha Dona Estella um modelo de seriedade.» --Qual! negou Alexandre. Isso por ahi é tudo uma pouca vergonha, que faz descrer um homem de si mesmo! Eu tambem já vi de uma feita bem boas coisas pela sombra d'ella na parede; mas não era com o estudante, era com um sujeito que lá ia ás vezes, um barbado, careca e comido de bexigas. E a pequena vae pelo mesmo conseguinte... Esta novidade produzio grande surpreza no grupo inteiro. Quizeram os pormenores e o Alexandre não se fez rogado: o namoro da Zulmira era com um rapazola magro, de lunetas, bigode loiro, bem vestido, que lhe rondava a casa á noite e ás vezes de madrugada. Parecia estudante! --O que elles tem feito? inquerio a das Dôres. --Por emquanto a coisa não passa de namorico da janella pr'a rua. Conversam sempre n'aquella ultima do lado de lá de fóra. Já os tenho apreciado quando estou de serviço. Elle falla muito em casamento e a pequena o quer; mas, pelo geito, o velho é que lhe corta as azas. --Elle não tem entrada na casa? --Não! Pois isso é que eu acho feio!... Se elle quer casar com a menina, devia entender-se com a familia e não estar agora d'aqui debaixo a fazer-lhe fosquinhas! --Sim! intrometteu-se o Firmo; mas não vê que aquelle mesmo, o Miranda, vae dar a filha a um estudante! Guarda-a para um dos seus... Quem sabe até se o bruto não tem já de olho por ahi algum cafezista pé de boi!... Eu sei o que é essa gente! --Por isso é que se vê tanta porcaria por esse mundo de Christo! disse a Augusta. Filha minha só se casará com quem ella bem quizer; que isto de casamentos empurrados á força acabam sempre desgraçando tanto a mulher como o homem! Meu marido é pobre e é de côr, mas eu sou feliz, porque casei por meu gosto! --Ora! Mais vale um gosto que quatro vintens! N'isto começou a gemer á porta do 35 uma guitarra; era de Jeronymo. Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara áquella tarde toda a republica do cortiço, ella parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca. «Minha vida tem desgostos, Que só eu sei comprender... Quando me lembro da terra Parece que vou morrer...» E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim, a monotona cantiga dos portuguezes enchia de uma alma desconsolada o vasto arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá de cima, do sobrado do Miranda. «Terra minha, que te adoro, Quando é que eu te torno a ver? Leva-me d'este desterro; Basta já de padecer.» Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostalgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e cahindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado bahiano. Nada mais que os primeiros accordes da musica crioula para que o sangue de toda aquella gente despertasse logo, como se alguem lhe fustigasse o corpo com ortigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lubricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras n'uma floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenezi de amor; musica feita de beijos e soluços gostosos; caricia de fera, caricia de doer, fazendo estalar de goso. E aquella musica de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras, em torno das quaes se nutrem, girando, moscardos sensuaes e besoiros venenosos, freneticamente, bebedos do delicioso perfume que os mata de volupia. E á viva crepitação da musica bahiana calaram-se as melancolicas toadas dos de além-mar. Assim á refulgente luz dos tropicos amortece a fresca e doce claridade dos céos da Europa, como se o proprio sol americano, vermelho e esbrazeado, viesse, na sua luxuria de sultão, beber a lagrima medrosa da decahida rainha dos mares velhos. Jeronymo alheiou-se da sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo attento para aquella musica estranha, que vinha dentro d'elle continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz d'este sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o succo da primeira fructa provada n'estas terras de braza, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogary, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto d'elle sacudio as saias e os cabellos. --Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o. --Espera, respondeu elle, em voz baixa; deixa ouvir! Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas. Jeronymo levantou-se, quasi que machinalmente, e, seguido por Piedade, aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ahi, de queixo grudado ás costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma áquella cantiga seductora e voluptuosa que o enleiava e tolhia, como á robusta gameleira brava o cipó flexivel, carinhoso e traiçoeiro. E vio a Rita Bahiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de hombros e braços nus, para dansar. A lua destoldára-se n'esse momento, envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se accentuavam, cheios de uma graça irresistivel, simples, primitiva, feita toda de peccado, toda de paraiso, com muito de serpente e muito de mulher. Ella saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como n'uma sofreguidão de goso carnal, num requebrado luxurioso que a punha offegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando n'um prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse á vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miudo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, emquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titillando. Em torno o enthusiasmo tocava ao delirio; um grito de applausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito sabido do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, n'um rhythmo nervoso, n'uma persistencia de loucura. E, arrastado por ella, pulou á arena o Firmo, agil, de borracha, a fazer coisas phantasticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a resurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço batendo os calcanhares, os braços a querer fugirem-lhe dos hombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois, surgio tambem a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circumspecto Alexandre. O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dansar. Mas, ninguem como a Rita; só ella, só aquelle demonio, tinha o magico segredo d'aquelles movimentos de cobra amaldiçoada; aquelles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquella voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e supplicante. E Jeronymo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados. N'aquella mulata estava o grande mysterio, a synthese das impressões que elle recebeu chegando aqui: ella era a luz ardente do meio dia; ella era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas mattas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o assucar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do cajú, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ella era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo d'elle, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as arterias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha d'aquelle amor septentrional, uma nota d'aquella musica feita de gemidos de prazer, uma larva d'aquella nuvem de cantharidas que zumbiam em torno da Rita Bahiana e espalhavam-se pelo ar n'uma phosphorescencia aphrodisiaca. Isto era o que Jeronymo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De todas as impressões d'aquelle resto de domingo só lhe ficou no espirito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no calice de flores americanas, d'essas muito alvas, cheirosas e humidas, que elle na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos pantanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade. E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dansaram, mas o portuguez só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fôra cahir nos braços do amigo. Piedade, a cabecear de somno, chamára-o varias vezes para se recolherem; elle respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher. Passaram-se horas, e elle tambem não deu pelas horas que fugiram. O circulo do pagode augmentou: vieram de lá defronte a Izaura e a Leonor; o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quizeram dar fé da patuscada um instante antes de cahirem na cama; a familia do Miranda puzera-se á janella, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fóra na rua; mas Jeronymo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe persistia no espirito: a mulata offegante a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo. Só deu por si, quando, já pela madrugada, se callaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu á casa. E vio a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura. Jeronymo ficou sózinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silencio na sua viagem mysteriosa. As janellas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detraz da ultima parede do cortiço, erguia-se como um monstro illuminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos pyrilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmurios das arvores que sonhavam. Mas Jeronymo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquella musica embalsamada de baunilha, que lhe entontecêra a alma; e comprehendeu perfeitamente que dentro d'elle aquelles cabellos crespos, brillantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração. E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céo, que elle nunca vira senão depois de sete horas de somno, que era já quasi occasião de entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé. VIII No dia seguinte, Jeronymo largou o trabalho á hora de almoçar e, em vez de comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no que a mulher lhe apresentou á mesa e metteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dissesse que elle estava incommodado e ficava de descanço aquelle dia. --Que tens tu Jeromo?... --Morrinhento, filha. Vae anda! --Mas sentes-te mal?... --Ó mulher! vae fazer o que te disse e ao depois então darás á lingoa! --Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda! E ella sahio, afflicta. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse, punha-a doida, «Pois um homem rijo, que nunca cahia doente? Seria a febre amarella?...» Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar n'isso era bom! Credo! A noticia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras. --Foi da friage da noite, affirmou a Bruxa; e deu um pulo á casa do trabalhador para receitar. O doente repellio-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que elle do que precisava era de dormir. Mas não o conseguio: atraz da Bruxa correu a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa um entrar e sahir de saias. Jeronymo perdeu a paciencia e ia protestar brutalmente contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro, sentio que a Rita se approximava tambem. --Ah! E desfranzio-se-lhe o rosto. --Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você cahio doente com a minha chegada? Se tal soubéra não vinha! Elle rio-se. E era a primeira vez que ria desde a vespera. A mulata aproximou-se da cama. Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e os braços completamente nús e frios da lavagem. O seu casaquinho branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito côr de canella. Jeronymo apertou-lhe a mão. --Gostei de vel-a hontem dansar, disse, muito mais animado. --Já tomou algum remedio?... --A mulher fallou ahi em chá preto... --Chá! Que asneira! Chá é agoa morna! Isso que você tem é uma resfriagem. Vou lhe fazer uma chicara de café bem forte para você beber com um gole de paraty, e me dirá se súa ou não, e fica depois fino e prompto para outra! Espere ahi! E sahio logo, deixando todo o quarto impregnado d'ella. Jeronymo, só com respirar aquelle almiscar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando comsigo mesma, elle sentio que principiava a enfaral-a; e, quando a infeliz se approximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o máo-estar e desappareceu o ultimo vestigio do sorriso que elle tivera havia pouco. --Mas que sentes tu, Jeromo?... Falla, homem! Não me dizes nada! Assim m'assustas... Que tens, diz'lo! --Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa... --Não queres o chá? Mas é o remedio, filhinho de Deus! --Já te disse que tomo oitra mezinha. Oh! Piedade não insistio. --Queres tu um escalda-pés?... --Tomal-o tu! Ella calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão aspero e secco, mas receiou importunal-o. «Era naturalmente a molestia que o punha resinguento.» Jeronymo fechára os olhos, para a não ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado por dentro, para a não sentir. Ella, porém, coitada! fôra assentar-se á beira da cama, humilde e solicita, a suspirar, vivendo n'aquelle instante, pura e exclusivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava d'elle, sem vontade propria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que nem um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções. --'Stá bem, filha, não vaes tratar do teu serviço?... --Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi á Leocadia que me esfregasse a roupa. Ella hoje tinha pouco que fazer e... --Andaste mal... --Ora! Não ha tres dias que fiz outro tanto por ella... E de mais, não foi que tivesse o homem doente, era a calaçaria do capinzal! --Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia!... Melhor seria que estivesses á tua tina em vez de ficar ahi a murmurar do proximo... Anda! vae tomar conta das tuas obrigações. --Mas estou-te a dizer que não ha transtorno!... --Transtorno já é estar eu parado; e peior será pararem os dois! --Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!... --E eu acho que isso é tolice! Vae! anda! Ella ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com paraty e no hombro um cobertor grosso para dar um suadoiro ao doente. --Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata. E deixou-se ficar. Rita, despreoccupadamente, alegre e bemfazeja como sempre, pousou a vasilha sobre a commoda do oratorio e abrio o cobertor. --Isto é que o vae pôr fino! disse. Vocês tambem, seus portuguezes, por qualquer coisinha ficam logo pr'a morrer, com uma cara da ultima hora! E ai, ai, Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas! Elle rio-se, assentando-se na cama. --Pois não é assim mesmo? perguntou ella á Piedade, apontando para o carão barbado de Jeronymo. Olhe só pr'aquella cara e diga-me se não está a pedir que o enterrem! A portugueza não dizia nada, sorria contrafeita, no intimo, resentida contra aquella invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a intelligencia nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instincto, o faro subtil e desconfiado de toda a femea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto. --Está-me a parecer que agora te achas melhor, hein?... desembuchou afinal, procurando o olhar do marido, sem conseguir disfarçar de todo o seu descontentamento. --Só com o cheiro! reforçou a mulata, apresentando o café ao doente. Beba, ande! beba tudo e abafe-se! Quero, quando voltar logo, encontral-o prompto, ouvio?--E acrescentou fallando á Piedade, em tom mais baixo e pousando-lhe a mão no hombro carnudo:--Elle d'aqui a nada deve estar ensopado de suor; mude-lhe toda a roupa e dê-lhe dois dedos de paraty, logo que peça agua. Cuidado com o vento! E sahio expedita, agitando as saias, d'onde se evolavam effluvios de mangerona. Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que já tinha sobre as pernas o cobertor offerecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela á bocca, resmungou: --Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!... Nunca tomas café, nem gostas!... --Isto não é por gosto, filha, é remedio! Elle com effeito nunca entrara com o café e ainda menos com a cachaça; mas engolio de uma assentada o conteúdo da tigela, puxando em seguida o cobertor até ás ventas. A mulher tratou de abafar-lhe bem os pés e foi buscar um chale para lhe cobrir a cabeça. --Trata de socegar! Não te mexas! E dispôz-se a ficar junto da cama, a vigial-o, só andando na ponta dos pés, abafando a respiração, correndo a cada instante á porta de casa para pedir que não fizessem tanta bulha lá fóra; toda ella desassocegada, numa afflicção quasi supersticiosa por aquelle incommodo de seu homem. Mas Jeronymo não levou muito que a não chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o. --Ainda bem! exclamou ella, radiante. E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto e metter um punhado de roupa suja n'uma fresta que havia n'uma das paredes, saccou-lhe fóra a camisa molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabeça; em seguida tirou-lhe as ceroulas e começou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo o corpo, principiando pelas costas, passando depois ao peito e aos sovacos, descendo logo ás nadegas, ao ventre e ás pernas, e esfregando sempre com tamanho vigor de pulso, que era antes uma maçagem que lhe dava; e tanto assim que o sangue do cavouqueiro se revolucionou. E a mulher, a rir-se, lisongeada, ralhava: --Tem juizo! Acommoda-te! Não vês que estás doente?... Elle não insistio. Agasalhou-se de novo e pedio agua. Piedade foi buscar o paraty. --Bebe isto, não bebas a agua agora. --Isto é cachaça! --Foi a Rita que disse para te dar... Jeronymo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de restillo que havia no copo. Sobrio como era, e depois d'aquelle despendio de suor, o alcool produzio-lhe logo de prompto o effeito voluptuoso e agradavel da embriaguez nos que não são bebedos: um delicioso desfallecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espreguiçamento que antecede á satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar por ella algum tempo, aproxima-se afinal de nós, n'uma avidez gulosa de beijos. Agora, no conforto da sua cama, na doce penumbra do quarto, com a roupa fresca sobre a pelle, Jeronymo sentia-se bem, feliz por ver-se longe da pedreira ardente e do sol caustico; ouvindo, de olhos fechados, o rom-rom monotono da machina de massas, arfando ao longe, e o zum-zum das lavadeiras a trabalharem, e, mais distante, um interminavel cantar de gallos á porfia, emquanto um dobre de sinos rolava no ar, tristemente, annunciando um defunto da parochia. Quando Piedade chegou lá fóra, dando parte do bom resultado do remedio, a Rita correu de novo ao quarto do doente. --Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho? Elle voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por unica resposta, passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão direita segurar a d'ella. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a mulata assim o entendeu, tanto que consentiu; mal porém a sua carne lhe tocou na carne, um desejo ardente apossou-se d'elle; uma vontade desensoffrida de senhorear-se no mesmo instante d'aquella mulher e possuil-a inteira, devoral-a num só hausto de luxuria, trincal-a como um cajú. Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com um pulo. --Olha que peste! Faça-se de tolo, que digo á sua mulher, hein? Ora vamos lá! Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo, acrescentando n'outro tom:--Agora é tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez. Até logo! E sahio. Jeronymo ouvio as suas ultimas palavras já de olhos fechados e, quando Piedade entrou no quarto, parecia succumbido de fraqueza. A lavadeira aproximou-se da cama do marido em ponta de pés, puxou-lhe o lençol mais para cima do peito e afastou-se de novo, abafando os passos. Á porta de entrada a Augusta, que fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe por este com um gesto interrogativo; Piedade respondeu sem fallar, pondo a mão no rosto e vergando d'esse lado a cabeça, para exprimir que elle agora estava dormindo. As duas sahiram para fallar á vontade; mas, n'essa occasião, lá fóra no pateo da estalagem, acabava de armar-se um escandalo medonho. Era o caso que o Henriquinho da casa do Miranda ficava ás vezes á janella do sobrado, nas horas de preguiço, entre o almoço e o jantar, entretido a ver a Leocadia lavar, seguindo-lhe os movimentos uniformes do grosso quadril e o tremular das redondas tetas á larga dentro do cabeção de chita. E, quando a pilhava sozinha, fazia-lhe signaes bregeiros, piscava lhe o olho, batendo com a mão direita aberta sobre a mão esquerda fechada. Ella respondia, indicando com o pollegar o interior do sobrado, como se dissesse que fosse procurar a mulher do dono da casa. N'aquelle dia, porém, o estudante appareceu á janella, trazendo nos braços um coelhinho todo branco, que elle na vespera arrematára n'um leilão de festa. Leocadia cobiçou o bichinho e, correndo para o deposito de garrafas vasias, que ficava por debaixo do sobrado, pedio com muito empenho ao Henrique que lh'o désse. Este, sempre com o seu systema de conversar por mimica, declarou com um gesto qual era a condição da dadiva. Ella meneou a cabeça affirmativamente, e elle fez-lhe signal de que o esperasse por detraz do cortiço, no capinzal dos fundos. A familia do Miranda havia sahido. Henrique, mesmo com a roupa de andar em casa e sem chapéo, desceu á rua, ganhou um terreno que existia á esquerda do sobrado e, com o seu coelho debaixo do braço, atirou-se para o capinzal. Leocadia esperava por elle debaixo das mangueiras. --Aqui não! disse ella, logo que o vio chegar. Aqui agora podem dar com a gente!... --Então onde? --Vem cá! E tomou á sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as plantas. Henrique seguio-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobraçado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces. Ouvia-se o martellar dos ferreiros e dos trabalhadores da pedreira. Depois de alguns minutos, ella parou n'um lugar plantado de bambús e bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ruinas. --Aqui! E Leocadia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ella, que o conteve: --Espera! preciso tirar a saia; está encharcada! --Não faz mal! segredou elle, impaciente no seu desejo. --Póde me vir um corrimento! E sacou fóra a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a custo só cobria até ao joelho, grossas, massiças, de uma brancura levemente rósea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos. --Avia-te! Anda! apressou ella, lançando-se de costas no chão e arregaçando a fralda até á cintura; as coxas abertas. O estudante atirou-se sofrego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho. Passou-se um instante de silencio entre os dois, em que as folhas seccas do chão rangeram e farfalharam. Olha! pedio ella, faze-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama de leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne Molle, n'esta ultima barriga, tomou conta de um pequeno ahi na casa de uma familia de tratamento, que lhe dava setenta mil reis por mez!... E muito bom passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho! E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a queixar-se dos repellões que recebia cada vez mais accelerados. --Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. Não batas assim com elle! mas não o soltes, hein! Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudio-lhe o espasmo e ella fechou os olhos e pôz-se a dar com a cabeça de um lado para outro, rilhando os dentes. N'isto, passos rapidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direcção em que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a insociavel figura do Bruno. Não lhe deu tempo a que se approximasse; de um salto galgou por detraz das bananeiras e desappareceu por entre o mattagal de bambús, tão rapido como o coelho que, vendo se livre, ganhára pela outra banda o caminho do capinzal. Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda não tinha acabado de vestir a saia molhada. --Com quem te esfregavas tu, sua vacca?! bradou elle, a botar os bofes pela bocca. E, antes que ella respondesse, já uma formidavel punhada a fazia rolar por terra. Leocadia abrio n'um berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e pontapés que acabou de amarrar a roupa. --Agora eu vi! sabes? Nega se fores capaz! --Vá á pata que o pôz! exclamou ella, com a cara que era um tomate. Já lhe disse que não quero saber de você pr'a nada, seu bebado! E, vendo que elle ia recomeçar a dansa, abaixou-se depressa, segurou com ambas as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e gritou, erguendo-o sobre a cabeça: --Chega-te pr'a cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco! O ferreiro comprehendeu que ella era capaz de fazer o que dizia e estacou livido e offegante. --Arme a trouxa e rua! sabe? --Olha a desgraça! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma occasião! Nem preciso de você pra nada, fique sabendo! E, para metter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga:--Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou pensará que todos são como você, que nem para fazer um filho serve, diabo do sem-prestimo? --Mas não me has de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia! --Ah, descance! que não levarei nada do que é seu, nem preciso! --Põe essa pedra no chão! --Um corno! Eu arrumo-l'a na cabeça se te chegas pr'a cá! --Sim, sim, sim, com tanto que te musques por uma vez! --Pois então despache o beco! Elle virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça pendida, as mãos nas algibeiras das calças, aparentando agora um soberano desprezo pelo que se passava. Só então foi que ella se lembrou do coelho. --Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando direcção contraria á do marido. Este fôra d'ahi direito ao cortiço narrar, a quem quizesse ouvir, o que se acabava de dar. O escandalo assanhou a estalagem inteira, como um jacto de agua quente sobre um formigueiro. «Ora aquillo tinha de acontecer mais hoje mais amanhã!--Um bello dia a casa vinha abaixo!--A Leocadia parecia não desejar senão isso mesmo!» Mas ninguem atinava com quem diabo pilhára o Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hypotheses; lembraram-se nomes e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfactorio. O Albino tentou logo arranjar a reconciliação no casal, jurando que o Bruno estava enganado com certeza e que vira mal. «Leocadia era uma excellente rapariga, incapaz de tamanha safadagem!» O ferreiro tapou-lhe a bocca com uma bolacha, e ninguem mais se metteu a congraçal-os. Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava pela janella cá para fóra tudo o que ia encontrando pertencente á mulher. Uma cadeira fez-se pedaços contra as pedras, depois veio um candieiro de kerozene, uma trouxa de roupa, saias e casaquinhos de chita, caixas de chapéos cheias de trapos, uma gaiola de passaro, uma chaleira; e tudo era arremessado com furia ao meio da área, entre o silencio commovido dos que assistiam ao despejo. Um chim, que entrára para vender camarões e parara distrahido perto da janella do ferreiro, levou na cabeça com uma bilha da Bahia e berrava como criança que acaba de ser esbordoada. A Machona, que não podia ouvir ninguem gritar mais alto do que ella, cahio-lhe em cima aos murros e o pôz fóra do portão com tremenda descompostura. «Era o que faltava que viesse tambem aquelle salamaleque do inferno para azoinar uma creatura mais do que já estava!» Dona Isabel, com as mãos crusadas sobre o ventre, tinha para aquella destruição um profundo olhar de lastima. Augusta meneava a cabeça tristemente, sem conceber como havia mulheres que procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indifferente, não interrompêra sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dôres, de mãos nas cadeiras, a saia pelo meio das canellas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a sanha daquelle marido, tão brutal como o d'ella o fôra. --Sempre os mesmos pedaços d'asno!... commentava franzindo o nariz. Se a tôla da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ella não toma a sério a borracheira do casamento, dão por páos e por pedras, como esta besta! Uma sucia, todos elles! Florinda ria, como de tudo, e a velha Marcianna queixava-se de que lhe respingaram kerozene na roupa estendida ao sol. N'essa occasião justamente, um sacco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o seu conteúdo, pintalgando de pontos negros os coradoiros. Fez-se logo um alarido entre as lavadeiras. «Aquillo não tinha geito, que diabo! Armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?!... Cebo! que os mais não estavam dispostos a supportar as furias de cada um! Quem parira Matheos que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leocadia se fosse espojar no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar d'aquelle modo o trabalho da gente, ninguem mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!» Pombinha chegára á porta do numero 15, dando fé do barulho, com uma costura na mão, e Nênêm, toda afogueada do ferro de engommar, perguntava, com um frouxo de riso, se o Bruno ia reformar a mobilia da casa. A Rita fingia não ligar importancia ao facto e continuava a lavar á sua tina. «Não faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que aguentassem! Ella estava bem livre de soffrer uma d'aquellas!» O velho Liborio chegára-se, para ver se, no meio da confusão, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do logar em que se achava: --Sae d'ahi, safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pelle do rabo! Um irmão do santissimo entrára na estalagem, com a sua capa encarnada, a sua vara de prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro, e parára em meio do pateo, supplicando, muito fanhoso: «Uma esmola para a cera do Sacramento!» As mulheres abandonaram por um instante as tinas e foram beijar devotamente a columbina imagem do Espirito Santo. Pingaram na salva moedinhas de vintem. Todavia, o Bruno acabava afinal de despejar o que era da mulher e sahia de novo de casa, dando uma volta feroz á fechadura. Atravessou por entre o murmurante grupo dos curiosos que permanecia defronte da sua porta, mudo, com a cara fechada, jogando os braços, como quem, apezar de ter feito muito, não satisfizera ainda completamente a sua colera. Leocadia appareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu, partido e inutilisado, apoderou-se de furia e avançou sobre a porta, que o marido acabava de fechar, arremettendo com as nadegas contra as duas folhas, que cederam logo, indo ella cahir lá dentro de barriga para cima. Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fóra e, escancarando a janella com arremeço, começou por sua vez a arrazar e destruir tudo que ainda encontrara em casa. Então principiou a verdadeira devastação. E a cada objecto que ella varria para o pateo, gritava sempre: «Upa! Toma, diabo!» --Ahi vae o relogio! Upa! Toma, diabo! E o relogio espatifou-se na calçada. --Ahi vae o alguidar! --Ahi vae o jarro! --Ahi vão os copos! --O cabide! --O garrafão! --O bacio! Um riso geral, communicativo, absoluto, abafava o barulho da louça quebrando-se contra as pedras. E Leocadia já não precisava acompanhar os objectos com a sua phrase de imprecação, porque cada um d'elles era recebido cá fóra com um côro que berrava: --Upa! Toma, diabo! E a limpeza proseguia. João Romão acudio de carreira, mas ninguem se incommodou com a presença d'elle. Já defronte da porta do Bruno havia uma montanha de cacos accumulados; e o destroço continuava ainda, quando o ferreiro reappareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com um raio de roda de carro na mão direita. Os circumstantes o seguiram, atropelladamente, num clamor. --Não dá! --Não póde! --Prende! --Não deixa bater! --Larga o páo! --Segura! --Aguenta! --Cérca! --Toma o porrete! E Leocadia escapou afinal das páoladas do marido, a quem o povaréo desarmára num fecha-fecha. --Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aproveitando a confusão, haviam já ferrado um pontapé por detraz. O Alexandre, que vinha chegando do serviço n'esse momento, apressou-se a correr para o logar do conflicto e cheio de autoridade, intimou o Bruno a que se contivesse e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a estação no mesmo instante. --Pois você não vê esta gallinha, que apanhei hoje com a boca na botija, não me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!... interrogou o Bruno, espumando de raiva e quasi sem folego para fallar. --Porque você pôz em cacos o que é meu! gritou Leocadia. --Está bom! está bom! disse o policia, procurando dar á voz inflexões autoritarias e reconciliadoras. Falle cada um por sua vez! Seu marido ... accrescentou elle, voltando-se para a accusada, diz que a senhora... --É mentira! interrompeu ella. --Mentira?! É boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima! --Quem era?--Quem foi?--Quem era o homem? interrogaram todos a um só tempo. --Quem era elle, no fim de contas? inquirio tambem Alexandre. --Não lhe pude ver as fuças!... respondeu o ferreiro; mas, se o apanho, arrancava-lhe o sangue pelas costas! Houve um côro de gargalhadas. --É mentira! repetio Leocadia, agora succumbida por uma reacção de lagrimas. Ha muito tempo que este malvado anda caçando pretexto para romper commigo e, como eu não lh'o dou... Uma explosão de soluços a interrompeu. D'esta vez não riram, mas um bichanar de cochichos formou-se em torno do seu pranto. --Agora ... continuou ella, enxugando os olhos na costa da mão; não sei o que será de mim, porque este homem, além de tudo, escangalhou-me até o que eu trouxe quando me casei com elle!... --Não disseste que já tinhas ahi dentro com que ganhar a vida?... E andar! --É falso! soluçou Leocadia. --Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle: está tudo terminado! Seu marido vae recebel-a em boa paz... --Eu?! esfuziou o ferreiro. Você não me conhece! --Nem eu queria! retorquio a mulher. Prefiro metter-me com um cavallo de tilbury a ter de aturar este bruto! E, catando em casa alguma coisa sua que ainda havia, e recolhendo do montão dos cacos o que lhe pareceu aproveitavel, fez de tudo uma grande trouxa e foi chamar um carregador. A Rita sahio-lhe ao encontro. --Para onde vais tu?... perguntou-lhe em voz baixa. --Não sei, filha, por ahi!... Hei de encontrar um furo!... Os cães não vivem?... --Espera um instante ... disse a mulata. Olha, empurra a trouxa ahi para dentro do meu commodo.--E correndo ao Albino, que lavava:--Passa-me no sabão aquella roupa, ouviste? E, quando Firmo acordar, diz-lhe que precisei ir á rua. Depois, deu um pulo ao quarto, mudou a saia molhada, atirou nos hombros o seu chale de crochet e, batendo nas costas da campanheira, segredou-lhe: --Anda cá commigo! não ficarás á tôa! E as duas sahiram, ambas sacudidas, deixando atraz de si suspensa a curiosidade do cortiço inteiro. IX Passaram-se semanas. Jeronymo tomava agora, todas as manhãs, uma chicara de café bem grosso, á moda da Ritinha, e tragava dois dedos de paraty «pr'a cortar a friagem. » Uma transformação, lenta e profunda, operava-se n'elle, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho mysterioso e surdo de chryzallida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brazil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e seductores que o commoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealisar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso, resignando-se, vencido, ás imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espirito eternamente revoltado do ultimo tamoyo entrincheirou a patria contra os conquistadores aventureiros. E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus habitos singelos de aldeão portuguez: e Jeronymo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquelle ar sombrio e concentrado que a entristecia; já appareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução afinal foi completa: a aguardente de canna substituio o vinho; a farinha de mandioca succedeu á brôa; a carne secca e o feijão preto ao bacalháo com batatas e ceboulas cozidas; a pimenta malagueta e a pimenta de cheiro invadiram victoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto foram repellidos pelos ruivos e gostosos quitutes bahianos, pela muqueca, pelo vatapá e pelo carurú; a couve á mineira desthronou a couve á portugueza; o pirão de fubá ao pão de rala, e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jeronymo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar tambem com os amigos. E o curioso é que, quanto mais ia elle cahindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças physicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a musica, comprehendia até as intenções poeticas dos sertanejos, quando cantam á viola os seus amores infelizes; seus olhos, d'antes só voltados para a esperança de tornar á terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de céo e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos despenhadeiros illimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a espaço, surge um monarcha gigante, que o sol veste de oiro e ricas pedrarias refulgentes e as nuvens toucam de alvos turbantes de cambraia, n'um luxo oriental de arabicos principes voluptuosos. Ao passo que com a mulher, a S'ôra Piedade de Jesus, o caso mudava muito de figura. Essa, feita de um só bloco, compacta, inteiriça e tapada, recebia a influencia do meio só por fóra, na maneira de viver, conservando-se inalteravel quanto ao moral, sem conseguir, á semelhança do esposo, afinar a sua alma pela alma da nova patria que adoptaram. Cedia passivamente nos habitos de existencia, mas no intimo continuava a ser a mesma colona saudosa e desconsolada, tão fiel ás suas tradições como a seu marido. Agora estava até mais triste; triste porque o Jeronymo fazia-se outro; triste porque não se passava um dia que lhe não notasse uma nova transformação; triste, porque chegava a estranhal-o, a desconhecel-o, afigurando-se-lhe até que commettia um adulterio, quando á noite acordava assustada ao lado d'aquelle homem que não parecia o d'ella, aquelle homem que se lavava todos os dias, aquelle homem que aos domingos punha perfumes na barba e nos cabellos e tinha a boca cheirando a fumo. Que pesado desgosto não lhe apertou o coração a primeira vez em que o cavouqueiro, repellindo o caldo que ella lhe apresentava ao jantar, disse-lhe: --Ó filha! porque não experimentas tu fazer uns pitéos á moda de cá?... --Mas é que não sei ... balbuciou a pobre mulher. --Pede então á Rita que t'o ensine... Aquillo não terá muito q'aprender! Vê se me fazes por arranjar uns camarões, como ella preparou aquelles d'outro dia. Souberam-me tão bem! Este resvalamento do Jeronymo para as coisas do Brasil, penalisavam profundamente a infeliz creatura. Era ainda o instincto feminil que lhe fazia prever que o marido, quando estivesse de todo brasileiro, não a quereria para mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa. Jeronymo, com effeito, pertencia-lhe muito menos agora do que d'antes. Mal se chegava para ella; os seus carinhos eram frios e distrahidos, dados como por condescendencia; já lhe não affagava os rins, quando os dois ficavam a sós, malucando na sua vida commum; agora nunca era elle que a procurava para o matrimonio, nunca; se ella sentia necessidade do marido, tinha de provocal-o. E, uma noite, Piedade ficou com o coração ainda mais apertado, porque elle, a pretexto de que no quarto fazia muito calor, abandonou a cama e foi deitar-se no sofá da salinha. Desde esse dia não dormiram mais ao lado um do outro. O cavouqueiro arranjou uma rede e armou-a defronte da porta de entrada, tal qual como havia em casa da Rita. Uma outra noite a coisa ainda foi peior. Piedade, certa de que o marido não se chegava, foi ter com elle; Jeronymo fingio-se indisposto, negou-se, e terminou por dizer-lhe, repellindo-a brandamente: --Não te queria fallar, mas ... sabes? deves tomar banho todos os dias e ... mudar de roupa... Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso trazer o corpo sempre lavado, que senão cheira-se mal!... Tem paciencia! Ella desatou a soluçar. Foi uma explosão de resentimentos e desgostos que se tinham accumulado no seu coração. Todas as suas magoas rebentaram n'aquelle momento. --Agora estás tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso! Ella continuou a soluçar, sem folego, dando arfadas com todo o corpo. O cavouqueiro, acrescentou no fim de um intervallo: --Então que é isto, mulher? Pôes-te agora a fazer tamanho escarcéo, nem que se cuidasse de coisa séria! Piedade desabafou: --E que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! D'antes não me achavas que pôr, e agora até já te cheiro mal! E os soluços recrudesciam. --Não digas asnices, filha! --Ah! eu bem sei o que isto é!... --É bobagem tua, é o que é! --Maldita hora em que viemos dar ao raio d'esta estalagem! Antes me tivéra cahido um calháo na cabeça! --Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue! Esta resinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiudando. Ah! já não havia duvida que mestre Jeronymo andava meio cahido para o lado da Rita Bahiana; não passava pelo numero 9, sempre que vinha á estalagem durante o dia, que não parasse á porta um instante, para perguntar-lhe pela «saúdinha». O facto de haver a mulata lhe offerecido o remedio, quando elle esteve incommodado, foi pretexto para lhe fazer presentes amaveis, pôr os seus prestimos á disposição d'ella e obsequial-a em extremo todas as vezes que a visitava. Tinha sempre qualquer coisa para saber da sua boca, a respeito da Leocadia, por exemplo; pois, desde que a Rita se arvorara em protectora da mulher do ferreiro, Jeronymo affectava grande interesse pela «pobrezinha de Christo.» --Fez bem, 'nhá Rita, fez bem!... A se'ora mostrou com isso que tem bom coração... --Ah, meu amigo, n'este mundo hoje por mim, amanhã por ti!... Rita havia aboletado a amiga, a principio em casa de umas engommadeiras do Catette, muito suas camaradas; depois passou-a para uma familia, a quem Leocadia se alugou como ama secca; e agora sabia que ella acabava de descobrir um bom arranjo n'um collegio de meninas. --Muito bem! muito bem! applaudia Jeronymo. --Ora, o que! O mundo é largo! sentenciou a Bahiana! Ha logar pr'o gordo e ha logar pr'o magro! Bem tolo é quem se mata! Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de costume, pela pobrezinha de Christo, a mulata disse que Leocadia estava gravida. --Gravida? mas então não é do marido!... --Póde bem ser que sim. Barriga de quatro mezes... --Ah! mas ella não foi ha mais tempo do que isso?... --Não. Vae fazer agora pelo São João quatro mezes justamente. Jeronymo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar com as modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o ultimo a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dansar a mulata, abstracto, pateta, esquecido de tudo; babão. E ella, consciente do feitiço que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia. E riam-se. Não! definitivamente estava cahido! Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um remedio que lhe restituisse o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ella no quarto, accendeu vélas de cêra, queimou hervas aromaticas e tirou a sorte nas cartas. E, depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ella dispunha sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que sahia do baralho uma phrase cabalistica, declarou convicta, muito calma, sem tirar os olhos das suas cartas: --Elle tem a cabeça virada por uma mulher trigueira. --É o diacho da Rita Bahiana! exclamou a outra. Bem cá me palpitava por dentro! Ai, o meu rico homem! E a chorar, limpando, afflicta, as lagrimas no avental de canhamo, supplicou á Bruxa, pelas alminhas do purgatorio, que lhe remediasse tamanha desgraça. --Ai, se perco aquella creatura, S'ôra Paula, lamuriou a infeliz entre soluços; nem sei que virá a ser de mim n'este mundo de Christo!... Ensine-me alguma coisa que me puxe o Jeromo! A cabocla disse-lhe que se banhasse todos os dias e désse a beber ao seu homem, no café pela manhã, algumas gottas das aguas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regimen não produzisse o desejado effeito, então cortasse um pouco dos cabellos do corpo, torrasse-os até os reduzir a pó e lh'os ministrasse depois na comida. Piedade ouvio a receita com um silencio respeitoso e attento, o ar compungido de quem recebe do medico uma sentença dolorosa para um doente que estimamos. Em seguida, metteu na mão da feiticeira uma moeda de prata, promettendo dar-lhe coisa melhor se o remedio tivesse bons resultados. Mas não era só a portugueza quem se mordia com o descahimento do Jeronymo para a mulata, era tambem o Firmo. Havia muito já que este andava com a pulga atraz da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro, olhava-o atravessado. O capadocio ia dormir todas as noites com a Rita, mas não morava na estalagem; tinha o seu commodo na officina em que trabalhava. Só pelos domingos é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam o seu jantar de pandega. Uma vez em que elle gazéara o serviço, o que não era raro, foi vel-a fóra das horas do costume e encontrou-a a conversar junto á tina com o portuguez. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao numero 9, onde ella foi logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito das suas apprehensões, mas tambem não escondeu o seu máo-humor; esteve impertinente e resingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o paraty, depois do café, só fallou em rôlos, em dar cabeçadas e navalhadas, pintando-se terrivel, recordando façanhas de capoeiragem, nas quaes sangrára taes e taes typos de fama; «não contando dois gallegos que mandara pr'ás minhocas, porque isso para elle não era gente!--Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos pra sempre!» Rita percebeu os ciumes do amigo e fez que não dera por coisa alguma. No dia seguinte, ás seis horas da manhã, quando elle sahia da casa d'ella, encontrou-se com o portuguez, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois trocaram entre si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguio em silencio para o seu lado. Rita deliberou prevenir Jeronymo de que se acautelasse. Conhecia bem o amante e sabia de quanto era elle capaz sob a influencia dos ciumes; mas, na occasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escandalo acabava de explodir, agora no numero 12, entre a velha Marcianna e sua filha Florinda. Marcianna andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal d'esta se desregrára havia tres mezes, quando, n'esse dia, não tendo as duas acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da meza e foi de carreira para o quarto. A velha seguio-a. A rapariga fôra vomitar ao bacio. --Que é isto?... perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar inquiridor. --Não sei, mamãe... --Que sentes tu?... --Nada... --Nada, e estás lançando?... Hein?! --Não sinto nada, não senhora!... A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido, levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tacteando-lhe o ventre, já zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligencias, correu a chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assumpto. A cabocla, sem se alterar, largou o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao numero 12; tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe varias perguntas e mais á mãe, e depois disse friamente: --Está de barriga. E afastou-se, sem um gesto de surpreza, nem de censura. Marcianna, tremula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio e, furiosa, cahio aos murros em cima da filha. Esta, em balde tentando escapar-lhe, berrava como uma louca. Abandonaram-se logo todas as tinas do pateo e algumas das mezas do frege, e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para o numero 12, batendo na porta e ameaçando entrar pela janella. Lá dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no chão, perguntava-lhe gritando e repetindo: --Quem foi?! Quem foi?! E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas. --Quem foi?! A pequena berrava, mas não respondia. --Ah! não queres dizer por bem? Ora espera! E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura ao canto da sala. Florinda, vendo imminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a janella e cahio de um salto lá fóra, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove palmos de altura. As lavadeiras a apanharam, cuidando em defendel-a da mãe, que surgio logo á porta, ameaçando para o grupo, terrivel e armada de páo. Todos procuraram chamal-a á razão: --Então que é isso, tia Marcianna?! Então que é isso?! --Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está ahi o que é! Para tanto não lhe faltou geito, nem foi preciso que a gente andasse atraz d'ella se matando, como succede sempre que ha um pouco mais de serviço e é necessario puxar pelo corpo! Ora está ahi o que é! --Bem, disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe dá cabo da pelle! --Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ella ha de dizer quem foi ou quebro-lhe os ossos! --Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! aconselhou a das Dôres. Fez-se em torno da rapariga um silencio avido, cheio de curiosidade. --Estão vendo?... exclamou a mãe. Não responde, este diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ella falla ou não! E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete, porque a velha queria crescer de novo para a filha. Ao redor d'esta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam todos por saber quem a tinha emprenhado «Quem foi?! Quem foi?!» esta phrase apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remedio: --Foi seu Domingos ... disse ella, chorando e cobrindo o rosto com a fralda do vestido, rasgado na lucta. --O Domingos!... --O caixeiro da venda!... --Ah! foi aquelle cara de nabo? gritou Marcianna. Vem cá! E, agarrando a filha pela mão, arrastou-a até a venda. Os circumstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira. A taverna, como a casa de pasto, ferviam de concurrencia. Ao balcão d'aquella, o Domingos e o Manoel aviavam os freguezes, numa roda viva. Havia muitos negros e negras. O barulho era enorme. A Leonor lá estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalpões rudes de mãos de couro nas suas magras e escorridas nadegas de negrinha virgem. Tres marujos inglezes bebiam gengibirra, cantando, ebrios, na sua lingua e mascando tabaco. Marcianna na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a seguia como um animal puxado pela colleira, ao chegar á porta lateral da venda, berrou: --Ó seu João Romão! --Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço. Bertoleza, com uma grande colher de zinco gottejante de gordura, appareceu á porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou para seu homem: --Corre aqui, seu João, que não sei o que houve! Elle veio afinal. Que diabo era aquillo? --Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobrio, deve tomar conta d'ella! João Romão ficou perplexo. --Hein?! Que é lá isso?! --Foi o Domingos! disseram muitas vozes. --Ó seu Domingos! O caixeiro respondeu: «Senhor...» com uma voz de delinquente. --Chegue cá! E o criminoso apresentou-se, livido de morte. --Que fez você com esta pequena? --Não fiz nada, não senhor!... --Foi elle, sim! desmentio-o a Florinda.--O caixeiro desviou os olhos, para a não encarar.--Um dia de manhãzinha, ás quatro horas, no capinzal, debaixo das mangueiras... O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de gargalhadas. --Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... disse o patrão, meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda e, como não gosto de caixeiros amigados, póde procurar arranjo n'outra parte!... Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se lentamente. O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela venda, pelo portão da estalagem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em pequenos magotes que discutiam o facto. Principiaram os commentarios, os juizos pró e contra o caixeiro; fizeram-se prophecias. Entretanto, Marcianna, sem largar a filha, invadira a casa de João Romão e perseguia o Domingos que preparava já a sua trouxa. --Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer? Elle não deu resposta. --Vamos! vamos! falle! desembuche! --Ora lixe-se! resmungou o caixeiro; agora muito vermelho de colera. --Lixe-se, não!... Mais de vagar com o andôr! Você ha de casar: ella é menor! Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha. --Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos! E despejou da venda, gritando para todos: --Sabe? O cara de nabo diz que não casa! Esta phrase produzio o effeito de um grito de guerra entre as lavadeiras, que se reuniram de novo, agitadas por uma grande indignação. --Como, não casa?!... --Era só o que faltava! --Tinha graça! --Então mais ninguem póde contar com a honra de sua filha? --Se não queria casar pr'a que fez mal? --Quem não póde com o tempo não inventa modas! --Ou elle casa ou sáe d'aqui com os ossos em sôpa! --Quem não quer ser lobo não lhe vista a pelle! A mais empenhada n'aquella reparação era a Machona, e a mais indignada com o facto era Dona Isabel. A primeira corrêra á frente da venda, disposta a segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu exemplo não tardou que em cada porta, por onde era possivel uma escapula, se postassem as outras de sentinella, formando grupos de tres e quatro. E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se pragas ferozes e ameaças: --Das Dôres! toma cuidado, que o patife não espirre por ahi! --Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande nol-o pra cá! Temos ainda algumas pequenas que lhe convêm! --Mas onde está esse ordinario?! --Saia o canalha! --Está fazendo a trouxa! --Quer escapar! --Não deixa sahir! --Chama a policia! --Onde está o Alexandre? E ninguem mais se entendia. Á vista d'aquella agitação, o vendeiro foi ter com o Domingos. --Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por emquanto. Logo mais lhe direi o que deve fazer. E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou: --Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar! --Pois então o homem que case! responderam. --Ou dê-nos pr'a cá o patife! --Fugir é que não! --Não foge! não deixa fugir! --Ninguem se arrede! E, como a Marcianna lhe lançasse uma injuria mais fórte, ameaçando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que se ella insistisse com desaforos, a mandaria jogar lá fóra, junto com a filha, por um urbano. --Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não posso perder tempo! --Ponha-nos então pr'a cá o homem! exigio a mulata velha. --Venha o homem! acompanhou o côro. --É preciso dar-lhe uma lição! --O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe fallei... Está perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão descansados; respondo por elle ou pelo dinheiro! Estas palavras apaziguaram os animos; o grupo das lavadeiras afrouxou; João Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não arredasse pé de casa antes de noite fechada. --No mais ... acrescentou; póde tratar de vida nova! Nada o prende aqui. Estamos quites. --Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!... --Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da rapariga!... --Então eu tenho de pagar um dote?!... --Ou casar... Ah, meu amigo, este negocio de tres vintens é assim! Custa dinheiro! Agora, se você quizer, vá queixar-se á policia... Está no seu direito! Eu me explicarei em juizo!... --Com que, não recebo nada?... --E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar ás turras lá fóra com esses damnados! Você bem vio como estão todos a seu respeito! E, se ha pouco não lhe arrancaram os figados, agradeça-o a mim! Foi preciso prometter dinheiro e tenho de cahir com elle, de certo! mas não é justo, nem eu admitto, que saia da minha algibeira, porque não estou disposto a pagar os caprichos de ninguem, e muito menos dos meus caixeiros! --Mas... --Basta! Se quizer, por muito favor, ficar aqui até á noite, ha de ficar calado; ao contrario, rua! E afastou-se. Marcianna resolveu não ir ao sub-delegado, sem saber que providencias tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte «para ver só!» O que n'esse ella fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumal-a muitas vezes, como costumava, sempre que tinha lá as suas zangas. O escandalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não se fallava n'outra coisa; tanto que, quando, já á noite, Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Leonie, era ainda esse o principal assumpto das conversas. Leonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote á franceza, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda côr de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos á moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas luvas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida n'uma nuvem de rendas côr de rosa e com um grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéo de immensas abas forradas de veludo escarlate, com um passaro inteiro grudado á copa; as suas joias caprichosas, scintillantes de pedras finas: os seus labios pintados de carmim; suas palpebras tingidas de violeta; o seu cabello artificialmente loiro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras d'aquella pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreital-a pela porta da casinha do Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Jujú, como vinha tão embonecada e catita, ficou com os d'ella arrazados d'agoa. Leonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéos escandalosos como os d'ella e dava-lhe joias. Mas, n'aquelle dia, a grande novidade que Jujú apresentava era estar de cabellos loiros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de numero a numero, e muitos moradores se abalaram do commodo para ver a filhita da Augusta «com cabellos de franceza.» Tal successo pôz Leonie radiante de alegria. Aquella afilhada era o seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o que aos seus proprios olhos a resgatava das abjecções do officio. Prostituta de casa aberta, presava todavia com admiração e respeito a honestidade vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obsequios de toda a especie. Nos instantes que estava ali, entre aquelles seus amigos simplorios, que a matariam de ridiculo em qualquer outro logar, nem ella parecia a mesma, pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferencias: assentava-se no primeiro banco, bebia agoa pela caneca de folha, tomava ao collo o pequenito da comadre e, ás vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinellos velhos que encontrasse debaixo da cama. Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrificios por ella. Adoravam-na. Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos que um marfim. Jujú, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em casa, passando de braço a braço e levada de bocca em bocca, como um idolo milagroso, que todos queriam beijar. E os elogios não cessavam: --Rica pequena!... --É um enlevo olhar a gente pr'o demoninho! --É mesmo uma lindeza de criança! --Uma criaturinha dos anjos! --Uma boneca franceza! --Uma menina Jesus! O pai acompanhava-a commovido, mas solemne sempre, parando a todo momento, como em procissão, á espera que cada qual desafogasse por sua vez o enthusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos humidos, patenteava em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar condolente e estupido de um profundo reconhecimento por aquella fortuna, que Deus lhe dera á filha, enviando-lhe dos ceus o ideal das madrinhas. E, emquanto Jujú percorria a estalagem, conduzida em triumpho, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assumptos sérios, fallando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa pratica e ajuisada, condemnando máos actos e desvarios, applaudindo a moral e a virtude. E aquellas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte d'ella, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo, cochichando, a tapar a bocca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loira vestida de seda e coberta de brilhantes. A das Dôres sentio-se orgulhosa, quando Leonie lhe pousou no hombro a mãozinha enluvada e rescendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ella, de admiral-a; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as saias, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro á vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez commovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha. E Nênêm, no seu enthusiasmo, disse que a invejava do fundo de coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a em extasis, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Bahiana levára-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se illudia com a posição da loureira, mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita. «Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pelle dos homens ricos aquella porção de joias e todo aquelle luxo de roupa por dentro e por fóra!» --Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pateo, a uma companheira; seja assim ou assado, a verdade é que ella passa muito bem de bocca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passeiar á tarde; theatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fóra da cidade e dinheirama grossa para gastar á farta! Emfim, só o que afianço é que esta não está sujeita, como a Leocadia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas acções! livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ella só entrega a quem muito bem lhe der na veneta! --E Pombinha?... perguntou a visita. Não me appareceu ainda!... --Ah! esclareceu Augusta. Não está ahi, foi á sociedade de dansa com a mãe. E, como a outra mostrasse na cara não ter comprehendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sabbados, mediante dois mil reis por cada noite, servir de dama n'uma sociedade em que os caixeiros do commercio aprendiam a dansar. --Foi lá que ella conheceu o Costa... acrescentou. --Que Costa? --O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida? --Ah, sei... E a cocote perguntou depois, abafando a voz: --E aquillo?... Já veio afinal?... --Qual! Não é por falta de boa vontade da parte d'ellas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova promessa á Nossa Senhora da Annunciação ... mas não ha meio! D'ahi a pouco, Augusta apresentou-lhe uma chicara de café, que Leonie recusou por não poder beber. «Estava em uso de remedios...» Não disse porém quaes eram estes, nem para que molestia os tomava. --Prefiro um copo de cerveja, declarou ella. E, sem dar tempo a que se oppuzessem, tirou da carteira urna nota de dez mil reis, que deu a Agostinho para ir buscar tres garrafas de Carls Berg. Á vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silencio enternecido. A cocote distribuio-os por sua propria mão aos circumstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quiz mandar buscar mais; não lh'o permittiram, objectando que duas e tres pessoas podiam beber juntas. --Para que gastar tanto?... Que alma grande! O troco ficou esquecido, de proposito, sobre a commoda, entre uma infinita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas. --Quando você, comadre, agora me apparece por lá?... quiz saber Leonie. --Pr'a semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão de alguma ... póde-se apromptar com mais pressa... --Então é bom mandar-me toalhas e lençóes... Camisas de dormir, é verdade! tambem tenho poucas. --Depois d'amanhã está tudo lá. E a noite ia se passando. Deram dez horas. Leonie, impaciente já pelo rapaz que ficára de ir buscal-a, mandou ver se elle por acaso estaria no portão, á espera. --E aquelle mesmo que veio da outra vez com a comadre?... --Não. É um mais alto. De cartola branca. Correu muita gente até á rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Leonie ficou contrariada. --Imprestavel!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ahi ou incommodar alguem que me acompanhe! --Porque a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quizer, arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!... Não! não era possivel! Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte pela manhã iriam procural-a muito cedo. N'isto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo á entrada que Leonie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no numero 15 e seguio sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes. --Então, minha flôr, como está essa lindeza? perguntou-lhe, mirando-a toda. --Saudades suas ... respondeu a moça, rindo bonito na sua bocca ainda pura. E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras. Leonie entregou á Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxéra; uma tetéia que valia só pela exquisitice, representando uma fatia de queijo com um camondongo em cima. Correu logo de mão em mão, levantando espantos e gargalhadas. --Por um pouco que não me apanhas ... continuou a cocote na sua conversa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe.--E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabellos:--Porque não me appareces?... Não tens que receiar: minha casa é muito socegada... Já lá tem ido familias!... --Nunca vou á cidade... É raro! suspirou Pombinha. --Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas commigo... --Se mamãe deixar... Olha! ella ahi vem. Peça. Dona Isabel prometteu ir, não no dia seguinte, mas no outro immediato, que era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, d'ahi a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava Leonie. Era um moço de vinte e poucos annos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A cocote, logo que o vio approximar-se, disse baixinho á menina: --Não é preciso que elle saiba que vais lá domingo, ouviste? Jujú dormia. Resolveram não acordal-a; iria no dia seguinte. Na occasião em que Leonie partia pelo braço do amante, acompanhada até ao portão por um sequito de lavadeiras, a Rita, no pateo, beliscou a coxa do Jeronymo e soprou-lhe á meia voz: --Não lhe cáia o queixo!... O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d'hombros. --Aquella pr'a cá,nem pintada! E, para deixar bem patente as suas preferencias, virou o pé do lado e bateu com o tamanco na canella da mulata. --Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao logar da pancada. Sempre ha de mostrar que é gallego! X No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no «Jornal do Commercio» que S. Ex. fôra agraciado pelo governo portuguez como titulo de Barão do Freixal; e como os seus amigos se achassem prevenidos para ir comprimental-o no domingo, o negociante dispunha-se a recebel-os condignamente. Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, viam-se nas janellas do sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Izaura, a sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um páo, os olhos fechados, a cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se levantava, como fumaça de um tiro de peça. Chamaram-se novos criados para aquelles dias. No salão da frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia reboliço. Dona Estella, de penteador de cambraia enfeitado de laços côr de rosa, era lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens, abanando-se com um grande leque; ou apparecia no patamar da escada do fundo, preoccupada em soerguer as saias contra as aguas sujas da lavagem, que escorriam para o quintal. Zulmira tambem ia e vinha, com a sua pallidez fria e humida de menina sem sangue. Henrique, de paletó branco, ajudava o Botelho nos arranjos da casa e, de instante a instante, chegava á janella, para namoriscar Pombinha, que fingia não dar por isso, toda embebida na sua costura, á porta do numero 15, numa cadeira de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia de seda azul e um sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo espaço, ella desviava os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado. Entretanto, a figura gorda e encanecida do novo Barão, sobrecasacado, com o chapéo alto derreado para traz na cabeça e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e atravessava a sala de jantar, seguia até á despensa, diligente e esbaforido, indagando se já tinha vindo isto e mais aquillo, provando dos vinhos que chegavam em garrafões, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda, dando ordens, ralhando, exigindo actividade, e depois tornava a sahir, sempre apressado, e mettia-se no carro que o esperava á porta da rua. --Toca! toca! Vamos ver se o fogueteiro apromptou os fogos! E viam-se chegar, quasi sem intermittencia, homens carregados de gigos de champanha, caixas de porto e bordeus, barricas de cerveja, cestos e cestos de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus e leitões, canastras d'óvos, quartos de carneiro e de porco. E as janellas do sobrado iam-se enchendo de compoteiras de doce ainda quente, sahido do fogo, e travessões, de barro e de ferro, com grandes peças de carne em vinha d'alhos, promptos para entrar no forno. Á porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito esfolado, que tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pelle. Todavia, cá em baixo, um caso palpitante agitava a estalagem: Domingos, o seductor da Florinda, desapparecêra durante a noite e um novo caixeiro o substituia ao balcão. O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido: --Sei cá! Creio que não podia trazel-o pendurado ao pescoço!... --Mas você disse que respondia por elle! repontou Marcianna, que parecia ter envelhecido dez annos n'aquellas ultimas vinte e quatro horas. --De accordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter paciencia! --Pois então ande com o dote! --Que dote? Você está bebada? --Bebada, hein?! Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu hei de mostrar! --Ora, não me amole! E João Romão virou-lhe as costas, para fallar á Bertoleza que se chegára. --Deixa estar, malvado, que Deus é quem ha de punir por mim e por minha filha! exclamou a desgraçada. Mas o vendeiro afastou-se, indifferente ás phrases que uma ou outra lavadeira imprecava contra elle. Ellas, porém, já se não mostravam tão indignadas como na vespera; uma só noite rolada por cima do escandalo bastara para tirar-lhe o merito de novidade. Marcianna foi com a pequena á procura do sub-delegado e voltou aborrecida, porque lhe disseram que nada se poderia fazer emquanto não apparecesse o delinquente. Mãe e filha passaram todo esse sabbado na rua, n'uma roda viva, da secretaria e das estações de policia para o escriptorio de advogados que, um por um, lhes perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo, despachando-as, sem mais considerações, logo que se inteiravam da escassez de recursos de ambas as partes. Quando as duas, prostradas de cansaço, esbrazeadas de calôr, tornaram á tarde para a estalagem, na hora em que os homens do mercado, que ali moravam, recolhiam-se já com os balaios vazios ou com o resto da fructa que não conseguiram vender na cidade, Marcianna vinha tão furiosa que, sem dar palavra á filha e com os braços moidos de esbordoal-a, abrio toda a casa e correu a buscar agoa para baldear o chão. Estava possessa. --Vê a vassoura! Anda! Lava! lava, que está isto n'uma porcaria! Parece que nunca se limpa o diabo d'esta casa! É deixal-a fechada uma hora e morre-se de fedor! Apre! isto faz peste! E notando que a pequena chorava:--Agora déste para chorar, hein?! mas na occasião do relaxamento havias de estar bem disposta! A filha soluçou. --Cala-te, coisa ruim! Não ouviste? Florinda soluçou mais forte. --Ah! choras sem motivo?... Espera, que te faço chorar com razão! E precipitou-se sobre uma acha de lenha. Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma só carreira o pateo da estalagem, fugindo em desfilada pela rua. Ninguem teve tempo de apanhal-a, e um clamor de gallinheiro assustado levantou-se entre as lavadeiras. Marcianna foi até ao portão, como uma doida e, comprehendendo que a filha a abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos, olhando para o espaço. As lagrimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E logo, sem transição, disparou da colera, que a convulsionava desde a manhã da vespera, para cahir n'uma dôr humilde e enternecida de mãe que perdeu o filho. --Para onde iria ella, meu pai do ceu?... --Pois você desd'hontem que bate na rapariga!... disse-lhe a Rita. Fugio-lhe, é bem feito! Que diabo! ella é de carne, não é de ferro! --Minha filha! --É bem feito! Agora chore na cama, que é logar quente! --Minha filha! Minha filha! Minha filha! Ninguem quiz tomar o partido da infeliz, á excepção da cabocla velha, que foi collocar-se perto d'ella, fitando-a, immovel, com o seu desvairado olhar de bruxa feiticeira. Marcianna arrancou-se da abstração plangente em que cahira, para arvorar-se terrivel defronte da venda, apostrophando com a mão no ar e a carapinha desgrenhada: --Este gallego é que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladrão! Se não me déres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa! A bruxa sorrio sinistramente ao ouvir estas ultimas palavras. O vendeiro chegou á porta e ordenou em tom secco á Marcianna que despejasse o numero 12. --É andar! é andar! Não quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo um urbano! Dou-lhe uma noite! amanhã pela manhã, rua! Ah! elle esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais de uma vez mandara Bertoleza á coisa mais immunda, apenas porque esta lhe fizera algumas perguntas concernentes ao serviço. Nunca o tinham visto assim, tão fora de si, tão cheio de repellões; nem parecia aquelle mesmo homem inalteravel, sempre calmo e methodico. E ninguem seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o facto de ter sido o Miranda agraciado com o titulo de Barão. Sim, senhor! aquelle taverneiro, na apparencia tão humilde e tão miseravel; aquelle sovina que nunca sahíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquelle animal que se alimentava peior que os cães, para pôr de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquelle ente atrophiado pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus privilegios e sentimentos de homem; aquelle desgraçado, que nunca jamais amára senão ao dinheiro, invejava agora o Miranda, invejava-o devéras, com dobrada amargura do que soffrera o marido de Dona Estella, quando, por sua vez, o invejara a elle. Acompanhára-o desde que o Miranda viera habitar o sobrado com a familia; vira-o nas felizes occasiões da vida, cheio de importancia, cercado de amigos e rodeado de aduladores; vira-o dar festas e receber em sua casa as figuras mais salientes da praça e da politica; vira-o luzir, como um grosso pião de ouro, girando por entre damas da melhor e mais fina sociedade fluminense; vira-o metter-se em altas especulações commerciaes e sahir-se bem; vira seu nome figurar em varias corporações de gente escolhida e em subscripções, assignando bellas quantias; vira-o fazer parte de festas de caridade e festas de regosijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e acclamado como homem de vistas largas e grande talento financeiro; vira-o enfim em todas as suas prosperidades, e nunca lhe tivera inveja. Mas agora, estranho deslumbramento! quando o vendeiro leu no «Jornal do Commercio» que o visinho estava barão--Barão!--sentio tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista por um instante se lhe apagou dos olhos. --Barão! E durante todo o santo dia não pensou n'outra coisa. «Barão!... Com esta é que elle não contava!...» E, defronte da sua preoccupação, tudo se convertia em commendas e crachás; até os modestos dois vintens de manteiga, que media sobre um pedaço de papel de embrulho para dar ao freguez, transformavam-se, de simples mancha amarella, em opulenta insígnia de oiro cravejada de brilhantes. Á noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, não poude conciliar o somno. Por toda a miseria d'aquelle quarto sordido; pelas paredes immundas, pelo chão enlameado de poeira e cebo, nos tectos funebremente velados pelas teias de aranha, estrellavam pontos luminosos que se iam transformando em gram-cruzes, em habitos e veneras de toda a ordem e especie. E em volta do seu espirito, pela primeira vez allucinado, um turbilhão de grandezas, que elle mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e rendas, velludo e perolas, collos e braços de mulheres seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de vinhos côr de oiro. E nuvens de caudas de vestido e abas de casaca lá iam, rodando deliciosamente, ao som de langorosas valsas e á luz de candelabros de mil vélas de todas as cores. E carruagens desfilavam reluzentes, com uma corôa á portinhola, o cocheiro tezo, de libré, sopeando parelhas de cavallos grandes. E interminaveis mezas estendiam-se, serpenteando a perder de vista, accumuladas de iguarias, n'uma encantadora confusão de flores, luzes, baixellas e crystaes, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque de convivas, de taça em punho, brindando o amphitryão. E, porque nada d'isso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo ruido namorador e fatuo, ficava deslumbrado com o seu proprio sonho. Tudo aquillo, que agora lhe deparava o delirio, até ahi só lhe passara pelos olhos ou lhe chegara aos ouvidos como o echo e reflexo de um mundo inattingivel e longinquo; um mundo habitado por seres superiores; um paraizo de gozos excellentes e delicados, que os seus grosseiros sentidos repelliam; um conjuncto harmonioso e discreto de sons e côres mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas pallidas, sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se não determinava o que era petala de rosa ou aza de borboleta, murmurio de brisa ou ciciar de beijos. Não obstante, ao lado d'elle a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre. Mas João Romão nem dava por ella; só o que elle via e sentia era todo aquelle voluptuoso mundo inaccessivel vir descendo para a terra, chegando-se para o seu alcance, lentamente, accentuando-se. E as dubias sombras tomavam forma, e as vozes duvidosas e confusas transformavam-se em fallas distinctas, e as linhas desenhavam-se nitidas, e tudo ia se esclarecendo e tudo se aclarava, n'um reviver de natureza ao raiar do sol. Os tenues murmurios suspirosos desdobravam-se em orchestras de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam politica, artes, litteratura e sciencia. E uma vida inteira, completa, real, descortinou-se amplamente defronte dos seus olhos fascinados; uma vida fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro; uma vida em palacio, entre mobilias preciosas e objectos esplendidos, onde elle se via cercado de titulares millionarios, e homens de farda bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes a mão no hombro. E ali elle não era, nunca fôra, o dono de um cortiço, de tamancos e em mangas de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do oiro! o Barão das grandezas! o Barão dos milhões! Vendeiro? Qual! era o famoso, o enorme capitalista! o proprietario sem igual! o incomparavel banqueiro, em cujos capitaes se equilibrava a terra, como immenso globo em cima de columnas feitas de moedas de oiro. E vio-se logo montado a cavalleiras sobre o mundo, pretendendo abarcal-o com as suas pernas curtas; na cabeça uma corôa de rei e na mão um sceptro. E logo, de todos os cantos do quarto, começaram a jorrar cascatas de libras esterlinas; e a seus pés principiou a formar-se um formigueiro de pygmeus em grande movimento commercial; e navios descarregavam pilhas e pilhas de fardos e caixões marcados com as iniciaes do seu nome; e telegrammas faiscavam electricamente em volta da sua cabeça; e paquetes de todas as nacionalidades giravam vertiginosamente em torno do seu corpo de colosso, arfando e apitando sem tregoa; e rapidos comboios a vapor atravessavam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem com uma cadeia de wagons. Mas, de repente, tudo desappareceu com a seguinte phrase: --Acorda, seu João, para ir á praia. São horas! Bertoleza chamava-o aquelle domingo, como todas as manhãs, para ir buscar o peixe, que ella tinha de preparar para os seus freguezes. João Romão, com medo de ser illudido, não confiava nunca dos empregados a menor compra a dinheiro; n'esse dia, porém, não se achou com animo de deixar a cama e disse á amiga que mandasse o Manoel. Seriam quatro da madrugada. Elle conseguio então passar pelo somno. Ás seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se bandeiras nas janellas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de murta á entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada. Dona Estella mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de musica, em frente á porta do sobrado, tocava desde essa hora. O Barão madrugara com a familia; todo de branco, com uma gravata de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janellas, ao lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa com o lenço; accendia charutos, risonho, feliz, resplandecente. João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas duvidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro. Qual seria o melhor e o mais acertado:--ter vivido como elle vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gosando á farta?... Estaria elle, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do visinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de accordo! mas teria animo de gastal-o assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma boa porção de contos de réis, tão penosamente accumulados, em troca de uma tetéia para o peito?... Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo familia e cercando-se de amigos?... Teria animo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fôra tão pouco condescendente para com a propria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem educada e distincta de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?... poderia dar conta do recado?... Dependeria tudo isso sómente da sua vontade?... «Sem nunca ter vestido um paletó, como vestiria uma casaca?... com aquelles pés, deformados pelo diabo dos tamancos, criados á solta, sem meias, como calçaria sapatos de baile?... E suas mãos, callosas e mal tratadas, duras como as de um cavouqueiro, como se ageitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difficil seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras doiradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?... E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de querer saltar e um medo invencivel de cahir e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrivel convicção da sua impotencia para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu oiro. «Fôra urna besta!... pensou de si proprio, amargurado: uma grande besta!... Pois não! porque em tempo não tratára de habituar-se logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patricios e collegas de profissão?... Porque, como elles, não aprendêra a dansar? e não frequentára sociedades carnavalescas? e não fôra de vez em quando á rua do Ouvidor e aos theatros, e a bailes, e a corridas e a passeios?... Porque se não habituara com as roupas finas, e com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéo, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar de privilegio para isso?... Maldita economia!» --Teria gasto mais, é verdade?... Não estaria tão bem!... mas, ora adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quizesse!... Seria um homem civilisado!... --Você deu hoje pr'a conversar com as almas, seu João?... perguntou-lhe Bertoleza, notando que elle fallava sozinho, distrahido do serviço. --Deixe-me! Não me amole você tambem. Não estou bom hoje! --Ó gentes! não fallei por mal!... Crédo! --'Stá bem! Basta! E o seu máo humor aggravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar com tudo. Arranjou logo uma péga, á entrada da venda, com o fiscal da rua: «Pois elle era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?... Se o bolas do fiscal esperava comel-o por uma perna, como costumava fazer com os outros, que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria a festa!... E que lhe não rosnasse muito, que elle não gostava de cães á porta!... Era andar!» Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato d'esta, que, a semana passada, lhe fôra ao taboleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias, encolerisado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um berro, sahirem as crianças do seu caminho: «Que praga de piolhos! Arre, demonio! Nunca vira gente tão damnada para parir! Pareciam ratas!» Deu um encontrão no velho Liborio. --Sai tu tambem do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta para nada! Protestou contra os gallos de um alfaiate, que se divertia a fazel-os brigar, no meio de grande roda enthusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos, porque estes, na alegre independencia do domingo, tinham á porta da casa uma esterqueira da cascas de melancia e laranja, que elles comiam tagarelando, assentados sobre a janella e a calçada. --Quero isto limpo! bramava furioso. Está peior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomára que a febre amarella os lamba a todos! maldita raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseiado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu! Com a pobre velha Marcianna, que não tratára de despejar o numero 12, conforme a intimação da vespera, a sua furia tocou ao delirio. A infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando com persistencia maniaca. Não pregou olho durante toda a noite; sahíra e entrára na estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma cadella a quem roubaram o cachorrinho. Estava apatetada; não respondia ás perguntas que lhe dirigiam. João Romão fallou-lhe; ella nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12. --Os tarecos fóra! e já! Aqui mandou eu! Aqui sou eu monarcha! E tinha gestos inflexiveis de despota. Principiou o despejo. --Não! aqui dentro não! Tudo lá fóra! na rua! gritou elle, quando os carregadores quizeram depôr no pateo os trens de Marcianna. Lá fóra do portão! Lá fóra do portão! E a misera, sem oppôr uma palavra, assistia ao despejo, acocorada na rua, com os joelhos juntos, as mãos crusadas sobre as canellas, resmungando. Transeuntes paravam, a olhal-a. Formava-se já um grupo de curiosos. Mas ninguem entendia o que ella rosnava; era um rabujar confuso, interminavel, acompanhado de um unico gesto do cabeça, triste e automatico. Ali perto, o colchão velho, já rôto e destripado, os moveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos uteis, as louças ordinarias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem, um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que aos domingos apparecia sempre; e fez-se o entra e sáe dos mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os taboleiros de roupa engommada, que sabiam, cruzaram-se com os saccos de roupa suja, que entravam; e Marcianna não se movia do seu lugar, monologando. João Romão percorreu o numero 12, escancarando as portas, a dar arres e empurrando para fóra, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio que lá ficára abandonado; e a enxotada, indifferente a tudo, continuava a sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam ter com ella de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe offerecimentos; Marcianna não respondia. Quizeram obrigal-a a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava attenção a coisa alguma; parecia não dar pela presença de ninguem. Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ella persistia no seu inintelligivel monologo, sem tirar a vista de um ponto. --Cruzes! parece que lhe deu alguma! A Augusta chegára-se tambem. --Teria ensandecido?... perguntou á Rita, que, a seu lado olhava para a infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada! --Tia Marcianna! dizia a mulata. Não fique assim! Levante-se! Metta os seus trens pr'a dentro! Vá lá pr'a casa até encontrar arrumação!... Nada! O monologo continuava. --Olhe que vai chover! Não tarda a cahir agoa! Já senti dois pingos na cara. Qual! A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente immovel, como por um effeito de suggestão. Rita affastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dôres tambem veio. Deram tres horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa animada, cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a musica quasi que não tomava folego, enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dansavam na sala da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo o instante; os criados iam e vinham, de carreira, da sala de jantar á despensa e á cozinha, carregados de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, apparecia de quando em quando á janella, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de passeio com a mãe em casa de Leonie. João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a Bertoleza, tornou ao pateo da estalagem, queixando-se de que tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o proprio Jeronymo, cuja força physica aliás o intimidára sempre. «Era um relaxamento aquella porcaria de serviço! Havia tres semanas que estavam com uma broca á tôa, sem atar, nem desatar; afinal ahi chegára o domingo e não se havia ainda lascado fogo! Uma verdadeira calaçaria! O tal seu Jeronymo, d'antes tão apurado, era agora o primeiro a dar o máo exemplo! perdia noites no samba! não largava os rastros da Rita Bahiana e parecia embeiçado por ella! Não tinha geito!» Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defeza d'este com duas pedras na mão, e uma contenda travou-se, assanhando todos os animos. Felizmente, a chuva, cahindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava serio. Cada um correu para o seu buraco, n'um alvoroço exagerado; as crianças despiram-se e vieram cá fóra tomar banho debaixo das gotteiras, por pagode, gritando, rindo, saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá defronte, no sobrado, ferviam brindes, emquanto a agoa jorrava copiosamente, alagando o pateo. Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um caixeiro entregou-lhe um cartão do Miranda. Era um convite para lá ir á noite tomar uma chavena de chá. O vendeiro, a principio, ficou lisongeado com o obsequio, primeiro d'esse genero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a colera com maior impeto ainda. Aquelle convite irritava-o como um ultraje, uma provocação. «Porque o pulha o convidára, devendo saber que elle de certo lá não ia?... Para que, senão para o enfreneziar ainda mais do que já estava?!... Seu Miranda que fosse á tabúa com a sua festa e com os seus titulos!» --Não preciso d'elle para nada!... exclamou o vendeiro. Não preciso, nem dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu! No emtanto, começou a imaginar como sería, no caso que estivesse prevenido de roupa e acceitasse o convite; figurou-se bem vestido, de panno fino, com uma boa cadeia de relogio, uma gravata com alfinete de brilhante; e vio-se lá em cima, no meio da sala, a sorrir para os lados, prestando attenção a um, prestando attenção a outro, discretamente silencioso e affavel, sentindo que o citavam dos lados em voz mortiça e respeitosa como um homem rico, cheio de independencia. E adivinhava os olhares approbativos das pessoas sérias; os oculos curiosos das velhas assestados sobre elle, procurando ver se estaria ali um bom arranjo para uma das filhas de menor cotação. N'esse dia servio mal e porcamente aos freguezes; tratou aos repellões a Bertoleza e, quando, já ás cinco horas, deu com a Marcianna, que, uns negros por compaixão haviam arrastado para dentro da venda, disparatou: --Ora bolas! Pr'a que diabo me mettem em casa este estupor?! Gosto de ver taes caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é acoito de vagabundos!... E, como um policia, todo encharcado de chuva, entrasse para beber um gole de paraty, João Romão voltou-se para elle e disse-lhe:--Camarada, esta mulher é gira! não tem domicilio, e eu não hei de, quando fechar a porta, ficar com ella aqui dentro da venda! O soldado sahio e, d'ahi a coisa de uma hora, Marcianna era carregada para o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu monologo de demente. Os cacaréos foram recolhidos ao deposito publico por ordem do inspector do quarteirão. E a Bruxa era a unica que parecia deveras impressionada com tudo aquillo. Entretanto, a chuva cessou completamente, o sol reappareceu, como para despedir-se; andorinhas esgaivolaram no ar; e o cortiço palpitou inteiro na trefega alegria do domingo. Nas salas do barão a festa engrossava, cada vez mais estrepitosa; de vez em quando vinha de lá uma taça quebrar-se no pateo da estalagem, levantando protestos e surriadas. A noite chegou muito bonita, com um bello luar de lua cheia, que começou ainda com o crepusculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de costume, incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda. Foi um forrobodó valente. A Rita Bahiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada! divina! Nunca dansára com tanta graça e tamanha lubricidade! Tambem cantou. E cada verso que vinha da sua bocca de mulata era um arulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bebado de volupia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e elle gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuaes, n'um desespero de luxuria que penetrava até ao tutano com lingoas finissimas de cobra. Jeronymo não poude conter-se: no momento em que a bahiana, offegante de cansaço, cahio exhausta, assentando-se ao lado d'ella, o portuguez segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão: --Meu bem! se você quizer estar commigo, dou uma perna ao demo! O mulato não ouvio, mas notou o cochicho e ficou, de má cara, a rondar disfarçadamente o rival. O canto e a dansa continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das Dôres. Nênêm, mais uma amiga sua, que fôra passar o dia com ella, rodavam de mãos nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de palmas cadenciadas, no acompanhamento do rhythmo requebrado da musica. Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho á Rita, Firmo precisou empregar grande esforço para não ir logo ás do cabo. Mas, lá pelo meio do pagode, a bahiana cahira na imprudencia de derrear-se toda sobre o portuguez e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte d'elle, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido. Jeronymo, tambem posto de pé, respondeu altivo com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo silencio. Ninguem se mexeu do logar em que estava. E, no meio da grande roda, illuminados amplamente pelo capitoso luar de Abril, os dois homens, perfilados defronte um de outro, olhavam-se em desafio. Jeronymo era alto, espadaúdo, construcção de touro, pescoço de Hercules, punho de quebrar um côco com um murro: era a força tranquilla, o pulso de chumbo. O outro--franzino, um palmo mais baixo que o portuguez, pernas e braços seccos, agilidade de maracajá: era a força nervosa; era o arrebatamento que tudo desbarata no sobresalto do primeiro instante. Um, solido e resistente; o outro, ligeiro e destemido; mas ambos corajosos. --Senta! Senta! --Nada de rôlo! --Segue a dansa! gritaram em volta. Piedade erguêra-se para arredar o seu homem d'ali. O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de cima do mulato. --Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!... rosnou elle. --Dar-te um banho de fumaça, gallego ordinario! respondeu Firmo, frente a frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e bamboleando todo o corpo e meneando os braços, como preparado para agarral-o. Jeronymo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversario com um socco armado; o cabra, porém, deixou-se cahir de costas, rapidamente, firmando-se nas mãos, o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o sôco passou por cima, varando o espaço, emquanto o portuguez apanhava no ventre um pontapé inesperado. --Canalha! berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o mulato, quando uma cabeçada o atirou no chão. --Levanta-te, que não dou em defuntos! exclamou o Firmo, de pé, repetindo a sua dansa de todo o corpo. O outro erguêra-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o tombava para a direita, emquanto da esquerda elle recebia uma tapona na orelha. Furioso, desferio novo sôco, mas o capoeira deu para traz um salto de gato e o portuguez sentio um pontapé nos queixos. Espirrou-lhe sangue da bocca e das ventas. Então fez-se um clamor medonho. As mulheres quizeram metter-se de permeio, porém o cabra as emborcava com rasteiras rapidas, cujo movimento de pernas apenas se percebia. Um horrivel sarilho se formava. João Romão fechou ás pressas as portas da venda e trancou o portão da estalagem, correndo depois para o logar da briga. O Bruno, os mascates, os trabalhadores da pedreira, e todos os outros que tentaram segurar o mulato, tinham rolado em torno d'elle, formando-se uma roda limpa, no meio da qual o terrivel capoeira, fóra de si, doido, reinava, saltando a um tempo para todos os lados, sem consentir que ninguem se approximasse. O terror arrancava gritos agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa distancia, via, de braços crusados, aquelles dois homens a se baterem por causa d'ella; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os labios. A lua escondêra-se; mudara o tempo: o céo, de limpo que estava, fizéra-se côr de lousa; sentia-se um vento humido de chuva. Piedade berrava, reclamando policia; tinha levado um troca-queixos do marido, porque insistia em tiral-o da lucta. As janellas do Miranda accumulavam-se de gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero. N'isto, echoou na estalagem um bramido de féra enraivecida: Firmo acabava de receber, sem esperar, uma formidavel cacetada na cabeça. É que Jeronymo havia corrido á casa e armára-se com o seu varapáo minhoto. E então o mulato, com o rosto banhado de sangue, refilando as prezas e espumando de colera, erguêra o braço direito, onde se vio scintillar a lamina de uma navalha. Fez-se uma debandada em volta dos dois adversarios, estrepitosa, cheia de pavor. Mulheres e homens atropellavam-se, cahindo uns por cima dos outros. Albino perdera os sentidos; Piedade clamava, estarrecida e em soluços, que lhe iam matar o homem; a das Dôres soltava censuras e maldições contra aquella estupidez de se destriparem por causa de entre-pernas de mulher; a Machona, armada com um ferro de engommar, jurava abrir as fuças a quem lhe désse um segundo coice como acabava ella de receber um nas ancas; Augusta enfiára pela porta do fundo da estalagem, para atravessar o capinzal e ir á rua ver se descobria o marido, que talvez estivesse de serviço no quarteirão. Por esse lado acudiam curiosos, e o pateo enchia-se de gente de fóra. Dona Isabel e Pombinha, de volta da casa de Leonie, tiveram difficuldade em chegar ao numero 15, onde, mal entraram, fecharam-se por dentro, praguejando a velha contra a desordem e lamentando-se da sorte que as lançou n'aquelle inferno. Em tanto, no meio de uma nova roda, encintada pelo povo, o portuguez e o brasileiro batiam-se. Agora a lucta era regular: havia igualdade de partidos, porque o cavouqueiro jogava o páo admiravelmente; jogava-o tão bem quanto o outro jogava a sua capoeiragem. Embalde Firmo tentava alcançal-o; Jeronymo, sopesando ao meio a grossa vara na mão direita, girava-a com tal pericia e ligeireza em torno do corpo, que parecia embastilhado por uma teia impenetravel e sibilante. Não se lhe via a arma, só se ouvia um zunido do ar simultaneamente cortado em todas as direcções. E, ao mesmo tempo que se defendia, atacava. O brasileiro tinha já recebido páoladas na testa, no pescoço, nos hombros, nos braços, no peito, nos rins e nas pernas. O sangue inundava-o inteiro; elle rugia e arfava, iroso e cansado, investindo ora com os pés, ora com a cabeça, e livrando-se d'aqui, livrando-se d'ali, aos pulos e ás cambalhotas. A victoria pendia para o lado do portuguez. Os espectadores acclamavam-no já com enthusiasmo; mas, de subito, o capoeira mergulhou, n'um relance, até ás canellas do adversario e surgio-lhe rente dos pés, grudado n'elle, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada. Jeronymo soltou um mugido e cahio de borco, segurando os intestinos. --Matou! Matou! Matou! exclamaram todos com assombro. Os apitos esfuziaram mais assanhados. Firmo varou pelos fundos do cortiço e desappareceu no capinzal. --Pega! Pega! --Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o corpo ensanguentado do marido. Rita viera tambem de carreira lançar-se ao chão junto d'elle, para lhe afagar as barbas e os cabellos. --É preciso o doutor! supplicou aquella, olhando para os lados á procura de uma alma caridosa que lhe valesse. Mas n'isto um estardalhaço de formidaveis pranchadas estrugio no portão da estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu. --Abre! Abre! reclamavam de fóra. João Romão atravessou o pateo, como um general em perigo, gritando a todos: --Não entra a policia! Não deixa entrar! Aguenta! Aguenta! --Não entra! Não entra! repercutio a multidão em côro. E todo o cortiço ferveu que nem uma panella ao fogo. --Aguenta! Aguenta! Jeronymo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da mulata. --Aguenta! Aguenta! De cada casulo espipavam homens armados de páo, achas de lenha, varaes de ferro. Um empenho collectivo os agitava agora, a todos, n'uma solidariedade briosa, como se ficassem deshonrados para sempre se a policia entrasse ali pela primeira vez. Emquanto se tratava de uma simples lucta entre dois rivaes, estava direito! «Jogassem lá as cristãs, que o mais homem ficaria com a mulher!» mas agora tratava-se de defender a estalagem, a communa, onde cada um tinha a zelar por alguem ou alguma coisa querida. --Não entra! Não entra! E berros atroadores respondiam ás pranchadas, que lá fóra se repetiam ferozes. A policia era o grande terror d'aquella gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropicio: á capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de odio velho. E, emquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas, arrancavam giráos, arrastavam carroças, restos de colchões e saccos de cal, formando ás pressas uma barricada. As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava, começava a abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atraz d'ella. Os que entraram de fora por curiosidade não puderam sahir e viam-se mettidos no surumbamba. As cercas das hortas voaram. A Machona terrivel fungára as saias e empunhava na mão o seu ferro de engommar. A das Dôres, que ninguem dava nada por ella, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defeza. Afinal o portão lascou; um grande rombo abrio se logo; cahiram taboas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um sacco de cal, despejado sobre elles, desnorteou-os. Principiou então o sarilho grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguem por entre a trincheira; ao passo que os projectis, arremeçados lá de dentro, desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças abandonavam o campo, á falta de ar. Era impossivel invadir aquelle baluarte com tão poucos elementos, mas a policia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de desforço. Semelhante resistencia os humilhava. Se tivessem espingardas fariam fogo. O unico d'elles que conseguio trepar á barricada, rolou de lá abaixo sob uma carga de páo e teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na capoeiragem, linha na cabeça uma barretina de urbano. --Fóra os morcegos! --Fóra! Fóra! E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de garrafa! Os apitos estridulavam mais e mais fortes. N'essa occasião, porém, Nênêm gritou, correndo na direcção da barricada. --Acudam aqui! Acudam aqui! Ha fogo no numero 12. Está sahindo fumaça! --Fogo! A este grito um panico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incendio lamberia aquellas cem casinhas emquanto o diabo esfrega um olho! Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policias, aproveitando o terror dos adversarios, avançaram com impeto, levando na frente o que encontravam e penetrando emfim no infernal reducto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão atropellava-se, desembestando n'um alarido. Uns fugiam á prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de colera, mettiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança. N'isto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zunio mais estridente e um grande pé d'agoa desabou cerrado. XI A Bruxa, por influencia suggestiva da loucura de Marcianna, peiorou do juizo e tentou incendiar o cortiço. Emquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ella, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o numero 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as consequencias foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquella ao fogo, não escaparam á devastação da policia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial agoaceiro apagar tambem o outro incendio ainda peior, que, de parte a parte, lavrava nos animos. A policia retirou-se sem levar nenhum preso. «A ir um, iriam todos á estação! Deus te livre! Demais, para que? o que ella queria fazer, fez! Estava satisfeita!» Apezar do empenho do João Romão, ninguem conseguio descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reaccommodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo á meia noite. Ao romper da aurora já muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pateo, avaliando e carpindo, inconsolavel e furioso, o seu prejuizo. De vez em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito giráo quebrado, lampeões em fanicos, hortas e cercas arrazadas; o portão da frente e a taboleta foram reduzidos a lenha. João Romão meditava, para cobrir o damno, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, augmentando-lhes o aluguel dos commodos e o preço dos generos. Vio-se n'uma dobadoira durante o dia inteiro; desde pela manhã déra logo os providencias para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa possivel: mandou buscar novas tinas; fabricar novos giráos e concertar os quebrados; pôz gente a remendar o portão e a taboleta. Ao meio dia teve de comparecer á presença do subdelegado na secretaria da policia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espirito de camaradagem, quer por simples curiosidade. Uma verdadeira patuscada esse passeio á cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levavam os seus pequenitos ao collo; um magote de italianos ia á frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguem tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, commentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a attenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farandula. A sala da policia encheu-se. O interrogatorio, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que se vio tonta. Nenhum d'elles nada esclarecia e todos se queixavam da policia, exagerando as perdas recebidas na vespera. A respeito de como se travara o conflicto e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na occasião se achava ausente da estalagem. Do que tinha certeza era de que as praças lhe invadiram a propriedade e poseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquillo lá fosse roupa de francez! --Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem! Um côro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resistencia. «Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes não sabia alguem pela frente! Esbodegavam até á ultima, só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma creatura, porque estava a divertir-se um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?... Tinha lá geito?... Os rôlos era sempre a policia quem os levantava com as suas furias! Não se mettesse ella na vida de quem vivia socegado no seu canto, e não sahiria tanto barulho!...» Como de costume, o espirito de collectividade, que unia aquella gente em circulo de ferro, impedio que transpirasse o menor vislumbre de denuncia. O subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a da ida. Lá no cortiço, de portas a dentro, podiam esfaquear-se a vontade, que nenhum d'elles, e muito menos a victima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto que o medico, que, logo depois da invasão da policia, desceu da casa do Miranda á estalagem, para soccorrer Jeronymo, não conseguio arrancar d'este o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. «Não fôra nada!... Não fôra de proposito!.. Estavam a brincar e succedêra aquillo!... Ninguem tivera a menor intenção de fazer-lhe móssa!...» Rita mostrou-se de uma incansavel solicitude para com o ferido. Foi ella quem correu a buscar os remedios, quem servio de ajudante ao medico e quem servio de enfermeiro ao doente. Muitos lá iam, demorando-se um instante, para dar fé; ella, porém, desde que Jeronymo se achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, afflicta e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se. A mulata, essa não chorava; mas a sua physionomia tinha uma profunda expressão de magoa enternecida. Agora toda ella se sentia apegar-se áquelle homem bom e forte; áquelle gigante inoffensivo; áquelle hercules tranquillo, que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa fé, se deixára navalhar pelo facinora. «E tudo por causa d'ella! só por ella!» Seu coração de mulher rendia-se captivo a semelhante dedicação ensanguentada e dolorosa. E elle, o misero, interrompia as contracções do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da bahiana, feliz n'aquella desgraça que lhe permittia gosar dos seus carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e commovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dôr silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente. Rita affagava-o, já sem a menor sombra de escrupulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe os cabellos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão feminil. E, ali mesmo em presença da mulher d'elle, só faltava beijal-o com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos. Depois da meia noite dada, ella e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem de Santo Antonio, de que era irmão. E, com effeito, no dia immediato, emquanto o vendeiro e seu bando andavam lá ás voltas com a policia, e o resto do cortiço formigava, tagarelando em volta do concerto das tinas e giráos, Jeronymo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital. As duas só voltaram de lá á noite, cahindo de fadiga. De resto, toda a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem que n'esse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa com mais pressa foram lavar fóra ou arrastaram bacias de banho para debaixo das bicas, á falta de melhor vasilha para o serviço. Discutio-se a campanha da vespera sem variar de assumpto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo enthusiasmado os pormenores da lucta; ali, outro repetia, cheio de empafia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade; mais adiante trocavam se queixas e recriminações; cada qual, mulheres e homens, soffrêra o seu prejuizo ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre de indignação os objectos partidos ou a parte do corpo escoriada. Mas ás nove da noite já não havia viva alma no pateo da estalagem. A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se junto d'ella, porém não conseguio dormir: sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga, a gemer, e pedio-lhe que lhe désse alguma coisa para suar. Suppunha estar com febre. A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o vio pegar no somno; e, d'ahi a pouco, ás quatro da madrugada, erguia-se ella, com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco d'agoa á torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores, riscando phosphoros e accendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a borbotar grossos novelos de fumo espesso. Lá fóra clareava já, e a vida renascia no cortiço. A lucta de todos os dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o borborinho. Aquella noite bem dormida punha-os a todos de bom humor. Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo de sahir dos lençóes. Pedio café á mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos travesseiros, escondendo o rosto. --Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre não tens. --Ainda sinto o corpo molle ... mas não é nada... Isto passa!... --Foi de tanto gelo, que tomaste em casa da madama!... Não te dizia?... Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!... --Não! não, por amor de Deus! D'aqui a pouco estou em pé! Ás oito horas, com effeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabeça, defronte do seu modesto lavatorio de ferro. Dir-se-ia sem forças para a menor coisa; toda ella transpirava uma contemplativa melancolia de convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez crystallina de seus olhos de moça enferma; um pobre sorriso pallido a entreabrir-lhe as petalas da boca, sem lhe alegrar os labios, que pareciam resequidos á mingoa de beijos de amor; assim a delicada planta murcha, languece e morre, se carinhosa borboleta não vae sacudir sobre ella as azas prenhes de fecundo e doirado pollen. O passeio á casa de Leonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões e intimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda a sua vida. A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhal-a junto de si, n'aquelles divans fôfos e traidores, entre todo aquelle luxo extravagante e requintado, proprio para os vicios grandes. Ordenou á criada que não deixasse entrar ninguem, ninguem, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e pedindo lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados. Dona Isabel suspirava tambem, mas d'outro modo; na sua parva comprehensão do conforto, aquelles impertinentes espelhos, aquelles moveis casquilhos e aquellas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recordações do bom tempo e avivavam a sua impaciencia por melhor futuro. Ai! assim Deus quizesse ajudal-a!... Ás duas da tarde, Leonie, por sua propria mão, servio ás visitas um pequeno lunch de _foie-gras_, presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e agoa de Seltz; e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha para ella extremas solicitudes de namorado: levava-lhe a comida á boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa. Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho, sentio vontade de descansar o corpo; Leonie franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta pelo lado de fóra, para melhor ficar em liberdade com a pequena. Bem! Agora estavam perfeitamente a sós! --Vem cá, minha flôr!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cahir sobre um divan. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti! E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que suffocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instinctivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era. A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão. --Descansemos nós tambem um pouco... propôz, arrastando-a para a alcova. Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa, com vontade de affastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que ellas sustentavam um pouco antes, á meza, em presença de Dona Isabel. Leonie fingia prestar-lhe attenção e nada mais fazia do que affagar-lhe a cintura, as coxas e o collo. Depois, como que distrahidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido. --Não! Para que?... Não quero despir-me... --Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto... --Estou bem assim. Não quero! --Que tolice a tua! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens medo?... Olha! Vou dar o exemplo! E, n'um relance, desfez-se da roupa, e proseguio na campanha. A menina, vendo-se descomposta, crusou os braços sobre o seio, vermelha de pudor. --Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupilla tremula. E, apezar dos protestos, das supplicas e até das lagrimas da infeliz, arrancou-lhe a ultima vestimenta, e precipitou-se contra ella, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os labios o roseo bico do peito. --Oh! Oh! Deixa d'isso! Deixa d'isso! reclamava Pombinha, estorcendo-se em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta. --Que mal faz?... Estamos brincando... --Não! não! balbuciou a victima, repellindo-a. --Sim! Sim! insistio Leonie, fechando-a entre os braços, como entre duas columnas e pondo em contacto com o d'ella todo o seu corpo nú. Pombinha arfava, reluctando; mas o attrito d'aquellas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzella impubere, e o roçar vertiginoso d'aquelles cabellos asperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a polvora do sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos. Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxuria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de egoa, bufando e relinchando. E mettia-lhe a lingoa tersa pela bocca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lobulo dos hombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabello, como se quizesse arrancal-o aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, seccos, curtos, muito agudos, e a final desabou para o lado, exanime, inerte, os membros atirados n'um abandono de bebado, soltando de instante a instante um soluço estrangulado. A menina voltára a si e torcêra-se logo em sentido contrario á adversaria, cingindo-se rente aos travesseiros e abafando o seu pranto, envergonhada e corrida. A impudica, mal orientada ainda e sem conseguir abrir os olhos, procurou animal-a, ameigando-lhe a nuca e as espaduas. Mas Pombinha parecia inconsolavel, e a outra teve de erguer-se a meio e puxal-a como uma criança para o seu collo, onde ella foi occultando o rosto, a soluçar baixinho. --Não chores assim, meu amor!... Pombinha continuou a soluçar. --Vamos! Não quero ver-te d'este modo!... Estás zangada commigo?... --Não volto mais aqui! nunca mais! exclamou por fim a donzella, desgalgando o leito para vestir-se. --Vem cá! Não sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal com a tua negrinha!... Anda! Não me feches a cara!... --Deixe-me! --Vem cá, Pombinha! --Não vou! Já disse! E vestia-se com movimentos de raiva. Leonie saltara para junto d'ella e pôz-se a beijar-lhe, á força, os ouvidos e o pescoço, fazendo-se muito humilde, adulando-a, compromettendo-se a ser sua escrava e obedecer-lhe como um cachorrinho, com tanto que aquella tyranna não se fosse assim zangada. --Faço tudo! tudo! mas não fiques mal commigo! Ah! se soubesses como eu te adoro!... --Não sei! Largue-me! --Espera! --Que amolação! Oh! --Deixa de tolice!... Escuta, por amor de Deus! Pombinha acabava de encasar o ultimo botão do corpinho, e repuxava o pescoço e sacudia os braços, ajustando bem a sua roupa ao corpo. Mas Leonie cahíra-lhe aos pés, enleando-a pelas pernas e beijando-lhe as saias. --Olha!... Ouve!... --Deixe-me sahir! --Não! Não has de ir zangada, ou faço aqui um escandalo dos diabos! --É que mamãe já acordou com certeza!... --Que acordasse! Agora a meretriz defendia a porta da alcova. --Oh! meu Deus! Deixe-me sahir! --Não deixo, sem fazermos as pazes... --Que aborrecimento! --Dá-me um beijo! --Não dou! --Pois então não sabes! --Eu grito! --Pois grita! Que me importa? --Arrede-se d'ahi, por favor!... --Faz as pazes... --Não estou zangada, creia! Estou é indisposta... Não me sinto boa! --Mas eu faço questão do beijo! --Pois bem! Está ahi! E beijou-a. --Não quero assim! Foi dado de má vontade!... Pombinha deu-lhe outro. --Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um instante! Em tres tempos, lavou-se ligeiramente no bidé, endireitou o penteado defronte do espelho, n'um movimento rapido de dedos, e empoou-se, e perfumou-se, e enfiou camisa, anagoa e penteador, tudo com uma expedição de quem está habituada a vestir-se muitas vezes por dia. E, prompta, correu uma vista d'olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia, concertou-lhe melhor os cabellos e, readquerindo o seu ar tranquillo de mulher ajuisada, tomou-a pela cintura e levou-a vagarosamente até á sala de jantar, para tomarem vermouth com gazoza. O jantar foi ás seis e meia. Correu frio, não tanto per parte de Pombinha, que aliás se mostrava bem incommodada, como porque Dona Isabel, dormindo até o momento de a chamarem para mesa, sentia-se aziada com o _foie-gras_. A dona da casa, todavia não se forrou a desvelos e fez por alegral-as rindo e contando anecdotas burlescas. Ao café appareceu Jujú, que a criada levára a passeiar desde logo depois do almoço, e uma affectação de agrados levantou-se em torno da pequerrucha. Leonie pôz-se a conversar com ella, fallando como criança, dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel «o seu papatinho novo!» Mais tarde, no terraço, emquanto fumava um cigarro, tomou a mão de Pombinha e metteu-lhe no dedo um annel com um diamante cercado de perolas. A menina recusou o mimo, formalmente. Foi precisa a intervenção da velha para que ella consentisse em aceital-o. Ás oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a estalagem. Durante toda a viagem Pombinha parecia preoccupada e triste. --Que tens tu?... perguntou-lhe a mãe duas vezes. E de ambas a filha respondeu: --Nada! aborrecimento... No pouco que dormio essa noite, que foi a do barulho com a policia, teve sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com mollezas de febre e dôres no utero. Não arredou pé de casa, nem para ver os destroços do conflicto. A noticia do desfloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura da velha Marcianna, produziram-lhe grande abalo nos nervos. Na manhã immediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao pobre almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as dôres uterinas, não vivas, mas constantes. Não teve animo de pegar na costura, e um livro que ella tentou ler foi por varias vezes repellido. As onze para o meio dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desasocego entre as apertadas paredes do numero 15, que, máo grado os protestos da velha, sahio a dar uma volta por detraz do cortiço, á sombra dos bambús e das mangueiras. Uma irresistivel necessidade de estar só, completamente só, uma afflicção de conversar comsigo mesma, a apartavam do seu estreito quarto suffocante, tão tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da ante-vespera; mas, lubrificada por essa recordação, toda a sua carne ria e rejubilava-se, presentindo delicias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado; dentro d'ella balbuciavam desejos, até ahi mudos e adormecidos; e mysterios desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a de surpreza e mergulhando-a em fundas concentrações de extasis. Um ineffavel quebranto afrouxava-lhe a energia e destendia-lhe os musculos com uma embriaguez de flôres traiçoeiras. Não poude resistir: assentou-se debaixo das arvores, um cotovelo em terra, a cabeça reclinada contra a palma da mão. Na doce tranquillidade d'aquella sombra morna, ouviam-se retinir distantes a picareta dos homens da pedreira e o martello dos ferreiros na forja. E o canto dos trabalhadores, ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava no espaço, melancolico e sentido, como um côro religioso de penitentes. O calor tirava do capim um cheiro sensual. A moça fechou as palpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e pernas abertas. Adormeceu. Começou logo a sonhar que em de redor ia tudo se fazendo de um côr de rosa, a principio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, até formar-se em torno d'ella uma floresta vermelha, côr de sangue, onde largos tinhorões rubros se agitavam lentamente. E vio-se núa, toda núa, exposta ao céo, sob a tepida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios. Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma só mancha reluzente, oscillava como um pendulo phantastico. Entretanto, notava que, em volta da sua nudez aloirada pela luz, iam-se formando ondulantes camadas sanguineas, que se agitavam, desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se achava deitada entre petalas gigantescas, no regaço de uma rosa interminavel, em que seu corpo se atufava como em ninho de velludo carmezim, bordado de oiro, fofo, macio, trescalante e morno. E suspirando, espreguiçou-se toda n'um enleio de volupia ascetica. Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas fórmas de menina. Ella sorrio para elle, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abrio-se de par em par em duas azas e principiou a fremir, attrahido e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso lhe inflammassem os desejos, precipitou-se lá de cima agitando as azas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da immensa rosa, em cujo regaço a virgem permanecia com os peitos franqueados. E a donzella, sempre que a borboleta se approximava da rosa, sentia-se penetrar de um calor estranho, que lhe accendia, gotta a gotta, todo o seu sangue de moça. E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direcções, ora fugindo rapida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antennas de braza a pelle delicada e pura da menina. Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o collo. Mas a borboleta fugia. Uma sofreguidão lubrica, desensoffrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta pousasse n'ella, ao menos um instante, um só instante, e a fechasse n'um rapido abraço dentro das suas azas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de volupia. --Vem! Vem! supplicava a donzella, apresentando o corpo. Pousa um instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas azas! E a rosa, que a tinha ao collo, é que parecia fallar e não ella. De cada vez que a borboleta se avisinhava com as suas negaças, a flôr arregaçava-se toda, dilatando as petalas, abrindo o seu pistillo vermelho e avido d'aquelle contacto com a luz. --Não fujas! Não fujas! Pousa um instante! A borboleta não pousou; mas, n'um delirio, convulsa de amor, sacudio as azas com mais impeto e uma nuvem de poeira doirada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzella soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquelle effluvio luminoso e fecundante. N'isto, Pombinha soltou um ai formidavel e despertou sobresaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentio o grito da puberdade sahir-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente. A natureza sorrio-se commovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas do meio dia. O sol, victorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de oiro sobre o ventre da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo. XII Pombinha ergueu-se de um pulo e abrio de carreira para casa. No logar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos. A mãe lavava á tina, ella chamou-a com instancia, enfiando cheia de alvoroço pelo numero 15. E ahi, sem uma palavra, ergueu a saia do vestido e expôz a Dona Isabel as suas fraldas ensanguentadas. --Veio!! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo d'alma. A rapariga meneou a cabeça affirmativamente, sorrindo feliz e enrubecida. As lagrimas saltaram dos olhos da lavadeira. --Bemdito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo! exclamou ella, cahindo de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as mãos tremulas. Depois abraçou-se ás pernas da filha e, no arrebatamento da sua commoção, beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar tambem aquelle sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquelle sangue bom, que descia do ceu, como a chuva bemfazeja sobre uma pobre terra esterilisada pela secca. Não se poude conter: emquanto Pombinha mudava de roupa, sahio ella ao pateo, apregoando aos quatro ventos a linda noticia. E, se não fôra a formal opposição da menina, teria passeado em triumpho a camisa ensanguentada, para que todos a vissem bem e para que todos a adorassem, entre hymnos de amor, que nem a uma veronica sagrada de um Christo. --Minha filha é mulher! Minha filha é mulher! O facto abalou o coração do cortiço: as duas receberam parabens e felicitações. Dona Isabel accendeu velas de cêra á frente do seu oratorio, e nesse dia não pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o que fazia, a entrar e a sahir de casa, radiante de ventura. De cada vez que passava junto da filha dava-lhe um beijo na cabeça e em segredo recommendava-lhe todo o cuidado. «Que não apanhasse humidade! que não bebesse coisas frias! Que se agazalhasse o melhor possivel e, no caso de sentir o corpo molle, que se mettesse logo na cama! Qualquer imprudencia poderia ser fatal!...» O seu empenho era pôr o João da Costa, no mesmo instante, ao corrente da grande novidade e pedir-lhe que marcasse logo o dia do casamento; a menina entendia que não, que era feio, mas a mãe arranjou um portador e mandou chamar o rapaz com urgencia. Elle appareceu á tarde. A velha convidára gente para jantar; matou duas gallinhas, comprou garrafas de vinho, e, á noite, servio, ás nove horas, um chá com biscoitos. Nênêm e a das Dôres apresentaram-se em trajos de festa; fez-se muita ceremonia; conversou-se em voz baixa, formando todos em volta de Pombinha uma solicita cadeia de agrados, uma respeitosa preoccupação de bons desejos, a que ella respondia sorrindo commovida, como que exhalando da frescura da sua virgindade um victorioso aroma de flôr que desabrocha. E a partir d'esse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas rugas alegraram-se; ouviam-na cantarolar pela manhã, emquanto varria a casa e espanava os moveis. Não obstante, depois do tremendo conflicto que acabou em navalhada, uma tristeza ia minando uma grande parte da estalagem. Já se não faziam as quentes noitadas de violão e dança ao relento. A Rita andava aborrecida e concentrada, desde que Jeronymo partio para a ordem; Firmo fôra intimado pelo vendeiro a que lhe não puzesse, nunca mais, os pés em casa, sob pena de ser entregue á policia; Piedade, que vivia a dar ais, carpindo a ausencia do marido, ainda ficou mais consumida com a primeira visita que lhe fez ao hospital: encontrou-o frio e sem uma palavra de ternura para ella, deixando até perceber a sua impaciencia por ouvir fallar da outra, d'aquella maldita mulata dos diabos, que, no fim de contas, era a unica culpada de tudo aquillo e havia de ser a sua perdição e mais do seu homem! Quando voltou de lá atirou-se á cama, a soluçar sem alivio, e n'essa noite não poude pregar olho, senão já pela madrugada. Um negro desgosto comia-a por dentro, como tuberculos de tisica, e tirava-lhe a vontade para tudo que não fosse chorar. Outro que tambem, coitado! arrastava a vida muito triste, era o Bruno. A mulher, que a principio não lhe fizera grande falta, agora o torturava com a sua distancia; um mez depois da separação, o desgraçado já não podia esconder o seu soffrimento e ralava-se de saudades. A Bruxa, a pedido delle tirou a sorte nas cartas e disse-lhe mysteriosamente que Leocadia ainda o amava. Só Dona Isabel e a filha andavam devéras satisfeitas. Essas sim! nunca tinham tido uma epoca tão boa e tão esperançosa. Bombinha abandonara o curso de dança; o noivo ia agora visital-a, invariavelmente, todas as noites; chegava sempre ás sete horas e demorava-se até ás dez; davam-lhe café numa chicara especial, de porcelana; ás vezes jogavam a bisca, e elle mandava buscar, de sua algibeira, uma garrafa de cerveja allemã, e ficavam a conversar os tres, cada qual defronte do seu copo, a respeito dos projectos de felicidade commum; outras vezes o Costa, sempre muito respeitador, muito bom rapaz, accendia o seu charuto da Bahia e deixava-se cahir n'uma pasmaceira, a olhar para a moça, todo embebido n'ella. Pombinha punha alegrias n'aquelles serões com as suas garrulices de pomba que prepara o ninho. Depois do seu idyllio com o sol fazia-se muito amiga da existencia, sorvendo a vida em haustos largos, como quem acaba de sahir de uma prisão e saborêa o ar livre. Volvia-se carnuda e cheia, sazonava que nem uma fructa que nos provoca o appetite de morder. Dona Isabel, ao lado d'elles, toscanejava do meio para o fim da visita, traçando cruzes na bocca e afugentando os bocejos com voluptuosas pitadas da sua insigne tabaqueira. Fixado o dia do casamento, o assumpto inalteravel da conversa era o enxoval da noiva e a casinha que o Costa preparava para a lua de mel. Iriam todos tres morar juntos; teriam cozinheiro e uma criada que lavasse e engommasse. O rapaz trouxera peças de linho e de algodão, e ali, á luz amarellado velho candieiro de kerosene, emquanto a mãe talhava camisas e lençóes, a filha cosia valentemente n'uma machina que lhe offerecêra o noivo. Uma vez, eram duas da tarde, ella pregava rendas n'uma fronha de almofada, quando o Bruno, cheio de hesitações, a coçar os cabellos da nuca, pallido e mal asseiado, disse-lhe, encostando-se á hombreira da porta: --Ora, nham Pombinha ... tinha-lhe um servicinho a pedir ... mas vosmecezinha anda agora tão tomada com o seu enxoval e não ha de querer dar-se a maços... --Que queres tu, Bruno? --N'é nada, é que precisava que vosmecezinha me fizesse uma carta pr'aquelle diabo ... mas já se vê que não tem cabimento... Fica pr'ao depois! --Uma carta para tua mulher, não é? --Coitada! É mais doida do que ruim! Pois se a gente até dos brutos tem pena!... --Pois estás servido. Queres para já? --Não vale estorvar! Continue seu servicinho! Eu volto pr'outra vez!... --Não! anda cá, entra! O que se tem de fazer, faz-se logo! --Deus lhe pague! vosmecezinha é mesmo un anjo! Não sei a quem se chegue a gente ao depois que já lh'a não tivermos cá!... E continuou a louvar a bondade da rapariga, emquanto esta, toda serviçal, preparava numa mezinha redonda os seus apetrechos de escripta. --Vamos lá, Bruno! que queres tu mandar dizer á Leocadia? --Diga-lhe, antes de mais nada, que aquillo que quebrei d'ella, que dou outro! Que ella fez mal em quebrar tambem o que era meu, mas que fecho os olhos! Agoas passadas não movem moinho! Que sei que ella agora está desempregada e aos páos; que está a dever para mais de mez na estalagem; mas que não precisa dar cabeçadas: que me mande cá o senhorio, que me entendo com elle. Que acho bom que ella deixe a casa da crioula onde come, porque a mulher já se queixou e já disse, a quem quiz ouvir, que aquillo lá não era ponto de vadios e mulheres de má vida! Que ella, se tivesse um pouco de tino nem precisava estar ás migalhas dos outros, que eu na forja fazia para a trazer de barriga cheia e mais aos filhos que Deus mandasse...--Principiava a tomar calor--Que a culpada de tudo isto é só ella e mais ninguem! tivesse um bocado de juizo e não precisava envergonhar a cara por ahi... --Isso já está dito, Bruno! --Pois arrume-lhe outra vez, a ver se ella toma brio! --E que mais? --Que lhe não quero mal, nem lhe rogo pragas, mas que é bem feito que ella amargue um pouco do pão do diabo, pr'a ficar sabendo que uma mulher direita não deve olhar senão pr'a seu marido; e que, se ella não fosse tão maluca... --Já ahi vae você repetir inda uma vez a mesma cantiga!... --Mas diga-lhe sempre, tenha paciencia, nham Pombinha!... Que ainda estaria aqui, commigo, como d'antes, sem aguentar repellões d'estranhos!... --Adiante, Bruno! --Diga-lhe... E interrompeu-se. Ora, que mais elle tinha a dizer?... Coçou a cabeça. --Veja, Bruno, você é quem sabe o que precisa escrever a sua mulher... --Diga-lhe... Não se animava. --Que... --Diga-lhe... Não! não lhe diga mais nada!... --Posso então fechar a carta?... --Está bom ... resmungou o ferreiro, decidindo-se. Vá lá! Diga-lhe que... --Que... Houve um silencio, no qual o desgraçado parecia arrancar de dentro uma phrase que, no emtanto, era a unica idéa que o levava a dirigir-se á mulher. Afinal, depois de coçar mais vivamente a cabeça, gaguejou com a voz estrangulada de soluços: --Diga-lhe que ... se ella quizer tornar pra minha companhia ... que póde vir... Eu esqueço tudo! Pombinha, impressionada pela transformação da voz d'elle, levantou o rosto e vio que as lagrimas lhe desfilavam duas a duas, tres a tres, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha, ella, que escrevera tantas cartas n'aquellas mesmas condições; que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do cortiço, sobresaltava-se agora com os desalentados soluços do ferreiro. Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ella sentio o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas miserias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intellectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, attingindo de subito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surprendia. Não a commovêra tanto a revolução physica. Como que n'aquelle instante o mundo inteiro se despia á sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as lagrimas do Bruno, ella comprehendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade d'esses animaes fortes, de musculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea. Aquella pobre flôr de cortiço, escapando á estupidez do meio em que desabotoou, tinha de ser fatalmente victima da propria intelligencia. Á mingoa de educação, seu espirito trabalhou á revelia, e atraiçoou-a, obrigando-a a tirar da substancia caprichosa da sua phantasia de moça ignorante e viva, a explicação de tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir. Bruno retirou-se com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na meza e tulipou as mãos contra o rosto, a scismar nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre elles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de deshonra e de ludibrio, ainda vinham covardes e supplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ella lhes fizera?... E surgio-lhe então uma idéa bem clara da sua propria força e do seu proprio valor. Sorrio. E no seu sorriso já havia garras. Uma alluvião de scenas, que ella jamais tentára explicar e que até ahi jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nitidas e transparentes. Comprehendeu como era que certos velhos respeitaveis, cujas photographias Leonie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, captivos e submissos, pagando a escravidão com a honra, os bens, e até com a propria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no emtanto fôra posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridiculo que, para gosar um pouco, precisava tirar da sua mesma illusão a substancia do seu goso; ao passo que a mulher, a senhora, a dona d'elle, ia tranquillamente desfrutando o seu imperio, endeosada e querida, prodigalisando martyrios, que os miseraveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacaveis mãos que os estrangulavam. --Ah, homens! homens!... sussurrou ella de envolta com um suspiro. E pegou de novo na costura, deixando que o pensamento vadiasse á solta, emquanto os dedos iam machinalmente pregando as rendas n'aquella almofada, em que a sua cabeça teria de repousar para receber o primeiro beijo genital. N'um só lance de vista, como quem apanha uma esphera entre as pontas de um compasso, medio com as antennas da sua perspicacia mulheril toda aquella esterqueira, onde ella, depois de se arrastar por muito tempo como larva, um bello dia acordou borboleta á luz do sol. E sentio diante dos olhos aquella massa informe de machos e femeas, a comichar, a fremir concupiscente, suffocando-se uns aos outros. E vio o Firmo e o Jeronymo atassalharem-se, como dois cães que disputam uma cadella da rua; e vio o Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a fazel-o dançar a seus pés seguro pelos chifres; e vio o Domingos, que fora da venda, furtando horas ao somno, depois de um trabalho de burro, e perdendo o seu emprego e as economias ajuntadas com sacrificio, só para ter um instante de luxuria entre as pernas de uma desgraçadinha irresponsavel e tola; e tornou a ver o Bruno a soluçar pela mulher; e outros ferreiros e hortelões, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda a especie, um exercito de bestas sensuaes, cujos segredos ella possuiu, cujas intimas correspondencias escrevera dia a dia, cujos corações conhecia como as palmas das mãos, porque a sua escrivaninha era um pequeno confissionario, onde toda a salsugem e todas as fezes d'aquella praia de despejo foram arremessadas espumantes de dôr e aljofradas de lagrimas. E na sua alma enfermiça e aleijada, no seu espirito rebelde de flôr mimosa e peregrina criada n'um monturo, violeta infeliz, que um estrume forte de mais para ella atrophiára, a moça presentio bem claro que nunca daria de si ao marido que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada; presentio que nunca o respeitaria sinceramente como a um ser superior por quem damos a vida; que nunca lhe votaria enthusiasmo, e por conseguinte nunca lhe teria amor; d'esse de que ella se sentia capaz de amar alguem, se na terra houvéra homens dignos disso, Ah! não o amaria de certo, porque o Costa era como os outros, passivo e resignado, aceitando a existencia que lhe impunham as circumstancias, sem ideaes proprios, sem temeridades de revolta, sem atrevimentos de ambição, sem vicios tragicos, sem capacidade para grandes crimes; era mais um animal que viera ao mundo para propagar a especie; um pobre diabo emfim que já a adorava cegamente e que mais tarde, com ou sem razão, derramaria aquellas mesmas lagrimas, ridiculas e vergonhosas, que elle vira decorrendo em quentes camarinhas pelas asperas e mal tratadas barbas do marido de Leocadia. E não obstante, até então, aquelle matrimonio era o seu sonho doirado. Pois agora, nas vesperas de obtel-o, sentia repugnancia em dar-se ao noivo, e, se não fôra a mãe, seria muito capaz de dissolver o ajuste. Mas, d'ahi a uma semana, a estalagem era toda em reboliço desde logo pela manhã. Só se fallava em casamento; havia em cada olhar um sanguineo reflexo de noites nupciaes. Desfolharam-se rosas á porta da Pombinha. Ás onze horas parou um carro á entrada do cortiço com uma senhora gorda, vestida de seda côr de perola. Era a madrinha, que vinha buscar a noiva para a egreja de São João Baptista. A cerimonia estava marcada para o meio dia. Toda esta formalidade embatucava os circumstantes, que se alinhavam immoveis defronte do numero 15, com as mãos crusadas atraz, o rosto paralysado por uma commoção respeitosa; alguns sorriam enternecidos; quasi todos tinham os olhos resumbrados d'agoa. Pombinha surgio á porta de casa, já prompta para desferir o grande vôo; de véo e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda. Parecia commovida; despedia-se dos companheiros atirando-lhes beijos com o seu ramalhete de flores artificiaes. Dona Isabel chorava como criança, abraçando as amigas, uma por uma. --Deus lhe ponha virtude! exclamou a Machona. E que lhe dê um bom parto, quando vier a primeira barriga! A noiva sorria, de olhos baixos. Uma fimbria de desdem toldava-lhe a rosada candura de seus labios. Encaminhou-se para o portão, cercada pela bênção de toda aquella gente, cujas lagrimas rebentaram afinal, feliz cada um por vel-a feliz e em caminho da posição que lhe competia na sociedade. --Não! aquella não nascera para isto!... sentenciou o Alexandre, retorcendo o reluzente bigode. Seria lastima se a deixassem ficar aqui! O velho Liborio, cascalhando uma risada decrepita, queixou-se de que o maganão do Costa lhe passara a perna, roubando-lhe a namorada. Ingrata! Elle que estava disposto a fazer uma asneira! Nênêm deu uma corrida até á noiva, na occasião em que esta chegava á carruagem e, estalando-lhe um beijo na boca, pedio-lhe com empenho que se não esquecesse de mandar-lhe um botão da sua grinalda de flores de larangeira. --Diz que é muito bom para quem deseja casar!... e eu tenho tanto medo de ficar solteira...! É todo o meu susto! XIII Á proporção que alguns locatarios abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiam disputando os commodos desalugados. Delporto e Pompeu foram varridos pela febre amarella e tres outros italianos estiveram em risco de vida. O numero dos hospedes crescia, os casulos subdividiam-se em cubiculos do tamanho de sepulturas, e as mulheres iam despejando crianças com uma regularidade de gado procreador. Uma familia, composta de mãe viuva e cinco filhas solteiras, das quaes d'estas a mais velha tinha, trinta annos e a mais moça quinze, veio occupar a casa que Dona Isabel esvasiou poucos dias depois do casamento de Pombinha. Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o «Cabeça de Gato.» Figurava como seu dono um portuguez que tambem tinha venda, mas o legitimo proprietario, era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, apparecer em semelhante genero de especulações. E João Romão, estalando de raiva, vio que aquella nova republica da miseria promettia ir adiante e ameaçava fazer-lhe á sua perigosa concurrencia. Poz-se logo em campo, disposto á luta, e começou a perseguir o rival por todos os modos, peitando os fiscaes e guardas municipaes, para que o neo deixassem respirar um instante com multas e exigencias vexatorias; emquanto pela sorrelfa plantava no espirito dos seus inquilinos um verdadeiro odio de partido, que os incompatibilisava com a gente do Cabeça de Gato. Aquelle que não estivesse disposto a isso ia direitinho para a rua, «que ali se não admittia meias medidas a tal respeito! Ali: ou bem peixe ou bem carne! Nada de embrulho!» É inutil dizer que a parte contraria lançou mão igualmente de todos os meios para guerrear o inimigo, não tardando que entre os moradores das duas estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia aggravada por pequenas brigas e resingas, em que as lavadeiras se destacavam sempre com questões de freguezia de roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam já perfeitamente determinados; os habitantes do Cabeça de Gato tomaram por alcunha o titulo do seu cortiço, e os de São Romão, tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia á porta da taverna, foram baptisados por «Carapicús.» Quem se désse com um carapicú não podia entreter a mais ligeira amisade com um cabeça de gato; mudar-se alguem de uma estalagem para a outra era renegar idéas e principios e ficava apontado a dedo; denunciar a um contrario o que se passava, fosse o que fosse, dentro do circulo opposto, era commetter traição tamanha, que os companheiros a puniam a páo. Um vendedor de peixe, que cahio na asneira de fallar a um cabeça de gato a respeito de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dôres, foi encontrado quasi morto perto do cemiterio de São João Baptista. Alexandre, esse então não cochilava com os adversarios: nas suas partes policiaes figurava sempre o nome de um delles pelo menos, mas entre os proprios policias havia adeptos de um e de outro partido; o urbano que entrava na venda de João Romão tinha escrupulo de tomar qualquer coisa ao balcão da outra venda. Em meio do pateo do Cabeça de Gato arvorára-se uma bandeira amarella; os carapicús responderam logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas côres olhavam-se no ar como um desafio de guerra. A batalha era inevitavel. Questão de tempo. Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na officina e metteu-se lá de sucia com o Porfiro, apezar da opposição de Rita, que mais depressa o deixaria a elle do que aos seus velhos camaradas de cortiço. D'ahi nasceu certa ponta de discordia entre os dois amantes; as suas entrevistas tornavam-se agora mais raras e mais difficeis. A bahiana, por coisa alguma d'esta vida, poria os pés no Cabeça de Gato e o Firmo achava-se, como nunca, incompatibilisado com os carapicús. Para estar juntos tinham encontros mysteriosos n'um calogio de uma velha miseravel de rua de São João Baptista, que lhe cedia a cama, mediante esmolas. O capoeira fazia questão de ficar no Cabeça de Gato, porque ahi se sentia resguardado contra qualquer perceguição que o seu delicto motivasse; de resto, Jeronymo não estava morto e, uma vez bem curado, podia vir sobre elle com gana. No Cabeça de Gato, o Firmo conquistára rapidas sympathias e constituira-se chefe de malta. Era querido e venerado; os companheiros tinham enthusiasmo pela sua destreza e pela sua coragem; sabiam-lhe de cór a legenda rica de façanhas e victorias. O Porfiro secundava-o sem lhe disputar a primasia, e estes dois, só por si, impunham respeito aos carapicús, entre os quaes, não obstante, havia muito boa gente para o que désse e viesse. Mas ao cabo de tres mezes, João Romão, notando que os seus interesses nada soffriam com a existencia da nova estalagem e, até pelo contrario, lucravam com o progressivo movimento de povo que se ia fazendo no bairro, retornou á sua primitiva preoccupação com o Miranda, unica rivalidade que verdadeiramente o estimulava. Desde que o visinho surtio com o baronato, o vendeiro transformava-se por dentro e por fóra a causar pasmo. Mandou fazer boas roupas e aos domingos refestelava-se de casaco branco, e de meias, assentado defronte da venda, a ler jornaes. Depois deu para sahir a passeio, vestido de casimira, calçado e de gravata. Deixou de tosquiar o cabello á escovinha; pôz a barba abaixo, conservando apenas o bigode, que elle agora tratava com brilhantina todas as vezes que ia ao barbeiro. Já não era o mesmo lambusão! E não parou ahi fez-se: socio de um club de dança e, duas noites por semana, ia aprender a dançar; começou a uzar relogio e cadeia de ouro; correu uma limpeza no seu quarto de dormir, mandou soalhal-o, forrou e pintou-o; comprou alguns moveis em segunda mão; arranjou um chuveiro ao lado da retrete: principiou a comer com guardanapo e a ter toalha e copos sobre a mesa; entrou a tomar vinho, não do ordinario que vendia aos trabalhadores, mas de um especial que guardava para seu gasto. Nos dias de folga atirava-se para o passeio publico depois do jantar ou ia ao theatro São Pedro de Alcantara assistir aos espectaculos da tarde; do Jornal do Commercio, que era o unico que elle assignava havia já tres annos e tanto, passou a receber mais dois outros e a tomar fasciculos de romances francezes traduzidos, que o ambicioso lia de cabo a rabo, com uma paciencia de santo, na doce convicção de que se instruia. Admittio mais tres caixeiros; já se não prestava muito a servir pessoalmente á negralhada da vizinhança, agora até mal chegava ao balcão. E em breve o seu typo começou a ser visto com frequencia na rua Direita, na praça do commercio e nos bancos, o chapéu alto derreado para a nuca e o guarda-chuva debaixo do braço. Principiava a metter-se em altas especulações, aceitava acções de companhias de titulos inglezes e só emprestava dinheiro com garantias de boas hypothecas. O Miranda tratava-o já de outro modo, tirava-lhe o chapéo, parava risonho para lhe fallar quando se encontravam na rua, e ás vezes trocava com elle dois dedos de palestra á porta da venda. Acabou por offerecer-lhe a casa e convidal-o para o dia de annos da mulher, que era d'ahi a pouco tempo. João Romão agradeceu o obsequio, desfazendo-se em demonstrações de reconhecimento, mas não foi lá. Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrario, á medida que elle galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira. João Romão subia e ella ficava cá em baixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem. Começou a cahir em tristeza. O velho Botelho chegava-se tambem para o vendeiro, e ainda mais do que o proprio Miranda. O parasita não sabia agora depois do almoço para a sua prosa na charutaria, nem voltava á tarde para o jantar, sem deter-se um instante á porta do visinho ou, pelo menos, sem lhe gritar lá para dentro: «Então, seu João, isso vai ou não vai?...» E tinha sempre uma phraze amigavel para lhe atirar cá de fóra. Em geral o taverneiro acudia a apertar-lhe a mão, de cara alegre, e propunha-lhe que bebesse alguma coisa. Sim, João Romão já convidava para beber alguma coisa. Mas não era á tôa que o fazia, que aquelle mesmo não mettia prego sem estopa! Tanto assim que uma vez, em que os dois sahiram á tardinha para dar um giro até á praia, Botelho, depois de fallar com o costumado enthusiasmo do seu bello amigo Barão e da virtuosissima familia d'este, accrescentou com o olhar fito: --Aquella pequena é que lhe estava a calhar, seu João!... --Como? Que pequena? --Ora morda aqui! Pensa que já não dei pelo namoro?... Maganão! O vendeiro quiz negar, mas o outro atalhou: --É um bom partido, é! Excellente menina ... tem um genio de pomba ... uma educação de princeza: até o francez sabe! Toca piano como você tem ouvido ... canta o seu bocado ... aprendeu desenho ... muito boa mão de agulha!... e... Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor:--Ali, tudo aquillo é solido!... Predios e acções do banco!... --Você tem certeza d'isso? Já vio? Já! Palavra d'honra! Calaram-se um instante. Botelho continuou depois: --O Miranda é bom homem, coitado! tem lá as suas fumaças de grandeza, mas não o podemos criminar ... são coisas pegadas da mulher; no emtanto acho-o com boas disposições a seu respeito ... e, se você souber leval-o, apanha-lhe a filha... --Ella talvez não queira... --Qual o que! Pois uma menina d'aquellas, criada a obedecer aos pais, sabe lá o que é não querer? Tenha você uma pessoa, de intimidade com a familia, que de dentro empurre o negocio e verá se consegue ou não! Eu, por exemplo! --Ah! se você se mettesse n'isso, que duvida! Dizem que o Miranda só faz o que você quer... --Dizem com razão. --E você está resolvido a...? --A protegel-o?... Sim, de certo: n'este mundo estamos nós para servir uns aos outros!... apenas, como não sou rico... --Ah! Isso é dos livros! Arranje-me você o negocio e não se arrependerá... --Conforme, conforme... --Creio que não me suppõe um velhaco!... --Por amor de Deus! Sou incapaz de semelhante sacrilegio! --Então!... --Sim, sim ... em todo o caso fallaremos depois, com mais vagar... Não é sangria desatada! E desde então, com effeito, sempre que os dois se pilhavam a sós discutiam o seu plano de ataque á filha do Miranda. Botelho queria vinte contos de réis, e com papel passado a praso de casamento; o outro offerecia dez. --Bom! então não temos nada feito ... resumio o velho. Trate você do negocio só por si; mas já lhe vou prevenindo de que não conte comigo absolutamente... Comprehende? --Quer dizer que me fará guerra... --Valha-nos Deus, creatura! não faço guerra a ninguem! guerra está você a fazer-me, que não me quer deixar comer uma migalha da bella fatia que lhe vou metter no papo!... O Miranda hoje tem para mais de mil contos de réis! Agora, fique sabendo que a coisa não é assim tambem tão facil, como lhe parece talvez... --Paciencia! --O Barão ha de sonhar com um genro de certa ordem!... Ahi algum deputado ... algum homem que faça figura na politica aqui da terra! --Não! melhor seria um principe!... --E mesmo a pequena tem um doutorzinho de boa familia, que lhe ronda muito a porta... E ella, ao que parece, não lhe faz má cara... --Ah! n'esse caso é deixal-os lá arranjar a vida! --É melhor, é! Creio até que com elle será mais facil qualquer transacção... --Então não fallemos mais n'isto! Está acabado! --Pois não fallemos! Mas no dia seguinte voltaram á questão: --Homem! disse o vendeiro; para decidir, dou-lhe quinze! --Vinte! --Vinte, não! --Por menos não me serve! --E eu vinte não dou! --Nem ninguem o obriga... Adeuzinho! --Até mais ver. Quando se encontraram de novo, João Romão rio-se para o outro, sem dizer palavra. O Botelho, em resposta, fez um gesto de quem não quer intrometter-se com o que não é da sua conta. --Você é o diabo!... faceteou aquelle, dando-lhe no hombro uma palmada amigavel, Então não ha meio de chegarmos a um accordo?... --Vinte! --E, caso esteja eu pelos vinte, posso contar que...? --Caso o meu nobre amigo se decida pelos vinte, receberá do Barão um chamado para lá ir jantar ao primeiro domingo; acceita o convite, vae, e encontrará o terreno preparado. --Pois seja lá como você quer! mais vale um gosto do que quatro vintens! O Botelho não faltou ao promettido: dias depois do contracto sellado e assignado, João Romão recebeu uma carta do visinho, solicitando-lhe a fineza de ir jantar com elle mais a familia. Ah! que revolução não se ferio no espirito do vendeiro! passou dias a estudar aquella visita; ensaiou o que tinha que dizer, conversando sósinho defronte do espelho do seu lavatorio; afinal, no dia marcado, banhou-se em varias agoas, areiou os dentes até fazel-os bem limpos, perfumou-se todo dos pés á cabeça, escanhoou-se com esmero, aparou e burnio as unhas, vestio-se de roupa nova em folha, e ás quatro e meia da tarde apresentou-se, risonho e cheio de timidez, no espelhado e pretencioso salão de S. Ex.ª. Aos primeiros passos que déra sobre o tapete, onde seus grandes pés, affeitos por toda vida á independencia do chinello e do tamanco, se destacavam como um par de tartarugas, sentio logo o suor dos grandes apuros innundar-lhe o corpo e correr-lhe em bagada pela fronte e pelo pescoço, nem que se o desgraçado acabasse de vencer n'aquelle instante uma legoa de carreira ao sol. As suas mãos, vermelhas e redondas, gottejavam, e elle não sabia o que fazer d'ellas, depois que o Barão, muito solicito, lhe tomou o chapéo e o guarda-chuva. Arrependia-se já de ter lá ido. --Fique a gosto, homem! bradou-lhe o dono da casa. Se tem calor venha antes aqui para a janella. Não faça cerimonia! Ó Leonor! trago vermouth! Ou o amigo prefere tomar um copinho de cerveja? João Romão acceitava tudo, com sorrisos de acanhamento, sem animo de arriscar palavra. A cerveja fel-o suar ainda mais e, quando appareceram na sala Dona Estella e a filha, o pobre diabo chegava a causar dó de tão atrapalhado que se via. Por duas vezes escorregou, e n'uma d'ellas foi apoiar-se a uma cadeira que tinha rodizios; a cadeira afastou-se e elle quasi vai ao chão. Zulmira rio-se, mas disfarçou logo a sua hilaridade pondo-se a conversar com a mãe em voz baixa. Agora, refeita nos seus desesete annos, não parecia tão anemica e deslavada; vieram-lhe os seios e engrossára-lhe o quadril. Estava melhor assim. Dona Estella, coitada! é que se precipitava, a passos de granadeiro, para a velhice, a despeito da resistencia com que se rendia; tinha já dois dentes postiços, pintava o cabello, e dos cantos da bocca duas rugas serpenteavam-lhe pelo queixo abaixo, desfazendo-lhe a primitiva graça maliciosa dos labios; ainda assim, porém, conservava o pescoço branco, liso e grosso, e os seus braços não desmereciam dos antigos creditos. Á meza, a visita comeu tão pouco e tão pouco bebeu, que os donos da casa a censuraram jovialmente, fingindo acceitar o facto como prova segura de que o jantar não prestava; o obsequiado pedia por amor de Deus que não acreditassem em tal e jurava sob palavra de honra que se sentia satisfeito e que nunca outra comida lhe soubéra tão bem. Botelho lá estava, ao lado de um velhote fazendeiro, que por essa occasião hospedava-se com o Miranda. Henrique, approvado no seu primeiro anno de medicina, fôra visitar a familia em Minas. Isaura e Leonor serviam aos commensaes, rindo ambas á socapa por verem ali o João da venda engravatado e com piegas de visita. Depois do jantar appareceu uma familia conhecida, trazendo um rancho de moças; vieram tambem alguns rapazes; formaram-se jogos de prendas, e João Romão, pela primeira vez em sua vida, vio-se mettido em taes funduras. Não se sahio mal todavia. O chá das dez e meia correu sem novidade; e, quando emfim o neophyto se pilhou na rua, respirou com independencia, remexendo o pescoço dentro do collarinho engommado e soprando com allivio. Uma alegria de Victoria transbordava-lhe do coração e fazia-o feliz n'esse momento. Bebeu o ar fresco da noite com uma volupia nova para elle e, muito satisfeito comsigo mesmo, entrou em casa e recolheu-se, rejubilando com a idéa de que ia descalçar aquellas botas, desfazer-se de toda aquella roupa e atirar-se á cama, para pensar mais á vontade no seu futuro, cujos horizontes se rasgavam agora illuminados de esperança. Mas a bolha do seu desvanecimento engelhou logo á vista de Bertoleza que, estendida na cama, roncava, de papo para o ar, com a boca aberta, a camisa soerguida sobre o ventre, deixando ver o negrume das pernas gordas e lustrosas. E tinha de estirar-se ali, ao lado d'aquella preta fedorenta a cozinha e bodum de peixe! Pois, tão cheiroso e radiante como se sentia, havia de pôr a cabeça n'aquelle mesmo travesseiro sujo em que se enterrava a hedionda carapinha da crioula?... --Ai! ai! gemeu o vendeiro, resignando-se. E despio-se. Uma vez deitado, sem animo de afastar-se da beira da cama, para não se encostar com a amiga, surgio-lhe nitida ao espirito a comprehensão do estorvo que o diabo d'aquella negra seria para o seu casamento. E elle que até ahi não pensara n'isso!... Ora o demo! Não poude dormir; pôz-se a malucar: Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa déra á Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentio gravida! Mas, afinal, de que modo se veria livre d'aquelle trambolho? E não se ter lembrado d'isso ha mais tempo!... parecia incrivel! João Romão, com effeito, tão ligado vivêra com a crioula e tanto se habituara a vel-a ao seu lado, que nos seus devaneios de ambição, pensou em tudo, menos n'ella. E agora? E malucou no caso até ás duas da madrugada, sem achar furo. Só no dia seguinte, ao contemplal-a de cocaras á porta da venda, abrindo e destripando peixe, foi que, por associação de idéas, lhe acudio esta hypothese: --E se ella morresse?... XIV Iam-se assim os dias, e assim mais de tres mezes se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a bahiana na rua de São João Baptista, mas a mulata, já não era a mesma para elle; apresentava-se fria, distrahida, ás vezes impertinente, puxando questão por dá cá aquella palha. --Hun! hun! temos mouro na costa! rosnava o capadocio com ciumes. Ora queira Deus que eu me engane! Nas entrevistas apresentava-se ella agora sempre um pouco depois da hora marcada, e a sua primeira phrase era para dizer que tinha pressa e não podia demorar-se. --Estou muita apertada de serviço! accrescentava á replica do amante. Uma roupa de uma familia que embarca amanhã para o norte! Tem de ficar prompta esta noite! Já hontem fiz serão! --Agora estás sempre apertada de serviço!... resmungava o Firmo. --É que é preciso puxar por elle, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver do que como e com que pago a casa! Não ha de ser com o que levo daqui! --Ora essa! Tens coragem de dizer que não te dou nada? E quem foi que te deu esse vestido que tens no corpo?! --Não disse que nunca me désse nada, mas com o que você me dá não pago a casa e não ponho a panella no fogo! Tambem não lhe estou pedindo coisa alguma! Oh! Azedavam-se d'este modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas que os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo e Rita não appareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janellas, com um cheiro máo de bafio e humidade. Elle havia levado um embrulho de peixe frito, pão e vinho, para almoçarem juntos. Deu meio dia e Firmo esperou ainda, passeiando na estreiteza da miseravel alcova, como uma onça enjaulada, rosnando pragas obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados. «Se aquella safada lhe apparecesse n'aquelle momento, elle seria capaz de torcel-a nas mãos!» Á vista do embrulho da comida estoirou-lhe a raiva. Deu um pontapé n'uma bacia de louça que havia no chão, perto da cama, e soltou um murro na cabeça. --Diabo! Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte, sacudindo as pernas crusadas, e afinal sahio, atirando para dentro do quarto uma palavra porca. Pela rua, durante o caminho, jurava que «aquella caro pagaria a mulata!» Um sofrejo desejo de castigal-a, no mesmo instante, o attrahia ao cortiço de São Romão, mas não se sentio com animo de lá ir, e contentou-se em rondar a estalagem. Não conseguio vel-a; resolveu esperar até á noite para lhe mandar um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquelle domingo sem pagode. Ás duas horas da tarde entrou no botequim do Garnizé, uma espelunca, perto da praia, onde elle costumava beber de sucia com o Porfiro. O amigo não estava lá. Firmo atirou-se n'uma cadeira, pedio um martello de paraty e accendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no Cabeça de Gato, veio assentar-se na mesma meza e, sem rodeios, deu-lhe a noticia de que na vespera o Jeronymo tivera baixa no hospital. Firmo acordou com um sobresalto. --O Jeronymo?! --Apresentou-se hoje pela manhã na estalagem. --Como soubeste? --Disse-me o Pataca. --Ora ahi está o que é! exclamou o capoeira, soltando um murro na meza. --Que é o que? interrogou o outro. --Nada! É cá comigo. Toma alguma coisa? Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa: --É! não ha duvida! Por isto é que a perua ultimamente me anda de vento mudado!... E um ciume doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e cresceu logo como a sede de um ferido. «Oh! precisava vingar-se d'ella! d'ella e d'elle! O amaldiçoado resistio á primeira, mas não lhe escaparia da segunda!» --Veja mais um martello de paraty! gritou para o portuguezinho da espelunca. E acrescentou, batendo com toda a força o seu petropolis no chão:--E não passa de hoje mesmo! Com o chapéo á ré, a gaforina mais assanhada que de costume, os olhos vermelhos, a boca espumando pelos cantos, todo elle respirava uma febre de vingança e de odio. --Olha! disse ao companheiro de meza. D'isto, nem pio lá com os carapicús! Se abrires o bico dou-te cabo da pelle! Já me conheces! --Tenho nada que fallar! Pr'a que? --Bom! E ficaram ainda a beber. Jeronymo, com effeito, tivera alta e tornára aquelle domingo ao cortiço, pela primeira vez depois da doença. Vinha magro, pallido, desfigurado, apoiando-se a um pedaço de bambú. Crescêra-lhe a barba e o cabello, que elle não queria cortar sem ter cumprido certo juramento feito aos seus brios. A mulher fôra buscal-o ao hospital e caminhava ao seu lado, igualmente abatida com a molestia do marido e com as causas que a determinaram. Os companheiros receberam-no compungidos, tomados de uma tristeza respeitosa; um silencio fez-se em torno do convalescente; ninguem fallava senão a meia voz; a Rita Bahiana tinha os olhos arrazados d'agoa. Piedade levou o seu homem para o quarto. --Queres tomar um caldinho? perguntou-lhe. Creio que ainda não estás de todo prompto... --Estou! contrapôz elle. Diz o doutor que preciso é de andar, para ir chamando força ás pernas. Tambem estive tanto tempo preso á cama! Só de uma semana p'ra cá é que encostei os pés no chão! Deu alguns passos na sua pequena sala e disse depois, tornando junto da mulher:--O que me saberia bem agora era uma chicrinha de café, mas queria-o bom como o faz a Rita... Olha! pede-lhe que o arranje. Piedade soltou um suspiro e sahio vagarosamente, para ir pedir o obsequio á mulata. Aquella preferencia pelo café da outra doía-lhe duro que nem uma infidelidade. --Lá o meu homem quer do seu café e torce o nariz ao de casa... Manda pedir-lhe que lhe faça uma chicara. Pode ser? perguntou a portugueza á bahiana. --Não custa nada! respondeu esta. Com poucas está lá! Mas não foi preciso que o levasse, porque d'ahi a um instante, Jeronymo, com o seu ar tranquillo e passivo de quem ainda se não refez de todo depois de uma longa molestia, surgio-lhe á porta. --Não vale a pena estorvar-se em lá ir... Se me dá licença, bebo o cafézinho aqui mesmo... --Entra, seu Jeronymo. --Aqui elle sabe melhor... --Você pega já com partes! Olha, sua mulher, anda de pé atraz comigo! E eu não quero historias!... Jeronymo sacudio os hombros com desdem. --Coitada!... resmungou depois. Muito boa creatura, mas... --Cala a boca, diabo! Toma o café e deixa de maldizencia! E mesmo vicio de Portugal: comendo e dizendo mal! O portuguez sorveu com delicia um gole de café. --Não digo mal, mas confesso que não encontro n'ella umas tantas coisas que desejava... E chupou os bigodes. --Vocês são tudo a mesma sucia! Bem tola é quem vai atraz de labia de homem! Eu cá não quero mais saber d'isso... Ao outro despachei já! O cavouqueiro teve um tremor de todo o corpo. --Outro quem? O Firmo? Rita arrependeu-se do que disséra, e gaguejou: --É um coisa ruim! Não quero saber mais d'elle!... Um traste! --Elle ainda vem cá? perguntou o cavouqueiro. --Aqui? Qual! N'essa não cáe! E se vier não lhe abro a porta! Ah! quando embirro com uma pessoa é que embirro mesmo! --Isso é verdade, Rita? --Que? Que não quero saber mais d'elle? Esta que aqui está nunca mais fará vida com semelhante cábula! Juro por esta luz! --Elle fez-lhe alguma? --Não sei! não quero! acabou-se! --E que então você tem outro agora... --Que esperança! Não tenho, nem quero mais ter homem! --Porque, Rita? --Ora! não paga a pena! --E ... se você encontrasse um ... que a quizesse devéras ... para sempre?... --Não é com essas!... --Pois sei de um que a quer como Deus aos seus!... --Pois diga-lhe que outro officio! Ella se chegou para recolhera chicara, e elle apalpou-lhe a cintura. --Olha! Escuta! Rita fugio com uma rabanada, e disse rapido, muito a serio: --Deixa d'isso. Póde tua mulher ver! --Vem cá! --Logo. --Quando? --Logo mais. --Onde? --Não sei. --Preciso muito te fallar... --Pois sim, mas aqui fica feio. --Onde nos encontramos então? --Sei cá! E, vendo que Piedade entrava, ella disfarçou, dizendo sem transição: --Os banhos frios é que são bons para isso! Põem duro o corpo! A outra, embesourada, atravessou em silencio a pequena sala, foi ter com o marido e communicou-lhe que o Zé Carlos queria fallar-lhe, junto com o Pataca. --Ali! fez Jeronymo. Já sei o que é. Até logo, nhá Rita. Obrigado. Quando quizer qualquer coisa de nós, lá estamos. Ao sahir no pateo aquelles dois vieram ao seu encontro. O cavouqueiro levou-os para a casa, onde a mulher havia posto já a meza do almoço, e com um signal prevenio-os de que não fallassem por emquanto sobre o assumpto que os trouxera ali. Jeronymo comeu ás pressas e convidou as visitas a darem um giro lá fóra. Na rua, perguntou-lhes em tom mysterioso: --Onde poderemos fallar á vontade? O Pataca lembrou a venda do Manoel Pépé, defronte do cemiterio. --Bem achado! confirmou Zé Carlos. Ha lá bons fundos para se conversar. E os tres puzeram-se a caminho, sem trocar mais palavra até á esquina. --Então está de pé o que dissemos?... indagou afinal aquelle ultimo. --De pedra e cal! respondeu o cavouqueiro. --E o que é que se faz? --Ainda não sei... Preciso antes de tudo saber onde o cabra é encontrado á noite. --No Garnizé, affirmou o Pataca. --Garnizé? --Aquelle botequim ali ao entrar da rua da Passagem, onde está um gallo á taboleta. --Ah! Defronte da pharmacia nova... --Justo! Elle vai lá agora todas as noites, e lá esteve hontem, que o vi, por signal que n'um gole... Muito bebedo, hein? --Como uma gambá! Aquillo foi alguma, que a Rita Bahiana lhe pregou de fresco! Tinham chegado á venda. Entraram pelos fundos e assentaram-se sobre caixas de sabão vazias, em volta de uma meza de pinho. Pediram paraty com assucar. --Onde é que elles se encontravam?... informou-se Jeronymo, affectando que fazia esta pergunta sem interesse especial. Lá mesmo no São Romão?... --Quem? A Rita mais elle? Ora o que! Pois se elle agora é todo Cabeça de Gato!... --Ella ia lá? --Duvido! Então logo aquella! Aquella é carapicú até o sabugo das unhas! --Nem sei como ainda não romperam! interveio Zé Carlos, que continuou a fallar a respeito da mulata; emquanto Jeronymo o escutava abstracto, sem tirar os olhos de um ponto. O Pataca, como se acompanhasse o pensamento do cavouqueiro, disse-lhe emborcando o resto do copo: --Talvez o melhor fosse liquidar a coisa hoje mesmo!.. --Ainda estou muito fraco ... observou lastimoso o convalescente. --Mas o teu páo está forte! E alem disso cá estamos nós dois. Tu podes até ficar em casa, se quizeres... --Isso é que não! atalhou aquelle. Não dou o meu quinhão pelos dentes da boca! --Eu cá tambem vou que o melhor seria pespegar-lhe hoje mesmo a sova ... declarou o outro. Pão de um dia pr'a outro fica duro! --E eu estou-lhe com uma gana!... accrescentou o Pataca. --Pois seja hoje mesmo! resolveu Jeronymo. E o dinheiro lá está em casa, quarenta pr'a cada um! Em seguida á méla corre logo o cobre! E ao depois vai a gente tomar uma fartadela de vinho fino! --A que horas nos juntamos? perguntou Zé Carlos. --Logo ao cahir da noite, aqui mesmo. Está dito? --E será feito, se Deus quizer! O Pataca accendeu o cachimbo, e os tres puzeram-se a cavaquear animadamente sobre o effeito que aquella sova havia de produzir; a cara que o cabra faria entre tres bons cacetes. «Então é que queriam ver até onde ia a imposturia da navalha! Diabo de um colhordas que, por um--vai tu, irei eu--arrancava logo pelo ferro!...» Dois trabalhadores, em camisa de meia, entraram na tasca e o grupo calou-se. Jeronymo fogueou um cigarro no cachimbo do Pataca e despedio-se, relembrando aos companheiros a hora da entrevista e atirando sobre a meza um nikel de duzentos reis. Foi direito para o cortiço. --Fazes mal em andar por ahi com este sol!... reprehendeu Piedade, ao vel-o entrar. --Pois se o doutor me disse que andasse quanto pudesse... Mas recolheu-se á casa, estirou-se na cama e ferrou logo no somno. A mulher, que o acompanhara até lá, assim que o vio dormindo, enxotou as moscas de junto d'elle, cobrio-lhe a cara com uma cambraia que servia para os taboleiros de roupa engommada, e sahio na ponta dos pés, deixando a porta encostada. Jantara d'ahi a duas horas, Jeronymo comeu com appetite, bebeu uma garrafa de vinho, e a tarde passaram-na os dois de palestra, assentados á frente de casa, formando grupo com a Rita e a gente da Machona. Em torno d'elles a liberdade feliz do domingo punha alegrias naquella tarde. Mulheres amamentavam o filhinho ali mesmo, ao ar livre, mostrando a uberdade das tetas cheias. Havia muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos travessavam, tão depressa rindo como chorando; os italianos faziam a ruidosa digestão dos seus jantares de festa; ouviam-se cantigas e pragas entre gargalhadas. A Augusta, que estava gravida de sete mezes, passeava solemnemente o seu bandulho, levando um outro filho ao collo. O Albino, installado defronte de uma mezinha em frente á sua porta, fazia, á força de paciencia, um quadro, composto de figurinhas de caixa de phosphoros, recortadas a tesoura e grudadas em papelão com gomma arabica. E lá em cima, numa das janellas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara, uma gravata á moda, já familiarisado com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que, ao lado d'elle, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de pão para as gallinhas do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava para baixo olhares de desprezo sobre aquella gentalha sensual, que o enriquecêra, e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e procrear. Ao cahir da noite, Jeronymo foi, como ficára combinado, á venda do Pépé. Os outros dois já lá estavam. Infelizmente havia mais alguem na tasca. Tomaram juntos, pelo mesmo copo, um martello de paraty e conversaram em voz surda n'uma conspiração sombria em que as suas barbas roçavam umas com as outras. --Os páos onde estão?... perguntou o cavouqueiro. --Ali, junto ás pipas ... segredou o Pataca, apontando com disfarce para uma esteira velha enrolada. Preparei-os ainda ha pouco... Não os quiz muito grandes... D'este tamanho. E abrio a mão contra a terra no logar do peito.--Estiveram de molho até agora ... acrescentou, piscando o olho. --Bom! approvou Jeronymo, esgotando o copo com um ultimo gole. Agora onde vamos nós? Parece-me ainda cedo para o Garnizé. --Ainda! confirmou o Pataca. Deixemo-nos ficar por aqui mais um pouco e ao depois então seguiremos. Eu entro no botequim e vocês me esperam fóra no logar que marcarmos... Se o cabra não estiver lá, volto logo a dizer-lhes, e, caso esteja, fico ... chego-me para elle, procuro entrar em conversa, puxo discussão e afinal desafio-o pr'a rua; elle cáe na esparrella, e então vocês dois surgem e mettem-se na dansa, como quem não quer a coisa! Que acham? --Perfeito! applaudio Jeronymo, e gritou para dentro.--Olha mais um martello de paraty! Em seguida enterrou a mão no bolso da calça e saccou um rôlo grosso de notas. --Podem enxugar á vontade! disse. Aqui ainda ha muito com que! E, ordenando as notas, separou oitenta mil reis, em cedulas de vinte. --Isto é o do ajuste! Este é sagrado! acrescentou, guardando-as na algibeira do lado esquerdo. Depois separou ainda vinte mil reis, que atirou sobre a meza. --Esse ahi é para festejarmos a nossa victoria! E fazendo do resto do seu dinheiro um bolo, que elle, um pouco ebrio, apertava nos dedos, agora claros e quasi descalejados, socou-o na algibeira do lado direito, explicando entre dentes que ali ficava ainda bastante para o que désse e viesse, no caso de algum contratempo. --Bravo! exclamou Zé Carlos. Isto é o que se chama fazer as coisas á fidalga! Haja contar comigo pr'a vida e pr'a morte! O Pataca entendia que podiam tomar agora um pouco de cerveja. --Cá por mim não quero, mas bebam-na vocês, acudio Jeronymo. --Preferia um trago de vinho branco, contraveio o terceiro. --Tudo o que quizerem! franqueou aquelle. Eu tomo tambem um pouco de vinho. Não! que o que estamos a beber não é dinheiro de navalhistas, foi ganho ao sol e á chuva com o suor do meu rosto! E entornar pr'a baixo sem caretas, que este não pesa na consciencia de ninguem! --Então, á sua! brindou Zé Carlos, logo que veio o novo reforço. Pr'a que não torne você a dar que fazer á má casta dos boticarios! --Á sua, mestre Jeronymo! concorreu o outro. Jeronymo agradeceu e disse, depois de mandar encher os copos: --Aos amigos e patricios com quem me achei para o meu desforço! E bebeu. --Á da Sóra Piedade de Jesus! reclamou o Pataca. --Obrigado! respondeu o cavouqueiro, erguendo-se. Bem! Não nos deixemos agora ficar aqui toda a noite; mãos á obra! São quasi oito horas. Os outros dois esvaziaram de um trago o que ainda havia no fundo dos copos e levantaram-se tambem. --É muito cedo ainda ... obtemperou Zé Carlos, cuspindo de esguelha e limpando o bigode nas costas da mão. --Mas talvez tenhamos alguma demora pelo caminho, advertio o companheiro, indo buscar junto ás pipas o embrulho dos cacetes. --Em todo o caso vamos seguindo, resolveu. Jeronymo, impaciente, nem se temesse que a noite lhe fugisse de subito. Pagou a despeza, e os tres sahiram, não cambaleando, mas como que empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para frente alguns passos mais rapidos. Seguiram pela rua de Sorocaba e tomaram depois a direcção da praia, conversando em voz baixa, muito excitados. Só pararam perto do Garnizé. --Vais tu então, não é? perguntou o cavouqueiro ao Pataca. Este respondeu entregando-lhe o embrulho dos páos e afastando-se de mãos nas algibeiras, a olhar para os pés, fingindo-se mais bebado do que realmente estava. XV O Garnizé tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mezinhas toscas, de páo, com uma coberta de folha de Flandres pintada de branco fingindo marmore, viam-se grupos de tres e quatro homens, quasi todos em mangas de camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra. Fazia-se largo consumo de cerveja nacional, vinho virgem, paraty e laranginha. No chão coberto de areia havia cascas de queijo de Minas, restos de iscas de figado, espinhas de peixe, dando idéa de que ali não só se enxugava como tambem se comia. Com effeito, mais para dentro, n'um engordurado bufete, junto ao balcão e entre as prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas, estava um travessão de assado com batatas, um osso de presunto e varios pratos de sardinhas fritas. Dois candieiros de kerozene fumegavam, encarvoando o tecto. E de uma porta ao fundo, que escondia o interior da casa com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada de vozes roucas, que parecia morrer em caminho, vencida por aquella densa atmosphera cor de opala. O Pataca estacou á entrada, affectando grande bebedeira e procurando com disfarce, em todos os grupos, ver se descobria o Firmo. Não o conseguio; mas alguem, em certa meza, lhe chamára a attenção, porque elle se dirigio para lá. Era uma mulatinha magra, mal vestida, acompanhada por uma velha quasi cega e mais um homem, inteiramente calvo, que soffria de asthma e, de quando em quando, abalava a meza com um frouxo de tosse, fazendo dansar os copos. O Pataca bateu no hombro da rapariga. --Como vais tu, Florinda? Ella olhou para elle, rindo; disse que ia bem, e perguntou-lhe como passava. --Róla-se, filha. Tu que fim levaste? Ha um par de quinze dias que te não vejo! --É mesmo. Desde que estou com seu Bento não tenho sahido quasi. --Ah! disse o Pataca, estas amigada? Bom!... --Sempre estive! E ella então, muito expansiva com a sua folga d'aquelle domingo e com o seu bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugio da estalagem, ficou na rua e dormio n'umas obras de uma casa em construcção na travessa da Passagem, e que no seguinte, offerecendo-se de porta em porta, para alugar-se de criada ou de ama secca, encontrou um velho solteiro e agebado que a tomou ao seu serviço e metteu-se com ella. --Bom! muito bom! annuio Pataca. Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro até, trazia-a sempre limpa e de barriga cheia; sim senhor! mas queria que ella se prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a chamal-a para casa, um bello dia arribou, levando o que apanhára ao velho. --Estás então agora com o da venda? Não! O tratante, a pretexto de que desconfiava d'ella com o Bento marceneiro, pôl-a na rua, chamando a si o que a pobre de Christo trouxéra da casa do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se mettêra com semelhante peste. O Bento tomára-a então á sua conta, e ella, graças a Deus, por em quanto não tinha razões de queixa. O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura alguem, e Florinda, suppondo que se tratava do seu homem, accrescentou: --Não está cá, está lá dentro. Elle, quando joga, não gosta que eu fique perto; diz que encabula. --E tua mãe? --Coitada! foi pr'o hospicio... E passou logo a fallar a respeito da velha Marcianna; o Pataca, porém, já lhe não prestava attenção, porque n'esse momento acabava de abrir-se a cortina vermelha, e Firmo surgia muito ebrio, a dar bordos, contando, sem conseguir, uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que elle afinal entrouxou n'um bolo e recolheu na algibeira das calças. --Ó Porfiro! não vens? gritou lá para dentro, arrastando a voz. E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na sala. O Pataca deu á Florinda um «até logo» rapido e, fingindo-se de novo muito bebado, encaminhou-se na direcção em que vinha o mulato. Esbarraram-se. --Oh! Oh! exclamou o Pataca. Desculpe! Firmo levantou a cabeça e encarou-o com arrogancia; mas desfranzio o rosto logo que o reconheceu. --Ah! és tu, seu gallego? Como vai isso? A ladroeira corre? --Ladroeira tinha a avó na cuia! Anda a tomar alguma coisa. Queres? --Que ha de ser? --Cerveja. Vai? --Vá lá. Chegaram-se para o balcão. --Uma Guarda velha, ó pequeno! gritou o Pataca. Firmo puxou logo dinheiro para pagar. --Deixa! disse o outro. A lembrança foi minha! Mas, como o Firmo insistisse, consentio-lhe que fizesse a despeza. E os nikeis do troco rolaram no chão, fugindo por entre os dedos do mulato, que os tinha duros na tensão muscular da sua embriaguez. --Que horas são? perguntou Pataca, olhando quasi de olhos fechados o relogio da parede. Oito e meia. Vamos a outra garrafa, mas agora pago eu! Beberam de novo, e o coadjutor de Jeronymo, observou depois: Você hoje ferrou-a devéras! Estás que te não podes lamber! --Desgostos ... resmungou o capoeira, sem conseguir lançar da bocca a saliva que se lhe grudava á lingua. --Limpa o queixo que estás cuspido. Desgostos de que? Negocio de mulher, aposto! --A Rita não me appareceu hoje, sabes? Não foi, e eu bem calculo porque! --Porque? --Porque a peste do Jeronymo voltou hoje á estalagem! --Ah! Não sabia!... A Rita está então com elle?... --Não está, nem nunca ha de estar, que eu d'aqui mesmo vou á procura d'aquelle gallego ordinario e ferro-lhe a sardinha no pandulho! --Vieste armado? Firmo saccou da camisa uma navalha. --Esconde! não deves mostrar isso aqui! Aquella gente ali da outra meza já não nos tira os olhos de cima! --Estou me ninando pr'a elles! E que não olhem muito, que lhes dou uma de amostra! --Entrou um urbano! Passa-me a navalha! O capadocio fitou o companheiro, estranhando o pedido. --E que, explicou aquelle, se te prenderem não te encontram ferro... --Prender a quem? a mim? Ora, vai-te calar! --E ella é boa? Deixa ver! --Isto não é coisa que se deixe ver! --Bem sabes que não me entendo com armas de barbeiro! --Não sei! Esta é que não me sae das unhas, nem para meu pai, que a pedisse! --É porque não tens confiança em mim! --Confio nos meus dentes, e esses mesmos me mordem a lingoa! --Sabes quem vi ainda ha pouco? Não és capaz de adivinhar!... --Quem? --A Rita. --Onde? --Ali na praia da Saudade. --Com quem? --Com um typo que não conheço... Firmo levantou-se de improviso e cambaleou para o lado da sahida. --Espera! rosnou o outro, detendo-o. Se queres vou comtigo; mas é preciso ir com geito, porque, se ella nos bispa, foge! O mulato não fez caso d'esta observação e sabio a esbarrar-se por todas as mezas. Pataca alcançou-o já na rua e passou-lhe o braço na cintura, amigavelmente. --Vamos de vagar... disse; senão o passaro se arisca! A praia estava deserta. Cahia um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar. O ceu era um fundo negro, de uma só tinta; do lado opposto da bahia os lampeões pareciam surgir d'agoa, como algas de fogo, mergulhando bem fundo as suas tremulas raizes luminosas. --Onde está ella? perguntou o Firmo, sem se aguentar nas pernas. --Ali mais adiante, perto da pedreira. Caminha, que has de ver! E continuaram a andar para as bandas do hospicio. Mas dois vultos surdiram da treva; o Pataca reconheceu-os e abraçou-se de improviso ao mulato. --Segurem-lhe as pernas! gritou para os outros. Os dois vultos, pondo o cacete entre os dentes, apoderaram-se de Firmo, que bracejava seguro pelo tronco. Deixára-se agarrar--estava perdido. Quando Pataca o vio preso pelos sovacos e pela dobra dos joelhos, sacou-lhe fóra a navalha. --Prompto! Está desarmado! E tomou tambem o seu páo. Soltaram-no então. O capoeira, mal tocou com os pés em terra, desferio um golpe com a cabeça, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova páulada cantou-lhe nos hombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta quebrou-lhe a clavicula, emquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rapidas, batiam de novo nos pontos já espancados, até que se converteram n'uma carga continua de porretadas, a que o infeliz não resistio, rolando no chão, a gottejar sangue de todo o corpo. A chuva engrossava. Elle agora, assim, debaixo d'aquelle bate-bate sem tregoas, parecia muito menor, mingoava como se estivesse ao fogo. Lembrava um rato morrendo a páo. Um ligeiro tremor convulsivo era apenas o que ainda lhe denunciava um resto de vida. Os outros tres não diziam palavra, arfavam, a bater sempre, tomados de uma irresistivel vertigem de pizar bem a cacete aquella trouxa de carne molle e ensanguentada, que grunhia frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo já não tinham forças para bater ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao mar. Depois, arquejantes, deitaram a fugir, á tôa, para os lados da cidade. Chovia agora muito forte. Só pararam no Cattete, ao pé de um kiosque; estavam encharcados; pediram paraty e beberam como quem bebe agoa. Passava já de onze horas. Desceram pela praia da Lapa; ao chegarem debaixo de um lampeão, Jeronymo parou, suando apezar do agoaceiro que cahia. --Aqui têm vocês, disse, tirando do bolso as quatro notas de vinte mil reis. Duas para cada um! E agora vamos tomar qualquer coisa quente em logar secco. --Ali ha um botequim, indicou o Pataca, apontando a rua da Gloria. Subiram por uma das escadinhas que ligam essa rua á praia, e d'ahi a pouco installavam-se em volta de uma meza de ferro. Pediram de comer e de beber e puzeram-se a conversar em voz soturna, muito cansados. A uma hora da madrugada o dono do café pôl-os fóra. Felizmente chovia menos. Os tres tomaram de novo a direcção de Botafogo; em caminho Jeronymo perguntou ao Pataca se ainda tinha comsigo a navalha do Firmo e pedio-lh'a, ao que o companheiro cedeu sem objecção. --É para conservar uma lembrança d'aquelle bisborria! explicou o cavouqueiro, guardando a arma. Separaram-se defronte da estalagem. Jeronymo entrou sem ruido; foi até á casa, espiou pelo buraco da fechadura; havia luz no quarto de dormir; comprehendeu que a mulher estava á sua espera, acordada talvez; pensou sentir, vindo lá de dentro, o bodum azedo que ella punha de si, fez uma careta de nojo e encaminhou-se resolutamente para a casa da mulata, em cuja porta bateu devagarinho. Rita, essa noite, recolhêra-se afflicta e assustada. Deixára de ir ter com o amante e mais tarde admirava-se como fizera semelhante imprudencia; como tivera coragem de pôr em pratica, justamente no momento mais perigoso, uma coisa que ella, até ahi, não se sentira com animo de praticar. No intimo respeitava o capoeira; tinha-lhe medo. Amára-o a principio por affinidade de temperamento, pela irresistivel connexão do instincto luxurioso e canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar com elle por habito, por uma especie de vicio que amaldiçoamos sem poder largal-o; mas desde que Jeronymo propendeu para ella, fascinando-a com a sua tranquilla seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferio no europeu o macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo ás imposições mesologicas, enfarava a esposa, sua congenere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volupia, era o fructo doirado e acre d'estes sertões americanos, onde a alma de Jeronymo aprendeu lascivias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes. Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam d'isso. Esse amor irracional e empirico carregára-se muito mais, de parte a parte, com o tragico incidente da lucta, em que o portuguez fôra victima. Jeronymo aureolou-se aos olhos d'ella com uma sympathia de martyr sacrificado á mulher que ama; cresceu com aquella navalhada; illuminou-se com o seu proprio sangue derramado; e, depois, a ausencia no hospital veio completar a crystallisação do seu prestigio, como se o cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando atraz de si a saudade dos que o choravam. Entretanto, o mesmo phenomeno se operava no espirito de Jeronymo com relação á Rita: arriscar espontaneamente a vida por alguem é aceitar um compromisso de ternura, em que empenhamos alma e coração; a mulher por quem fazemos tamanho sacrificio, seja ella quem fôr, assume de um só vôo em nossa phantasia ás proporções de um ideal. O desterrado, á primeira troca de olhares com a bahiana, amou-a logo, porque sentio n'ella o resumo de todos os quentes mysterios que o enleiaram voluptuosamente n'estas terras da luxuria; amou-a muito mais quando teve occasião de jogar a existencia por esse amor, e amou-a loucamente durante a triste e dolorosa solidão da enfermaria, em que os seus gemidos e suspiros eram todos para ella. A mulata bem que o comprehendeu, mas não teve animo de confessar-lhe que tambem morria de amores por elle; receiou prejudical-o. Agora, com aquella loucura de faltar á entrevista justamente no dia em que Jeronymo voltava á estalagem, a situação parecia-lhe muito melindrosa. Firmo, desesperado com a ausencia d'ella, embebedava-se naturalmente e vinha ao cortiço provocar o cavouqueiro; a briga rebentaria de novo, fatal para um dos dois, se é que não seria para ambos. Do que ella sentira pelo navalhista persistia agora apenas o medo, não como elle era d'antes, indeterminado e frouxo, mas ao contrario, sobresaltado, nervoso, cheio de apprehensões que a punham afflicta. Firmo já lhe não apparecia no espirito como um amante ciumento e perigoso, mas como um simples facinora, armado de uma velha navalha desleal e homicida. O seu medo transformava-se em uma mistura de asco e terror. E, sem achar só cego na cama, deixava-se atordoar pelos seus presentimentos, quando ouvio bater na porta. --É elle! disse, com o coração a saltar. E via já de fronte de si o Firmo, bebado, a reclamar o Jeronymo aos berros, para esfaqueal-o ali mesmo. Não respondeu ao primeiro chamado; ficou escutando. Depois de uma pausa bateram de novo. Ella estranhou o modo pelo qual batiam. Não era natural que o facinora procedesse com tanta prudencia. Ergueu-se, foi á janella, abrio uma das folhas e espreitou pelas rotulas. --Quem está ahi?... perguntou á meia voz. --Sou eu ... disse Jeronymo, chegando-se. Reconheceu-o logo e correu a abrir. --Como?! É você, Jeromo? --Schit! fez elle, pondo o dedo na bocca. Falla baixo. Rita começou a tremer: no olhar do portuguez, nas suas mãos encardidas de sangue, no seu todo de homem ebrio, encharcado e sujo, havia uma terrivel expressão de crime. --D'onde vens tu?... segredou ella. --De cuidar da nossa vida... Ahi tens a navalha com que fui ferido! E atirou-lhe sobre a meza a navalha de Firmo, que a mulata conhecia como as palmas da mão. --E elle? --Está morto. --Quem o matou? --Eu. Calaram-se ambos. --Agora ... acrescentou o cavouqueiro, no fim de um silencio arquejado por ambos; estou disposto a tudo para ficar comtigo. Sahiremos os dois d'aqui para onde melhor fôr... Que dizes tu? --E tua mulher?... --Deixo-lhe as minhas economias de muito tempo e continuarei a pagar o collegio á pequena. Sei que não devia abandonal-a, mas pódes ter como certo que, ainda que não queiras vir commigo, não ficarei com ella! Não sei! já não a posso supportar! Um homem enfára-se! Felizmente minha caixa de roupa está ainda na Ordem e posso ir buscal-a pela manhã. --E para onde iremos? --O que não falta é pr'onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho aqui sobre mim uns quinhentos mil réis, para as primeiras despezas. Posso ficar cá até ás cinco horas; são duas e meia; saio sem ser visto por Piedade; mando-te ao depois dizer o que arranjei, e tu irás ter commigo... Está dito? Queres? Rita, em resposta, atirou-se ao pescoço d'elle e pendurou-se-lhe nos labios, devorando-o de beijos. Aquelle novo sacrificio do portuguez; aquella dedicação extrema que o levava a arremeçar para o lado familia, dignidade, futuro, tudo, tudo por ella, enthusiasmou-a loucamente. Depois dos sobresaltos d'esse dia e d'essa noite, seus nervos estavam afiados e toda ella electrica. Ah! não se tinha enganado! aquelle homemzarrão herculeo, de musculos de touro, era capaz de todas as meiguices do carinho. --Então? insistio-elle. --Sim, sim, meu captiveiro! respondeu a bahiana, fallando-lhe na bocca; eu quero ir comtigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu coração! Tu és os meus feitiços! E apalpando-lhe o corpo:--Mas como estás ensopado! Espera! espera! o que não falta aqui é roupa de homem pr'a mudar!... Podias ter uma recahida, cruzes! Tira tudo isso que está alagado! Eu vou accender o fogareiro e estende-se em cima o que é casimira, para te poderes vestir ás cinco horas. Tira as botas! Olha o chapéo como está! Tudo isto secca! Tudo isto secca! Mira, toma já um golle de paraty pr'atalhar a friage! Depois passa em todo o corpo. Eu vou fazer café! Jeronymo bebeu um bom trago de paraty, mudou de roupa e deitou-se na cama de Rita. --Vem pr'a cá ... disse, um pouco rouco. --Espera! espera! O café está quasi prompto! E ella só foi ter com elle, levando-lhe a chave na fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores; assentou-se ao rebordo da cama e, segurando com uma das mãos o pires e com a outra a chicara, ajudava-o a beber, golle por golle, emquanto seus olhos o acarinhavam, scintillantes de impaciencia no antegoso d'aquelle primeiro enlace. Depois, atirou fóra a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado, n'um frenezi de desejo doido. Jeronymo, ao sentil-a inteira nos seus braços; ao sentir na sua pelle a carne quente d'aquella brasileira; ao sentir innundar-lhe o rosto e as espaduas, n'um effluvio de baunilha e cumarú, a onda negra e fria da cabelleira da mulata: ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelludo collo de cavouqueiro os dois globos tumidos e macios, e nas suas coxas as coxas d'ella; sua alma derreteu-se, fervendo e borbolhando como um metal ao fogo, e sahio-lhe pela bocca, pelos olhos, por todos os póros do corpo, escandescente, em braza, queimando-lhe as proprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irrepremiveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, n'uma agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno. E com um arranco de besta féra cahiram ambos prostados, arquejando. Ella tinha a bocca aberta, a lingoa fóra, os braços duros, os dedos inteiriçados, e o corpo todo a tremer-lhe da cabeça aos pés, continuamente, como se estivesse morrendo; ao passo que elle, de subito arremeçado longe da vida por aquella explosão inesperada dos seus sentidos, deixava-se mergulhar n'uma embriaguez deliciosa, atravez da qual o mundo inteiro e todo o seu passado fugiam como sombras fatuas. E, sem consciencia de nada que o cercava, nem memoria de si proprio, sem olhos, sem tino, sem ouvidos, apenas conservava em todo o seu ser uma impressão bem clara, viva, inextinguivel: o attrito d'aquella carne quente e palpitante, que elle em delirio apertou contra o corpo, e que elle ainda sentia latejar-lhe debaixo das mãos, e que elle continuava a comprimir machinalmente, como a criança que, já dormindo, affaga ainda as tetas em que matou ao mesmo tempo a fome e a sede com que veio ao mundo. XVI A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido. Ouvíra, assentada impaciente á porta de sua casa, darem oito horas, oito e meia; nove, nove e meia. «Que teria acontecido, Mãe Santissima ... Pois o homem ainda não estava prompto de todo e punha-se ao fresco, mal engolira o jantar, para demorar-se d'aquelle modo?... Elle que nunca fôra capaz de semelhantes tonteiras!...» --Dez horas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Christo! Foi até ao portão da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se tinham visto Jeronymo; ninguem dava noticias d'elle. Sahio, correu á esquina da rua; um silencio de cansaço bocejava n'aquelle resto de domingo; ás dez e meia recolheu-se sobresaltada, com o coração a sahir-lhe pela garganta, o ouvido alerta, para que ella acudisse ao primeiro toque na porta; deitou-se sem tirar a saia, nem apagar de todo o candieiro. A ceia frugal de leite fervido e queijo assado com assucar e manteiga ficou intacta sobre a meza. Não conseguio dormir: trabalhava-lhe a cabeça, afastando para longe o somno. Começou a imaginar perigos, rôlos, em que o seu homem recebia novas navalhadas; Firmo figurava em todas as scenas do delirio; em todas ellas havia sangue. Afinal, quando, depois de muito virar de um para outro lado do colchão, a infeliz ia cahindo em modorra, o mais leve rumor lá fóra a fazia erguer-se de pulo e correr á rotula da janella. Mais não era o cavouqueiro, da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma das vezes. Quando principiou a chover, Piedade ficou ainda mais afflicta; na sua sobre excitação afigurava-se-lhe agora que o marido estava sobre as agoas do mar, embarcado, entregue unicamente á protecção da Virgem, em meio de um temporal medonho. Ajoelhou-se defronte do oratorio e rezou com a voz emmaranhada por uma agonia suffocadora. A cada trovão redobrava o seu sobresalto. E ella, de joelhos, os olhos fitos na imagem de Nossa Senhora, sem consciencia do tempo que corria, arfava soluçando. De repente, ergueu-se, muito admirada de se ver sozinha, como se só n'aquelle instante déra pela falta do marido a seu lado. Olhou em torno de si, espavorida, com vontade de chorar, de pedir soccorro; as sombras espichadas em volta do candieiro, tracejando tremulas pelas paredes e pelo tecto, pareciam querer dizer-lhe alguma coisa mysteriosa. Um par de calças, dependurado á porta do quarto, com um paletó e um chapéo por cima, representou-lhe de relance o vulto de um enforcado, a mexer com as pernas. Benzeu-se. Quiz saber que horas eram e não poude; afigurava-se-lhe terem decorrido já tres dias pelo menos durante aquella afflicção. Calculou que não tardaria a amanhecer, se é que ainda amanheceria; se é que aquella noite infernal não se fosse prolongando infinitamente, sem nunca mais apparecer o sol! Bebeu um copo d'agoa, bem cheio, apezar de haver pouco antes tomado outro, e ficou immovel, de ouvido attento, na espectativa de escutar as horas de algum relogio da visinhança. A chuva diminuíra e os ventos principiavam a soprar com desespero. Lá de fóra a noite dizia-lhe segredos pelo buraco da fechadura e pelas frinchas do telhado e das portas; a cada assobio a misera julgava ver surgir um espectro que vinha contar-lhe a morte de Jeronymo. O desejo impaciente de saber que horas eram punha-a doida; foi á janella, abrio-a; uma rajada humida entrou na sala, esfuziando, e apagou a luz. Piedade soltou um grito e começou a procurar a caixa de phosphoros, aos esbarrões, sem conseguir reconhecer os objectos que tacteava. Esteve a perder os sentidos; afinal achou os phosphoros, accendeu de novo o candieiro e fechou a janella. Entrára-lhe um pouco de chuva em casa; sentio a roupa molhada no corpo; tomou um novo copo d'agoa; um calafrio de febre percorreu-lhe a espinha, e ella atirou-se para a cama, batendo o queixo, e metteu-se debaixo dos lençóes, a tiritar de febre. Veio de novo a modorra, fechou os olhos; mas ergueu-se logo, assentando-se no colchão: parecia lhe ter ouvido alguem fallar lá fóra, na rua; o calafrio voltou; ella, tremula, procurava escutar. Se se não enganava, distinguira vozes abafadas, conversando, e as vozes eram de homem; deixou-se ficar á escuta, concheando a mão atraz da orelha; depois ouvio baterem, não na sua porta, mas lá muito mais para adiante, na casa da das Dôres, da Rita, ou da Augusta. «Devia ser o Alexandre que voltava do serviço...» Quiz ir ter com elle e pedir-lhe noticias de Jeronymo, o calafrio porém obrigou-a a ficar debaixo das cobertas. Ás cinco horas levantou-se de novo com um salto. «Já havia gente lá fóra com certeza!...» Ouvira ranger a primeira porta; abrio a janella, mas ainda estava tão escuro que se não distinguia patavina. Era uma preguiçosa madrugada de Agosto, nebulosa, humida; parecia disposta a resistir ao dia. «Ó senhores! aquella noite dos diachos não acabaria nunca mais?...» Entretanto, adivinhava-se que ia amanhecer. Piedade ouvio dentro do pateo, do lado contrario á sua casa, um zum-zum de duas vozes cochichando com interesse. «Virgem do céo! dir-se-ia a voz do seu homem! E a outra era voz de mulher, credo! Illusão sua com certeza! ella essa noite estava para ouvir o que não se dava...» Mas aquelles cochichos dialogados na escuridão causavam-lhe extremo alvoroço. «Não! Como poderia ser elle?... Que loucura! se o homem estivesse ali teria sem duvida procurado a casa!...» E os cochichos persistiam emquanto Piedade, toda ouvidos, estalava de agonia. --Jeromo! gritou ella. As vozes calaram-se logo, fazendo o silencio completo; depois nada mais se ouvio. Piedade ficou á janella. As trevas dissolveram-se afinal; uma claridade triste formou-se no nascente e foi, a pouco e pouco, se derramando pelo espaço. O ceu era uma argamassa cinzenta e gorda. O cortiço acordava com o remancho das segundas feiras; ouviam-se os pigarros das resacas de paraty. As casinhas abriam-se; vultos espreguiçados vinham bocejando fazer a sua lavagem á bica; as chaminés principiavam a fumegar; rescendia o cheiro do café torrado. Piedade atirou um chale em cima dos hombros e sahio ao pateo; a Machona, que acabava de apparecer á porta do numero 7 com um berro para acordar a familia de uma só vez, gritou-lhe: --Bons dias, visinha! Seu marido como vai? melhor? Piedade soltou um suspiro. --Ai, não m'o porgunte, sóra Leandra! --Peiorou, filha? --Não veio esta noite pr'a casa... --Olha o demo! Como não veio? Onde ficou elle então? --Cá está quem não lh'o sabe responder. --Ora já se vio?! --Estou com o miolo que é agoa de bacalháo! Não preguei olho durante a noite! Forte desgraça a minha! --Teria-lhe succedido alguma?... Piedade pôz-se a soluçar, enxugando as lagrimas no chale de lã; ao passo que a outra, com a sua voz rouca e forte, que nem o som de uma trompa enferrujada, passava adiante a nova de que o Jeronymo não se recolhera aquella noite á estalagem. --Talvez voltasse pr'o hospital ... obtemperou Augusta, que lavava junto a uma tina a gaiola do seu papagaio. --Mas elle hontem veio de muda ... contrapoz Leandra. --E lá não se entra depois das oito horas da noite, acrescentou outra lavadeira. E os commentarios multiplicavam-se, palpitando de todos os lados, n'uma boa disposição para fazer d'aquillo o escandalo do dia. Piedade respondia friamente ás perguntas curiosas que lhe dirigiam as companheiras; estava triste e succumbida; não se lavou, não mudou de roupa, não comeu nada, porque a comida lhe crescia na bocca e não lhe passava da garganta; o que fazia só era chorar e lamentar-se. --Forte desgraça a minha! repetia a infeliz a cada instante. --Se vais assim, filha, estás bem arranjada! exclamou-lhe a Machona, chegando á porta de sua casa a dar dentadas num pão recheado de manteiga. Que diabo, creatura! O homem não te morreu, pr'a estares agora ahi a carpir d'esse modo! --Sei-o eu lá se me morreu?... disse Piedade entre soluços. Vi tanta coisa esta noite!... --Elle te appareceu nos sonhos?... perguntou Leandra com assombro. --Nos sonhos não, que não dormi, mas vi a modos que phantasmas... E chorava. --Ai, credo, filha! --Estou desgraçada! --Se te appareceram almas, de certo; mas põe a fé em Deus, mulher! e não te rales d'esse modo, que a desgraça pode ser maior! O choro puxa muita coisa! --Ai, o meu rico homem! E o mugido lugubre d'aquella pobre creatura abandonada antepunha á rude agitação do cortiço uma nota lamentosa e tristonha de uma vacca chamando ao longe, perdida ao cahir da noite n'um logar desconhecido e agreste. Mas o trabalho aquecia já de uma ponta á outra da estalagem; ria-se, cantava-se, soltava-se a lingua; o formigueiro assanhava-se com as compras para o almoço; os mercadores entravam e sahiam: a machina de massas principiava a bufar. E Piedade, assentada á soleira de sua porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo dono, maldizia a hora em que sahíra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo, n'aquelle limiar de granito, onde ella, tantas vezes, com a cabeça encostada ao hombro do seu homem, suspirava feliz, ouvindo gemer na guitarra d'elle os queridos fados de além mar. E Jeronymo não apparecia. Ella ergueu-se finalmente, foi lá fóra ao capinzal, pôz-se a andar agitada, fallando sozinha, a gesticular forte. E nos seus movimentos de desespero, quando levantava para o ceu os punhos fechados, dir-se-ia que não era contra o marido que se revoltava, mas sim contra aquella amaldiçoada luz allucinadora, contra aquelle sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e mettia-lhes no corpo luxurias de bode. Parecia rebellar-se contra aquella natureza alcoviteira, que lhe roubára o seu homem para dal-o a outra, porque a outra era gente do seu peito e ella não. E maldizia soluçando a hora em que sahira da sua terra; essa boa terra cansada, velha, como que enferma; essa boa terra tranquilla, sem sobresaltos nem desvarios de juventude. Sim, lá os campos eram frios e melancolicos, de um verde aloirado e quieto, e não ardentes e esmeraldinos e affogados em tanto sol e em tanto perfume como os d'este inferno, onde em cada folha que se pisa ha debaixo um reptil venenoso, como em cada flôr que desabotôa e em cada moscardo que adeja ha um virus de lascivia. Lá, nos saudosos campos da sua terra, não se ouviam em noites de lua clara roncar a onça e o maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento dos queixadas; lá não varava pelas florestas a anta feia e terrivel, quebrando arvores; lá a sucurujú não chocalhava a sua campainha funebre, annunciando a morte, nem a coral esperava traidora o viajante descuidado para lhe dar o bote certeiro e decisivo; lá o seu homem não seria anavalhado pelo ciume de um capoeira; lá Jeronymo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo, seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que á tarde levanta para o ceu de opala o seu olhar humilde, compungido e biblico. Maldita a hora em que ella veio! Maldita! mil vezes maldita! E tornando á casa, Piedade ainda mais se enraivecia, porque ali defronte, no numero 9, a mulata bahiana, a dansadeira de chorado, a cobra assanhada, cantava alegremente, chegando de vez em quando á janella para vir soprar fóra a cinza da fornalha do seu ferro de engommar, olhando de passagem para a direita e para a esquerda, a affectar indifferença pelo que não era de sua conta, e desapparecendo logo, sem interromper a cantiga, muito embebida no seu serviço. Ah! essa não fez commentarios sobre o estranho procedimento de mestre Jeronymo, nem mesmo quiz ouvir noticias d'elle; pouco arredou o pé de dentro de casa e, n'esse pouco que sahio, foi ás pressas e sem dar trela a ninguem. Nada! que as penas e desgostos não punham a panella no fogo! Entretanto, ah! ah! ella estava bem preoccupada. Apezar do allivio que lhe trouxera ao espirito a morte do Firmo e a despeito do seu contentamento de passar por uma vez aos braços do cavouqueiro, um sobresalto vago e oppressivo esmagava-lhe o coração e matava-a de impaciencia por atirar-se á procura de noticias sobre as occorrencias da noite; tanto assim que, ás onze horas, mal percebeu que Piedade, depois de esperar em vão pelo marido, sahia afflicta em busca d'elle, disposta a ir ao hospital, á policia, ao necroterio, ao diabo, com tanto que não voltasse sem algum esclarecimento, ella atirou logo o trabalho para o canto, enfiou uma saia, crusou o chale no hombro, e ganhou o mundo, tambem disposta a não voltar sem saber tim-tim por tim-tim o que havia de novo. Foi cada uma para seu lado e só voltaram á tarde, quasi ao mesmo tempo, encontrando o cortiço cheio já e assanhado com a noticia da morte de Firmo e do terrivel effeito que esta causara no Cabeça de Gato, onde o crime era attribuido aos Carapicús, contra os quaes juravam-se extremas vinganças de desaffronta. Soprava de lá, rosnando, um halito morno de colera mal soffrida e sequiosa que crescia com a approximação da noite e parecia sacudir no ar, ameaçadoramente, a irrequieta flamula amarella. O sol descambava para o ocaso, indefesso e nú, tingindo o ceu de uma vermelhidão presaga e sinistra. Piedade entrou carrancuda na estalagem; não vinha triste, vinha enfurecida; soubera na rua a respeito do marido mais do que esperava. Soubera em primeiro logar que elle estava vivo, perfeitamente vivo, pois fôra visto aquelle mesmo dia, mais de uma vez, no Garnizé e na praia da Saudade, a vagar macambuzio; soubera, por intermedio de um rondante amigo de Alexandre, que Jeronymo surgira de manhãzinha do capinzal perto da pedreira de João Romão, o que fazia crer viesse elle n'aquelle momento de casa, sahindo pelos fundos do cortiço; soubera ainda que o cavouqueiro fôra á Ordem buscar a sua caixa de roupa e que, na vespera, estivera a beber á farta na venda do Pépé, de sucia com o Zé Carlos e com o Pataca, e que depois seguiram para os lados da praia, todos tres mais ou menos no gole. Sem a menor desconfiança do crime, a desgraçada ficou convencida de que o marido não se recolhera aquella noite á casa, porque ficára em grossa pandega com os amigos e que, voltando tarde e bebado, dera-lhe para metter-se com a mulata, que o aceitou logo. «Pudera! Pois se havia muito a deslambida não queria outra coisa!...» Com esta convicção inchou-lhe de subito por dentro um novello de ciumes, e ella correu incontinenti para a estalagem, certa de que iria encontrar o homem e despejaria contra elle aquella tremenda tempestade de resentimentos e despeitos accumulados, que ameaçavam suffocal-a se não rebentassem de vez. Atravessou o cortiço sem dar palavra a ninguem e foi direito á casa; contava encontral-a aberta e a sua decepção foi cruel ao vel-a fechada como a deixára. Pedio a chave á Machona, que, ao entregal-a, inquirio sobre Jeronymo e pespegou-lhe ao mesmo tempo a noticia do assassinato de Firmo. Com esta nova é que Piedade não contava. Ficou livida; um pavoroso presentimento varou-lhe o espirito como um raio. Afastou-se logo, com medo de fallar, e foi tremula e offegante que abrio a porta e metteu-se no numero 35. Atirou-se a uma cadeira. Estava morta de cansaço; não tinha comido nada esse dia e não sentia fome; a cabeça andava-lhe á roda, as pernas pareciam-lhe de chumbo. Seria elle?!... interrogou a si propria. E os raciocinios começaram a surdir-lhe em massa, ensarilhados, atropellando-lhe a razão. Não conseguia coordenal-os; entre todas uma idéa insubordinava-se com mais teima, a perturbar as outras, ficando superior, como uma carta maior que o resto do baralho: «Se elle matou o Firmo, dormio na estalagem e não veio ter commigo, é porque então deixou-me de feita pela Rita!» Tentou fugir a semelhante hypothese; repellio-a indignada. Não! não era possivel que o Jeronymo, seu marido de tanto tempo, o pai de sua filha, um homem a quem ella nunca déra razão de queixa e a quem sempre respeitára e quizera com o mesmo carinho e com a mesma dedicação, a abandonasse de um momento para outro, e por quem?! por uma não sei que diga! um diabo de uma mulata assanhada, que tão depressa era de Pedro como de Paulo! uma sirigaita, que vivia mais para a folia do que para o trabalho! uma peste, que... Não! Qual! Era lá possivel?! Mas então porque elle não viéra?... porque não vinha?... porque não dava noticias suas?... porque fôra pela manhã á Ordem busquar a caixa da roupa?... O Roberto Papa-defuntos dissera-lhe que o encontrara ás duas da tarde ali perto, ao dobrar da rua Bambina, e que até pararam um instante para conversar. Com mais alguns passos teria chegado á casa! Seria possivel, santos do ceu! que o seu homem estivesse disposto a nunca mais tornar para junto d'ella? Nisto entrou a outra, acompanhada por um pequeno descalço. Vinha satisfeita; estivera com Jeronymo, jantaram juntos, n'uma casa de pasto; ficára tudo combinado; arranjára-se o ninho. Não se mudaria logo para não dar que fallar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objectos mais indispensaveis e que não dessem na vista por occasião do transporte. Voltaria no dia seguinte ao cortiço, onde continuaria a trabalhar; á noite iria ter com o novo amante, e, no fim de uma semana—zaz! fazia-se a mudança completa, e adeus coração!--Por aqui é o caminho! O cavouqueiro, pelo seu lado, mandaria uma carta a João Romão, despedindo-se do seu serviço, e outra á mulher, dizendo com boas palavras que, por uma d'essas fatalidades de que nenhuma creatura está livre, deixava de viver em companhia d'ella, mas que lhe conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o collegio da filha; e, feito isto, prompto! entraria em vida nova, senhor da sua mulata, livres e sozinhos, independentes, vivendo um para o outro, n'uma eterna embriaguez de gosos. Mas, na occasião em que a bahiana, seguida pelo pequeno, passava defronte da porta de Piedade, esta deu um alto da cadeira e gritou-lhe: --Faz favor? --Que é? resmungou Rita, parando sem voltar senão o rosto, e já a dizer no seu todo de impaciencia que não estava disposta a muita conversa. --Diga-me uma coisa, inquerio aquella; você muda-se? A mulata não contava com semelhante pergunta, assim á queima-roupa; ficou calada sem achar o que responder. --Muda-se, não é verdade? insistio a outra, fazendo-se vermelha. --E o que tem você com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de dar satisfações! Metta-se lá com a sua vida! Ora esta! --Com a minha vida é que te metteste tu, cigana! exclamou a portugueza, sem se conter e avançando para a porta com impeto. --Hein?! Repete, cutruca ordinaria! berrou a mulata, dando um passo em frente. --Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora carregas-me com elle! Que a má coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa estar que has de amargar o que o diabo não quiz! quem t'o jura sou eu! --Pula cá pr'a fóra, perúa chóca, se és capaz! Em torno de Rita já o povaréo se reunia alvoroçado; as lavadeiras deixaram logo as tinas e vinham, com os braços nús, cheios de espuma de sabão, estacionar ali ao pé, formando roda, silenciosas, sem nenhuma d'ellas querer metter-se no barulho. Os homens riam e atiravam chufas ás duas contendoras, como succedia sempre quando no cortiço qualquer mulher se disputava com outra. --Isca! Isca! gritavam elles. Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pateo, armada com um dos seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pelle do queixo, ao que ella respondeu desfechando contra a adversaria uma formidavel pancada na cabeça. E pegaram-se logo a unhas e dentes. Por algum tempo luctaram de pé, engalfinhadas, no meio da grande algazarra dos circumstantes. João Romão acudio e quiz separal-as; todos protestaram. A familia do Miranda assomou á janella, tomando ainda o café de depois do jantar, indifferente, já habituada áquellas scenas. Dois partidos todavia se formavam em torno das luctadoras; quasi todos os brasileiros eram pela Rita e quasi todos os portuguezes pela outra. Discutia-se com febre a superioridade de cada qual dellas; rebentavam gritos de enthusiasmo a cada mossa que qualquer das duas recebia; e estas, sem se desunharem, tinham já arranhões e mordeduras por todo o busto. Quando menos se esperava, ouvio-se um baque pesado e vio-se Piedade de bruços no chão e a Rita por cima, escarranchada sobre as suas largas ancas, a socar-lhe o cachaço de murros contínuos, desgrenhada, rota, offegante, os cabellos cahidos sobre a cara, gritando victoriosa, com a bocca escorrendo sangue: --Toma pr'o teu tabaco! Toma, gallinha podre! Toma, pr'a não te metteres commigo! Toma! Toma, baiacú da praia! Os portuguezes precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da mulata. Os brasileiros oppozeram-se ferozmente. --Não póde? --Enche! --Não deixa! --Não tira! --Entra! Entra! E as palavras «gallego» e «cabra» cruzaram-se do todos os pontos, como bofetadas. Houve um vaváo rapido e surdo, e logo em seguida um formidavel rôlo, um rôlo a valer, não mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os giráos desappareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando em descarga; ao passo que n'uma berraria infernal, n'um fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquella onda viva ia arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas, baldes, regadores e caixões de planta, tudo rolava entre aquella centena de pernas confundidas e doidas. Das janellas do Miranda apitava-se com furia; da rua, em todo o quarteirão, novos apitos respondiam; dos fundos do cortiço e pela frente surgia povo e mais povo. O pateo estava quasi cheio; ninguem mais se entendia; todos davam e todos apanhavam; mulheres e crianças berravam. João Romão, clamando furioso, sentia-se impotente para conter semelhantes demonios. «Fazer rôlo áquella hora, que imprudencia!» Não conseguio fechar as portas da venda, nem o portão da estalagem; guardou ás pressas na burra o que havia em dinheiro na gaveta, e, armando-se com uma tranca de ferro, pôz-se de sentinella ás prateleiras, disposto a abrir o casco ao primeiro que se animasse a saltar-lhe o balcão. Bertoleza, lá dentro na cozinha, apromptava uma grande chaleira de agoa quente, para defender com ella a propriedade do seu homem. E o rôlo a ferver lá fóra, cada vez mais inflammado com um terrivel sopro de rivalidade nacional. Ouviam-se, n'um clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brazil. De vez em quando, o povaréo, que continuava a crescer, afastava-se em massa, rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A policia appareceu e não se achou com animo de entrar, antes de vir um reforço de praças, que um permanente fôra buscar a galope! E o rôlo fervia. Mas, no melhor da lucta, ouvio-se na rua um côro de vozes que se approximava das bandas do Cabeça de Gato. Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos Carapicús, para vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta. XVII Mal os Carapicús sentiram a approximação dos rivaes, um grito de alarma echoou por toda a estalagem e o rôlo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu á casa, rapidamente, em busca do ferro, do páo e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impellia a todos; já não havia ali brasileiros e portuguezes, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrario; os que se batiam ainda ha pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas da mão o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampeão do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder á musica barbara que entoavam lá fora os inimigos; a mãe déra-lhe licença, a pedido d'elle, para pôr um cinto de Nênêm, em que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até ahi não fôra notado por ninguem no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos limpas, á espera dos invasores; e todos tiveram confiança n'elle, porque o ladrão, além de tudo, estava rindo. Os Cabeças de Gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que senão via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dansar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguem lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéo á ré, com um laço de fita amarella fluctuando na copa. --Aguenta! Aguenta! Faz frente! clamavam de dentro os Carapicús. E os outros, cantando o seu hymno de guerra, entraram e approximaram-se lentamente, a dansar como selvagens. As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão. Os Carapicús enchiam a metade do cortiço. Um silencio arquejado succedia á estrepitosa vozeria do rôlo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da ferocidade que atirava aquelles dois bandos de capoeiras um contra o outro. E no emtanto o sol, unico causador de tudo aquillo, desapparecia de todo nos limbos do horizonte, indifferente, deixando atraz de si as melancolias do crepusculo, que é a saudade da terra quando elle se ausenta, levando comsigo a alegria da luz e do calor. Lá na janella do Barão, o Botelho, enthusiasmado como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de applauso e dava brados de commando militar. E os Cabeças de Gato approximavam-se cantando, a dansar, rastejando alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares. Dez Carapicús sahiram em frente; dez Cabeças de Gato se alinharam defronte d'elles. E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com methodo, sob o commando de Porfiro que, sempre a cantar ou a assobiar, saltava em todas as direcções, sem nunca ser alcançado por ninguem. Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os vôa-pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversario de igual destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que annullava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço desequilibrasse as forças, abrindo furo á victoria; mas um facto veio neutralisar inda uma vez a campanha: Immenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o numero 88. E agora o incendio era a valer. Houve nas duas maltas um subito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hymno de morte. Um clarão tremendo ensanguentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva. A Bruxa conseguira afinal realisar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder; não haveria meio de reprimir aquelle cruento desovar de labaredas. Os Cabeças de Gato, leaes nas suas justas de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxilio de um sinistro e dispostos até a soccorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos Carapicús os ferio pelas costas. A lucta ficava para outra occasião. E a scena transformou-se n'um relance; os mesmos que barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se agora a salvar os miseraveis bens que possuiam sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sáe de maribondos defronte d'aquellas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao hombro, numa balburdia de doidos. O pateo e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados. Ninguem se conhecia n'aquelle zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas pela dôr e pelo desespero. Da casa do Barão sahiam clamores apopleticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou a apparecer agoa. Quem a trouxe? Ninguem sabia dizel-o; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chammas. Os sinos da visinhança começaram a badalar. E tudo era um clamor. A Bruxa surgio á janella da sua casa, como a bocca de uma fornalha accesa. Estava horrivel; nunca fôra tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em braza; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como a das egoas selvagens, dava-lhe um caracter phantastico de furia sabida do inferno. E ella ria-se, ebria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as feridas, victoriosa no meio d'aquella orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca. Ia atirar-se cá para fóra, quando se ouvio estalar o madeiramento da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca n'um montão de brazas. Os sinos continuavam a badalar afflictos. Surgiram agoadeiros com as suas pipas em carroça, alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em chegar antes dos outros e apanhar os dez mil reis da gratificação. A policia defendia a passagem ao povo que queria entrar. A rua lá fóra estava já atravancada com o despojo de quasi toda a estalagem. E as labaredas iam galopando desembestadas para a direita e para a esquerda do numero 88. Um papagaio, esquecido á parede de uma das casinhas e preso á gaiola, gritava furioso, como se pedisse soccorro. Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques de campainhas e estridente silvar de valvulas encheu de subito todo o quarteirão, annunciando que chegava o corpo dos bombeiros. E logo em seguida apontaram carros á desfilada, e um bando de demonios de blusa clara, armados uns de archotes e outros de escadinhas de ferro, apoderaram-se do sinistro, dominando-o incontinenti, com uma expedição magica, sem uma palavra, sem hesitações e sem atropellos. A um só tempo viram-se fartas mangas d'agoa chicoteando o fogo por todos os lados; emquanto, sem se saber como, homens, mais ageis que macacos, escalavam os telhados abrazados por escadas que mal se distinguiam; e outros invadiam o coração vermelho do incendio, a dardejar duchas em torno de si, rodando, saltando, piruetando, até estrangularem as chammas que se atiravam ferozes para cima d'elles, como dentro de um inferno; ao passo que outros, cá de fóra, imperturbaveis, com uma limpeza de machina moderna, fusilavam d'agoa toda a estalagem, numero por numero, resolvidos a não deixar uma só telha enxuta. O povo applaudia-os enthusiasmado, já esquecido do desastre e só attenção para aquelle duello contra o incendio. Quando um bombeiro, de cima do telhado, conseguio suffocar uma ninhada de labaredas, que surgira defronte d'elle, rebentou cá de baixo uma roda de palmas, e o heróe voltou-se para a multidão, sorrindo e agradecendo. Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ovação. XVIII Por esse tempo, o amigo de Bertoleza, notando que o velho Liborio, depois de escapar de morrer na confusão do incendio, fugia agoniado para o seu esconderijo, seguio-o com disfarce e observou que o miseravel, mal deu luz á candeia, começou a tirar offegante alguma coisa do seu colchão immundo. Eram garrafas. Tirou a primeira, a segunda, meia duzia d'ellas. Depois puxou ás pressas a coberta do catre e fez uma trouxa. Ia de novo ganhar a sahida, mas soltou um gemido surdo e cahio no chão sem forças arrevessando uma golfada de sangue e cingindo contra o peito o mysterioso embrulho. João Romão appareceu, e elle, assim que o vio, redobrou de afflicção e torceu-se todo sobre as garrafas, defendendo-as com o corpo inteiro, a olhar aterrado e de esguelha para o seu interventor, como se déra cara a cara com um bandido. E, a cada passo que o vendeiro adiantava, o tremor e o sobresalto do velho recresciam, tirando-lhe da garganta grunhidos roucos de animal batido e assustado. Duas vezes tentou erguer-se; duas vezes rolou por terra moribundo. João Romão objurgou-lhe que qualquer demora ali seria morte certa: o incendio avançava. Quiz ajudal-o a carregar o fardo. Liborio, por unica resposta, arregaçou os beiços, mostrando as gengivas sem dentes e tentando morder a mão que o vendeiro estendia já sobre as garrafas. Mas, lá de cima, a ponta de uma lingoa de fogo varou o tecto e illuminou de vermelho a miseravel pocilga. Liborio tentou ainda um esforço supremo, e nada poude, começando a tremer da cabeça aos pés, a tremer, a tremer, grudando-se cada vez mais á sua trouxa, e já estrebuchava, quando o vendeiro lh'a arrancou das garras com violencia. Tambem era tempo, porque, depois de insinuar a lingoa, o fogo mostrou a bocca e escancarou afinal a guela devoradora. O tratante fugio de carreira, abraçado á sua preza, em quanto o velho, sem conseguir pôr-se de pé, rastreava na pista d'elle, difficultosamente, estrangulado de desespero senil, já sem falla, rosnando uns vagidos de morte, os olhos turvos, todo elle roxo, os dedos enriçados como as unhas de um abutre ferido. João Romão atravessou o pateo de carreira e metteu-se na sua tóca para esconder o furto. Ao primeiro exame, de relance, reconheceu logo que era dinheiro em papel o que havia nas garrafas. Enterrou a trouxa na prateleira de um armario velho cheio de frascos e voltou lá fóra para acompanhar o serviço dos bombeiros. Á meia noite estava já completamente extincto o fogo e quatro sentinellas rondavam a ruina das trinta e tantas casinhas que arderam. O vendeiro só poude voltar á trouxa das garrafas ás cinco horas da manhã, quando Bertoleza, que fizera prodigios contra o incendio, passava pelo somno, encostada na cama, com a saia ainda enxarcada d'agoa, o corpo cheio de pequenas queimaduras. Verificou que as garrafas eram oito e estavam cheias até á bocca de notas de todos os valores, que ahi foram mettidas, uma a uma, depois de cuidadosamente enroladas e dobradas á moda de bilhetes de rifa. Receioso, porém, de que a crioula não estivesse bem adormecida e desse pela coisa, João Romão resolveu adiar para mais tarde a contagem do dinheiro e guardou o thesouro n'outro logar mais seguro. No dia seguinte a policia averiguou os destroços do incendio e mandou proceder logo ao desentulho, para retirar os cadaveres que houvesse. Rita desapparecêra da estalagem durante a confusão da noite; Piedade cahíra de cama, com um febrão de quarenta gráos; a Machona tinha uma orelha rachada e um pé torcido; a das Dôres a cabeça partida; o Bruno levara uma navalhada na coxa; dois trabalhadores da pedreira estavam gravemente feridos; um italiano perdêra dois dentes da frente, e uma filhinha da Augusta Carne Molle morréra esmagada pelo povo. E todos, todos se queixavam de damnos recebidos e revoltavam-se contra os rigores da sorte. O dia passou-se inteiro na computação dos prejuizos e a dar-se balanço no que se salvara do incendio. Sentia-se um fartum aborrecido de estorrilho e cinza molhada. Um duro silencio de desconsolo embrutecia aquella pobre gente. Vultos sombrios, de mãos crusadas atraz, permaneciam horas esquecidas, a olhar immoveis os esqueletos carbonisados e ainda humidos das casinhas queimadas. Os cadaveres da Bruxa e do Liborio foram carregados para o meio do pateo, disformes, horrorosos, e jaziam entre duas vélas accesas, ao relento, á espera do carro da Misericordia. Entrava gente a rua para os ver; descobriam-se defronte d'elles, e alguns curiosos lançavam piedosamente uma moeda de cobre no prato que, aos pés dos dois defuntos, recebia a esmola para a mortalha. Em casa de Augusta, sobre uma meza coberta por uma ceremoniosa toalha de rendas, estava o cadaverzinho da filha morta, todo enfeitado de flôres, com um Christo de latão á cabeceira e dois cirios que ardiam tristemente. Alexandre, assentado a um canto da sala, com o rosto escondido nas mãos, chorava, aguardando o pesame das visitas; fardára-se, só para isso, com o seu melhor uniforme, coitado! O enterro da pequenita foi feito á custa de Leonie, que appareceu ás tres da tarde, vestida de setineta côr de creme, n'um carrinho dirigido por um cocheiro de calção de flanella branca e libré agaloada de ouro. O Miranda apresentou-se na estalagem logo pela manhã, o ar compungido, porém superior. Deu um ligeiro abraço em João Romão, fallou-lhe em voz baixa, lamentando aquella catastrophe, mas felicitou-o porque tudo estava no seguro. O vendeiro, com effeito, impressionado com a primeira tentativa de incendio, tratara de segurar todas as suas propriedades; e, com tamanha inspiração o fez que, agora, em vez de lhe trazer o fogo prejuizo, até lhe deixava lucros. --Ah, ah, meu caro! Cautela e caldo de gallinha nunca fizeram mal a doente!... segredou o dono do cortiço, a rir. Olhe, aquelles é que com certeza não gostaram da brincadeira! accrescentou, apontando para o lado em que maior era o grupo dos infelizes que tomavam conta dos restos de seus tarecos atirados em montão. --Ah, mas esses, que diabo! nada têm que perder!... considerou o outro. E os dois visinhos foram até o fim do palco, conversando em voz baixa. --Vou reedificar tudo isto! declarou João Romão, com um gesto energico que abrangia toda aquella babylonia desmantelada. E expoz o seu projecto: Tencionava alargar a estalagem, entrando um pouco pelo capinzal. Levantaria do lado esquerdo, encostado ao muro do Miranda, um novo correr de casinhas, aproveitando assim parte do pateo, que não precisava ser tão grande; sobre as outras levantaria um segundo andar, com uma longa varanda na frente toda gradeada. Negociozinho para ter ali, a dar dinheiro, em vez de uma centena de commodos, nada menos de quatrocentos a quinhentos, de doze a vinte e cinco mil reis cada um! Ah! elle havia de mostrar como se fazem as coisas bem feitas. O Miranda escutava-o calado, fitando-o com respeito. --Você é um homem dos diabos! disse afinal, batendo-lhe no hombro. E, ao sahir de lá, no seu coração vulgar de homem que nunca produzio e levou a vida, como todo o mercador, a explorar a boa fé de uns e o trabalho intellectual de outros, trazia uma grande admiração pelo visinho. O que ainda lhe restava da primitiva inveja transformou-se n'esse instante n'um enthusiasmo illimitado e cego. --É um filho da mãe! resmungava elle pela rua, em caminho do seu armazem. É de muita força! Pena é estar mettido com a peste d'aquella crioula! Nem sei como um homem tão esperto cahio em semelhante asneira! Só lá pelas dez e tanto da noite foi que João Romão, depois de certificar-se de que Bertoleza ferrára n'um somno de pedra, resolveu dar balanço ás garrafas de Liborio. O diabo é que elle tambem quasi que se não aguentava nas pernas e sentia os olhos a fecharem-se-lhe de cansaço. Mas não podia socegar sem saber quanto ao certo apanhára do avarento. Accendeu uma véla, foi buscar a immunda e preciosa trouxa, e carregou com esta para a casa de pasto ao lado da cozinha. Depôz tudo sobre uma das mezas, assentou-se, e principiou a tarefa. Tomou a primeira garrafa, tentou despejal-a, batendo-lhe no fundo; foi-lhe porém necessario extrahir as notas, uma por uma, porque estavam muito socadas e peganhentas de bolor. A proporção que as fisgava, ia logo as desenrolando e estendendo cuidadosamente em maço, depois de seccar-lhes a humidade ao calor das mãos e da véla. E o prazer que elle desfructava n'este serviço punha-lhe em jogo todos os sentidos e afugentava-lhe o somno e as fadigas. Mas, ao passar á segunda garrafa, soffreu uma dolorosa decepção: quasi todas as cedulas estavam já prescriptas pelo thesouro; veio-lhe então o receio de que a melhor parte do bôlo se achasse inutilisada; restava-lhe todavia a esperança de que fosse aquella garrafa a mais antiga de todas e a peior por conseguinte. E continuou com mais ardor o seu delicioso trabalho. Tinha já esvaziado seis, quando notou que a véla, consumida até o fim, bruxuleava a extinguir-se; foi buscar outra nova e vio ao mesmo tempo que horas eram. «Oh! como a noite corrêra depressa!...» Tres e meia da madrugada. «Parecia impossivel!» Ao terminar a contagem, as primeiras carroças passavam lá fóra na rua. --Quinze contos, quatrocentos e tantos mil reis!... disse João Romão entre dentes, sem se fartar de olhar para as pilhas de cedulas que tinha defronte dos olhos. Mas oito contos e seiscentos eram em notas já prescriptas. E o vendeiro, á vista de tão bella somma, assim tão estupidamente compromettida, sentio a indignação de um roubado. Amaldiçoou aquelle maldito velho Liborio por tamanho relaxamento; amaldiçoou o governo porque limitava, com intenções velhacas, o praso da circulação dos seus titulos; chegou até a sentir remorsos por não se ter apoderado do thesouro do avarento, logo que este, um dos primeiros moradores do cortiço, lhe appareceu com o colchão as costas, a pedir chorando que lhe dessem de esmola um cantinho onde elle se mettesse com sua miseria. João Romão tivera sempre uma vidente cobiça sobre aquelle dinheiro engarrafado; fariscára-o desde que fitou de perto os olhinhos vivos e redondos do abutre decrepito, e convenceu-se de todo, notando que o miseravel dava prompto sumisso a qualquer moedinha que lhe cahia nas garras. --Seria um acto de justiça! concluio João Romão; pelo menos seria impedir que todo este pobre dinheiro apodrecesse tão barbaramente! Ora adeus! mas sete ricos continhos quasi inteiros ficavam-lhe nas unhas. «E depois, que diabo! os outros assim mesmo haviam de ir com geito... Hoje impingiam-se dois mil reis: amanhã cinco. Não nas compras, mas nos trocos... Porque não? Alguem reclamaria, mas muitos enguliriam a bucha... Para isso não faltavam estrangeiros e caipiras!... E demais, não era crime!... Sim! se havia n'isso ladroeira, queixassem-se do governo! o governo é que era o ladrão! --Em todo o caso, rematou elle, guardando o dinheiro bom e máo e dispondo-se a descançar; isto já serve para principiar as obras! Deixem estar, que d'aqui a dias eu lhes mostrarei para quanto presto! XIX D'ahi a dias, com effeito, a estalagem mettia-se em obras. Á desordem do desentulho do incendio succedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de pela manhã até á noite, o que aliás não impedia que as lavadeiras continuassem a bater roupa e as engommadeiras reunissem ao barulho das ferramentas o choroso falsete das suas eternas cantigas. Os que ficaram sem casa foram aboletados a troxe-moxe por todos os cantos, á espera dos novos commodos. Ninguem se mudou para o Cabeça de Gato. As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda; os antigos moradores tinham preferencia e vantagens nos preços. Um dos italianos feridos morreu na Misericordia e o outro, tambem lá, continuava ainda em risco de vida. Bruno recolhêra-se á Ordem de que era irmão, e Leocadia, que não quiz attender áquella carta escripta por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o sou homem no hospital. Que alegrão para o infeliz a volta da mulher, aquella mulher levada dos diabos, mas de carne dura, a quem elle, apezar de tudo, queria muito. Com a visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leocadia decidio tornar para o São Romão e viver de novo com o marido. Agora fazia-se muito séria e ameaçava com pancada a quem lhe propunha bregeirices. Piedade, essa é que se levantou das febres completamente transformada. Não parecia a mesma depois do abandono de Jeronymo; emmagrecêra em extremo, perdêra as côres do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas não se queixava, e ninguem lhe ouvia fallar no nome do esposo. Esses mezes, durante as obras, foram uma época especial para a estalagem. O cortiço não dava idéa do seu antigo caracter, tão accentuado e no emtanto tão mixto: aquillo agora parecia uma grande officina improvisada, um arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por signaes. As lavadeiras fugiram para o capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujavam-lhes a roupa lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo prompto; e, com immenso pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde João Romão se fez gente, ia tambem entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar d'ella sómente algumas das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas á portugueza; abriria as portas em arco, suspenderia o tecto e levantaria um sobrado, mais alto que o do Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Prédio para metter o do outro no chinello; quatro janellas de frente, oito de lado, com um terraço ao fundo. O logar em que elle dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam abobadadas, formando, com a parte da taverna, um grande armazem, em que o seu commercio iria fortalecer-se e alargar-se. O Barão e o Botelho appareciam por lá quasi todos os dias, ambos muito interessados pela prosperidade do visinho; examinavam os materiaes escolhidos para a construcção, batiam com a biqueira do chapéo de sol no pinho de Riga destinado ao assoalho, e affectando-se bons entendedores, tomavam na palma da mão e esfarelavam entre os dedos um punhado da terra e da cal com que os operarios faziam barro. Ás vezes chegavam a ralhar com os trabalhadores, quando lhes parecia que não iam bem no serviço! João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, collete e corrente de relogio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na folga das occupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hoteis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos cafés do commercio. E a crioula? Como havia de ser? Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam porque lhe dissessem. Sim, porque aquella bôa casa que se estava fazendo, e os ricos moveis encommendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, não seriam de certo para os beiços da negra velha! Conserval-a-ia como criada? Impossivel! Todo Botafogo sabia que elles até ahi fizeram vida commum! Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a esse respeito com o visinho e contentavam-se em boquejar entre si mysteriosamente, palpitando ambos por ver a sahida que o vendeiro acharia para semelhante situação. Maldita preta dos diabos! Era ella o unico defeito, o senão, de um homem tão importante e tão digno! Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse jantar á casa do Miranda. Iam juntos ao theatro. João Romão dava o braço á Zulmira, e, procurando galanteal-a e mais ao resto da familia, desfazia-se em obsequios brutaes e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que não olhava gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, elle fazia vir logo tres, quatro garrafas ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo do necessario e accumulando compras inuteis de doces, flôres e tudo que apparecia. Nos leilões das festas de arraial era tão feroz a sua febre de obsequiar á gente do Miranda, que nunca voltavam para casa sem um homem atraz, carregado com os mimos que o vendeiro arrematava. E Bertoleza bem que comprehendia tudo isso e bem que estranhava a transformação do amigo. Elle ultimamente mal se chegava para ella e, quando o fazia, era com tal repugnancia, que antes o não fizesse. A desgraçada muita vez sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras, e chorava em segredo, sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era amor o que a misera desejava, era sómente confiança no amparo da sua velhice, quando de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. E contentava-se em suspirar no meio de grandes silencios durante o serviço de todo o dia, covarde e resignada, como seus paes que a deixaram nascer e crescer no captiveiro. Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, envergonhada de si propria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nodoa d'aquella prosperidade brilhante e clara. E, no emtanto, adorava o amigo; tinha por elle o fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravisam, d'essas que morrem de ciumes, mas que tambem são capazes de matar-se para poupar ao seu idolo a vergonha do seu amor. O que custava áquelle homem consentir que ella, uma vez por outra, se chegasse para junto d'elle? Todo o dono, nos momentos de bom humor, affaga o seu cão... Mas qual! o destino de Bertoleza fazia-se cada vez mais estreito e mais sombrio; pouco a pouco deixara totalmente de ser a amante do vendeiro, para ficar sendo só uma sua escrava. Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, á noite vendendo-o á porta, para descançar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, immunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham á luz. Afinal, convencendo-se de que ella, sem ter ainda morrido, já não vivia para ninguem, nem tão pouco para si, desabou n'um fundo entorpecimento apathico, estagnado como um charco podre que causa nojo. Fizera-se aspera, desconfiada, sobrolho carrancudo, uma linha dura de um canto ao outro da bocca. E durante dias inteiros, sem interromper o serviço, que ella fazia agora automaticamente, por um habito de muitos annos, gesticulava e mexia com os labios, monologando sem pronunciar as palavras. Parecia indifferente a tudo, a tudo que a cercava. Não obstante, certo dia em que João Romão conversou muito com Botelho, as lagrimas saltaram dos olhos da infeliz, e ella teve de abandonar a obrigação, porque o pranto e os soluços não lhe deixavam fazer nada. Botelho havia dito ao vendeiro: --Faça o pedido! É occasião. --Hein? --Póde pedir a mão da pequena. Está tudo prompto! --O Barão dá-m'a? --Dá. --Tem certeza d'isso? --Ora! se não tivesse não lh'o diria d'este modo! --Elle prometteu? --Fallei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorisado por você. Fiz mal? --Mal? Fez muito bem. Creio até que não é preciso mais nada! --Não, se o Miranda não vier logo ao seu encontro é bom você lhe fallar, comprehende? --Ou escrever. --Tambem. --E a menina? --Respondo por ella. Você não tem continuado a receber as flôres? --Tenho. --Pois então não deixe pelo seu lado de ir mandando tambem as suas e faça o que lhe disse.--Atire-se, seu João, atire-se emquanto o angú está quente! Por outro lado, Jeronymo empregára-se na pedreira de São Diogo, onde trabalhava d'antes, e morava agora com a Rita numa estalagem da Cidade Nova. Tiveram de fazer muita despeza para se installarem; foi-lhes preciso comprar de novo todos os arranjos de casa, porque do São Romão Jeronymo só levou dinheiro, dinheiro que elle já não sabia poupar. Com o asseio da mulata a sua casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na cama, lençóes de linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar todos os dias, toalhas de meza, guardanapos; comiam em pratos de porcelana e uzavam sabonetes finos. Plantaram á porta uma trepadeira que subia para o telhado, abrindo pela manhã flôres escarlates, de que as abelhas gostavam muito; penduraram gaiolas de passarinho na sala de jantar; sortiram a despensa de tudo que mais gostavam; compraram gallinhas e marrecos e fizeram um banheiro só para elles, porque o da estalagem repugnou á bahiana que, n'esse ponto, era muito escrupulosa. A primeira parte da sua lua de mel foi uma cadeia de delicias continuas; tanto elle como ella, pouco ou nada trabalharam; a vida dos dois resumíra-se, quasi que exclusivamente, nos oito palmos de colchão novo, que nunca chegava a esfriar de todo. Jámais a existencia pareceu tão boa e corredia para o portuguez; aquelles primeiros dias fugiram-lhe como estrophes seguidas de uma deliciosa canção de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos em dueto; foi um prazer prolongado e amplo, bebido sem respirar, sem abrir os olhos, n'aquelle collo carnudo e doirado da mulata, a que o cavouqueiro se abandonara como um bebedo que adormece abraçado a um garrafão inesgotavel de vinho gostoso. Estava completamente mudado. Rita apagára-lhe a ultima restea das recordações da patria; seccou, ao calor dos seus labios grossos e vermelhos, a derradeira lagrima de saudade, que o desterrado lançou do coração com o extremo arpejo que a sua guitarra suspirou. A guitarra! substituio-a ella pelo violão bahiano, e deu-lhe a elle uma rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com as suas cantigas do norte, tristes, deleitosas, em que ha caboclinhos corropiras que no sertão vêm pitar á beira das estradas em noites de lua clara, e querem que todo o viajante que vae passando lhes ceda fumo e cachaça, sem o que, ai d'elles! o corropira transforma-os em bicho do matto. E deu-lhe do seu de comer da Bahia, temperado como fogoso azeite de dendem, côr de braza; deu-lhe das suas muquecas escandescentes, de fazer chorar, e habituou-lhe a carne ao cheiro sensual d'aquelle seu corpo de cobra, lavado tres vezes ao dia e tres vezes perfumado com hervas aromaticas. O portuguez abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagancias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fôra-se-lhe de vez o espirito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, á felicidade de possuir a mulata e ser possuido só por ella, só ella, e mais ninguem. A morte do Firmo não vinha nunca toldar-lhes o goso da vida; quer elle, quer a amiga, achavam a coisa muito natural. «O facinora matara tanta gente; fizera tanta maldade; devia pois acabar como acabou! Nada mais justo! Se não fosse Jeronymo, seria outro! Elle assim o quiz--bem feito!» Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausencia do marido, chorava o seu abandono e ia tambem agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a que nem as lagrimas bastavam para adoçar as agruras. A principio, ainda a pobre de Christo tentou resistir com coragem áquella viuvez peior que essa outra, em que ha, para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa amada nunca mais terá olhos para cobiçar mulheres, nem bocca para pedir amores; mas depois começou a afundar sem resistencia na lama do seu desgosto, covardemente, sem forças para illudir-se com uma esperança fatua, abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus principios, do seu proprio caracter, sem se ter já n'este mundo na conta de alguma coisa e continuando a viver sómente porque a vida era teimosa e não queria deixal-a ir apodrecer lá em baixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas freguezas de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madraça e moleirona, precisando já empregar grande esforço para não bolir nas economias que Jeronymo lhe deixára, porque isso devia ser para a filha, aquella probrezita orphanada antes da morte dos paes. Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dôres de cabeça, zoada nos ouvidos e o estomago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de paraty. Ella aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetio a doze; deu-se bem com a perturbação em que a punha o alcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituára-se a beber todos os dias o seu meio martello de aguardente, para enganar os pezares. Agora, que o marido já não estava ali para impedir que a filha puzesse os pés no cortiço, e agora que Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar os domingos com ella. Sahira uma criança forte e bonita; puxara do pae o vigor physico e da mãe a expressão bondosa da physionomia. Já tinha nove annos. Eram esses agora os unicos bons momentos da pobre mulher, esses que ella passava ao lado da filha. Os antigos moradores da estalagem principiavam a distinguir a menina com a mesma predilecção com que amavam Pombinha, porque em toda aquella gente havia uma necessidade moral de eleger para mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior, a quem elles privilegiavam respeitosamente, como subditos a um principe. Chrismaram-na logo com o cognome de «Senhorinha». Piedade, apezar do procedimento do marido, ainda no intimo se impressionava com a idéa de que não devia contrarial-o nas suas disposições de pae. «Mas que mal tinha que a pequena fosse ali?... Era uma esmola que fazia á mãe! Lá pelo risco de perder-se... Ora adeus, só se perdia quem mesmo já nascêra para a perdição! A outra não se conservára sã e pura? não achára noivo? não casára e não vivia dignamente com o seu marido? Então?!» E Senhorinha continuou a ir á estalagem, a principio nos domingos pela manhã, para voltar á tarde, depois já de vespera, nos sabbados, para só tornar ao collegio na segunda feira. Jeronymo, ao saber disto, por intermedio da professora, revoltou-se no primeiro impeto, mas, pensando bem no caso, achou que era justo deixar á mulher aquelle consolo. «Coitada! devia viver bem aborrecida da sorte!» Tinha ainda por ella um sentimento compassivo, em que a melhor parte nascêra com o remorso. «Era justo, era! que a pequena aos domingos e dias santos lhe fizesse companhia!» E então, para ver a filha, tinha que ir ao collegio nos dias de semana. Quasi sempre levava-lhe presentes de doce, fructas, e perguntava-lhe se precisava de roupa ou de calçado. Mas, um bello dia, apresentou-se tão ebrio, que a directora lhe negou a entrada. Desde essa occasião, Jeronymo teve vergonha de lá voltar, e as suas visitas á filha tornaram-se muito raras. Tempos depois, Senhorinha entregou á mãe uma conta de seis mezes da pensão do collegio, com uma carta em que a directora negava-se a conservar a menina, no caso que não liquidassem promptamente a divida. Piedade levou as mãos á cabeça: «Pois o homem já nem o ensino da pequena queria dar?! Que lhe valesse Deus! onde iria ella fazer dinheiro para educar a filha?!» Foi á procura do marido; já sabia onde elle morava. Jeronymo recusou-se, por vexame; mandou dizer que não estava em casa. Ella insistio; declarou que não arredaria d'alli sem lhe fallar; disse em voz bem alta que não ia lá por elle, mas pela filha, que estava arriscada a ser expulsa do collegio; ia para saber que destino lhe havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda para ser engeitada na roda! Jeronymo appareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado que não tem animo de deixar o vicio. A mulher, ao vel-o, perdeu logo toda a energia com que chegára e com moveu-se tanto, que as lagrimas lhe saltaram dos olhos ás primeiras palavras que lhe dirigio. E elle abaixou os seus e fez-se livido defronte d'aquella figura avelhantada, de pelles vazias, de cabellos sujos e encanecidos. Não lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com brandura, quasi a pedir-lhe perdão, a voz muito expremida no aperto da garganta. --Minha pobre velha!... balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça. E os dois emmudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentio ancias de atirar-se-lhe nos braços, possuida de imprevista ternura com aquelle simples affago do seu homem. Um subito raio de esperança illuminou-a toda por dentro, dissolvendo de relance os negrumes accumulados ultimamente no seu coração. Contava não ouvir ali senão palavras duras e asperas, ser talvez repellida grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridiculo pelos novos companheiros do marido; mas, ao encontral-o tambem triste e desgostoso, sua alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jeronymo, cujas lagrimas corriam já silenciosamente, deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao hombro e depois á cintura da esposa, ella desabou, escondendo o rosto contra o peito d'elle, n'uma explosão de soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro. Por algum tempo choraram ambos abraçados. --Consola-te! que queres tu?... São desgraças!... disse o cavouqueiro afinal limpando os olhos. Foi como se eu te tivesse morrido ... mas pódes ficar certa de que te estimo e nunca te quiz mal!... Volta para casa; eu irei pagar o collegio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vae, e pede a Deus Nosso Senhor que me perdôe os desgostos que te tenho eu dado! E acompanhou-a até ao portão da estalagem. Ella, sem poder pronunciar palavra, sahio cabisbaixa, a enxugar os olhos no chale de lã, sacudida ainda de vez em quando por um soluço retardado. Entretanto, Jeronymo não mandou saldar a conta do collegio, no dia seguinte, nem no outro, nem durante todo o resto do mez; e elle, coitado! bem que se mortificou por isso; mas onde ir buscar dinheiro n'aquella occasião? o seu trabalho mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava já alcançado nos seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda. Rita era desperdiçada e amiga de gastar á larga; não podia passar sem uns tantos regalos de barriga e gostava de fazer presentes. Elle, receioso de contrarial-a e quebrar o ôvo da sua paz, até ahi tão completo com respeito á bahiana, subordinava-se calado e affectando até satisfação; no intimo, porém, o infeliz soffria deveras. A lembrança constante da filha e da mulher apoquentavam-no com pontas de remorso, que dia a dia alastravam na sua consciencia, á proporção que esta ia acordando d'aquella cegueira. O desgraçado sentia e comprehendia perfeitamente todo o mal da sua conducta; mas só a idéa de separar-se da amante, punha-lhe logo o sangue doido e apagava-lhe de novo a luz dos raciocinios. «Não! não! Tudo que quizessem, menos isso!» E então, para fugir áquella voz irrefutavel, que estava sempre a serrazinar dentro delle, bebia em camaradagem com os companheiros e habituára-se, dentro em pouco, á embriaguez. Quando Piedade, quinze dias depois da sua primeira visita, tornou lá, um domingo, acompanhada pela filha, encontrou-o bebendo, n'uma roda de amigos. Jeronymo recebeu-as com grande escarcéo de alegria. Fel-as entrar. Beijou a pequena repetidas vezes e suspendeu-a pela cintura, soltando exclamação de enthusiasmo. Com um milhão de raios! Que linda estava a sua morgadinha! Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que as duas mulheres fizessem as pazes no mesmo instante. Era questão decidida! Houve uma scena de constrangimentos, quando a portugueza se vio defronte da bahiana. --Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava Jeronymo, a empurral-as uma contra a outra. Não quero aqui caras fechadas! As duas trocaram um aperto de mão, sem se fitarem. Piedade estava escarlate de vergonha. --Ora muito bem! accrescentou o cavouqueiro, agora, para a coisa ser completa, hão de jantar comnosco! A portugueza oppoz-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro não aceitou. --Não as deixo sahir! É boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar as saudades? Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela occasião de entender-se com o marido sobre o negocio do collegio. Rita, voluvel como toda a mestiça, não guardava rancores, e, pois, desfez-se em obzequios com a familia do amigo. As outras visitas sahiram antes do jantar. Puzeram-se á mesa ás quatro horas e principiaram a comer com boa disposição, carregando no virgem logo desde a sopa. Senhorinha destacava-se do grupo; na sua timidez de menina de collegio parecia, entre aquella gente, triste e assustada ao mesmo tempo. O pae acabrunhava-a com as suas solicitudes brutaes e com as suas perguntas sobre os estudos. Á excepção d'ella, todos os outros estavam, antes da sobremeza, mais ou menos chumbados pelo vinho. Jeronymo, esse estava de todo. Piedade, instigada por elle, esvasiára frequentes vezes o seu copo e, ao fim do jantar, déra para queixar-se amargamente da vida; foi então que ella, já com azedume na voz, fallou na divida do collegio e nas ameaças da directora. --Ora, filha! disse-lhe o cavouqueiro. Agora estás tu tambem para ahi com essa mastigação! Deixa as tristezas para outra vez! Não nos amargures o jantar! --Triste sorte a minha! --Ai, ai! que temos lamuria! --Como não me hei de queixar, se tudo me corre mal?! --Sim? Pois se é para isso que aqui vens melhor será não tornares cá!... resmungou Jeronymo, franzindo o sobrolho. Que diabo! com choradeiras nada se endireita! Tenho eu culpa de que sejas infeliz?... Tambem o sou e não me queixo de Deus! Piedade abrio a soluçar. --Ahi temos! berrou o marido, erguendo-se e dando uma punhada forte sobre a meza. E aturem-na! Por mais que um homem se não queira zangar, ha de estoirar por força! Ora bolas! Senhorinha correu para junto do pae, procurando contel-o. --Sebo! berrou elle, desviando-a. Sempre a mesma coisa! Pois não estou disposto a aturar isto! Arre! --Eu não vim cá por passeio!... proseguio Piedade entre lagrimas! Vim cá para saber da conta do collegio!... --Pague-a você, que tem lá o dinheiro que lhe deixei! Eu é que não tenho nenhum! --Ah! então com que não pagas?! --Não! Com um milhão de raios! --É que és ainda muito peior do que eu suppunha! --Sim, hein?! Pois então deixe-me cá com toda a minha ruindade e despache o becco! Despache-o, antes que eu faça alguma asneira! --Minha pobre filha! Quem olhará por ella, Senhor dos afflictos?! --A pequena já não precisa de collegio! deixe-a cá commigo, que nada lhe faltará! --Separar-me de minha filha? a unica pessoa que me resta?! --Ó mulher! você não está separada d'ella a semana inteira?... Pois a pequena, em vez de ficar no collegio, fica aqui, e aos domingos irá vel-a! Ora ahi tem! --Eu quero antes ficar com minha mãe!... balbuciou a menina, abraçando-se a Piedade. --Ah! tambem tu, ingrata, já me fazes guerra?! Pois vão com todos os diabos! e não me tornem cá para me ferver o sangue, que já tenho de sobra com que arreliar-me! --Vamos d'aqui! gritou a portugueza, travando da filha pelo braço. Maldita a hora em que vim cá! E as duas, mãe e filha, desappareceram; emquanto Jeronymo, passeiando de um para outro lado, monologava, furioso sob a fermentação do vinho. Rita não se mettêra na contenda, nem se mostrára a favor de nenhuma das partes. «O homem, se quizesse voltar para junto da mulher, que voltasse! Ella não o prenderia, porque amor não era obrigado!» Depois de fallar só por muito espaço, o cavouqueiro atirou-se a uma cadeira, despejou sombrio dois dedos de laranginha n'um copo e bebeu-os de um trago. --Arre! Assim tambem não! A mulata então approximou-se d'elle, por detraz; segurou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o na bocca, arredando com os labios a espessura dos bigodes. Jeronymo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a em cheio sobre as suas coxas. --Não te rales, meu bem! disse ella, affagando-lhe os cabellos. Já passou! --Tens razão! besta fui eu em deixal-a pôr pé cá dentro de casa! E abraçaram-se com impeto, como se o breve tempo roubado pelas visitas fosse uma interrupção nos seus amores. Lá fora, junto ao portão da estalagem, Piedade, com o rosto escondido no hombro da filha, esperava que as lagrimas cedessem um pouco, para as duas seguirem o seu destino de enxotadas. XX Chegaram á casa ás nove horas da noite. Piedade levava o coração feito em lama; não déra palavra por todo o caminho e logo que recolheu a pequena, encostou-se á commoda, soluçando. Estava tudo acabado! Tudo acabado! Foi á garrafa de aguardente, bebeu uma boa porção; chorou ainda, tornou a beber, e depois sahio ao pateo, disposta a parasitar a alegria dos que se divertiam lá fóra. A das Dôres tivera jantar de festa; ouviam-se as risadas d'ella e a voz avinhada e grossa do seu homem, o tal sujeito do commercio, abafadas de vez em quando pelos berros da Machona, que ralhava com Agostinho. Em diversos pontos cantavam e tocavam viola. Mas o cortiço já não era o mesmo; estava muito differente; mal dava idéa do que fôra. O pateo, como João Romão havia promettido, estreitára-se com as edificações novas; agora parecia uma rua, todo calçado por igual e illuminado por tres lampeões grandes, symetricamente dispostos. Fizeram-se seis latrinas, seis torneiras d'agoa e tres banheiros. Desappareceram as pequenas hortas, os jardins de quatro a oito palmos e os immensos depositos de garrafas vasias. Á esquerda, até onde acabava o predio do Miranda, estendia-se um novo correr de casinhas de porta e janella, e d'ahi por diante, acompanhando todo o lado do fundo e dobrando depois para a direita até esbarrar no sobrado de João Romão, erguia-se um segundo andar, fechado em cima do primeiro por uma estreita e extensa varanda de grades de madeira, para a qual se subia por duas escadas, uma em cada extremidade. De cento e tantos, a numeração dos commodos elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e pintado de fresco; paredes brancas, portas verdes e gotteiras encarnadas. Poucos logares havia desoccupados. Alguns moradores puzeram plantas á porta e á janella, em meias tinas serradas ou em vazos de barro. Albino levou o seu capricho até á cortina de labyrintho e chão forrado de esteira. A casa d'elle destacava-se das outras; era no andar de baixo, e cá de fóra via-se-lhe o papel vermelho da sala, a mobilia muito brunida, jarras de flôres sobre a commoda, um lavatorio com o espelho todo cercado de rosas artificiaes, um oratorio grande, resplandescente de palmas doiradas e prateadas, toalhas de renda por toda a parte, n'um luxo de egreja, casquilho e defumado. E elle, o pallido lavadeiro, sempre com o seu lenço cheiroso á volta do pescocinho, a sua calça branca de bocca larga, o seu cabello molle cahido por detraz das orelhas bambas, preoccupava-se muito em arrumar tudo isso, eternamente, como se esperasse a cada instante a visita de um estranho. Os companheiros de estalagem elogiavam-lhe aquella ordem e aquelle asseio; pena era que lhe dessem as formigas na cama! Em verdade, ninguem sabia porque, mas a cama de Albino estava sempre coberta de formigas. Elle a destruil-as, e o demonio do bichinho a multiplicar-se cada vez mais e mais todos os dias. Uma campanha desesperadora, que o trazia triste, e aborrecido da vida. Defronte justamente ficava a casa do Bruno e da mulher, toda mobiliada de novo, com um grande candieiro de kerosene em frente á entrada, cujo reverbero parecia olhar desconfiado lá de dentro para quem passava cá no pateo. Agora, entretanto, o casal vivia em santa paz. Leocadia estava discreta; sabia-se que ella dava ainda muito que fazer ao corpo sem o concurso do marido, mas ninguem dizia quando, nem onde. O Alexandre jurava, que, ao entrar ou sahir fora d'horas, nunca a pilhara no vicio; e a esposa, a Augusta Carne Molle, ia mais longe na defeza, porque sempre tivera pena de Leocadia, pois entendia que aquelle assanhamento por homem não era maldade n'ella; era praga de algum bocca do diabo que a quiz e a pobrezinha não deixou.--Estava se vendo d'isso todos os dias!--tanto que ultimamente, depois que a creatura pedio a um padre um pouco de agua benta e benzeu-se com esta em certos logares, o fogo desapparecêra logo, e ella ahi vivia direita e séria que não dava que fallar a ninguem! Augusta ficára com a familia n'uma das casinhas do segundo andar, á direita; estava gravida outra vez; e á noite via-se o Alexandre, sempre muito circumspecto, a passeiar ao comprido da varanda, acalentando uma criancinha ao collo, emquanto a mulher dentro de casa cuidava de outras. A filharada crescia-lhes, que mettia medo. «Era um no papo, outro no sacco!» Moravam agora tambem d'esse lado os dois cumplices de Jeronymo, o Pataca e o Zé Carlos, occupando juntos o mesmo commodo; defronte da porta tinham um fogãozinho e um fogareiro, em que preparavam elles mesmos a sua comida. Logo adiante era o quarto de um empregado do correio, pessoa muito callada, bem vestida e pontual no pagamento; sahia todas as manhãs e voltava ás dez da noite invariavelmente; aos domingos só ia á rua para comer, e depois fechava-se em casa e, houvesse o que houvesse no cortiço, não punha mais o nariz de fóra. E, assim como este, notavam-se por ultimo na estalagem muitos inquilinos novos, que já não eram gente sem gravata e sem meias. A feroz engrenagem d'aquella machina terrivel, que nunca parava, ia já lançando os dentes a uma nova camada social que, pouco a pouco, se deixaria arrastar inteira lá para dentro. Começavam a vir os estudantes pobres, com os seus chapéos desabados, o paletó fuveiro, uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a pennugem do buço, e as algibeiras muito cheias, mas só de versos e jornaes; surgiam continuos de repartições publicas, caixeiros de botequim, artistas de theatro, conductores de bonde, e vendedores de bilhetes de loteria. Do lado esquerdo, toda a parte em que havia varanda foi monopolisada pelos italianos; habitavam cinco a cinco, seis a seis no mesmo quarto, e notava-se que n'esse ponto a estalagem estava já muito mais suja que nos outros. Por melhor que João Romão reclamasse, formava-se ahi todos os dia uma esterqueira de cascas de melancia e laranja. Era uma communa ruidosa e porca a dos demonios dos mascates! Quasi que se não podia passar lá, tal a accumulação de taboleiros de louça e objectos de vidro, caixas de quinquilharia, molhos e molhos de vasilhame de folha de Flandres, bonecos e castellos de gesso, realejos, macacos, o diabo! E tudo isso no meio de um fedor nauseabundo de coisas podres, que empestava todo o cortiço. A parte do fundo da varanda era asseiada felizmente e destacava-se pela profusão de passaros que lá tinham, entre os quaes sobresahia uma arara enorme que, de espaço a espaço, soltava um formidavel sibilo estridente e rouco. Por debaixo ficava a casa da Machona, cuja porta, como a janella, Nênêm trazia sempre enfeitadas de tinhorôes e begonias. O predio do Miranda parecia ter recuado alguns passos, perseguido pelo batalhão das casinhas da esquerda, e agora olhava a medo, por cima dos telhados, para a casa do vendeiro, que lá defronte erguia-se altiva, desassombrada, o ar sobranceiro e triumphante. João Romão conseguira metter o sobrado do visinho no chinello; o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobilia nova impunha respeito. Foi abaixo aquelle grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro, tendo entre ella e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra. Fôra-se a pittoresca lanterna de vidros vermelhos; foram-se as iscas de figado e as sardinhas preparadas ali mesmo á porta da venda sobre as brazas; e na taboleta nova, muito maior que a primitiva, em vez de «Estalagem de São Romão» lia-se em lettras caprichosas: =«Avenida São Romão»= O Cabeça de Gato estava vencido finalmente, vencido para sempre; nem já ninguem se animava a comparar as duas estalagens. Á medida que a de João Romão prosperava d'aquelle modo, a outra decahia de todo; raro era o dia em que a policia não entrava lá e baldeava tudo aquillo a espadeirada de cego. Uma desmoralisação completa! Muitos Cabeças de Gato viraram casaca, passando-se para os Carapicús, entre os quaes um homem podia até arranjar a vida, se soubesse trabalhar com geito em tempo de eleições. Exemplos não faltavam! Depois da partida de Rita, já se não faziam sambas ao relento com o choradinho da Bahia, e mesmo a canna verde pouco se dansava e cantava; agora o forte eram os forrobodós dentro de casa, com tres ou quatro musicos, ceia de café com pão; muita calça branca e muito vestido engommado.--E toca a enfiar para ahi quadrilhas e polkas até romper a manhã! Mas n'aquelle domingo o cortiço estava banzeiro; havia apenas uns grupos magros, que se divertiam com a viola á porta de casa. O melhor, ainda assim, era o da das Dôres. Piedade dirigio-se logo para lá, sombria e cabisbaixa. --Com o demo! você anda agora que nem o boi castrado! exclamou-lhe o Pataca, assentando-se ao lado d'ella. As tristezas atiram-se para traz das costas, creatura de Dons! A vida não dá para tanto! O homem deixou-te? Ora sebo! mette-te com outro e põe o coração á larga! Ella suspirou em resposta, ainda triste; porém a garrafa de paraty correu a roda, de mão em mão, e, á segunda volta, Piedade já parecia outra. Começou a conversar e a tomar interesse no pagode. D'ahi a pouco era, de todos a mais animada, fallando pelos cotovellos, criticando e arremedando as figuras ratonas da estalagem. O Pataca ria-se, a quebrar a espinha, cahindo por cima della e passando-lhe o braço na cintura. --Você ainda é mulher pr'um homem fazer uma asneira! --Olha p'ra que lhe deu a ebria! Solta-me a perna, estupor! O grupo achava graça nos dois e applaudia-os com gargalhadas. E o paraty a circular sempre de mão em mão. A das Dôres não descansava um momento; mal vinha de encher a garrafa lá dentro de casa, tinha de voltar outra vez para enchel-a de novo. «Olha que estafa! Vão beber pr'o diabo!» Afinal appareceu com o garrafão e pousou o no meio da roda. --Querem saber? Empinem por ahi mesmo, que já estou com os quartos doendo de tanto andar de lá p'ra cá! Essa noite, a bebedeira de Piedade foi completa. Quando João Romão entrou, de volta da casa do Miranda, encontrou-a a dansar ao som de palmas, gritos e risadas, no meio de uma grande troça, a saia levantada, os olhos requebrados, a pretender arremedar a Rita no seu choradinho do Bahia. Era a bôba da roda. Batiam-lhe palmadas no trazeiro e com o pé embaraçavam-lhe as pernas, para a ver cahir e rebolar-se no chão. O vendeiro, de fraque e chapéo alto, foi direito ao grupo, então muito mais reforçado de gente, e intimou a todos que se recolhessem. Aquillo já não eram horas para semelhante algazarra! --Vamos! Vamos! Cada um para sua casa! Piedade foi a unica que protestou, reclamando o seu direito de brincar um pouco com os amigos. Que diabo! Não se estava fazendo mal a ninguem! --Ora vá mas é p'ra cama cozer a mona! vituperou-lhe João Romão, repellindo-a. Você, com uma filha quasi mulher, não tem vergonha de estar aqui a servir de palhaço?! Forte bebada! Piedade assomou-se com a descompostura, quiz despicar-se, chegou a arregaçar as mangas e sungar a saia; mas o Pataca metteu-se no meio e conteve-a, pedindo a João Romão que não levasse aquillo em conta, porque era tudo cachaça. --Bom, bom, bom! mas aviem-se! Aviem-se! E não se retirou sem ver a roda dissolvida, e cada qual procurando a casa. Recolheram-se todos em silencio; só o Pataca e Piedade deixaram-se ficar ainda no pateo, a discutir o acto do vendeiro. O Pataca tambem estava bastante toucado. Ambos reconheciam que lhes não convinha demorar-se ali, porém nenhum dos dois se sentia disposto a metter-se no quarto. --Você tem lá alguma coisa que beber em casa? perguntou elle afinal. Ella não sabia ao certo; foi ver. Havia meia garrafa de paraty e um resto de vinho. Mas era preciso não fazer barulho, por'mor da pequena que estava dormindo. Entraram em ponta de pés, a fallar surdamente. Piedade deu mais luz ao candieiro. --Olha agora! Vamos ficar ás escuras! Acabou-se o gaz! O Pataca sahio, para ir á casa buscar uma véla, e de volta trouxe tambem um pedaço de queijo e dois peixes fritos, que levou ao nariz da lavadeira, sem dizer nada. Piedade, aos bordos, desoccupou a meza do engommado o servio dois pratos. O outro reclamou vinagre e pimentas e perguntou se havia pão. --Pão ha. O vinho é que é pouco! --Não faz mal! Vae mesmo com a canninha! E assentaram-se. O cortiço dormia já e só se ouviam, no silencio da noite, cães que ladravam lá fóra na rua, tristemente. Piedade começou a queixar-se da vida veio-lhe uma crise de lagrimas e soluços. Quando poude fallar contou o que lhe succedêra essa tarde, narrou os pormenores da sua ida com a filha á procura do marido, o jantar em commum com a peste da mulata, e afinal a sua humilhação de vir de lá enxovalhada e corrida. Pataca revoltou-se, não com o procedimento de Jeronymo mas com o d'ella. Rebaixar-se áquelle ponto! com effeito!... Ir procurar o homem lá na casa da outra!... Oh! --Elle tratou-me bem, quando lá fui da primeira vez... Hoje é que não sei o que tinha: só faltou pôr-me na rua aos pontapés! --Foi bem feito! Ainda acho pouco! Devia ter lhe mettido o páo, para você não ser tôla! --É mesmo! --Pois não! O que não falta são homens, filha! O mundo é grande! Para um pé doente ha sempre um chinello velho!--E ferrou-lhe a mão nas pernas--chega-te para mim, que te esquecerás do outro! Piedade repellio-o. Que se deixasse de asneiras! --Asneiras! É o que se leva d'esta vida! A pequena acordára lá no quarto e viera descalça até á porta da sala de jantar, para espiar o que faziam os dois. Não deram por ella. E a conversa proseguio, esquentando á medida que a garrafa de paraty se esvasiava. Piedade deu de mão aos seus desgostos, pôz-se a papaguear um pouco; as lagrimas foram-se-lhe; e ella manducou então com appetite, rindo já das pilherias do companheiro, que continuava a apalpar-lhe de vez em quando as coxas. Aquellas coisas, assim, sem se esperar, é que tinham graça!... dizia elle, excitado e vermelho, comendo com a mão, a embeber pedaços de peixe no molho das pimentas. Bem tolo era quem se matava! Depois lembrou que não viria fóra de proposito uma chicrinha de café. --Não sei se ha, vou ver, respondeu a lavadeira, erguendo-se agarrada á meza. E bordejou até á cozinha, a dar esbarrões pela direita e pela esquerda. --Tento no leme, que o mar está forte! exclamou Pataca, levantando-se tambem, para ir ajudal-a. Lá perto do fogão agarrou-a de subito, como um gallo abafando uma gallinha. --Larga! reprehendeu a mulher, sem forças para se defender. Elle apanhou-lhe as fraldas. --Espera! Deixa! --Não quero! E ria-se por ver a attitude comica do Pataca vergado defronte d'ella. --Que mal faz?... Deixa! --Sahe d'ahi, diabo! E, cambaleando, amparados um no outro, foram ambos ao chão. --Olha que peste! resmungou a desgraçada, quando o adversario conseguio saciar-se n'ella. Marráios te partam! E deixou-se ficar por terra. Elle pôz-se de pé e, ao encaminhar-se para a sala de jantar, sentio uma ligeira sombra fugirem sua frente. Era a pequena, que fora espiar á porta da cozinha. Pataca assustára-se. --Quem anda aqui a correr como gato?... perguntou voltando a ter com Piedade, que permanecia no mesmo logar; agora quasi adormecida. Sacudio-a. --Olá! Queres ficar ahi, ó creatura! Levanta-te! Anda a ver o café! E, tentando erguel-a, suspendeu-a por debaixo dos braços. Piedade, mal mudou a posição da cabeça, vomitou sobre o peito e a barriga uma golphada fetida. --Olha o demo! resmungou Pataca. Está que se não póde lamber! E foi preciso arrastal-a até á cama, que nem uma trouxa de roupa suja. A infeliz não dava accordo de si. Senhorinha acudira, perguntando afflicta o que tinha a mãe. --Não é nada, filha! explicou o Pataca. Deixa-a dormir, que isso passa! Olha! se ha limão em casa passa-lhe um pouco atraz da orelha, e verás que amanhã acorda fina e prompta p'ra outra! A menina desatou a soluçar. E o Pataca retirou-se, a dar encontrões nos trastes, furioso, porque, afinal, não tomára café. --Sebo! XXI Ao mesmo tempo, João Romão, em chinellas e camisola, passeava de um para outro lado no seu quarto novo. Um aposento largo e forrado de azul e branco com flôrinhas amarellas fingindo oiro; havia um tapete aos pés da cama, e sobre a peniqueira um despertador de nikel, e a mobilia toda era já de casados, porque o esperto não estava para comprar moveis duas vezes. Parecia muito preoccupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas, dormia lá em baixo, n'um vão de escada, aos fundos do armazém, perto da commúa. Mas que diabo havia elle de fazer afinal d'aquella peste?... E coçava a cabeça, impaciente por descobrir um meio de ver-se livre d'ella. É que n'essa noite o Miranda lhe fallára abertamente sobre o que ouvira de Botelho, e estava tudo decidido: Zulmira aceitava-o para marido e Dona Estella ia marcar o dia do casamento. O diabo era a Bertoleza!... E o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma boa solução para o problema. Ora, que raio de difficuldade armára elle proprio para se coser!... Como poderia agora mandal-a passear, assim, de um momento para outro, se o demonio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia d'isso? E sentia-se revoltado e impotente defronte d'aquelle tranquillo obstaculo que lá estava em baixo, a dormir, fazendo-lhe em silencio um mal horrivel, perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade, retardando-lhe, talvez sem consciencia, a chegada d'esse bello futuro conquistado á força de tamanhas privações e sacrificios! Que ferro! Mas, só com lembrar-se da sua união com aquella brasileirinha fina e aristocratica, um largo quadro de victorias rasgava-se defronte da desensoffrida avidez da sua vaidade. Em primeiro logar fazia-se membro de uma familia tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona Estella; em segundo logar augmentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva, que era rica; e em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo o que o Miranda possuia, realisando-se d'este modo um velho sonho que o vendeiro affagava desde o nascimento da sua rivalidade com o visinho. E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro, associava-se logo com o sogro e iria, pouco a pouco, como quem não quer a coisa, o empurrando para o lado, até empolgar-lhe o logar e fazer de si um verdadeiro chefe da colonia portugueza no Brasil; depois quando o barco estivesse navegando ao largo a todo o panno--Tome lá alguns pares de contos de reis e passe-me para cá o titulo de Visconde! Sim, sim, Visconde! Porque não? E mais tarde, com certeza, Conde! Eram favas contadas! Ah! elle, posto nunca o disséra a ninguem, sustentava de si para si nos ultimos annos o firme proposito de fazer-se um titular mais graduado que o Miranda. E, só depois de ter o titulo nas unhas, é que iria á Europa, de passeio, sustentando grandeza, mettendo invejas, cercado de adulações, liberal, prodigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu oiro novo americano! E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente. --É exacto! E a Bertoleza?... repetia o infeliz, sem interromper o seu vae-e-vem ao comprido da alcova. Diabo! E não poder arredar logo da vida aquelle ponto negro; apagal-o rapidamente, como quem tira da pelle uma nódoa de lama! Que raiva ter de reunir aos vôos mais fulgurosos da sua ambição a idéa mesquinha e ridicula d'aquella inconfessavel concubinagem! E não podia deixar de pensar no demonio da negra, porque a maldita ali estava perto, a rondal-o ameaçadora e sombria; ali estava como o documento vivo das suas miserias, já passadas mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser supprimida, porque era tudo que havia de máo na vida d'elle! Seria um crime conserval-a a seu lado! Ella era o torpe balcão da primitiva bodega; era o aladroado vintemzinho do manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido á noite ao lado do fogareiro á porta da taberna; era o frege immundo e a lista cantada das comezanas á portugueza; era o somno roncado num colchão fetido, cheio de bichos; ella era a sua cumplice e era todo o seu mal--devia pois extinguir-se! Devia ceder o logar á pallida mocinha de mãos delicadas e cabellos perfumados, que era o bem, porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao piano, as flôres nas jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em porcelanas caras; era emfim a doce existencia dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço, conseguiram accumular dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do Miranda, sentia ainda a leve pressão do braço melindroso que se apoiara ao seu, algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos seus dedos grossos, curtos, asperos e vermelhos, conservava a impressão da tepida caricia d'aquella mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres garantidos do matrimonio, affagar-lhe-ia as carnes e os cabellos. Mas, e a Bertoleza?... Sim! era preciso acabar com ella! despachal-a! sumil-a por uma vez! Deu meia noite no relogio do armazem. João Romão tomou uma véla e desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Approximou-se d'ella, pé ante pé, como um criminoso que leva uma idéa homicida. A crioula estava immovel sobre o enxergão, deitada de lado, com a cara escondida no braço direito, que ella dobrára por debaixo da cabeça. Apparecia-lhe uma parte do corpo, núa. João Romão contemplou-a por algum tempo, com asco. E era aquillo, aquella miseravel preta que ali dormia indifferentemente, o grande estorvo da sua ventura!... Parecia impossivel! --E se ella morresse?... Esta phrase, que elle tivera, quando pensou pela primeira vez n'aquelle obstaculo á sua felicidade, tornava-lhe agora ao espirito, porém já amadurecida e transformada n'esta outra: --E se eu a matasse? Mas logo um calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos. Além disso, como?... Sim, como poderia despachal-a, sem deixar signaes compromettedores do crime?... Envenenando-a?... Dariam logo pela coisa!... Matal-a a tiro?... Peior! Leval-a a um passeio fóra da cidade, bem longe e, no melhor da festa, atiral-a ao mar ou por um despenhadeiro, onde a morte fosse infallivel?... Mas como arranjar tudo isso, se elles nunca passeiavam juntos?... Diabo! E o desgraçado ficou a pensar, abstracto, de castiçal na mão, sem despregar os olhos de cima de Bertoleza, que continuava immovel, com o rosto escondido no braço. --E se eu a esganasse aqui mesmo?... E deu, na ponta dos pés, alguns passos para frente, parando logo, sem deixar nunca de contemplal-a. Mas a crioula ergueu de improviso a cabeça e fitou-o com olhos de quem não estava dormindo. --Ah! fez elle. --Que é, seu João? --Nada. Vim só ver-te... Cheguei ainda não ha muito... Como vais tu?... Passou-te a dôr do lado?... Ella meneou os hombros, sem responder ao certo. Houve um silencio entre os dois. João Romão não sabia o que dizer e sahío afinal, escoltado pelo imperturbavel olhar da crioula, que o intimidava mesmo pelas costas. --Teria desconfiado? pensou o miseravel, subindo de novo para o quarto. Qual? Desconfiar de que?... E metteu-se logo na cama, disposto a não pensar mais n'isso e dormir incontinenti. Mas o seu pensamento continuou rebelde a parafusar sobre o mesmo assumpto. --É preciso despachal-a! É preciso despachal-a quanto antes, seja lá como fôr! Ella, até agora, não deu ainda signal de si; não abrio o bico a respeito da questão; mas, Dona Estella está a marcar o dia do casamento; não levará muito tempo para isso ... o Miranda naturalmente communica a noticia aos amigos ... o facto corre de bocca em bocca ... chega aos ouvidos da crioula, e esta, vendo-se abandonada, estoira! estoira com certeza! E agora o verás! Como deve ser bonito, hein?... Ir tão bem até aqui e esbarrar na opposição da negra!... E os commentarios depois!... O que não dirão os invejosos lá da Praça?... «Ah, ah! elle tinha em casa uma amiga, uma preta immunda com quem vivia! Que typo! Sempre ha de mostrar que é gentinha de laia muito baixa!... E aqui a engazopar-nos com uns ares de capitalista que se trata á véla de libra! Olha o Carapicú para que havia de dar! Sáe sujo!» E, então, a familia da menina, com medo de cahir tambem na bocca do mundo, volta atraz e dá o dito por não dito! Bem sei que ella está a par de tudo; isso, olé se está! mas finge-se desentendida, porque conta, e com razão, que eu não serei tão parvo que espere o dia do casamento sem ter todo sumisso á negra! contam que a coisa correrá sem o menor escandalo! E eu, no emtanto, tão besta que nada fiz! E a peste da crioula está ahi senhora do terreiro como d'antes, e não descubro meio de ver-me livre d'ella!... Ora já se vio como arranjei semelhante entalação?... Isto contado não se acredita! E pisava e repisava o caso, sem achar meio de dar-lhe sahida. Diabo! --Ella ha muito que devia estar longe de mim ... fiz mal em não cuidar logo d'isso antes de mais nada!... Fui um pedaço d'asno! Se eu a tivesse despachado logo, quando ainda se não fallava no meu casamento, ninguem desconfiaria da historia: «Porque diabo iria o pobre homem dar cabo de uma mulher, com quem vivia na melhor paz e que era até, dentro de casa, o seu braço direito?...» Mas agora, depois de todas aquellas reformas de vida; depois da separação das camas, e principalmente depois que corresse a noticia do casamento, não faltaria de certo quem o accusasse, se a negra apparecesse morta de repente! Diabo! Deram quatro horas, e o desgraçado nada de pregar olho; continuava a matutar sobre o assumpto, virando se de um para o outro lado da sua larga e rangedora cama de casados. Só pelo abrir da aurora conseguio passar pelo somno; mas, logo ás sete da manhã, teve de pôr-se a pé: o cortiço estava todo alvoroçado com um desastre. A Machona lavava á sua tina, ralhando e discutindo como sempre, quando dois trabalhadores, acompanhados de um ruidoso grupo de curiosos, trouxeram-lhe sobre uma taboa o cadaver ensanguentado do filho. Agostinho havia ido, segundo o costume, brincar á pedreira com outros dois rapazitos da estalagem; tinham, cabritando pelas arestas do precipicio, subido a uma altura superior a duzentos metros do chão e, de repente, faltára-lhe o equilibrio e o infeliz rolou de lá abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes. Todo elle, coitadinho, era uma só massa vermelha; as canellas quebradas no joelho, dobravam molles para debaixo das coxas; a cabeça, desarticulada, abrira no casco e despejava o pirão dos miolos; n'uma das mãos faltavam-lhe todos os dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sahir uma ponta de osso ralado pela pedra. Foi um alarme no pateo quando elle chegou. Cruzes! que desgraça! Albino, que lavava ao lado da Machona, teve uma syncope; Nênêm ficou que nem doida, porque ella queria muito áquelle irmão; a das Dôres imprecou contra os trabalhadores, que deixavam um filho alheio matar-se d'aquelle modo em presença d'elles; a mãe, essa apenas soltou um bramido de monstro apunhalado no coração e cahio mesquinha junto do cadaver, a beijal-o, vagindo como uma criança. Não parecia a mesma! As mães dos outros dois rapazitos esperavam immoveis e lividas pela volta dos filhos, e, mal estes chegaram á estalagem, cada uma se apoderou logo do seu e cahio-lhe em cima, a soval-os ambos que mettia medo. --Mira-te n'aquelle espelho, tentação do diabo! exclamava uma d'ellas, com o pequeno seguro entre as pernas e a encher-lhe a bunda de chinelladas. Não era aquelle que devia ir, eras tu, peste! aquelle, coitado! ao menos ajudava a mãe, ganhava dois mil reis por mez regando as plantas do Commendador, e tu, coisa ruim, só serves para me dar consumições! Toma! Toma! Toma! E o chinello cantava entre o berreiro feroz dos dois rapazes. João Romão chegou ao terraço de sua casa, ainda em mangas de camisa, e de lá mesmo tomou conhecimento do que acontecera. Contra todos os seus habitos impressionou-se com a morte de Agostinho; lamentou-a no intimo, tomado de estranhas condolencias. --Pobre pequeno! tão novo ... tão esperto ... e cuja vida não prejudicava a ninguem, morrer assim, desastradamente!... ao passo que aquelle diabo velho da Bertoleza continuava agarrado á existencia, envenenando-lhe a felicidade, sem se decidir a despachar o beco! E o demonio da crioula parecia mesmo não estar disposta a ir só com duas razões; apezar de triste e acabrunhada, mostrava-se forte e rija. Suas pernas curtas e lustrosas eram duas peças de ferro unidas pela culatra, das quaes ella trazia um par de balas penduradas em sacco contra o peito; as roscas lustrosas do seu cachaço lembravam grossos chouriços de sangue, e na sua carapinha compacta ainda não havia um fio branco. Aquillo, arre! tinha vida para o rosto do seculo! --Mas deixa estar, que eu te despacho bonito e asseiado!... disse o vendeiro de si para si, voltando ao quarto para acabar de vestir-se. Enfiava o collete quando bateram pancadas familiares na porta do corredor. --Então?! Ainda se está em val de lençóes?... Era a voz do Botelho. O vendeiro foi abrir e fel-o entrar ali mesmo para a alcova. --Ponha-se a gosto. Como vai você? --Assim. Não tenho passado lá essas coisas... João Romão deu-lhe noticia da morte do Agostinho e declarou que estava com dôr de cabeça. Não sabia que diabo tinha elle aquella noite, que não houve meio de pegar direito no somno. --Calor ... explicou o outro. E proseguio depois de uma pausa, accendendo um cigarro: Pois eu vinha cá fallar-lhe... Você não repare, mas... João Romão suppoz que o parasita ia pedir-lhe dinheiro e preparou-se para a defeza, queixando-se inopinadamente de que os negocios não lhe corriam bem; mas calou-se, porque Botelho accrescentou com o olhar fito nas unhas: --Não devia fallar n'isto ... são coisas suas lá particulares, em que a gente não se mette, mas... O taberneiro comprehendeu logo onde a visita queria chegar e approximou-se d'ella, dizendo confidencialmente: --Não! Ao contrario! falle com franqueza... Nada de receios... --É que ... sim, você sabe que eu tenho tratado do seu casamento com a Zulmirinha... Lá em casa não se falla agora n'outra coisa ... até a propria Dona Estella já está muito bem disposta a seu favor ... mas... --Desembuche, homem de Deus! --É que ha um pontinho que é preciso pôr a limpo... Coisa insignificante, mas... --Mas, mas! você não desembuchará por uma vez?... Falle, que diabo! Um caixeiro do armazem appareceu á porta, prevenindo de que o almoço estava na meza. --Vamos comer, disse João Romão. Você já almoçou? --Ainda não, mas lá em casa contam commigo... O vendeiro mandou o seu empregado dizer lá defronte á familia do Barão que seu Botelho não ia ao almoço. E, sem tomar o casaco, passou com a visita á sala de jantar. O cheiro activo dos moveis, polidos ainda de fresco, dava ao aposento um caracter insociavel de logar deshabitado e por alugar. Os trastes, tão nús como as paredes, entristeciam com a sua fria nitidez de coisa nova. --Mas vamos lá! Que temos então?... inquirio o dono da casa, assentando-se á cabeceira da meza, emquanto o outro, junto d'elle, tomava logar á extremidade de um dos lados. --É que, respondeu o velho em tom de mysterio, você tem cá em sua companhia uma ... uma crioula, que... Eu não creio, note-se, mas... --Adiante! --É! Dizem que ella é coisa sua... Lá em casa rosnou!... O Miranda defende-o, affirma que não... Ah! aquillo é uma grande alma! mas Dona Estella, você sabe o que são mulheres!... torce o nariz e... Em uma palavra: receio que esta historia nos traga qualquer embaraço!... Calou-se, porque acabava de entrar um portuguezinho, trazendo uma travessa de carne ensopada com batatas. João Romão não respondeu, mesmo depois que o pequeno sahio; ficou abstracto, a bater com a faca entre os dentes. --Porque você a não manda embora?... arriscou-o Botelho, despejando vinho no seu e no copo do companheiro. Ainda d'esta vez não obteve logo resposta; mas o outro tomando, afinal, uma resolução, declarou confidencialmente: --Vou dizer-lhe toda a coisa como ella é ... e talvez que você até me possa auxiliar!... Olhou para os lados, chegou mais a sua cadeira para junto da de Botelho e accrescentou em voz baixa:--Esta mulher metteu-se commigo, quando eu principiava minha vida... Então, confesso ... precisava de alguem nos casos d'ella, que me ajudasse ... e ajudou-me muito, não nego! Devo-lhe isso! não! ajudar-me ajudou!... mas... --E depois? --Depois, ella foi ficando para ahi; foi ficando ... e agora... --Agora é um trambolho que lhe póde escangalhar a egreginha! É o que é! --Sim, que duvida! póde ser um obstaculo sério ao meu casamento! Mas, que diabo! eu tambem, você comprehende, não a posso pôr na rua, assim, sem mais aquellas!... Seria ingratidão, não lhe parece?... --Ella já sabe em que pé está o negocio?... --Deve desconfiar de alguma coisa, que não é tola!... Eu, cá por mim, não lhe toquei em nada... --E você ainda faz vida com ella? --Qual! ha muito tempo que nem sombras d'isso... --Pois então, meu amigo, é arranjar-lhe uma quitanda em outro bairro; dar-lhe algum dinheiro e... Boa viagem! O dente que já não presta arranca-se fóra! João Romão ia responder, mas Bertoleza assomou á entrada da sala. Vinha tão transformada e tão livida que só com a sua presença intimidou profundamente os dois. A indignação tirava-lhe faiscas dos olhos e os labios tremiam-lhe de raiva. Logo que fallou veio-lhe espuma aos cantos da bocca. --Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira á tôa! exclamou ella. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então ha de uma creatura ver entrar anno e sahir anno, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como gallinha podre?! Não! Não ha de ser assim, seu João! --Mas, filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te á tôa?... perguntou o capitalista. --Eu escutei o que você conversava, seu João! A mim não me cegam assim só! Você é fino, mas eu tambem sou! Você está armando casamento com a menina de seu Miranda! --Sim, estou! Um dia havia de cuidar de meu casamento!... Não hei de ficar solteiro toda a vida, que não nasci para pandego! Mas tambem não te sacudo na rua, como disseste; ao contrario agora mesmo tratava aqui com seu Botelho de arranjar-te uma quitanda e... --Não! Com a quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso de um descanço! Para isso mourejei junto de você emquanto Deus Nosso Senhor me deu força e saude! --Mas afinal que diabo queres tu?! --Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfructar o que nós dois ganhámos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como você quer o seu! --Mas não vês que isso é um disparate?... Tu não te conheces?... Eu te estimo, filha; mas por ti farei o que fôr bem entendido e não loucuras! Descança que nada te ha de faltar!... Tinha graça, com effeito, que ficassemos vivendo juntos!... Não sei como não me propões casamento! --Ah! agora eu não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e aguentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia para um tudo; agora não presta para mais nada, e atira-se com ella no monturo do cisco! Não! assim tambem Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se enxotam, porque me hão de pôr fóra d'esta casa, em que metti muito suor do meu rosto?... Quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato! João Romão perdeu por fim a paciencia e retirou-se da sala, atirando á amante uma palavrada porca. --Não vale a pena encanzinar-se ... segredou-lhe o Botelho, acompanhando-o até á alcova, onde o vendeiro enterrou com toda a força o chapéu na cabeça e enfiou o paletó com a mão fechada em murro. --Arre! Não a posso aturar nem mais um instante! Que vá para o diabo que a carregue! em casa é que não me fica! --Calma, homem de Deus! Calma! --Se não quizer ir por bem, irá por mal! Sou eu quem o diz! E o vendeiro esfuziou pela escada, levando atraz de si o velhote, que mal podia acompanhal-o na carreira. Já na esquina da rua parou e, fitando no outro o seu olhar flammejante, perguntou-lhe: --Você vio?! --É ... resmungou o parasita, de cabeça baixa, sem interromper os passos. E seguiram em silencio, andando agora mais de vagar; ambos preoccupados. No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou se Bertoleza era escrava quando João Romão tomou conta d'ella. Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro. Ia pensando em mettel-a como idiota no Hospicio de Pedro II, mas accudia-lhe agora coisa muito melhor: entregal-a ao seu senhor, restituil-a legalmente á escravidão. Não seria difficil ... considerou elle; era só procurar o dono da escrava, dizer lhe onde esta se achava refugiada e aquelle ir logo buscal-a com a policia. E respondeu ao Botelho: --Era e é! --Ah! Ella é escrava? De quem? --De um tal Freitas de Mello. O primeiro nome não sei. Gente de fóra. Em casa tenho as notas. --Ora! então a coisa é simples!... Mande-a para o dono! --E se ella não quizer ir?... --Como não?! A policia a obrigará! É boa! --Ella ha de querer comprar a liberdade... --Pois que a compre, se o dono consentir!... Você com isso nada mais tem que ver! E se ella voltar á sua procura, despache-a logo; se insistir, vá então á autoridade e queixe-se! Ah, meu caro, estas coisas, para ser bem feitas, fazem-se assim ou não se fazem! Olhe que aquelle modo com que ella lhe fallou ha pouco é o bastante para você ver que semelhante estupor não lhe convém dentro de casa nem mais um instante! Digo-lhe até: já não só pelo facto do casamento, mas por tudo! Não seja molle! João Romão escutava, caminhando calado, sem mais vislumbres de agitação. Tinham chegado á praia. --Você quer encarregar-se d'isto? propoz elle ao companheiro, parando ambos á espera do bonde; se quizer, póde tratar, que lhe darei uma gratificação menos má... --De quanto?... --Cem mil reis! --Não! dobre! --Terá os duzentos! --Está dito! Eu cá, para tudo que fôr pôr cobro a relachamentos de negro, estou sempre prompto! --Pois então logo mais á tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o logar em que elle residia quando ella veio para mim e o mais que encontrar a respeito. --E o resto fica a meu cuidado! Póde dal-a por despachada! XXII Desde esse dia Bertoleza fez-se ainda mais concentrada e resmungona e só trocava com o amigo um ou outro monosyllabo inevitavel no serviço da casa. Entre os dois havia agora d'esses olhares de desconfiança, que são abysmos de constrangimento entre pessoas que moram juntas. A infeliz vivia n'um sobresalto constante; cheia de apprehensões, com medos de ser assassinada; só comia do que ella propria preparava para si e não dormia senão depois de fechar-se á chave. Á noite o mais ligeiro rumor a punha de pé; olhos arregalados, respiração convulsa, bocca aberta e prompta para pedir soccorro ao primeiro assalto. No emtanto, em redor do seu desassocego e do seu máo estar, tudo ali prosperava forte em grosso, aos contos de reis, com a mesma febre com que d'antes, em torno da sua actividade de escrava trabalhadeira, os vintens choviam dentro da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente do armazem carroças e carroças com fardos e caixas, trazidas da alfandega, em que se liam as iniciaes de João Romão; e rodavam-se pipas e mais pipas de vinho e de vinagre, e grandes partidas de barricas de cerveja e de barris de manteiga e de saccos de pimenta. E o armazem, com as suas portas escancaradas sobre o publico, engolia tudo de um trago, para depois ir deixando sahir de novo, aos poucos com um lucro lindissimo, que no fim do anno causava assombros. João Romão fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno commercio sortia-se lá para vender a retalho. A sua casa tinha agora, um pessoal complicado de primeiros, segundos e terceiros caixeiros, além do guarda livros, do comprador, do despachante e do caixa; do seu escriptorio sahiam correspondencias em varias linguas e, por dentro das grades de madeira polida, onde havia um bufete sempre servido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contractos commerciaes, transacções em que se arriscavam fortunas; e propunham-se negociações de emprezas e privilegios obtidos do governo; e realisavam-se vendas e compras de papeis; e concluiam-se emprestimos de juros fortes sobre hypothecas de grande valor. E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante; capitalistas adulados e mercadores fallidos; corredores da praça, zangões, cambistas; empregados publicos, que passavam procuração contra o seu ordenado; emprezarios de theatro e fundadores de jornaes, em apuros de dinheiro; viuvas, que negociavam o seu monte pio; estudantes, que iam receber a sua mezada; e capatazes de vários grupos de trabalhadores pagos pela casa; e, destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente miuda do fôro, sempre inquieta, farisqueira, a metter o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo do braço, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto da bocca. E, como a casa commercial de João Romão, prosperava igualmente a sua avenida. Já lá se não admittia assim qualquer pé rapado: para entrar era preciso carta de fiança e uma recommendação especial. Os preços dos commodos subiam, e muitos dos antigos hospedes, italianos principalmente, iam, por economia, desertando para o Cabeça de Gato e sendo substituidos por gente mais limpa. Decrescia tambem o numero das lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram occupadas agora por pequenas familias de operarios, artistas e praticantes de secretaria. O cortiço aristocratisava-se. Havia um alfaiate logo á entrada, homem sério, de suissas brancas, que cosia na sua machina entre officiaes, ajudado pela mulher, uma lisboeta côr de nabo gorda, velhusca, com um principio de bigode e cavagnac, mas extremamente circumspecta; em seguida um relojoeiro calvo, de oculos, que parecia mumificado atraz da vidraça em que elle, sem mudar de posição, trabalhava, da manhã até á tarde; depois um pintor de tectos e taboletas, que levou a phantasia artistica ao ponto de fazer, a pincel, uma trepadeira em volta da sua porta, onde se viam passaros de varias côres e feitios, muitos compromettedores para o credito profissional do autor; mais adiante installára-se um cigarreiro, que occupava nada menos de tres numeros na estalagem e tinha quatro filhas e dois filhos a fabricarem cigarros, e mais tres operarias que preparavam palha de milho e picavam e desfiavam tabaco. Florinda, mettida agora com um despachante da estrada de ferro, voltára para o São Romão e trazia a sua casinha em muito bonito pé de limpeza e arranjo. Estava ainda de luto pela mãe, a pobre velha Marcianna, que ultimamente havia morrido no hospicio dos doidos. Aos domingos o despachante costumava receber alguns camaradas para jantar, e como a rapariga puxava os feitios da Rita Bahiana, as suas noitadas acabavam sempre em pagode de dansa e cantarola, mas tudo de portas a dentro, que ali já se não admittiam sambas e chinfrinadas ao relento. A Machona quebrára um pouco de genio depois da morte de Agostinho e era agora visitada por um grupo de moços do commercio, entre os quaes havia um pretendente á mão de Nênêm, que se mirrava já de tanto esperar a secco por marido. Alexandre fôra promovido a sargento e empertigava-se ainda mais dentro da sua farda nova, de botões que cegavam; a mulher, sempre indifferentemente fecunda e honesta, parecia criar bolôr na sua molleza humida e tinha um ar triste de cogumelo; era vista com frequencia a dar de mammar a um pequerrucho de poucos mezes, empinando muito a barriga para a frente, pelo habito de andar sempre gravida. A sua comadre Léonie continuava a visital-a de vez em quando, aturdindo a actual pacatez d'aquelle cenobio com as suas roupas gritadoras. Uma occasião em que lá fóra, um sabado á tarde, produzira grande alvoroço entre os decanos da estalagem, porque comsigo levava Pombinha, que se atirára ao mundo e vivia agora em companhia d'ella. Pobre Pombinha! no fim dos seus primeiros dois annos de casada já não podia supportar o marido; todavia, a principio, para conservar-se mulher honesta, tentou perdoar-lhe a falta de espirito, os gostos razos e a sua risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouvio-lhe, resignada, as confidencias banaes nas horas intimas do matrimonio; attendeu-o nas suas exigencias mesquinhas de ciumento que chora; tratou-o com toda a solicitude, quando elle esteve a decidir com uma pneumonite aguda; procurou afinar em tudo com o pobre rapaz: não lhe fallou nunca em coisas que cheirassem a luxo, a arte, a esthetica, a originalidade; escondeu a sua mal educada e natural intuição pelo que é grande, ou bello, ou arrojado, e fingio ligar interesse ao que elle fazia, ao que elle dizia, ao que elle ganhava, ao que elle pensava e ao que elle conseguia com paciencia na sua vida estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, zás! faltou-lhe o equilibrio e a misera escorregou, cahindo nos braços de um bohemio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira. O marido não deu logo pela coisa, mas começou a estranhar a mulher, a desconfiar d'ella e a espreital-a, até que um bello dia, seguindo-a na rua sem ser visto, o desgraçado teve a dura certeza de que era trahido pela esposa, não mais com o poeta libertino, mas com um artista dramatico, que muitas vezes lhe arrancára, a elle, sinceras lagrimas de commoção, declamando no theatro em honra da moral triumphante e estigmatisando o adulterio com a rethorica mais vehemente e indignada. Ah não poude illudir-se! ... e, a despeito do muito que amava á ingrata, rompeu com ella e entregou-a á mãe, fugindo em seguida para São Paulo. Dona Isabel, que sabia já, não d'esta ultima falcatrua da filha, mas das outras primeiras, que bem a mortificaram, coitada! desfez-se em lagrimas, aconselhou-a a que se arrependesse e mudasse de conducta; em seguida escreveu ao genro, intercedendo por Pombinha, jurando que agora respondia por ella e pedindo-lhe que esquecesse o passado e voltasse para junto de sua mulher. O rapaz não respondeu á carta, e dahi a mezes, Pombinha desappareceu da casa da mãe. Dona Isabel quasi morre de desgosto. Para onde teria ido a filha?... «Onde está? onde não está! Procura d'aqui! procura d'ahi!» Só a descobrio semanas depois; estava morando n'um hotel com Léonie. A serpente vencia afinal. Pombinha foi, pelo seu proprio pé, attrahida, metter-se-lhe na bocca. A pobre mãe chorou a filha como morta; mas, visto que os desgosto não lhe tiraram a vida por uma vez e, como a desgraçada não tinha com que matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça baixa o primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então, aceitou sempre, constituindo-se a rapariga no seu unico amparo da velhice e sustentando-a com os ganhos da prostituição. Depois, como n'este mundo uma creatura a tudo se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a casa da filha. Mas não apparecia nunca na sala quando havia gente de fóra; escondia-se; e, se algum dos frequentadores de Pombinha a pilhava de improviso, a infeliz, com vergonha de si mesma, fingia-se criada ou dama de companhia. O que mais a desgostava, e o que ella não podia tolerar sem apertos de coração, era ver a pequena endemoninhar-se com champanha depois do jantar e pôr-se a dizer tolices e a estender-se ali mesmo no collo dos homens. Chorava sempre que a via entrar ébria, fóra d'horas, depois de uma orgia; e, de desgosto em desgosto, foi se sentindo enfraquecer e enfermar, até cahir de cama e mudar-se para uma casa de saude, onde afinal morreu. Agora, as duas cocotes, amigas, inseparaveis, terriveis n'aquella inquebrantavel solidariedade, que fazia d'ellas uma só cobra de duas cabeças dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde houvesse prazer; á tarde, antes do jantar, atravessavam o Catette em carro descoberto, com a Jujú ao lado; á noite, no theatro, em um camarote de bocca, chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela politica e avidos de sensações extremas, ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hoteis os sensuaes e gordos fazendeiros de café, que vinham á côrte esbodegar o farto producto das safras do anno, trabalhadas pelos seus escravos. Por cima d'ellas duas passára uma geração inteira de devassos. Pombinha, só com tres mezes de cama franca, fizera-se tão perita no officio como a outra; a sua infeliz intelligencia, nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vicios de largo folego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos d'aquella vida; seus labios não tocavam em ninguem sem tirar sangue; sabia beber, gotta a gotta, pela bocca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a victima pudesse dar de si. Entretanto, lá na Avenida São Romão, era, como a mestra, cada vez mais adorada pelos seus velhos e fieis companheiros de cortiço; quando lá iam, acompanhadas por Jujú, a porta da Augusta ficava, como d'antes, cheia de gente, que as abençoava com o seu estupido sorriso de pobreza hereditaria e humilde. Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jeronymo, a cuja filha, sua protegida predilecta, votava agora, por sua vez, uma sympathia toda especial, identica á que n'outro tempo inspirára ella propria á Léonie. A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta n'aquella pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria. E era, ainda assim, com essas esmolas de Pombinha, que na casa de Piedade não faltava de todo o pão, porque já ninguem confiava roupa á desgraçada, e nem ella podia dar conta de qualquer trabalho. Pobre mulher! chegára ao extremo dos extremos. Coitada! já não causava dó, causava repugnancia e nojo. Apagaram-se-lhe os ultimos vestigios do brio; vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria, d'essa embriaguez sombria e morbida que se não dissipa nunca. O seu quarto era mais immundo e o peior de toda a estalagem; homens malvados abusavam d'ella, muitos de uma vez, aproveitando-se da quasi completa inconsciencia da infeliz. Agora, o menor trago de aguardente a punha logo prompta; acordava todas as manhãs apatetada, muito triste, sem animo para viver esse dia, mas era só correr á garrafa e voltavam-lhe as risadas frouxas, de bocca que já se não governa. Um empregado de João Romão, que ultimamente fazia as vezes d'elle na estalagem, por tres vezes a enxotou, e ella, de todas, pedio que lhe dessem alguns dias de espera, para arranjar casa. Afinal, no dia seguinte ao ultimo em que Pombinha appareceu por lá com Léonie e deixou-lhe algum dinheiro, despejaram-lhe os tarecos na rua. E a misera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no Cabeça de Gato que, á proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjecto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro regeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalteravel, para sempre, o verdadeiro typo da estalagem fluminense, a legitima, a legendaria; aquella em que ha um samba e um rôlo por noite; aquella em que se matam homens sem a policia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuaes em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraiso de vermes; brejo de lodo quente o fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão. XXIII A porta de uma confeitaria da rua do Ouvidor, João Romão, apurado n'um fato novo de casimira clara, esperava pela familia do Miranda, que n'esse dia andava em compras. Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O tempo estava magnifico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e sahia, a passo frouxo, da casa Pascoal. Lá dentro janotas estacionavam de pé, soprando o fumo dos charutos, á espera que desoccupassem uma das mezinhas de marmore preto; grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto. Respirava-se um cheiro agradavel de essencias e vinagres aromaticos; havia um rumor quente e garrido, mas bem educado; namorava-se forte, mas com disfarce, furtando-se olhares no complicado encontro dos espelhos; homens bebiam ao balcão e outros conversavam, comendo empadinhas junto ás estufas; algumas pessoas liam já os primeiros jornaes da tarde; serventes, muito atarefados, despachavam compras de doce e biscoitos e faziam sem descançar, pacotes de papel de côr, que os compradores levavam pendurados n'um dedo. Ao fundo, de um dos lados do salão, aviavam-se grandes encommendas de banquetes para essa noite, traziam-se lá de dentro, já promptas, torres e castellos de balas e trouxas d'ovos e imponentes peças de cozinha caprichosamente enfeitadas; criados desciam das prateleiras as enormes baixellas de metal branco, que os companheiros iam embalando em caixões com papel fino picado. Os empregados das secretarias publicas vinham tomar o seu vermuth com siphão; reporteres insinuavam-se por entre os grupos dos jornalistas e dos politicos, com o chapéo á ré, avidos de noticias, uma curiosidade indiscreta nos olhos. João Romão sem deixar a porta, apoiado no seu guarda chuva de cabo de marfim, recebia cumprimentos de quem passava na rua; alguns paravam para lhe fallar. Elle tinha sorrisos e offerecimentos para todos os lados; e consultava o relogio de vez em quando. Mas a familia do Barão surgio afinal. Zulmira vinha na frente, com um vestido côr de palha justo ao corpo, muito elegante no seu typo de fluminense pallida e nervosa; logo depois Dona Estella, grave, toda de negro, passo firme e ar severo de quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumprimento dos seus deveres. O Miranda acompanhava-as, de sobrecasaca, fitinha ao peito, o collarinho até ao queixo, botas de verniz, chapéo alto e bigode cuidadosamente raspado. Ao darem com João Romão, elle sorrio e Zulmira tambem; só Dona Estella conservou inalteravel a sua fria mascara de mulher que não dá verdadeira importancia senão a si mesma. O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro d'elles, cheio de solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho a que tomassem alguma coisa. Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se da primeira meza que se esvaziou. Um criado acudio logo e João Romão, depois de consultar Dona Estella, pedio sandwichs doces e moscatel de Setubal. Mas Zulmira reclamou sorvete e licor. E só esta fallava; os outros estavam ainda á procura de um assumpto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse tempo considerava o tecto e as paredes, fez algumas considerações sobre as reformas e novos adornos do salão da confeitaria. Dona Estella dirigio, de má, a João Romão varias perguntas sobre a companhia lyrica, o que confundio por tal modo ao pobre homem, que o poz vermelho e o desnorteou de todo. Felizmente, n'esse instante chegava o Botelho e trazia uma noticia: a morte de um sargento no quartel; questão entre inferior e superior. O sargento, insultado por um official do seu batalhão, levantara a mão contra elle, e o official então arrancára da espada e atravessára-o de lado a lado. Estava direito! Ah! elle era rigoroso em pontos de disciplina militar! Um sargento levantar a mão para um official superior!... devia ficar estendido ali mesmo, que duvida! E faiscavam-lhe os olhos no seu inverterado enthusiasmo por tudo que cheirasse á farda. Vieram logo as anecdotas analogas; o Miranda contou um facto identico que se dera vinte annos atraz e Botelho citou uma enfiada d'elles interminavel. Quando se levantaram, João Romão deu o braço a Zulmira e o Barão á mulher, e seguiram todos para o largo de São Francisco, lentamente, em andar de passeio, acompanhados pelo parasita. Lá chegados Miranda queria que o visinho acceitasse um logar no seu carro, mas João Romão tinha ainda que fazer na cidade e pedio dispensado obsequio. Botelho tambem ficou; e, mal a carroagem partio, este disse ao ouvido do outro, sem tomar folego: --O homem vae hoje, sabe? Está tudo combinado! --Ah! vae? perguntou João Romão com interesse, estacando no meio do largo. Ora graças! Já não é sem tempo! --Sem tempo! Pois olhe, meu amigo, que tenho suado o topete! Foi uma campanha! --Ha que tempo já tratamos d'isto!... --Mas que quer você, se o homem não apparecia?... Estava fóra! Escrevi-lhe varias vezes, como sabe, e só agora consegui pilhal-o. Fui tambem á policia duas vezes e já lá voltei hoje; ficou tudo prompto! mas você deve estar em casa para entregar a crioula quando elles lá se apresentarem ... --Isso é que seria bom se se pudesse dispensar... Desejava não estar presente... --Ora essa! Então com quem se entendem elles?.... Não! tenha paciencia! é preciso que você lá esteja! --Você podia fazer as minhas vezes... --Peior! Assim não arranjamos nada! Qualquer duvida póde entornar o caldo! E melhor fazer as coisas bem feitas Que diabo lhe custa isto?... Os homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e você a entrega--prompto! Fica livre d'ella para sempre, e d'aqui a dias estoira o champanha do casorio! Hein, não lhe parece? --Mas... --Ella ha de choramigar, lazer lamurias e coisas, mas você pôe-se duro e deixe-a seguir lá o seu destino!... Bolas! não foi você que a fez negra!... --Pois vamos lá! creio que são horas. --Que horas são! --Tres e vinte. --Vamos indo. E desceram de novo a rua do Ouvidor até ao ponto dos bondes de Gonçalves Dias. --O de São Clemente não está agora, observou o velho. Vou tomar um copo d'agoa emquanto o esperamos. Entraram no botequim do logar e, para conversar assentados, pediram dois calices de cognac. --Olhe, acrescentou Botelho; você nem precisa dizer palavra ... faça como coisa que não tem nada com isso, comprehende? --E se o homem quizer os ordenados de todo o tempo em que ella esteve em minha companhia?... --Como, filho, se você não a alugou das mãos de ninguem?!... Você não sabe lá se a mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora apparece o dono, reclama-a, e você a entrega, porque não quer ficar com o que lhe não pertence! Ella sim, póde pedir o seu saldo de contas; mas para isso você lhe dará qualquer coisa... --Quanto devo dar-lhe? --Ahi uns quinhentos mil reis, para fazer a coisa á fidalga. --Pois dou-lh'os. --E feito isso--acabou-se! O proprio Miranda vae logo, logo, ter com você! Verá! Iam fallar ainda, mas o bonde de São Clemente acabava de chegar, assaltado por todos os lados pela gente que o esperava. Os dois só conseguiram logar muito separados um do outro, de sorte que não puderam conversar durante a viagem. No largo da Carioca uma victoria passou por elles, a todo o trote. Botelho vergou-se logo para traz, procurando os olhos do vendeiro, a rir-se com intenção. Dentro de carro ia Pombinha, coberta de joias, ao lado de Henrique; ambos muito alegres, em pandega. O estudante, agora no seu quarto anno de medicina, vivia á solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico. Ao chegarem á casa, João Romão pedio ao cumplice que entrasse e levou-o para o seu escriptorio. --Descance um pouco ... disse-lhe. --É, se eu soubesse que elles se não demoravam muito, ficava para ajudal-o. --Talvez só venham depois do jantar, tornou aquelle, assentando-se á carteira. Um caixeiro approximou-se d'elle respeitosamente e fez-lhe varias perguntas relativas ao serviço do armazem, ao que João Romão respondia por monosyllabos de capitalista; interrogou-o por sua vez e, como não havia novidade, tomou Botelho pelo braço e convidou-o a sahir. --Fique para jantar. São quatro e meia, segredou-lhe na escada. Já não era preciso prevenir lá defronte, porque agora o velho parazita comia muitas vezes em casa do visinho. O jantar correu frio e contrafeito; os dois sentiam-se ligeiramente dominados por um vago sobresalto. João Romão foi pouco além da sôpa e quiz logo a sobremeza. Tomavam café, quando um empregado subio para dizer que lá em baixo estava um senhor, acompanhado de duas praças, e que desejava fallar ao dono da casa. --Vou já! respondeu este. E accrescentou para o Botelho:--São elles! --Deve ser, confirmou o velho. --E desceram logo. --Quem me procura?... exclamou João Romão com disfarce, chegando ao armazem. Um homem alto, com ar de estroina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha de papel. João Romão, um pouco tremulo, abrio-a defronte dos olhos e leu-a demoradamente. Um silencio formou-se em torno d'elle; os caixeiros pararam em meio do serviço, intimidados por aquella scena em que entrava a policia. --Está aqui com effeito ... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre... --É minha escrava, affirmou o outro. Quer entregar-m'a?... --Mas immediatamente. --Onde está ella? --Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar... O sujeito fez signal aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e encaminharam-se todos para o interior da casa. Botelho, á frente delles, ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atraz, pallido, com as mãos crusadas nas costas. Atravessaram o armazem, depois um pequeno corredor que dava para um pateo calçado, e chegaram finalmente á cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cocaras no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando vio parar defronte d'ella aquelle grupo sinistro. Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. N'um relance de grande perigo comprehendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matal-a, restituia-a ao captiveiro. Seu primeiro impulso foi de fugir, Mal, porém, circumvagou os olhos em torno de si, procurando escapúla, o senhor adiantou-se d'ella e segurou-lhe o hombro. --É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a seguil-os.--Prendam-na! É escrava minha! A negra, immovel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para elles, sem pestanejar: Os policias, vendo que ella se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com impeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguem conseguisse alcançal-a, já de um só golpe certeiro e fundo rasgára o ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue. João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazem, tapando o rosto com as mãos. N'esse momento parava á porta da rua uma carruagem. Era uma commissão de abolicionistas que vinham, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de socio benemerito. Elle mandou que os conduzissem para a sala de visitas. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O CORTIÇO *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.