The Project Gutenberg eBook of A capital federal (impressões de um sertanejo) This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A capital federal (impressões de um sertanejo) Author: Henrique Coelho Netto Release date: February 23, 2023 [eBook #70121] Language: Portuguese Original publication: Portugal: Lelo & Irmão Credits: The Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A CAPITAL FEDERAL (IMPRESSÕES DE UM SERTANEJO) *** A CAPITAL FEDERAL [Illustração: Coelho Netto] COELHO NETTO A _CAPITAL_ FEDERAL (Impressões de um Sertanejo) 4.ᵃ EDIÇÃO [Illustração] PORTO Livraria Chardron, de Lélo & Irmão, editores--Rua das Carmelitas, 144 1915 _DO MESMO AUCTOR_ Esphynge, 1 vol. 6$0 Sertão, 1 vol. $60 Agua de Juventa, 1 vol. $70 A bico de penna, 1 vol. $70 Romanceiro, 1 vol. $50 Jardim das Oliveiras, 1 vol. $50 Fabulario, 1 vol. $50 Miragem, romance, 1 vol. $60 Theatro, vol. 1.ᵒ, 1 vol. $80 Theatro, vol. 2.ᵒ $40 Quebranto (Theatro), vol. 4.ᵒ $50 Theatro, vol. 5.ᵒ no prélo Apologos, 1 vol. $50 Mysterio do Natal, 1 vol. $50 Inverno em flor $70 O Morto, 1 vol. $60 Banzo, 1 vol. $50 A Conquista $70 Rei Negro $80 A Tormenta no prélo No prélo, a seguir em novas edições: O Rei Phantasma 1 vol. O Paraiso 1 vol. O Turbilhão 1 vol. A propriedade litteraria e artistica está garantida em todos os paizes que adheriram á convenção de Berne--(Em Portugal, pela lei de 18 de março de 1911. No Brasil pela lei n.ᵒ 2.577 de 17 de Janeiro de 1912.) _Ao Revm. padre Ambrosio Coriolano d’Annunciação Louzada, vigario em Tamanduá, como humilde testemunho de gratidão, pelos severos conselhos com que fortaleceu o meu espirito e pelos cascudos com que me abriu a cabeça para que nella entrassem as regras de concordancia e os versos de Virgilio, offereço este livro._ _Tamanduá, em Minas--Janeiro, 93._ Meu tio, _Ha neste livro paginas que vos pertencem, porque eu nunca as teria escripto se a minha Bôa Sorte me não tivesse guiado para o retiro de ascetismo voluptuoso onde viveis, em beato socego, praticando a moral divina de Epicuro e cuidando flores; outras ha, e profusas, derivadas da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem guardo saudades e conceitos; outras, finalmente, que seriam dedicadas á Jesuina se o escrupulo não existisse na moral privada._ _Offereço, porém, as minhas primeiras letras ao padre Coriolano, porque, sem elle, meu tio amado, eu seria ainda hoje tão bronco como o Venancio Dias, do rancho de Santa Engracia, ou como o José Taborda, da cordoaria._ _Outros livros virão, nitidos e pensados; e, dentre elles, escolherei o mais digno dos vossos merecimentos._ _Não alastro as paginas com dedicatorias: a meu pai, á minha mãi, nos meus parentes e amigos, vivos e finados, para que se não diga de mim o que por aqui se propalou a respeito do Brites, que encheu quatorze folhas da sua these sobre o «cryptococus xantogenico», com offerecimentos, envois e uma reclame a certa modista da rua d’Ajuda._ _Outros livros virão, meu tio amado._ _Affectuoso_, Anselmo. I Para estar de acôrdo com o horario dos trens deviamos chegar ás oito horas e alguns minutos á estação, e estou certo de que assim teria acontecido se não fosse o folgado e paciente atrazo de duas horas e meia, que tivemos de aturar dentro dos compridos wagons de primeira classe, nada inferiores ao _carcere duro_. Desde as quatro da manhan, quando deixei o tecto paterno, sahindo para a nevoa dos campos frios, até áquella hora, andava meu pobre corpo aos solavancos, primeiro no dorso nédio da ruana, mais tarde nos bancos do expresso, tendo por fronteiros dois homens terriveis, de idéas contrarias--um rotundo, conservador e catholico, saudoso do monarcha, bramando contra a indifferença do povo, que deixara partir para o exilio o velho soberano, sem um protesto, sem um tiro ao menos; o outro, de pêra, esgalgado e nervoso, livre pensador, formidavel em theorias republicanas, contando que, nos muros da sua casa, na Januaria, havia despojos de escaramuças contra sebastianistas: chuços, arcabuzes, facas, fazendo panoplias e cercaduras em volta dos retratos dos martyres mineiros: e discorria sobre as revoluções, reclamando um baptismo de sangue, como o de 89, em França, sem o que a republica nunca chegaria á consolidação perfeita. O conservador pacato, abrandando o diapasão, atacava o procedimento dos revolucionarios de Novembro, que haviam banido os altares, rechassando os santos--a Virgem, a consoladora, a misericordiosissima Conceição, Mãi de Deus e Amparo dos Afflictos. Podiam ter feito tudo, mas deixassem a crença de cada um. --A crença é a republica. A Conceição é a Patria. Qual Deus! Qual Igreja, meu caro... o tempo dessas coisas passou. Havendo Constituição e Justiça, para que diabo queremos nós santos? Deixemo-nos de sentimentalismos piégas! Veiu á questão o militarismo. O conservador impugnava a farda, queria o civil. O esgalgado investiu. --Mas onde encontral-o? Mostre-me um homem capaz de tomar a responsabilidade do governo... Mostre-me, entre os casacas, um cidadão á altura de exercer esse cargo. E, escancarando os braços, escancellando a boca, os olhos esbogalhados: Não ha! Vamos muito bem assim, não acha o senhor? Era commigo. Encolhi os hombros para fugir á discussão. Elle tomou de uma botelha e offereceu. O conservador, com um gesto nobre, rejeitou; eu rejeitei; e uma mocinha triste, que vinha derreada, a olhar melancolicamente a paisagem, como se por ali lhe ficassem pedaços do coração, teve um sorriso adoravel, rejeitando, por sua vez. Seus olhos castanhos, entre grandes cilios, alumiaram-me, e travámos palestra, em tom subtil e discreto, vindo eu a saber, pelo cicio dos seus labios, que era professora em Sabará, na fazenda de um tal Souza Gordo. E disse-me a sua patria--a Italia, e o seu nome, já celebre no idyllio--Graziella. E eu, a ouvir-lhe as suaves palavras, via as arvores passarem vertiginosamente, como se os campos e os montes assustados fugissem diante do comboio rapido. Emquanto andámos, não lhe percebi um movimento, um olhar que não fossem do mais candido recato. Lia--um livrinho minusculo, capa de percaline roxa e letras de ouro. Em Juiz de Fóra, offerecendo-lhe uma corbelha de figos, aproveitei a sua distracção para surprender o nome do poeta favorito--Leopardi. Era pessimista com tão angelico sorriso! Amargo seculo em que as deusas trazem philtros no bolso e seguem a seita sombria dos desesperados. Era, de certo, a idéa da morte que lhe punha nos serenos olhos tanta melancolia. Na Barra, porém, tive uma surpresa--voltando ao wagon, encontrei-a sem luvas, o véusinho levantado, trincando, com voracidade, uma côxa de frango. Corou ao ver-me, mas a fome venceu-a; e, até Mendes, fartou-se regaladamente, escorropichando, por uma calha de papel, a farofia de manteiga e ovo. Trevas de tunneis, verduras de campos, rampas, viaductos, desfiladeiros, tudo vencemos em corrida vertiginosa, aos trancos, ás vezes beirando abysmos, ou rolando sobre pontilhões, por cima d’aguas encachoeiradas. Passavamos pelas estações num ápice; mal se podiam ver as luzes dos lampiões e os vultos na platafórma. Quando, atravéz da tela lucida dum aguaceiro copioso, avistámos os primeiros fogos da cidade, bonds, carros, todos se puzeram de pé, arranjando malas, espanando chapéus. O esgalgado respirou, safando o guarda-pó. O conservador dormia beatamente e foi preciso que o sacudissem para que despertasse. --Chegámos, senhor barão. Empoados, como nos tempos galantes dos Luizes, puzemos pé na platafórma da estação, claramente alumiada pelas grandes lampadas foscas que dão ao sitio uma luz de luar, pallida e triste. Dizem que os cães que ali vão errar, á noite, estacam, levantam o focinho e uivam lamentosamente. Pierrot seria capaz de enganar-se se não tivesse, como eu, prevenido o espirito com uma leitura sobre a cidade e as suas maravilhas. Entretanto, deixando o meu wagon, assoalhado de cascas de frutas e de queijo, copiosamente cuspinhado, uma variedade infinita de pontas de cigarros, algumas estripadas pelos pés barbaros e entorpecidos dos viajantes que sapateavam, despindo o guarda-pó, senti deslumbramento tal, que tive de fechar os olhos. Se eu sahia de uma sombra propicia e somnolenta para esse plenilunio de Jabloskoff! Quando abri os olhos, assombrado, estava entre homens de blusa parda e boné branco, marcados no peito com algarismos negros, que me empolgavam, que me berravam numeros e nomes, procurando arrebatar-me das mãos a bengala e a maleta. Tive um assomo de energia e repelli com um murro um «12» que se aferrara a mim, teimosamente, propondo-se. O repellão e o socco valeram-me algumas palavras más, que resolvi deixar sem resposta para tranquillidade de todos. Os homens abalaram em tumulto, correram a outro ponto. Quando vi perdidas na multidão as blusas pardas, resfolguei e, corajosamente, deitei a caminho, á luz lactescente das lampadas, bem melhores do que as da minha villa, pobre terra de barbaros, alumiada ainda pelas estrellas de Deus e pelas candeias de colza que a intendencia manda pendurar em postes, para que as estradas tranquillas não fiquem de todo abandonadas á treva, propicia aos duendes e aos ladrões de gallinhas. Quasi á porta alguem, debruçando-se amorosamente sobre o meu hombro, segredou-me palavras doces, mas tão intimas, tão leves, que me passaram, ficando-me apenas, no lobulo da orelha, o calor acariciante do sopro que as trouxera. O que pensei em um segundo!... Quantos sonhos idyllicos passaram pelo meu espirito!... Que vasta e interessante aventura imaginou minh’alma nesse tempo rapido!... «a mocinha de Italia a dar-me o seu endereço, ou outra linda mulher...» Mas uma idéa feriu-me violentamente--o conto do vigario. Levei a mão ao relogio e voltei-me rapidamente. Era um latagão de barba ruiva e oculos: tinha a cabeça núa, uma grande fronte tostada, com um calombo ao meio, purpureo e estriado. Curvou-se com a cartola nos joelhos, um sorriso affavel no grande rosto picado de bexigas, e balbuciou, com enternecimento, como se effectivamente dissesse coisas ternas: --Quer o patrão um carro fechado? Tive impetos de o repellir, mas lembrei-me de que, para chegar ao meu destino, era mais prudente confiar-me ás bestas de um cocheiro do que á providencia do acaso em horas tão adiantadas. E, aqui na intimidade inviolavel deste canhenho, confesso que admirei o homem vigilante que sahira ao meu encontro com tanta affabilidade, offerecendo-se para conduzir-me á casa. Calculei que toda a gente devia estar enfronhada no morno leito, gozando a delicia incomparavel do somno, nessa noite fresca e de chuva. Além, nesse eremiterio onde repousa o meu umbigo, ás dez horas, a não ser em casa de Marianno Gomes, onde se cartêa impudentemente o lansquenet, com pequenos intervallos de maledicencia e gole, toda a povoação, beatamente ceiada e rezada, dorme. De longe em longe, uma luzinha treme, traçando no pó soalheiro dos caminhos uma risca luminosa--é algum jogador, que se recolhe despojado e tropego, ou o sanctissimo padre Coriolano, que anda a correr o aprisco, a ver se alguma ovelha bale, roída pelo arrependimento do peccado, que é uma chaga terrivel que a gente cura com as drogas da philosophia ou com a boa e sadia camponia, que, mais do que os santos, sabe levar os seus eleitos ao Paraiso, por um caminho bem differente desse que a igreja conspicua e austera manda que se trilhe--ninguem mais. Ás dez horas o somno parece cahir do céu sobre todas as cabeças justas. E não é só o homem que dorme no leito antigo, largo e raso, de columnas torcidas, com flores e folhagens classicas, forrado d’alvos lençóes, que trescalam como moutas de hervas de cheiro ou na palha secca e crepitante, entre os milhos, com o cão aos pés e os grillos cantando perto; é o gado forte e é a ovelha mansa, é a ave meiga, é a mesma arvore, é a mesma agua, é a mesma estrella, é o mesmo luar porque, se a agua murmura e se as folhas sussurram, bem se póde dizer que são vozes do sonho das coisas. Velam apenas o caboré piando no tronco secco ou cruzando os ermos e as feras bravas que descem para velar, ou a farandulagem que assalta gallinheiros ou outros sitios de maior recato e perigo. Imaginem o meu espanto, a minha surpresa quando o cocheiro, fazendo uma zumbaia e rastejando um gesto para que eu passasse, deixou-me ver uma fila de carros molhados, reluzentes, e, em todas as boléas, sob guardas-chuva lustrosos, braços que acenavam para mim, num delirio, e gente, gente a valer, como eu jámais vira na villa onde passei o grosso da minha vida, nem mesmo nos dias de feira. Imaginem o pasmo que me tomou! Deixei-me levar pelo cocheiro, que correu a abrir a portinhola, vindo buscar-me debaixo do seu guarda-chuva, amplo como uma tenda. Quando afundei nas almofadas atirando ao homem o numero da casa de meu tio, na praia do Russell, sahiu-me dos labios tremulos esta exclamação profana, mas que exprime admiravel e eloquentemente o assombro dos meus olhos, diante de tanto guarda-chuva, de tanta luz, sem falar no rumor que me ensurdecia: --Com seiscentos diabos! isto é que é terra! E com força puxei a portinhola. O ruivo cacarejou ás bestas e rodámos. No toldo a chuva torrencial rufava. II A casa de Serapião Ribas, meu tio, melancolica e discreta, sem vizinhos lateraes, porque a isola um florido jardim de rosas e, em frente, o mar espumeja rolando e chofrando por entre pedras negras, é um confortavel chalet suisso, de boa construcção--pedra e cal, com lambrequins e agulhas, pintado de verde. Penetra-se esse retiro, socegado e pudico, seguindo as sinuosidades de um caminho de saibro, onde os passos crepitam, por entre o perfume sensual das roseiras, que fazem ao meio um bosque ameno em torno de uma casinhola rustica, feita de troncos entrelaçados, com um tecto afunilado, de colmo, onde meu tio, á tarde, bebe o seu aperitivo, lendo os jornaes, com as pernas esticadas sobre o banco de pedra. Dá accesso á varanda uma pequena escada de marmore--tres degráus, polidos e claros como pedras de um movel fino, porque a gente, antes de pisal-os, raspa as solas dos sapatos na lamina de um apparelho, que arranca tudo quanto se levar collado á palma do calçado. Além disso estira-se em cima, no limiar, um capacho de coco, cerdoso e duro, para completar o asseio. Raspado e brunido, o hospede atravessa os umbraes da sala nobre onde os passos afôfam-se sobre um tapete amplo, ainda carregado de lans e de pelles de feras que, d’olho acceso e guela escancarada, esparrimam-se ao peso dos moveis em inercia voluptuosa. O interior, obscuro e abafado, cheira a verniz e a fardos novos. Entretanto o asseio accusa-se immediatamente pela disposição e pelo luzimento das molduras dos quadros, porque a mobilia, que deve ser faustosa, está fresca e claramente vestida de housses brancas. Despido só um tamborete de setim azul, com um bordado de ouro, representando um corvo marinho, pensativo, num pé só, com um peixe no bico. Enriquecido de um dia para outro em transacções felizes, meu tio que, em moço, curtiu a mais faminta miseria, regala-se gozando pacatamente as delicias da fortuna. Aferrolhou mil e tantos contos em apolices, comprou varios predios, e, estirado agora, resfolga na sua voltaire ampla, esperando, com um sorriso, o amanhan e o depois, sem a dura preoccupação do fim do mez e do caderno das compras. Tem o pão e o tecto garantido podendo, de vez em quando, extraviar-se por um extraordinario de bombance, sem risco para os dias da sua velhice amparada e serena. É solteiro, não porque deteste o casamento--aconselha-o a toda a gente como um meio honesto e digno de aperfeiçoar a especie e consolar o espirito. É solteiro porque, no seu entender, no «seu modo de ver» o casamento é uma loteria, e, infeliz como sempre foi nos kiosques, receia que a sorte o persiga até junto do pretor e do sacerdote. Vive com dois criados de serviço, mais um cozinheiro. Recebeu-me na sua grande sala de jantar de carvalho, forrada de encerado inglez--um lugar de gosto pelos ornatos dos moveis carregados de corymbos e de cachos de frutas, entalhados nos espaldares das cadeiras, nos florões do enorme guarda-prata, dos bofétes e dos trinchadores de marmore escuro. Pratos raros pelas paredes, naturezas mortas, iguarias a oleo e faianças de Delft e de Caldas--lagostas, uma enfiada de perdizes, uma penca de frutas, e, venerando e respeitavel, entre o luzir da louça, um relogio escuro, monotono, moroso que, de vez em vez, range e profundamente bate uma pancada soturna. Serapião, meu tio, nessa noite da minha inesperada apparição, vestia um radiante robe de chambre de seda. A calva, nua e polida, resplandecia ao fulgor do gaz. Tinha diante do papo guloso um copo cheio de morangos e um calice de Madeira secco. Ao ver-me, com a mala e o guarda-pó, parado no solar da sala, recuou a cadeira e, com as bochechas tremulas, como um bolo de creme, roxo de vinho e de gozo, avançou para receber-me nos braços protectores, com tal effusão, que desfez todo o meu vexame, pondo-me logo á vontade junto a um peito largo e generoso solidamente reconstituido pelos debentures. Houve uma corrente de phrases sympathicas. Por fim, arrastando-me para a mesa, carregada de porcellanas e soante de crystaes, que echoavam ao minimo balanço do soalho, disse: que não contava commigo; e estranhou que eu não lhe houvesse telegraphado da Barra ou de Belém, para que elle mandasse á estação, receber-me, o seu landau. Dei um salto por dentro. Pois o tio Serapião... tinha um landau! Diante de mim, um rigido criado collocou vagarosamente uma garrafa de cognac e um calice. Bebi. O tio arregalava os olhos immensos; de vez em quando chupava o labio inferior, soprava espalmando as mãos ambas na alva toalha da mesa. Os crystaes tremiam. E eu falava da roça, da viagem, dos companheiros, da paisagem accidentada de serra abaixo. O mesmo criado que me servira o cognac trouxe uma chavena de café, que o tio tremulamente recebeu. O servidor prudente aparou com a salva, por baixo do queixo triplice do meu obeso parente, as gottas que escorriam. Sorvido o ultimo gole, meu tio roncou de fartura e escorregou na cadeira, para baixo da mesa, deixando apenas, para contemplação dos meus olhos, o seu busto de Vitellio, apopletico e gordo. Tentou dizer algumas palavras, mas os seus labios purpureos tremiam, deixando apenas fugir um sopro flebil. Cravei os olhos nelle, quiz sacudil-o, a pouco e pouco, porém, o sopro foi crescendo e já era um rosnar--a boca descerrou-se, a cabeça enorme tombou para o peito e um ronco sonoro, que encheu toda a sala, apaziguou o meu espirito. Não era a apoplexia fulminante, não, não era... Meu tio dormia o somno cibarico. O criado do cognac, com um guardanapo ao hombro, andando na ponta dos pés, veiu annunciar-me em segredo que o banho estava prompto. Procurei a mala: havia desapparecido. Quiz interrogar, mas já o homem, arrepanhando um reposteiro, mostrava-me um corredor claramente alumiado, de paredes luzidas, pintadas a oleo, com medalhões representando idyllios. --Por aqui, senhor. Baixei a cabeça, e, voltando-me para falar ao criado, notei que todo luxo da sala de jantar desapparecera sob uma treva brusca, onde apenas restavam dois pingos de luz, e vi um vulto que se esgueirava como uma visão. O criado soprou-me: --É ao fundo, senhor. Agradeci com um gesto, para evitar o rumor das palavras. Da sala escura vinha, num diapasão formidavel, o ronco do meu generoso tio que o vinho adormecera. III Oh meu tio! Esta exclamação quasi infantil escapou-me dos labios quando penetrei o santuario da limpeza. Que asseio e que fausto! As thermas da cidade por excellencia deviam resplandecer assim. Quem te dera, Lucano, um tanque como este para nelle abrires as veias! Quem te dera, altivo poeta, um interior assim, de tanta claridade e tão sonora acustica, para reboar com os versos da Pharsalia com que recebeste a Morte! Infelizmente a Arte não alcançara o requinte que hoje possue. Á vista do tanque de meu tio--onde podia nadar, folgada e livremente, uma familia de nereidas, se ainda as houvesse--que figura faria a banheira do teu suicidio, ó victima da tyrannia, ó voluptuoso e languido patricio...! A sala vasta é toda de mosaico miudo, talhado em triangulos brancos e vermelhos; o tanque, de bordas altas, tem tres metros de comprido e dois de largo, e a gente afunda em um metro e 25 d’agua. O chuveiro é uma grande cupola de zinco, pintada de branco, com duas correntes de metal que imitam prata. A agua jorra copiosamente das guelas de dois leões de nickel--uma entorna agua fria, outra vomita agua a ferver. As paredes, forradas de marmore italiano, completamente núas. A um canto, um cabide de bronze para as toalhas felpudas e o jupon, e, em frente, numa prateleira, tambem de marmore, negro e fosco, a bateria d’oleos e de perfumes; os sabonetes, as esponjas, escovas e essencias tonicas para hygiene da pelle e lavagem das gorduras do couro cabelludo. Ao centro um espelho de nitido crystal, alto e grosso, onde se pode admirar a nudez das fórmas. Para um canto, recatado por um biombo japonez, uma especie de ádyto, com um divan de couro, repousando em um encerado onde a gente estira longamente os membros emquanto os leões inundam o tanque. Para aquecer ha uma mesinha com um serviço de crystal: whisky, cognac, old-brandy e curaçáu. Um mono de bronze carregando ás costas um cesto atochado de charutos e brochuras de um frescor irritante (a mais pudica que meus olhos viram abria com uma esplendida mulher núa, de costas para quem olhava, os braços roliços passados por cima da cabeça farta e negra de cabellos) na capa um distico: _Le nu au salon._ Ao fundo, num retiro velado por um panno de linho escuro, que corria num varão de ferro, uma caixa envernizada. Abri e pasmei silenciosamente--era tambem um objecto indispensavel ao asseio. Ao lado, numa caixa menor, um maço de papeis finos. Aclarava esse interior de gozo um lustre de seis globos côr de rosa. Feita a visita fechei-me por dentro e, ouvindo o rumor d’agua que cahia, levantando um vapor fino como o orvalho, fui despindo a fatiota, lenta e preguiçosamente, ante-gozando a delicia da immersão tépida depois da fadiga de todo um dia em wagon. Safando a camisa lembrei-me do ribeiro poetico da minha villa onde todos nós da familia, do mais velho ao mais novo, um depois do outro, por decencia, vamos, todas as manhans, limpar o corpo e endurecer os musculos sob a folhagem viçosa dos cajueiros em flôr. Nú, como um grego do tempo juvenil da graça olympica, mirei-me ao grande espelho que, indecorosamente, me reflectiu da cabeça aos pés--e achei-me perfeito e forte e masculo, um modelo rijo e gracioso de Marte desnudado, um inteiriço e reforçado exemplar de homem, digno herdeiro dos Ribas. Sorri com vaidade para o crystal que começava a empanar-se com o vapor das fauces do leão fervente. A sala estava como uma estufa--era um banho russo. Corri a refugiar-me atráz do biombo e estirei-me no divan fresco e macio servindo-me, em um calice, da garrafa vermelha que trazia, pendente do gargalo, uma chapa denunciando: cognac. Bebi e regalei-me esticando as pernas núas no couro frio. De papo para o ar comecei a pensar na delicia da vida e achei mesquinha a casa paterna, taciturna e calada, entre arvores murmurantes, invadida pelas moscas e pelos gafanhotos, com os corredores sombrios, atravancados de sellins, ás vezes visitada pelos bacorinhos que vêm familiarmente grunhir em baixo da mesa de jantar, catando os restos do almoço. Pareceu-me triste e acanhada a existencia que eu levara nesse valle melancolico sem agitação e sem conforto, ignorante de tudo, longe de imaginar que o mundo podia proporcionar delicias de tal ordem--delicias como aquella sala de jantar, delicias como aquelle banheiro, onde meu tio tonificava as suas banhas e onde eu ia, emfim, lavar-me para entrar limpo e lepido na vida nova, buliciosa e surprehendente, que eu sentia rumorejar ao longe, nessa grande cidade atravessada, amollecida e somnolentamente, nas almofadas fôfas do carro do ruivo. Ia emfim ver o mundo. Aquelle banheiro que ali estava era a pia onde o mais novo, o mais esperançoso rebento dos Ribas ia, contricto e nú, receber o baptismo da civilisação, deixando nagua morna a poeira dos caminhos e a barbarie da sua alma ignorante e insaciada. Confesso que tive inveja da sorte de meu tio e lastimei profundamente os meus que lá haviam ficado chocando pintos e debulhando o grão. Que vale uma ninhada diante de uma mesa como esta que meus olhos contemplam, carregada de crystaes rutilantes? Que valem as colheitas comparadas ao gozo de um mergulho nesta piscina de marmore que me espera? Decididamente a grande sciencia do viver não consiste em saber accumular fortuna, mas em saber dissipal-a. O ideal do homem moderno é o filho prodigo. Estou certo de que a moral não condemna Harpagon senão porque o miseravel não tinha noção da sciencia elegante e fina de dissipar. Para que ser rico sem um banheiro assim?... Serapião, meu prospero tio, ronca, deslisa para baixo da mesa farta do teu salão de abundancia, porque estás dando ao mundo, e especialmente ao teu sobrinho e herdeiro, uma lição de _savoir vivre_! Enchi de novo o calice e bebi, mas engolindo o sorvo, percebi que me enganara na garrafa: não era a vermelha, eu havia tomado a azul: old-brandy. Desde, porém, que havia quatro, porque insistir na vermelha? O acaso dirigira o meu braço e o acaso algumas vezes opéra sabiamente e governa como uma bussola. Repentinamente lembrei-me do banho e não foi sem pena que deixei a minha posição em decubito, a mais propria do homem, segundo ouvi dizer a um sybarita das minhas relações campestres. Puz-me de pé e, estirando os braços, todo retorcido como o Laocoonte, afastei-me do ádyto das libações. Na sala era tão espesso o vapor, que meus olhos nada distinguiram a principio--movia-me, como um deus, dentro de nuvens tenues. Por fim, sentindo nos pés uma humidade tépida, notei que a agua transbordava alagando o mosaico do santuario. Desci precipitadamente as alças fechando as copiosas guelas leoninas, mergulhei o braço, puxei pela corrente do escoadouro e a agua, que me escaldara, começou a baixar silenciosamente até que ficou em nivel para que eu pudesse molhar-me todo regaladamente, mergulhando e nadando. A fauce fria jorrou ainda alguns litros para abrandar a temperatura e o nevoeiro diluiu-se. Apanhei sobre o marmore negro um sabonete de Corydalis, uma grande esponja macia e saltei no tanque. A agua abriu-se para receber-me e fechou-se ficando apenas a flux a minha cabeça, fluctuando como uma boia. Que delicia! Como senti, nesse momento suave da minha vida, não possuir os dotes de Simão Carreira, que tudo canta, que tudo rima: os olhos castanhos da Bemvinda e os repolhos planturosos da horta do Segurado. Elle, de certo, em meu lugar, acharia uma estrophe sonorosa e nova para louvar e divinisar a agua benigna desse tanque; elle, o sempre inspirado, saberia pagar com um punhado de heroicos a lixivia e o conforto. Eu, porém, sem estro, incapaz da mais insignificante imagem poetica, limitei-me a esfregar a cabeça, não para acordar a inspiração adormecida, mas simplesmente para tirar a poeira... e mergulhei. Quando vim á tona trepei á borda do tanque e, á falta de quem me esfregasse, resolvi fazer eu mesmo a operação e vesti-me todo de espuma. Tive impetos extravagantes de correr ao espelho para admirar-me sob esse aspecto _mousseux_, mas recuei porque, Ribas anadyomay, comprehendi que não me seria facil abrir os olhos--a espuma escorria em floccos pelo meu rosto. Atirei-me, de novo, ao banheiro e refocilei voluptuosamente. A temperatura baixara sensivelmente quando sahi gottejante para o pequeno estrado. Enfiei o jupon, calcei as chinelas de feltro e arrastei-me até junto da mesinha, onde experimentei a garrafa verde--whisky. Ia deitar-me quando bateram á porta. Acudi com pressa lembrando-me de meu tio que ficara na imminencia de uma apoplexia. Indaguei, e uma voz disse-me de fóra--que a ceia estava servida, ajuntando: --Aqui tem vosmecê o robe de chambre para sahir. Abri devagarinho a porta e estiquei o braço, que derreou ao peso da investidura com que eu me devia apresentar á mesa. Era uma especie de cabaia de seda, debruada a cairel de prata, com bordados extravagantes e alamares; mangas immensas e uma gola almofadada, com forro de setim côr de perola. Admirei-a e com ella recolhi-me ao biombo para vestir os primeiros linhos indispensaveis e calçar os sapatos. Sobre a camisa e as ceroulas abotoei a cabaia que, sentindo a falta das protuberancias do meu tio, cahiu em dobras molles ao longo do meu corpo, menos fornido e mais baixo. Por compostura apertei a cinta com o cordão de seda. Dividi o cabello, alisei os bigodes e, derramando na palma da mão algumas gottas de Cherry Blossom, plantei-me diante do espelho, revendo-me sob esse trajo que me dava a figura classica de um veneziano, como os que eu vira em gravuras, dentre os quaes me ficara eterno na memoria o typo veneravel de Brabantio, pai da incomparavel e abnegada Desdemona, tão cruelmente immolada pelo mouro negro. Cheiroso e fresco sahi para o corredor, onde me esperava o criado. Seguimos. A sala de jantar estava de novo illuminada... mas sem meu tio. Recolhera-se de certo. Sentei-me só e em silencio. Havia no ar um cheiro apetitoso de frituras e de flôres. Dos pratos cobertos sahia um fumego tenue rescendendo a temperos. Toda a porcelana florejada tinha o monogramma do proprietario--S. R. em ouro fosco. O criado serviu-me a sôpa e verteu em um calice de crystal verde um vinho claro, que bebi com avidez antes da primeira colherada; e comecei a jantar desordenadamente, servindo-me de um lombo, com petits-pois, no momento justo em que o criado me apresentava um badejete, que repudiei com desprezo. Mas o meu ataque mais sério foi á garrafeira. Não sei dar a razão desse delirio bacchico, tão singular, tão novo em meus habitos de sobriedade. Os vinhos attrahiam-me. Depois de uma aza de frango, que apenas trinquei, fui sedentamente ao Bourgogne e enxuguei dois copos. Mas quando appareceu o Champagne, uma meia garrafa deitada sobre crystaes de neve em uma geladeira de prata, tive impetos de fazer ali assim, para o criado impassivel, um improviso sobre esse precioso vinho, que é a alma do festim, o remate requintado do gozo, o companheiro do amor. Vinho alambreado que parece cantar nas taças um dithyrambo de ouro, vinho impaciente que ferve e espuma, vinho que tem as coleras do oceano--ambrosia da nova éra, vinho vivo e intelligente, vinho que tem alma... e que eu jámais provara. Bebi sofrego. Subitamente notei que me sentara na cadeira abbacial do meu tio. Estava explicada a minha sêde insaciavel. Os moveis adquirem os vicios de quem os possue. Aquella cadeira estava inveterada. Era repousado em seus braços que meu tio dormia o seu primeiro somno digestivo. E foi esse confortavel movel que fez com que eu sómente readquirisse as minhas faculdades de ser ás 10 horas da manhan seguinte, quando me vieram trazer ao quarto o café e os jornaes. IV Lembra-me ter visto em um livro erudito este conceito:--«A embriaguez é a poesia da vida digestiva» e, se ainda me é fiel a memoria, o sabio que assim se exprime é Letourneau. Penso que tem razão o philosopho, porque Simão Carreira, que cultiva, com tanto esmero, a Arte divina de Apollo, não despreza as garrafas e os seus melhores heroicos, os versos intrepidos do seu poema _Os Pincaros da Mantiqueira_ foram escriptos emquanto durou um quinto de Cartaxo com que o brindou o padre Coriolano. Eu, porém, de imaginação escassa e tão perro para a cadencia, soffri profundamente os effeitos da poesia estonteante, que me poz no espirito uma nuvem densa e na lingua uma saburra espessa. Confesso que senti o pudor subir-me ás faces quando dei com o ar sisudo e grave do criado, que me apresentava cerimoniosamente um taboleiro de xarão. Puxei o lençol até o queixo e, de olhos baixos, tomei a chicara e, a pequeninos goles, fui chuchurreando até á ultima gotta. Por fim, no intuito de quebrar aquella serenidade fleugmatica do homem, aventurei sorridente: --Bem bom café! Decididamente não ha bebida como esta. Mas o bruto, impassivel e frio, recebendo a chicara que eu lhe entregava, sempre sisudo e grave como um preceptor, perguntou seccamente se eu queria o banho morno ou de chuva? --De chuva, respondi humilhado e corrido. Que vergonha tive! Parecia-me que aquelle imperturbavel servidor viera ao quarto apenas para exprobrar, com o seu silencio inquebrantavel, o meu procedimento da vespera. E tinha justas razões esse criado, porque afinal... que indecencia para um homem da minha casta, herdeiro de uma tradição sem mancha, principalmente de vinhos, porque na familia o unico que bebe é meu tio, os mais, desde o meu intemerato bisavô, implicado nas conspirações patrioticas do Xavier, até meu pai, nunca foram além do côco do pote ou da calha da nascente. A adega dos Ribas, inesgotavel e pura, foi sempre a limpida fonte dos «Suspiros» numa chanfradura de rocha, velada por um bosquesinho de tayobas, fonte cujas aguas historicas mataram, em tempos, a sêde do grande Dirceu quando a paixão e a politica o arrebatavam para os ermos. E ha ainda hoje fanaticos do poeta que affirmam distinguir no murmurio da agua o nome suave de Marilia. Cheio de vergonha saltei da cama, enfiei a cabaia e, sem olhar para a alcova faustosa, desci acompanhando o criado que me deixou á porta do banheiro. Lavado e vestido, apresentei-me na sala de jantar, clara de sol e cheia de um festivo canto de passarinhos. Accendi um charuto e, de mãos enfiadas nos bolsos, comecei a passear de um lado para outro, assobiando uma aria rustica. Ia admirar tranquillamente um quadro de frutas, quando o criado veiu dizer-me, muito teso, estendendo um gesto nobre para o exterior:--que meu tio estava á minha espera no jardim. Respirei alliviado! Ia emfim fugir aos olhos daquelle Argos da moralidade. Atirei fóra o charuto e desci. Meu tio, todo de branco, com um gorro de seda á cabeça, agachado, examinava os canteiros. Sentindo o rumor dos meus passos no saibro, que scintillava ao sol, voltou o rosto purpureo e nas suas bochechas nedias perpassou um sorriso fugitivo. Ergueu-se resfolgando, com as mãos papudas cheias de terra, de sorte que não me atrevi a beijal-as para não macular os meus bigodes lustrosos e rescendentes. --Meu tio passou bem a noite? --Como um abbade. E tu? --Maravilhosamente... Elle mirou-me dos pés á cabeça e pareceu satisfeito com o meu terno de brim pardo, não desdenhando os sapatos amarellos, que eu trouxera para «surrar em casa», como dizia pittorescamente minha santa mãi quando prégava sobre economia domestica. --Que tal o alojamento, Anselmo? Gabei sem reservas a belleza e o conforto do tecto hospitaleiro, creio até que o teria comparado aos palacios maravilhosos de Aladino e á soberba vivenda de Sindbad se um homem, com dois enormes regadores vermelhos, não viesse interromper o nosso colloquio. Era o Jeronymo, jardineiro. Parou um momento para dar a meu tio a boa nova do desabrochamento das camelias e, radiante, limpando com o braço o suor da testa, disse que já havia dois botões das rajadas. Meu tio felicitou-o e, como o Jeronymo retomasse os regadores, accrescentou--que as violetas estavam encharcadas. --Não ha duvida... não ha duvida, senhor; ahi vem o sol, disse o homem. Quem dirá que hontem choveu como choveu...? A terra está secca e a planta carece d’agua. Olhe, se eu fosse outro, deixava as _purpuras_ sem agua... mas vá Vossoria ver... a terra está mirrada, parece que a seccaram ao fogo. É verdade que ali não chove por causa do telheiro. --E de cravos, como vamos? --Ainda não os ha, disse o Jeronymo, consternado, e derreando-se ao peso dos regadores, foi-se, bradando a um gato que raspava a terra fofa de um taboleiro. --Gostas de flores, Anselmo? --Loucamente, meu tio. E fomos caminhando para a casinhola rustica. Sobre o colmo cantava uma cigarra. --Bom tempo, presagiou meu tio. Haviamos chegado ao retiro do aperitivo, onde nos esperava o alcool matutino, a gotta confortavel que aquecia o estomago preparando-o para receber o almoço. Meu tio subiu pesadamente a elevação que dava accesso ao retiro, e achatou-se no comprido banco de pedra, que imitava um tronco d’arvore... e d’ahi, como Satan na montanha mostrando a Jesus as riquezas da terra, disse-me--que ali assim estavam enterrados para mais de tresentos contos. Eu sacudi a cabeça admirado e murmurei: --Bem empregado dinheiro! --Não bebes? Acenei--que bebia e elle serviu-me. Virámos. O vasto mar azul, em frente, resplandecia ao sol. Velas de barcos fugiam, muito brancas, afflorando a vaga que, ás vezes, se desfazia numa fita de espuma que vinha rolando, rolando e desmanchava-se. Aves pairavam e, subitamente, como se tivessem sido fulminadas, cahiam nagua serena. O céu limpido, de uma côr fina e translucida, estava radiosamente claro. A aragem fresca vinha cheirando á salsugem e balouçava as roseiras, perfumando-se de um novo aroma de jardins, mais delicado do que a maresia da costa. Dois pequenotes nús, muito luzidios, iam garrulamente rompendo o mar, atirando os braços; subiam na vaga inchada e alterosa, desciam no cavamento d’agua e riam como dois jovens tritões que se andassem adestrando no seio glauco do mar perfido. E, mais longe, varios cavallos, quasi afundados nagua, de cabeça alta e inquieta, eram esfregados por moços que riam ás gargalhadas; um mesmo, montado, como um centauro aquatico, obrigava a alimaria a fazer voltas, nadando, a lembrar o hippocampo das antigas lendas. Ao fundo o recorte accidentado e escuro das montanhas. A cigarra, na grande luz tepida que dourava o colmo da casinhola, entrou a cantar e meu tio, encolhendo as pernas e servindo novos cognacs, enternecido e lyrico, disse poeticamente para attrahir a minha attenção, toda entregue ao mar infinito: --Ouve, Anselmo, a cigarra... está chamando o sol. E eu, para dar mais força ao lyrismo, ajuntei, voltando os olhos para o alto: --Sim, meu tio: é a cigarra que chama a primavera. Ali ficámos muito tempo, num farniente aprazivel, beberricando, até que o criado nos veiu annunciar o almoço. Descemos lentamente. Eu vinha alquebrado de preguiça e sem apetite, sedento. A agua de um repuxo, que esguichava, iriada e cantante, excitou ainda mais a sêde do meu estomago abrasado. Parei um momento para admirar a elegancia de um cysne que circulava com garbo, abrindo, de vez em quando, ao borrifo fresco, as grandes azas alvadias, iguaes ás que, outr’ora, Jupiter lascivamente tomou, em uma das suas metamorphoses, para cingir o corpo esplendido de Leda. Atravéz da agua limpida viam-se as palmouras rosadas remando com lentidão. Meu tio, que havia chegado á varanda, chamou-me. Não quiz partir sem acariciar a ave airosa e adiantei-me estendendo a mão para amaciar-lhe o pescoço formoso; o cysne, porém, selvagem e arisco, entrou a espadanar com as azas e, escancarando o bico, a grasnar, poz-se em attitude ostensiva, atirando-me bicadas. Deixei-o. Vendo-me partir veiu precipitadamente até a borda da bacia e, a grasnar, parecia desafiar-me. Longe, no fundo do jardim, levantou-se um alarido terrivel. --São os gansos! disse-me o tio Serapião... e deixando a balaustrada da varanda: --Anda dahi que o almoço esfria. A sala rescendia. A mesa pantagruelica, alva, nitida e farta encantou-me pela profusão de flores em jarrões, por entre os finissimos copos de mussellina, espalhadas pela toalha e de um aroma tão intenso que mal deixava sentir o cheiro dos acepipes. Sentei-me á direita do meu tio e começamos por um prato que me pareceu feito de ouro liquido. O criado que m’o serviu nomeou baixinho:--Mayonnaise. Fartei-me. Meu tio, com a boca cheia, olhou-me de certo modo e percebi que o seu olhar de epicurista, humedecido e languido, queria dizer alguma coisa; fitei-o até que engolisse o bolo que rolava na sua boca de gastronomo, inchando-lhe as bochechas: --Um petisco, hein, Anselmo? e passou o guardanapo pelos beiços reluzentes. Eu, sem dizer palavra, arregalei os olhos, sacudi a cabeça e enchi de novo a boca. Quando bebi o vinho, que rutilava num calice diante de mim, pronunciei-me francamente: --Com effeito, meu tio... é um prato! e elle, attrahindo uma lata de sardinhas, tambem arregalando os olhos, concordou: É um prato! A um gesto seu o criado içou os transparentes; o sol inundou a sala de uma grande claridade--crystaes e faianças scintillaram. Os canarios, deslumbrados, entraram a voar tontos, agarrando-se ás grades das gaiolas, mas a pouco e pouco, habituando-se, voltaram á tranquillidade e foi bastante que um cantasse para que o chilreio irrompesse estridulo. Pedi agua e o criado, inclinando-se, indagou baixinho se eu preferia Vichy ou Apollinaris. --Do pote, tornei ao solicito. --Experimenta Apollinaris. Apollinaris com um pouco de Bordéus, aconselhou meu tio e, voltando-se para o criado, com o garfo erguido e cheio de sardinhas: Abre Apollinaris... Resignei-me. Momentos depois um estampido atroou e logo um jorro fervido inundou meu copo. --Bebe! Bebe emquanto está quente. Levei o copo á boca e bebi... mas com que ancias...! Um effluvio de thermas subia-me ao nariz. Subitamente acudi com um guardanapo á boca, mas não tão rapido que pudesse evitar um escandalo. --Perdão, meu tio! murmurei corado. --Não sou inglez. Eu cá não faço cerimonias. Havias de engulil-o? disse a rir. As carnes não me tentaram, mas fui forçado a mastigar uma febra de roast-beef e uma fatia de presunto. O tio devorava tranquillamente, sem levantar os olhos do prato. Ao fim do almoço, saciado d’agua, afastei-me para a varanda. Fazia calor--as folhas murchavam á luz caustica e ouvia-se a voz fina do Jeronymo, que cantava aparando a grama. Debruçado para o jardim, olhando vagamente, numa abstracção de todo o meu ser, comecei a sentir-me invadido por uma tristeza que me cahia nalma, suave e melancolica como um crepusculo. Uma sombra interior velava a radiosa alegria do meu espirito e sem causa visivel, porque diante de mim havia a vívida e resplandecente claridade do sol, o immaculado azul e todo o verdor viçoso dos arbustos que as borboletas corriam, sentia como a aproximação de uma tormenta, as primeiras ancias da lagrima. Indecifravel phenomeno o da visão da ausencia!... Um véu espesso passou-me pelos olhos. Tudo que a minha vista alcançava desappareceu num momento e vi, como em scenario, num longinquo horizonte nebuloso, aereo, a paisagem silenciosa da minha terra, no valle fresco e verde, no fundo do qual escorre, quasi sem bulha, o corrego das Almas, que vai de sitio em sitio, abeberando as hortas e os rebanhos, sempre manso e sempre claro, que não o toldam senão as flores dos espinheiros que o margeiam, e essas, pobresinhas! com um leve fremito d’agua, desfazem-se, desapparecem e passam quasi invisiveis como um pollen subtil. E a minha casa, além! bem visivel, branca no verdejante pomar, e gente na eira e gente pelos caminhos, os meus com as suas feições tão nitidas, tão perfeitamente accentuadas, que eu os fui reconhecendo a um e um, como se os visse, não atravéz da miragem meiga de minh’alma, mas na verdade fiel da vida que além vivem. Repentinamente a visão diluiu-se. Alguem chamava-me baixinho--voltei-me. Era o criado: --O senhor seu tio pergunta se não quer ir á cidade? --Dize-lhe que vou... e, dissimulando, passei rapidamente o lenço pelos olhos. V Quando desci, aprumado e airoso no meu terno de cheviot claro, meu tio roncava na casinhota do jardim, com a cabeça descahida sobre o recosto do banco, o papo em evidencia, todo molhado de suor e rubro, a boca aberta, os braços pendentes num abandono flaccido. A cartola repousava sobre a mesa e o precioso unicornio, encastoado de ouro, jazia aos seus pés como um cajado vulgar. A impaciencia e a temperatura da hora tepida, macia e somnolenta haviam, por assim dizer, narcotisado o pobre homem. Da janella do meu quarto para onde, de instante a instante, elle levantava os olhos anciosos, eu o via caminhar ao sol, com enormes bocejos, riscando a areia com a ponta da bengala. Subiu e desceu lentamente as áleas do jardim, por fim perdeu-se e só o vi depois nessa posição pacata, refestelado, a dormir á sésta como as roseiras dormiam no silencio canicular desse meio-dia abrasado, murchas, enlanguecidas, emquanto a terra incançavel infundia-lhes a seiva vivificante para que, mais tarde, ao frescor vesperal do crepusculo, os botões despertassem e distendessem as petalas, abrindo-se. Á porta estacionava uma victoria. O alto cavallo, negro e luzidio, escarvava fogosamente, picado pelo sol. Meu tio grugrulejou como se sorvesse uma golfada quente e esfregou os olhos. --Boa sésta, meu tio. Elle ergueu-se molle, com os braços abertos em cruz, o ventre empinado e falou espremendo-se: --Boa estafa é que foi. Que diabo estiveste fazendo até agora? Sacou o relogio e mostrou-me: Uma hora da tarde. --Um trabalho para descobrir a roupa, meu tio. Arranjaram-me de tal modo a mala que, para encontrar um par de meias, tive de despejal-a. Meu tio mirou-me detidamente e, com satisfação e vaidade, li no seu olhar--que me achara digno. Tomou a cartola e eu apanhei o unicornio para poupar-lhe o sacrificio de abaixar-se. --Está quente! disse limpando a fronte. --Um dia de fogo, mas lindo! --Lindissimo! Deu um puxão ás calças olhando o céu. --Vamos, Anselmo. Durante o caminho parou diante de todos os canteiros examinando carinhosamente as flores, decepando galhos seccos, com uma solicitude bondosa. O criado correra a abrir o portão. Sahimos. Ah! As interjeições são pequeninas syntheses. Como em um atomo o olho do sabio descobre todo um mundo de complexidades, nas interjeições o arguto espirito de um grammatico descobriria todo um romance, se quizesse, e facilmente o reconstituiria. As grandes emoções manifestam-se pelo laconismo monosyllabico dos oh! e dos ah! Concisas, como são, dizem mais do que os periodos e supprem, com vantagem, o complicado artificio de que lançam mão os escriptores, artificio que nem sempre é bastante para exprimir o que sentem e raras vezes auxilia a externar o que pensam. Ah! e Oh! hiatos insignificantes, mas analysai-os, profundos mestres. Diante de um quadro de Rubens--ah! e nada mais, alguns manifestam deste modo o seu pasmo; diante de uma mulher formosa oh!--oh! soturno e commovido, que o agudo só tem applicação nos momentos de terror. A tragedia do panico tem a sua clave: uh! Othello: oh! Macbeth: uh! Ophelia... ah! suspiroso; os Sete Infantes: ôooh! Mesmo no amor encontrareis um ah! tremulo e doce. O suspiro é um ah! isolado e, como dizem os pessimistas que o riso é ainda uma fórma da tristeza, a gargalhada é um rosario de suspiros. Ah! e nada mais foi o que me fugiu da garganta quando me sentei nas almofadas de damasco côr de vinho da victoria de meu tio. Que regalo! E, em verdade, que podia eu dizer que désse exactamente a impressão de aconchego que senti quando me aprofundei mollemente no macio assento? Que podia eu dizer que traduzisse o gozo, quasi sensual, que experimentei senão o que veiu espontaneamente aos meus labios: ah! um doce e demorado ah! que me ficou muito tempo a brincar na boca e que eu acompanhei com uma mimica fantastica--olhos arregalados, braços abertos como se me balouçasse em ondas... Ah! E meu tio comprehendeu porque voltou-se immediatamente dizendo: --Molas excellentes, hein? --Excellentes, concordei hilariante e baboso; excellentes, meu tio, e, sem que elle percebesse, levantei-me um poucochinho e deixei-me cahir para ter o gosto de afundar como afundei. O cocheiro, um inglez, magro, raspado, retezou-se na boléa tenteando as redeas para soffrear o cavallo negro que pinoteava. --S. Francisco, disse seccamente meu tio e logo rodámos. Estiquei as pernas mergulhando os pés no pellego felpudo. --Não fumas, Anselmo? E as mãos papudas offereciam-me charutos. Esgazeado e hirto de espanto entalei-me no fundo do carro. Pois meu tio... a offerecer-me charutos...! É uma cilada, disse commigo. Meu pai, com a sua moral primitiva, entende que fumar é um vicio execrando para os moços, principalmente em presença dos mais velhos. Em casa, quando me tenta o desejo de tragar uma fumaça, corro ao meu quarto e fecho-me ou desço ao pomar para não ir de encontro ao preceito paterno, que é uma herança dos maiores. Educado em principios de tanta austeridade, agradeci os charutos. Meu tio, porém, insistiu: --Fuma, homem; já não és criança, disse num tom cheio de sinceridade que varreu do meu espirito o resto de escrupulos. Fuma--e entregou-me um charuto. Ainda assim, senti certo vexame, elle, porém, insistiu novamente, animando-me. --Não tens phosphoros? --Sim, meu tio; tenho aqui. Accendi o charuto e baforei para o mar a primeira fumaça dando as primicias do meu havana ao respeito, como os antigos pastores offereciam a Deus as primicias dos seus rebanhos, depois recostei-me, fumando ante as barbas grisalhas do irmão de meu pai. O Rio começava a apparecer-me. A victoria corria cruzando-se com outros carros elegantes, onde iam senhoras faustosamente vestidas. Dos bonds espiavam-nos com interesse curioso. Eu encolhia-me para que me não vissem, ia ali assim como um deus num nicho, apenas visivel para os que, como eu, passavam luxuosamente em carruagens e que nos procuravam reconhecer. Meu tio, habituado ao luxo, ia indifferente, todo preoccupado com o seu charuto; eu não, mostrava-me, queria que as mulheres olhassem para o meu rosto rosado e fresco, para os meus olhos femininos, para os meus labios purpureos e carnudos, para os meus bigodes sedosos, para o meu largo peito forte, e que reconhecessem em mim um modelo de homem, um remanescente da idade morta, quando a força era divinisada e o musculo merecia poemas; um solido e masculo exemplar de sertanejo capaz de amal-as com mais ardencia e com mais impetuosidade do que esses rapazes pallidos, de olhos tristes, que passavam acabrunhados e exhaustos, sem viço, sem enthusiasmo, frouxos e melancolicos, sugados pelo vampiro da anemia, derreados pelas vigilias devassas. A victoria parou. Saltámos e eu, curioso de vêr e de admirar maravilhas, olhei em volta. Era uma grande praça quadrada e clara, murada pelos edificios que reverberavam á luz radiante do sol. Ao meio, sobre um pedestal negro, a estatua tosca de um homem, numa attitude cheia de solemnidade, a mão estendida num gesto classico de tribuna, como a allegoria iconica do meeting que é, em nossos dias cultos e morigerados, o escoadouro da inoffensiva indignação das massas. Meu tio, indicando-me a effigie escura, disse: --José Bonifacio, o patriarcha da nossa independencia e da tribuna dos comicios. Admirei reverente o patriarcha, rijo, inflexivel, immovel no seu molde perpetuo de bronze, como a imagem do patriotismo isolada na vasta ágora, para exemplo das gerações. Meu tio, descrevendo com o seu unicornio um hemicyclo no ar, falou para despertar o meu civismo: --Olha, Anselmo, de um lado a religião, Deus e o mysterio. É a ala santa do perimetro do nosso patriota--e levantou a bengala. Meus olhos seguiram a sua indicação e viram no alto da torre um gallo rutilante. Tive impetos de pedir a significação da emblematica... Seria, por acaso, a figuração do bicho que cantou tres vezes despertando a consciencia de Pedro na grande noite triste de Gethsemani? Mas meu tio já havia baixado a bengala. --Aquillo que ali vês ao fundo, Anselmo, é a sciencia. Um casarão alvadio com um terraço á frente. Mal tive tempo de admirar porque a voz grave do cicerone já pronunciava: --Á esquerda, o commercio, a industria, o movimento... Com effeito a vida parecia decorrer do ponto indicado--bonds chegavam despejando gente, partiam cheios; carros cruzavam-se: era um vozear confuso, indistincto--pregões, appellos, silvos, tilintar de campainhas, brados. Olhei atordoado. Meu tio voltara-se para a estatua e contemplava-a extatico. --Grande homem! disse eu. --Grande patriota! accrescentou meu tio e voltou-se com a bengala em riste, risonho, mostrando-me uma rua em frente: --Conheces? --Não, meu tio, mas noto que está cheia de gente--parece que vem por ahi abaixo um oceano popular para revindictas. --É sempre assim, disse e, com lentidão, abriu a sobrecasaca e tirou do bolso profundo um maço de papeis. O sol abrasava pondo-me pruritos na carne e meu tio, calmo e tranquillamente, suando e resfolgando, consultava os papeis. Por fim atafulhou com o maço no bolso e, vagarosamente, desdobrou diante de meus olhos uma folha de papel azul e, indicando-me uma phrase com o dedo grosso, sorriu mirando-me. Era uma carta minha e o que ali estava debaixo do pesado e humido indicador, era apenas isto--«ver a rua do Ouvidor». Sem ler mais, estremecendo, cravei os olhos na rua... e, sem uma palavra, mudo, abatido, como se me tivessem dado uma noticia de morte, suspirei. --Uma surpresa, hein? --Uma desillusão, meu tio, disse eu, murcho. Mas o sol ardia. Quasi torrados fomos caminhando para a desillusão, porque ali, ao menos, havia sombra e fresco. Eu ia consternado. --Mas então... que te parece? --A mim? --Sim...?! --Ah! meu tio... Póde ser que esta rua seja uma maravilha, mas infelizmente, antes de vel-a, antes de pisal-a, eu a sonhara... e o sonho, que é uma visão do mysterio, vai sempre além da realidade. --Então... que esperavas tu? --Eu? uma avenida como as que tenho admirado em gravuras, como as que tenho visto descriptas: com grandes casas apalaçadas, ruas cuidadosamente calçadas de marmore... architectura e gosto, arte e elegancia, e largueza sobretudo, meu tio; largueza, muita largueza... Um velhinho magro, esgrouviado, com um amplo casaco côr de castanha, surrado, tomou a frente a meu tio estendendo-lhe ambas as mãos, pallidas como as de um cadaver. Encostaram-se a uma vitrina. O velho sacou do bolso uma enorme carteira e foi desdobrando papeis, cochichando, com risinhos. Meu tio approvava com ar digno, coçando o papo. Parado em meio da rua, olhando, eu sentia cahirem dentro em mim, um a um, todos os meus sonhos ingenuos de roceiro. A multidão cruzava-se num formigamento activo; grupos chocavam-se. Havia constantemente um chapinhar de solas, fru-fru de sedas e, de longe, como um hausto perenne e sofrego, vinha um aáah surdo... De vez em vez parecia-me ouvir o rumor cadenciado e longinquo do desfilar de um exercito. Sentia-me attrahido pelo luxo dos mostradores. Meus olhos esmerilhavam, rebuscavam, examinando as casas, da soleira á cimalha, penetrando-as, varejando-as indiscretamente com uma ganancia de imprevistos, com uma avidez de novidades... mas desciam desenganados porque a rua que eu antevira, a rua que eu sonhara... Ó divinos jardins suspensos! ó avenidas de loureiros e de anemonas! como estais longe da esplendida passagem que meus olhos viam em arroubos, quando me punha a pensar nesta viagem ao Rio e realizava, embevecido, de olhos fechados, deitado na relva, tamborinando no ventre, o meu passeio elegante pela calçada de marmore branco, refrescada, duas vezes ao dia, com esguichos d’agua de rosas. Não, decididamente eu não tinha razão--o que eu estranhava não era a rua do Ouvidor... todo esse pungitivo sentimento que me opprimia vinha da morte de uma illusão. Para os que não viram, para os que não sonharam coisa melhor, a rua é admiravel; mas para os que podem estabelecer confrontos, perdoa-me, arteria da civilisação patricia, perdoa-me, avenida da elegancia e do espirito fluminense, não passas de uma viela atarracada e sordida. O velhinho inclinou-se de novo com as mãos estendidas e meu tio voltou a occupar junto a mim o seu posto de elucidario. --Então, Anselmo? --Estou procurando o encanto, meu tio. --Descança, descança, disse tomando-me o braço, elle é que ha de procurar-te. E estacando mostrou-me a rua com o mesmo gesto com que, em casa, do alto da casinhola, me havia mostrado o seu jardim: Então _isto_ não te impressiona? --Não, meu tio... e digo com sentimento. --Esperavas alguma coisa como o boulevard des Italiens, como a calle Florida? acudiu Serapião, versado em guias. --Coisa melhor! muito melhor! O elucidario lançou-me um olhar carregado de pasmo. --Contaram-me tantas maravilhas desta rua que não é muito que eu me confesse desilludido, porque o sentimento que, em verdade, subjugo é de indignação, a mais justa indignação contra todos quantos me atordoaram o espirito com exageradas fantasias e soberbas descripções de um fastigio incomparavel. Em casa de Marianno Gomes, o Dr. Gusmão, promotor, que parava, de vez em quando, alguns nickeis, no seu feminino palpite--a sota, durante uma longa noite de azar e de chuva, encurralando-me no vão de uma janella, falou-me, com a sua eloquencia de jury, longamente, calorosamente, ácerca da rua do Ouvidor, contando-me aventuras que havia gozado em companhia de um desembargador, homem culto e de gosto. Foi quem mais alarmou o meu espirito ingenuo, foi esse orgão da justiça publica o mais perverso e cruel dos mystificadores. O padre Coriolano que, de longe em longe, vem gozar no Rio um mez de inverno, disse-me, uma vez, em casa da Maria Balbina, que _isto_ era como a Suburra de que fala Horacio: um lugar de vicios. Marianno Gomes, mais franco, explicou-me numa phrase sobria e devassa: «Que para a pandega não havia igual...!» Mentiram todos: a lei, a religião e a batota. Isto é uma miseria! Nem aventuras, nem Suburra, nem pandega! --Espera, attende, acalma a furia, Anselmo. Se ainda não a conheces! disse meu tio com um sorriso malicioso. A rua do Ouvidor tem o seu segredo de attracção e de enlevo como certas mulheres que, apezar de feias e avelhantadas, vivem perseguidas pelos adoradores. Has de concordar: ha mulheres taes; a razão? o motivo? dize... Dei de hombros e meu tio explicou com arreganho--um encanto particular, Anselmo, coisas... Depois, recompondo-se, voltou a falar com gravidade, fitando a rua: Não é bella, concordo. Vê-se que não foi traçada por um Haussmann, mas lá encantos isso tem ella... É preciso viver, conhecel-a, penetrar-lhe o segredo. Não estou longe de pensar comtigo. Isto é um becco. --Um becco! corroborei com desprezo. --Mas queres saber a razão principal da sua nomeada? inclinou-se olhando-me vesgo. É que ella é o centro da vida nacional. Descolámo-nos para respirar, elle, porém, puxou-me de novo: Todos os grandes factos da nossa politica e da nossa litteratura derivam da rua do Ouvidor--ella é o estuario que recebe todas as correntes, o centro para onde convergem todas as forças activas da nação e donde se escoa a seiva intellectual... --A seiva intellectual!... exclamei recuando, e meu tio, impassivel, acastellado na sua convicção, repetiu abanando com a cabeça: --Pois não... pois não, seiva intellectual. E continuou: Tens ali a imprensa, e levantou a bengala para uma sacada onde havia uma comprida taboleta negra com grandes letras brancas--e, passeiando a bengala como um ponteiro, proseguiu: o commercio, a industria. Firmou-se passando o lenço pela fronte gottejante: O cambio, as leis, tudo quanto orienta e desorienta o Brasil sahe daqui... --É o laboratorio, commentei com ironia, e meu tio aceitou: --O laboratorio, pois não. Mais ainda, vou mais longe. A meu ver a nossa fórma de governo é a rua do Ouvidor, a nossa religião é a rua do Ouvidor--as constituições, os figurinos e os actos de fé sahem deste becco. Isto é a pia lustral que consagra os factos e os homens. Esta rua echôa todos os successos do mundo como na vida physiologica o cerebro, por um phenomeno de repercussão nervosa, reflecte todas as sensações do corpo. Meu tio, cançado do rasgo scientifico, aspirou largamente e tossiu, mas a facundia voltou: As mulheres, para imporem a sua formosura, descem e sobem a rua varias vezes. Ha um talento prodigioso por ahi além... quem o conhece? Ninguem! Quantos poetas vivem ignorados por esses recantos, sem jámais alcançarem a gloria da publicidade? --O Simão Carreira... --Sim, o Simão... Ha por acaso alguem que conheça o Simão? --Eu, meu tio. Conheço-o e admiro a sua inspiração, sempre nova e fertil. --Mas... tu és uma parcella insignificante. Para immortalisar um homem só o suffragio collectivo, e a urna aqui está. Tenho certeza de que o Simão, com um dia de rua do Ouvidor, faria mais pela gloria do seu estro do que tem feito com 28 annos de trabalho modesto no canto obscuro de Tamanduá, entre os milhos. Bastava que recitasse dois ou tres sonetos. E meu tio alongou o braço: O caminho da gloria é este, Anselmo. --Não é feito de rosas, meu tio. Davam tres horas e o calor escaldava. Meu tio propoz um _grog_ gelado, no Paschoal. Iamos caminhando lentamente quando dei com os olhos em uma esplendida mulher loura, alva e rosada, de preto. Nos cabellos dourados uma especie de diadema régio, com duas cristas de pennas vermelhas, como no gorro do Mephistopheles, que eu vira, em tempos, numa illustração de Natal. --Linda mulher, meu tio! --Divina! concordou elle estacando para admirar. A loura aproximava-se coleando por entre a multidão, attrahindo os olhos lubricos, altiva, indifferente, com um andar soberbo de rainha, o collo farto escondido por um grande leque de plumas escuras, que ella agitava com languidez, como uma grande aza. Passou por nós e tive apenas o tempo de vêr a côr innocente e doce das suas pupillas azues, mais claras do que a celagem da altura e ainda mais suaves, a boca, pequenina e vermelha, uma curva sanguinea e humida. E o aroma que ficou á sua passagem, que delicioso!... Linda mulher! tornei voltando-me para admirar o airoso passo cheio de magestade e graça. --É uma esculptura... --Uma esculptura, meu tio. E, trincando o beiço, nervoso, tornei á phrase: Linda mulher! com effeito... Mas meu tio, que adiantara alguns passos, vendo-me parado a olhar, absorvido no vulto que desapparecia, chamou-me: --Vem dahi. Vamos ao _grog_, que está quente a valer. VI Fomos descendo com vagar por entre a turba, ora collando-nos ás paredes, ora desviando-nos para o meio da rua para dar passagem ao feminino. Meu tio, apezar da sua corpulencia anafada, esgueirava-se sorrateiro e agil, sem perder a linha correcta que lhe dava o ar distincto de um diplomata em férias. Eu, porém, atordoado e zonzo, parava de instante a instante, evitando os esbarros e as collisões. Uma rotunda senhora, de roxo, o rosto placido e sumarento, côr de goiaba madura, olhos fundos, de um brilho fulvo e máu, estacou diante de mim, ameaçadora e terrivel, inchando as bochechas molles, suffocada de ira. Precipitei-me para lhe dar caminho, mas com tal desazo, que nos encontrámos, frente a frente, numa umbigada tremenda. Foi horrivel! O vexame tirou-me de todo a calma. Dei um salto para a esquerda e encontrei a senhora, fugi para a direita, e ella... Assim estivemos um bom par de segundos num balancé ridiculo, até que fui repellido para o meio da rua, exhausto e com o chapéu na mão. E a senhora passou como uma avalanche, resmungando coisas atrozes contra mim. Ó divino De Maistre, queria que visses esse exemplar nedio e colerico do teu «bello animal», queria que o tivesses um minuto diante dos olhos para que me dissesses depois em que casta dos belluinos o classificarias. Livre, respirei um momento, enxugando o suor que rolava copiosamente pelo meu rosto e, ancioso, perdido, alonguei os olhos procurando meu tio. A multidão... a multidão... a promiscuidade terrivel... todas as variadas escamas desse camaleão--o povo (como disse uma vez em discurso o verboso promotor Gusmão, referindo-se ás mutabilidades da opinião popular, á versatibilidade da alma collectiva)... tonteava-me e meu tio, a preciosa escama celibataria e farta, sumida, longe da minha vista... Dei alguns passos attonito, desvairado, julgando-me perdido no oceano tumultuoso da populaça que me aturdia: os homens, com os seus cotovellos, as mulheres, com os seus olhos, com os seus cabellos, com o aroma que deixavam ficar no ambiente, como um pollen invisivel para fecundar o amor. Por fim, reconheci a voz de meu tio: --Ó Anselmo! Voltei-me ancioso e descobri-o á porta de uma casa, acenando-me. Corri pressuroso e, mal nos encontrámos, desabafei: Que rua, meu tio! Que garganta! Que inferno! Elle sorriu, sacudindo com um piparote alguma coisa que trouxera da multidão na golla do casaco, e, naturalmente, puxando-me pelo braço, collocou-me junto de umas caixas de biscoutos, ao lado de prateleiras carregadas de puddings e de frascos bojudos de geléas inglezas. --Vamos ficar por aqui. Não ha mesa por emquanto. Lancei um olhar de exame á casa. Era uma sala vasta, dividida ao meio por uma linha resplandecente de columnas, de quatro faces, forradas de espelhos. O fundo era um grande espelho corrido do solo á linha branca do estuque, reflectindo, aprofundando o interior, rumoroso e cheio. As paredes, de alto a baixo, carregadas de garrafas; por dentro de um balcão de marmore e nickel, dois homens, em mangas de camisa, sacolejavam cocktails; ao centro, uma comprida mesa de serviço. A outra parte da sala era reservada á pastelaria e aos confeitos. Pelas vitrinas, frascos de compotas, latas de conservas; sobre o balcão pratos de fios d’ovos, bolos, tortas; nos mostradores semi-abertos alfenins e doces miudos, loiros: de creme; escuros: de chocolate, polvilhados de amendoas; pastilhas em bocaes enormes. As portas estavam entulhadas de queijos, de salames e de linguiças e nos armarios de exposição os finos bombons em caixas artisticas, ornadas de chromos e polichinellos empanturrados de amendoas, sacolas e outras coisas de formas extravagantes--tartarugas, caixas de phosphoros e um Bismarck pançudo com o nome _Boissier_ no retrospectivo lugar das palmadas na infancia, dos pontapés na virilidade. Um grande aquecedor de empadas, rodeado de homens que mastigavam gulosamente. Do tecto, presas por fios negros, pendiam lampadas electricas. Não havia uma mesa--todas cheias. Grupos de rapazes, os cotovellos fincados no marmore negro, gesticulando, falando alto, riam espremendo siphons. Senhoras cerimoniosas, com o véu levemente arregaçado, chuchurreavam sorvetes. Em uma mesa um rapaz loiro, imberbe, inclinado para o companheiro, pallido, de pince-nez, lia baixinho umas tiras de papel, levantando o braço direito em gestos supremos, todo arregaçado--o companheiro tinha os olhos perdidos no fundo do copo. Caixeiros azafamados passavam com bandejas carregadas, abriam garrafas, serviam pratos. Havia um rumor confuso e, de quando em quando, um berro: cognac! um nome: Barroso! e estouros de garrafas desarrolhadas, estrepito de louça, tinir de talheres... Meu tio, que se voltara, disse-me confidencialmente: --Tens aqui o Paschoal! --É soberbo...! --É chic. De repente abandonou-me e foi-se precipitadamente, de esguelha. --Com licença! Com licença! para a direita, para esquerda, porque era preciso incommodar os que faziam pacatamente a sua hora de lunch ou de vermouth, para dar passagem ao seu prodigioso ventre; e foi seguindo até o fundo da casa, junto ao grande espelho. --Temos aqui uma! Temos aqui uma! disse, chamando-me. Já havia tomado duas cadeiras quando um sujeito magro, de cavaignac, avançou com um petiz ao collo, babujado de creme. Falou com a boca cheia: «Se lhe podia ceder uma cadeira?» Mas meu tio, com um sorriso, voltou-se, designando-me ao do cavaignac, como se lhe quizesse significar: «Bem vê que não é possivel, tenho aqui meu sobrinho.» O homem agradeceu e foi-se com o petiz que chalrava, pedindo coisas, com os braços estendidos. Sentámo-nos. Uf! --Uma estafa, hein, Anselmo? --Uma estafa, meu tio! --É sempre assim. E a um caixeiro que passava com uma bandeja de sorvetes: --Ó Barros... --Volto já, senhor commendador. Volto já. Foi-se, equilibrando os copos e meu tio, descançando o chapéu numa vara de metal que corria ao longo do espelho, bufou esbaforido: --Está quente!... --Um forno! --Amigo commendador, disseram, e eu, pelo espelho, avistei um rapagão de fartos bigodes loiros, pince-nez, sobrecasaca e calça clara, que arriava a cartola cumprimentando meu tio. Falava a umas senhoras dando palmadinhas de carinho nas bochechas de um pimpolho, que amuava ao collo de uma negra retinta, com uma touca de seda, donde pendiam até os pés duas largas fitas cinzentas. Meu tio correspondeu com affabilidade offerecendo-lhe a mesa, onde, até então, sómente havia as nossas bengalas cruzadas. Elle espalmou a mão--que esperasse. --Quem é, meu tio? --O Dr. Gomes de Almeida, advogado. Moço de talento e rico. --Bello rapaz. --Boa prosa. Has de ouvil-o. Voltei-me, porque meu tio afastara a cadeira e já estava de pé. O Dr. Gomes, radiante e de braços abertos, apertou-o com intimidade. --Meu sobrinho Anselmo... O Dr. Gomes de Almeida, meu amigo, apresentou meu tio. Trocamos um aperto de mão e sentámo-nos. O caixeiro, que voltava, inclinou-se passando pelo marmore uma toalha felpuda: --Que ha de ser, Sr. commendador? --Tres grogs. --Não, não, acudiu o doutor--para mim, um cocktail. É a minha hora e em questão de habitos não transijo. --Dois grogs e um cocktail, repetiu o caixeiro, deixando sobre a mesa um cartão minusculo. Meu tio, dirigindo-se ao doutor, disse indicando-me: --É a primeira vez que vem ao Rio. --A primeira vez! exclamou elle, cravando em mim os olhos claros. --Estive aqui em janeiro de 72, cinco dias apenas, em um hotel. Grassava a febre amarella e meu pai, que viera para matricular-me em um collegio, ao fim de tres dias, resolveu abalar, aterrado, preferindo conservar-me ignorante, mas vivo, a seu lado, para governo das suas terras. Fugimos, e justamente no dia da nossa partida, no quarto proximo ao que habitaramos, faleceu um jovem americano electricista, que viera ao Rio por conta de um syndicato, tratar de uma empreza de campainhas. O correspondente, que nos escreveu, felicitando-nos pela retirada prudente, falou do pobre forasteiro dizendo que na agonia entrara a declamar em inglez umas coisas gementes, que mais tarde soube, pelo Dr. Azambuja, serem versos de Longfellow. Esse americano agonisando solitario entre os tabiques de um quarto de hotel, revendo na agonia as paisagens da _Evangelina_, nostalgico na suprema angustia, nunca mais me deixou o espirito. Apezar de o ter visto apenas uma vez, á mesa, não esqueci os traços femininos do seu rosto, de uma tez dourada e rosea, macia e branca como a de uma mulher. E tomei em tal horror o Rio que, apezar das reiteradas instancias de meu tio, fui-me deixando ficar entre as minhas arvores, onde não chega a peste. --E ainda receia? inquiriu o doutor, sorrindo. --Não tanto, mas na multidão parece-me ver passar, de vez em vez, o americano pallido, desvairado e hirto. Para mim essa visão de allucinado é como um presagio de peste e, sempre que me falam de alguma victima do terrivel mal, vejo immediatamente levantar-se diante dos meus olhos o desgraçado moço recitando: In the Acadian land... --É extravagante, disse o doutor. É um bello caso de impressionabilidade. O caixeiro fez deslisar pela mesa uma bandeja carregada de copos. --Dois grogs e um cocktail... O doutor sorveu um trago e, depois de chupar os bigodes, perguntou com interesse: --E como tem achado a cidade? --Pouco tenho visto: cheguei hontem... Mas meu tio interrompeu com uma expressão concludente: --Não gosta. Sonhara coisa melhor. --É geralmente o que succede. Deu-se commigo o mesmo facto, disse o doutor. E voltando-se para mim: Imaginava o Rio uma cidade artistica, monumental e nobre, com abundancia de marmores, avenidas, longos passeios abrigados sob toldos, palacios de estylo e o fausto classico. A cruzarem-se pelas ruas carros, cavalleiros; o luxo incomparavel do sonho, a sumptuosidade da fantasia, o espirito, a elegancia, a belleza, e encontrou uma cidade vulgar, sem nada absolutamente do que lhe emprestara a sua imaginação, não é exacto? Sorri, mexendo lentamente o meu grog. --Commigo succedeu exactamente a mesma coisa. Quando daqui parti, em 80, para ter o prazer de pisar o solo trilhado pela humanidade nas suas marchas atravéz do tempo, desde a éra aryana até o periodo em que se moveram da terra de França, para as campanhas ambiciosas, as legiões que seguiam a aguia altiva de Napoleão, fui perdendo illusões a pouco e pouco. Era já com tristeza que descia a escada do navio quando chegavamos a algum porto, porque levava de antemão a intima certeza de que ia ver aluir-se um dos meus sonhos--e era fatal. Paris, por exemplo--é um assombro, incontestavelmente... um assombro! Infelizmente, porém, o Paris que eu imaginara era o antigo, que eu vira descripto nos primeiros romances que me entretiveram as horas de mocidade--Paris dos duellos, Paris dos lansquenets, Paris das tascas romanticas, Paris das vielas escusas, onde, á noite, á luz fumarenta das lanternas, tiniam as finas e flexiveis espadas dos pagens rebatendo a _rapière_ dos burguezes, Paris de Ponson, Paris de Dumas... É ridiculo, não é? mas infelizmente é um facto geral. Essas impressões das primeiras leituras que nos ensinaram a devaneiar, que nos tomaram pela mão para nos mostrar a estrada azul da fantasia, não esmorecem facilmente. É debalde que procuramos suffocar esse residuo de infancia ou de imbecilidade que fica em nossa alma, lendo solidas e doutas philosophias, espanando os preconceitos com o vasculho da critica e da analyse, destruindo, com as verdades da historia, as fabulas que adquirimos na novella e no conto. Esse sedimento subsiste como germen abafado de onde, longe em longe, espontaneo e violento, rebenta um broto de sentimentalismo. A verdade é que nós temos duas divisões--a do mundo real e a do mundo imaginario, e esta é a primeira que buscamos. É atravéz della que a Poesia entrevê o céu, ella é que torna o mundo possivel, variando constantemente a sua face. Porque é que os astros são eternamente bellos? É porque nós os olhamos com um pouco de imaginação. O Oriente, por exemplo... que decepção, meu amigo! Quando desembarquei em Beyrouth, que é, por assim dizer, a porta da Syria, senti tal aperto d’alma que a minha vontade foi voltar para a cabine, a bordo do paquete, que ainda se balouçava no porto. Tudo quanto eu julgara encontrar nessa terra ancestral estava entulhado pela civilisação, aluido pelo progresso: A industria fincara os obeliscos das chaminés, que fumegavam como em Londres, como em Bruxellas, como em Amsterdão, a patria da genebra e dos organistas. O beduino, em vez de traçar, como nos tempos historicos, o albornoz listrado, encolhia-se sentado a um canto, fumando um cachimbo Cambier, raspando com as unhas as pernas magras, vestido com um paletó côr de cinza, de golla de velludo. O degenerado que me deu cêrco pedindo solicitamente o guarda-sol e o binoculo vinha assim vestido. É verdade que encontrei um filho do deserto, authentico, mas apezar do seu trajo pittoresco de scheik, apezar do yatagan e do cinto vermelho, ruminava um francez duro, offerecendo umas pedrinhas claras de uma fonte milagrosa citada pelo Propheta. A Palestina... uma miseria! Mas o que jámais esquecerei é o que lhe vou dizer seccamente, em quatro palavras. Quer saber o que encontrei no alto do Calvario, justamente no sitio santo em que foi crucificado o Christo? Inclinou-se todo para mim olhando-me, fixando-me como se quizesse magnetisar-me, por fim disse com um gesto, sacudindo o punho e deixando cahir palavra por palavra com força e furia:--um grande mastro com um cartaz annunciando um leilão de jumentos... Um leilão de jumentos, é exacto! E virou de um trago o cocktail. Que quer? os homens entendem que podem encerrar todas as tradições das raças nas vitrinas dos museus, já dispensam os sitios santos da religião, porque a Luz é a sciencia. Deus começa a ser analysado como o _bacillo-virgula_. Meu tio, que se sentia ferido nos seus melindres religiosos, inquiriu com uma ponta de incredulidade: --Mas, doutor, era mesmo um leilão de jumentos? Talvez fossem reliquias... --De jumentos, vi-os eu no Calvario. Jumentos! E arreganhando os dedos: Quatro patas, commendador. Quatro patas e orelhas! affirmou. --Cães! rusgou meu tio mostrando o copo ao caixeiro para que lhe servisse outro grog. --Não se incommode, commendador, não se incommode, acudiu tranquillamente o doutor apaziguando a furia de zelo do meu beato parente. A religião ha de vencer, apezar de todas as guerras que contra ella movem obstinadamente os pseudo-reformadores. Isso, longe de destruir a crença, augmenta-lhe o prestigio. Que era a cruz antes do martyrio do Homem? um vilissimo instrumento de supplicio e é hoje um symbolo de misericordia, é a ancora com que nos prendemos á Esperança. O azorrague, a corôa de espinhos, o sceptro de canna, a tunica de byssus, tudo quanto foi para Jesus opprobrio, é hoje objecto de respeito e de veneração. Esse mesmo poste, alçado como um ludibrio, no santissimo lugar, acabou commovendo-me e não dobrei os joelhos devotamente, creia o senhor, não ajoelhei, repito, de vergonha, porque andavam por ali umas mulheres que não tiravam os olhos de mim. --Ajoelhar-se diante do poste dos jumentos, doutor! --Pois não, commendador, diante do poste porque elle estava fincado no Calvario, que é a montanha por excellencia, santificada pelas gottas do sangue do Cordeiro. O que eu ali via não era um poste de annuncio, era um mastro espetado no lugar em que estivera a cruz. Ali devia tremular a bandeira branca da Paz Universal. Tinha um annuncio, isso, porém, não era bastante para desmerecer o sitio aos olhos de um verdadeiro crente. O maldito reclamo, inventado pela ambição yankee, é que tem polluido os legados preciosos dos seculos. Em Epheso, por exemplo, nas soberbas ruinas do templo de Diana onde, á noite, ao luar triste, a gente julga ouvir os latidos da matilha feroz e os gritos das nymphas perseguindo o misero e formoso Endymião, num fuste de esplendido marmore, entre folhas de acantho, avistei uma inscripção em letras negras--corri a decifrar e era um annuncio de capsulas de sandalo. O commercio affixa em toda parte, escolhendo, de preferencia, os lugares celebres... O Passado vai desapparecendo sob cartazes de côres. Não ha mais antiguidades, não ha mais tradições, o que hoje ha é uma avidez sordida de dinheiro. É preciso andar para conhecer-se o caracter do homem. Vende-se tudo nos mercados do mundo: innocencias impuberes e aguas mysteriosas que fazem voltar a mocidade, consciencias e homens. Em caminho encontrei de tudo, comprei de tudo para humilhar o semelhante. Em uma aldeia de Constantinopla, perto de um cemiterio todo em flor, ajustei, por uma bagatela, uma formosa rapariga que me agradeceu, cantando uma ballada turca, emquanto eu contava as moedas; em Smyrna abalou com um caixeiro que negociava em pannos, deixando-me, como lembrança, uma lata de contas e uma rosa de Jerichó! Tenho em casa, no meu gabinete de trabalho, reliquias preciosas compradas por ahi além, desde o monte Athos, onde subi para avistar o celebre convento d’Aghios-Dionysios, até Paris: o dedo com que S. Thomé tocou a ferida aberta no peito de Jesus pela lança de Longuinhos, um pouco da palha mastigada pelo burrico que carregou a Virgem para o Egypto, uma madeixa de João Baptista, o ciborio de cophen com que polia as unhas Maria de Magdala, um prego da cruz, uma prova da legenda que foi pregada no tope do aviltante madeiro e um dos suspiros do Bom Ladrão; e reliquias profanas--a clava com que Atila aterrou o Occidente, o tinteiro onde Carlos Magno molhava a penna para escrever os Capitulares, os oculos de Milton e os famosos sapatos com que o Alighieri andou pelas calçadas do inferno. Guardo tudo como recordação dos lugares que visitei para provar a vileza da alma do homem venal e torpe. --Outro cocktail, doutor, offereceu meu tio. --Não, obrigado, commendador; basta. E voltou-se de novo para mim offerecendo-me cigarros turcos: Depois que vi o mundo estou convencido de que o Rio de Janeiro é uma bella cidade. E o meu amigo, dentro em pouco, ha de concordar commigo. Não é tão máu como parece. Demais, para um moço como o senhor, intelligente e forte, ha sempre uma aventura á espreita. Descahiu um pouco para o meu lado e disse-me, em tom mysterioso, apinhando os dedos nos labios para colher um beijo: O Rio tem mulheres esplendidas! e atirou o beijo com um estalinho. Ainda não as viu, garanto...? --Pois não. Passou por nós uma loura lindissima! --Uma...! Mas o Rio tem milhares, meu amigo. É preciso vel-as, conviver com ellas no meio em que vivem. Não é na rua do Ouvidor, creia: é nos salões, nos boudoirs... nos boudoirs...! Ah! as mulheres, as mulheres...! foram a minha perdição em viagem. Antes de ver os edificios, as bellezas naturaes e artisticas de um paiz, tratava de ver as mulheres e estou convencido de que é a mais bella coisa da Creação. --Primeiro as hespanholas! aventurou meu tio com os olhos brilhantes de volupia, recostando-se no varão de metal que corria ao longo do espelho. --Não sei, commendador, não sei. Olhe que as inglezas são lindissimas...! Meu tio fez um momo. --Espere, commendador, eu tambem pensava assim; mas em Londres convenci-me do contrario. Lembro-me sempre de uma noite em que se cantou o _Ruy-Blas_, no Covent-Garden... Commendador, não se descreve, creia, não se descreve. Imagine o senhor uma assembléa de estatuas, qual mais formosa, alvas de fascinarem, immoveis, numa attitude hieratica, com grandes aureolas feitas dos proprios cabellos louros. E os olhos azues, commendador, os olhos azues das miss! quem os cantará como elles merecem! A impressão que tive em presença dessas donzellas da antiga nobreza foi a que teria um pobre civilisado de hoje vendo subitamente abrir-se o céu pagão e apparecerem todas as deusas, todas as graças num zodiaco como aquelle hemicyclo de camarotes do theatro inglez. Que sei eu, commendador... Não havia uma mulher feia! Nem uma! E espetou o dedo com convicção. --Mas não têm vida, tornou meu tio, cruzando as pernas. São umas estatuas, como disse o doutor... E depois--que andar! --Engana-se ainda, commendador. Decididamente o senhor precisa sahir do Rio. Londres é a patria das mulheres, convença-se, commendador. Não ha louras como em Londres. --Não gosto de louras. --Ah! então italianas: as morenas de olhos abrasados. Ha bellissimas mulheres em Roma, em Florença, em Veneza... A Zanelli... Meu tio piscou um olho discretamente; eu, porém, surpreendi-lhe a mimica no espelho fronteiro. O doutor calou-se um momento e logo continuou: Em Roma... --Cá para mim não ha como a hespanhola. É a mulher que me agrada. Quem é que traz com mais graça a mantilha do que uma andaluza? Quem agita com mais arte um leque? E depois... é outra coisa! Cá para mim não ha como a hespanhola, insistiu. --Quer saber onde encontrei bellissimos typos femininos? Na Russia. É exacto, lindas mulheres. --E as turcas, doutor? Fez um momo e balançou a cabeça negativamente: --Não gosto... Um caixeiro aproximou-se e disse-lhe alguma coisa em segredo. Voltou-se de golpe e, apanhando a bengala: Com licença: vou ali á porta ouvir um amigo. Volto já. --Pois não, doutor. Levantou-se e partiu com os dedos na aba da cartola, a sorrir. --Que tal, Anselmo? --Intelligente. Lembra-me o padre Coriolano que, por haver decorado o livro de Ruth, repete, sem omissão de uma virgula, todos os periodos do idyllio. O doutor, falando, não deixa no espirito a impressão de uma palestra, mas de uma leitura: tem paginas magnificas. Mas, francamente, parece-me exagerado. --Mentiroso, mentiroso é que é... E carrancudo: Ha lá quem acredite na tal historia dos jumentos? Leilão de jumentos no Calvario... Ora bolas! Mas recahindo em tom brando e resignado: Dahi, quem sabe! do modo por que vão as coisas tudo é possivel. E com ar triste e tedio: Que miseria! Até a religião! e engoliu um sorvo. Pelo espelho eu seguia todos os movimentos do doutor, que falava a um rapazola pallido, de olhos miudos talhados á chineza, bigode fino, uma singular physionomia de mascara de seda com uns toques de imbecilidade. O assumpto devia ser grave porque, de vez em vez, a fronte do doutor franzia-se e a sua cabeça douta pendia para o peito, scismadora e apprehensiva. O rapazola, com gestinhos femininos, enfeixando os dedos, fazendo beiços, dedilhando no ar, pronunciava baixinho, precipitadamente, puxando, de vez em quando, o doutor para soprar-lhe um segredo ou recuando de braços cruzados, a cabeça á banda, mudo e fito. Por fim o doutor irrompeu com uma bolachinha entre os dedos, exaltado, frenetico, agitando o braço com violencia e furia; os labios tremiam-lhe, os olhos chispavam e o seu bigode fulvo estava arrepiado de colera. Encolheu-se e, de improviso, atirando a bolachinha á rua, impoz gravemente a mão direita sobre o hombro do interlocutor e, meneando com a cabeça, disse alguma coisa de responsabilidade porque o outro tomou uma attitude cheia de mysterio para ouvir, mas subitamente, descahindo, prorompeu em rinchavelhada estridente sacudindo-se. O doutor recuou um passo sorrindo e cofiando o bigode que amaciara. Como o pallido estendesse a mão, o doutor disse-lhe alguma coisa em tom intimo, elle esticou-se um pouco e espiou-nos com ar curioso, mas fez uma careta de desgosto calcando o ventre, alongando o beiço. O doutor sacudiu-lhe a mão num shakehand, disse-lhe uma phrase que elle acolheu com outra rinchavelhada e partiu. O doutor voltou immediatamente com um resto de sorriso e, sentando-se, disse para meu tio, em confidencia: --Revolução em Matto-Grosso, commendador. --Como! Ainda? exclamou meu tio saltando. --É exacto, disse-me agora o Lyrio. --Aquelle rapaz?... --Sim, trabalha num jornal, é o debulhador dos crimes. Viu um telegramma. --Isto é o diabo! exclamou meu tio espalmando as mãos nas coxas e derreando o busto. --Qual, commendador: revoluções inoffensivas. Nós somos um povo bem fadado... todas as nossas revoluções são incruentas. Somos sufficientemente anemicos e é talvez por isso que nos vamos arranjando a secco. O sangue só escorre no noticiario, a carnificina só existe na local. Temos dado ao mundo o exemplo mais perfeito da harmonia dos poderes--as nossas lutas intestinas são uma blague de bom humor para alimento do artigo de fundo. Toda a nossa evolução social tem sido feita, não á custa de sangue, mas á custa de foguetes. Para dar-se ganho de causa a uma ideia basta collocal-a sob a protecção de uma banda de musica. Só ha dois factores de revolução no Brasil--a chirinola e o foguete de lagrimas. A semente da arvore genealogica da brava gente, commendador, é D. Quixote... A sciencia ha de confirmar mais tarde o que lhe digo hoje em palestra: nós descendemos em linha directa do heróe manchego. Até na mania das concessões temos o traço indelevel da alma do cavalleiro errante que promettia a Barataria quando Sancho, desalentado e moído, pedia para voltar á sua tranquilla aldeia. Não creia em revoluções, commendador, são moinhos de vento... moinhos de vento e nada mais. --Creio bem, creio bem, mas não é pela revolução de Matto-Grosso. Que tenho eu com Matto-Grosso, não me dirá? --Nada. --Nada, certamente, não tenho nada; o que me preoccupa é outra coisa. Não imagina como essas historias fazem mal á praça. Basta o telegramma de uma aldeia qualquer, historia de um caudilho que se poz á frente de um lote de homens, para que o commercio soffra. E escancarando os braços: Senhor, correu um dia destes que iam depôr a intendencia de Maxambomba, pois não lhe digo nada: os titulos cahiram. Eu sei bem que o sangue de Abel, de que falam os jornalistas, é uma figura de rhetorica. --Simples figura de rhetorica e já estafada e innocua, accrescentou o doutor. --Mas os papeis soffrem, soffre o commercio, soffre o povo. E indignado, fechando o punho: Que diabo, dêem cabo de tudo, rebentem, estourem, mas não compromettam o credito do paiz! Isto é que é patriotismo. Agora estar a gente todo o dia a ouvir: revolução aqui, e cahiu para a direita; revolução ali, e cahiu para a esquerda; governador deposto, e apontou o tecto, revolta nos quarteis, fez um gyro-gyro com ambas as mãos fechadas. É horroroso... é uma vergonha! Uma voz estrugiu em plena sala stentorosa e indignada. «Vá ao _Paiz_... Vá ao _Paiz_, lá está o boletim...» Era um homemzarrão barbado, intonsamente barbado, uma cara terrivel de propheta, embrulhado numa sobrecasaca enorme, rapada e lustrosa, com um grande chapéu molle no alto da cabeça calva, côr de marfim antigo. O doutor encolheu-se e murmurou: --Fujamos, commendador, antes que o Braz nos venha falar da podridão moral. Baixámos a cabeça e meu tio fez um aceno ao caixeiro que nos servira e fomos sahindo sorrateiramente para que não nos visse o homem. Já haviamos chegado á porta, quando elle berrou indignado, caminhando para a mesa que deixáramos: --Menino, dá cá um cognac! Á porta, em um grupo, um rapaz moreno, de pince-nez, discutia assomado, aos pinchos para a direita e para a esquerda, avançando e encolhendo os braços num recúo athletico, a cabeça enterrada nos hombros ou espichado nas pontas dos pés, olhando por cima das lentes, com rugidos surdos. Segurando a bengala pelo meio sacudiu-a e, num salto de acrobata, rugiu numa voz espremida, descrevendo rapidamente um circulo no soalho: --É o zodiaco do amor, é a escala chromatica do affecto, mas não se aproximem! ululou, encolhido, com os olhos chammejantes,--não se aproximem, porque a pomba, muitas vezes, fere como as aguias bravas. E calmo, calcando sobre a mola do pince-nez: É um mulherão! VII Não sei ao certo quanto tempo nos demorámos abancados junto do grande espelho, ao fundo do Paschoal, bebendo grogs e ouvindo a palavra pittoresca do Dr. Gomes, mas quando sahimos, a rua tinha outro aspecto--via-se-lhe toda a sordidez do lagedo e, quasi deserta, sem a densa multidão que a cobria quando a deixámos, mostrava-se impudicamente a meus olhos esboroada e suja. Eram outros os grupos que subiam--homens em mangas de camisa, tisnados, arrastando, com estardalhaço, solidos tamancos; alguns traziam, além da marmita de lata, pequenos feixes de lenha miúda. Poucas senhoras e, correndo de um para outro lado sobraçando maços de jornaes, meninos que apregoavam a revolução em Matto Grosso e um assassinato barbaro. Em uma esquina era tal a profusão de flores que o ar rescendia. Meu tio escolheu tres ramilhetes de violetas e offereceu-nos. O doutor immediatamente cravou a unha na botoeira da sobrecasaca florindo-se e eu, emquanto arranjava a malva sobre a lapella, communiquei-lhe a minha impressão: --Parece-me outra a rua do Ouvidor... --Exactamente, fez elle; é que ella tem varios aspectos--este é um delles, o mais interessante, talvez. Caminhámos e o doutor, para falar com mais intimidade, tomou-me o braço. É a hora dos operarios. As modificações desta rua accusam-se pelos seus typos; são elles, por assim dizer, que lhe formam a physionomia e, o que é mais notavel--a cada um dos aspectos corresponde um cheiro especial. Olhei-o... e elle affirmou: Sim, meu amigo, um cheiro. Talvez não tenha observado que todos os homens, como todas as coisas, têm o seu aroma caracteristico... Pode-se perfeitamente distinguir as raças pelo cheiro, como um conhecedor distingue facilmente, apenas pelo olfacto, um genuino Xerez de uma falsificação. Chego a levar a minha mania a ponto de emprestar aroma ás coisas abstractas--á côr, ao som, ao sentimento. O branco é inodoro como a camelia; o vermelho cheira a cravo, o azul é o heliotropo. Ha trechos na _Aida_ de uma tal intensidade suggestiva que, ouvindo-os, não só nos remontamos á vida sensual do Egypto pharaonico, como sentimos (note que me refiro aos temperamentos puros, faço excepção do imbecil, que não tem o olfacto esthetico) sentimos um fugitivo aroma de chrysanthemas. Não conheço a chrysanthema, mas o que senti, uma vez, ouvindo a Borghi cantar _O fresche valli..._ devia ser forçosamente o aroma da flor do Oriente. A saudade tem o aroma da violeta, que tanto dura. A innocencia trescala a bogari, que é o lirio do monte, o crime tresanda á mandragora, que amedronta, atordôa e mata. Mas o povo, insisto, tem o seu cheiro especial--_odor populi_--e a rua do Ouvidor varia de aspecto e de aroma conforme a hora, conforme a gente. Ás quatro da manhan, com as ultimas estrellas, descem por este esophago, que vai dar ao estomago do Rio, que é a Praia do Peixe, grandes carroças atulhadas de verduras e de frutas, a lenha, os ovos, o pão e, algumas vezes, não raras, rebanhos. Uma manhan tive de refugiar-me em um vão de porta para evitar a furia de um garrote que tresmalhara. Passam carrocinhas levando pilhas de jornaes--é o pão da curiosidade que se vai espalhar pelo interior socegado levando á simpleza e á ingenuidade das cidades pacatas a bilis dos articulistas salvadores da Patria. Cheira a curraes e a hortas, a pão quente e a artigos de fundo. Ás seis começa a vida do mercado--bandos de cozinheiros passam chalrando, com samburás empanturrados; cestos carregados de viveres, carros de mão cheios de legumes--tudo quanto sacía a fome fluminense, desde o ramo tenro de salsa até o quarto de vacca sangrento, que vai bambo, flaccido e gottejante, á cabeça dos carregadores. Cheira acremente a matadouro e a salsugem. Mais tarde fede a lixo quando os grandes carroções da limpeza começam a asseiar as casas e a sujar as ruas. Ás seis e meia atrôam os pregões dos jornaes e apparecem as primeiras caras femininas--menagères economicas que vêm ao mercado, costureiras a caminho das officinas e as desgrenhadas e pallidas anemicas que vêm das aguas do mar exhaustas da caminhada, queixando-se das ondas que lhes maceraram o corpo delicado; passam tristes, somnolentas e molles, com uma cestinha, os cabellos soltos espalhados por cima de uma toalha, que trazem forrando as costas para resguardal-as da friagem perfida d’agua salgada. Ha um cheiro estranho de maresia, de sabonete Windsor e de bocejos. Começa a descer o commercio: caixeiros apressados, em grupos, commentando as bambochatas da vespera, com grandes ares. O primitivo cheiro vai desapparecendo e espalha-se um apetitoso aroma de acepipes, um almiscar suave de molhos. Ás dez os patrões, pesados do almoço, arrotando, empanzinados e fartos, descem; em seguida os capitalistas e as dyspepsias melancolicas. Vem subindo o cheiro caracteristico, o cheiro «meridies», como já alguem lhe chamou--mixto de fumo, de essencias e de guarda-roupa: sedas novas e camphora. Ao meio-dia a primeira vaga polychromica, desde a elegante impaciente, que vem estrear um chapéu, até o mendigo que surge lentamente, com um realejo ao peito, gemendo palavras de piedade por elle e pelos filhos, em nome do Senhor. Começa o rumor e o cheiro mixto vai subindo. As portas ficam entulhadas, vão-se formando grupos e o commentario principia até gerar o primeiro boato que corre rapido augmentando sempre, de porta em porta, de circulo em circulo, como outr’ora passavam, nos campos gaulezes, as noticias de guerra, de trigal em trigal, de leira em leira. Das tres ás cinco é a desfilada--a elegancia, o espirito, o trabalho, o vicio, a miseria: o Rio manda a sua embaixada diurna que passa numa promiscuidade fantastica de roda concentrica de lanterna magica baralhando-se, confundindo-se. É nessa onda que passa lento e cabisbaixo, admirando a lealdade dos sapatos, que vão resistindo á marcha sem destino, o bohemio dessa familia eterna de Gringoire, com a alma cheia de sonhos, os labios borbulhantes de rimas, relembrando enternecidamente uns olhos azues que o fitaram na vespera, casta e santamente, mas estacando subito para reflectir na miseravel condição da materia que não vive, como o espirito, da contemplação do ideal, mas sordidamente, gulosamente do bife. Ás cinco essa onda vai desapparecendo. --E o cheiro caracteristico, doutor? interrompi curioso. --O cheiro?... sim--alguma coisa que se pode imaginar entre estes dois pólos: Guerlain e a Sapucaia. Só ás cinco, dizia eu, essa onda vai desapparecendo para dar passagem ao operario que vem dos arsenaes e das fabricas: tresanda a suor e a resina. --A resina... porque? --Francamente, não sei. E começou a farejar. Experimente, ha ainda um cheiro leve. Não sente? Não quiz entristecel-o, disse que sentia. Elle, então, continuando: Demais, a hora é das flores. Ao crepusculo a rua do Ouvidor perfuma-se: toda a gente cheira bem. Á noite é insipida: cheira á comida como uma casa de pasto. Á meia-noite cheira á poeira e ás cinco recomeça. --Hesiodo não subiu tanto no seu livro ambrosiaco, disse eu, lisonjeando-o e mostrando que tambem possuia os meus conhecimentos e elle sorriu vaidoso, encolhendo os hombros. Chegaramos ao fim da rua. Escurecia. O céu, de um doce azul fino e nitido como o das porcelanas, tinha algumas estrellas; rodavam carros e um pelotão de soldados marchava pesadamente ao toque de uma corneta fanha. Voltámo-nos; no outro extremo da rua, apparecia uma nesga de céu abrasado como em chammas--uma boca de forja. --Lindo crepusculo! E ficamos um momento contemplando. De repente o doutor sacudiu-me: --E o commendador?... --É verdade! meu tio... Rindo ambos e de braço, como antigos camaradas, subimos a rua a grandes passos. Uma harpa gemia ao fundo de um café sombrio. --O café e a musica, as duas forças vitaes deste paiz, disse o doutor com ironia. E curvámo-nos para marchar á cata de meu tio. Em menos de cinco minutos de marcha esbaforida chegámos ao Largo. A estatua do patriota, á luz mortiça do crepusculo, resplandecia com uns tons vivos de ouro polido. Havia um ajuntamento em volta de uma bandeirola vermelha; aproximámo-nos. Um homem barbado, de blusa, com uma casquete de lontra, apregoava panacéas exaltando as excellencias de um sabonete maravilhoso contra nodoas e tomando em dois dedos um pacotinho berrava: que até as manchas da reputação desappareciam com algumas fricções do invento mais notavel do seculo. Grave e religiosamente soou na alta torre o primeiro dobre vesperal da Ave Maria. Algumas cabeças descobriram-se e o homem abaixou a voz. Houve um doce silencio mystico, rapido como um voto d’alma em desespero e casto como uma oração. Pequenos, de mãos ás costas, pernas abertas, levantavam os olhos para a torre onde o grande sino emborcava lentamente, de espaço a espaço, soturno. De longe, na aragem da tarde, vinham toques militares, finos, estridentes, com uma vaga saudade, fazendo pensar em acampamentos guerreiros, á hora santa do baixar da noite, congregando para a reza todos os regimentos exhaustos das batalhas. O doutor, que sahira do grupo limpando o rosto, falou-me: --Não sei se deva attribuir ao meu temperamento ou se a um resto de crença que guardo na alma, esse estranho sentimento de religião que em mim despertam os sinos. Não ouço sem commoção o toque da tarde: Parece-me sempre que é uma voz antiga que vem do fim dos seculos atravéz dos espaços evangelisar na terra. A igreja quiz conservar o diapasão da palavra tremenda dos prophetas e creou o sino, que é, ao mesmo tempo, meigo e terrivel, consolador e implacavel. Agora, por exemplo, nesta meiga tranquillidade, este sino a soar não é bem uma oração do templo pela humanidade, em doces threnos sonoros que vão ondulando, ondulando, de lar em lar, de nuvem em nuvem a todas as almas e a Deus...? Não é uma doce elegia sobre a morte da luz? A mim, e desconto todo o meu romantismo, parece sempre que as estrellas esperam a voz da atalaia santa para sahir. Ha muezzin em minarete que valha um sino em campanario? Deixe lá falar, a nossa religião é divinamente poetica, divinamente humana, porque é a que mais se dirige ao coração. O _Dies irae..._ ah! _O Dies irae..._ o dobre a finados... _o tocsin_ de alvoroto, o rebate em tempo de calamidade... É divino sinceramente, é divino!... Para as bocas de pedra das cathedraes só mesmo essas poderosas linguas de bronze. Outro dobre cahiu e o echo foi rolando demoradamente. --Conhece o _La bàs_ de Huysmans? --Não, doutor. --Deve ler. É um livro interessantissimo. Livro de nevrotico, obra de enfermo, mas de excellente factura, arte magnifica. Ha lá umas doutrinas admiraveis sobre o sino, pregadas em um cubiculo, no alto da torre de Saint-Sulpice, pelo sineiro Carhaix, um catholico intelligente, profundamente versado em doutrinario antigo, de uma erudição de velharias que pasma. Esse homem obscuro reserva em um canto da sua lura volumes preciosos sobre a arte difficilima de tanger os sinos: «De Tintinabulis» «Essai sur le symbolisme de la cloche» e prova irrefutavelmente que é necessario, não sómente um perfeito conhecimento da arte, como muita alma para que se consiga tirar do metal sons symbolicos, se assim ouso exprimir-me:--para as cerimonias gloriosas do rito, para as duas horas extremas da luz, para o gloria meridiano, para os que nascem, para os que morrem, porque, infelizmente, o sentimento artistico vai desapparecendo--a democracia reduziu tudo a comesinho, a vulgar. Não ha muito, ouvimos no fundo de um café uma triste harpa gemendo sambas. Creia que me faz pena, são como pedaços de puro classicismo espesinhados pela multidão ignara. A harpa que David tangia! a harpa que foi o kinnor levitico; a harpa que vem embalando por essas idades remotas os sentimentos e as paixões, desde a ira de Saul até ás tristezas de Ossian, é isto hoje: um chamariz de bodega, que os dedos grossos de um maltrapilho ferem, não docemente, não enamoradamente, com os olhos no céu como Wolfram, mas abjecta e indignamente com um pires ao lado, pensando na colheita e indifferente á corda que estala, ao compasso que se precipita! Dá-se o mesmo com os sinos. Não ha mais sineiros... isso foi para o tempo das cathedraes, quando o _Dies irae_ era cantado por populações de crentes. Isso foi para o tempo em que se ia á Roma pedir misericordia cantando por todo o caminho louvores ao Deus Vivo, acordando aldeias ao som dos gloriosos choraes santissimos. Isso foi para o tempo em que se acreditava em Deus; hoje não... não ha mais nada--a civilisação vai estabelecendo mecanismo para tudo e a philosophia abafa com uma analyse o que era mysterio, pondo um principio onde havia um dogma, pondo a razão a patrulhar o sentimento para que não aconteça perder-se de novo a humanidade em extases. Para que sineiros, se temos o carrilhão, que é o piano das torres? Hoje os poucos sineiros que restam são bimbalhadores, moleques apanhados no meio da rua e içados ao campanario por cinco tostões para soar a aria pastoral de reunir ovelhas. Ahi tem o amigo o que nos resta. Eu ainda hei de ver o orgão em saráus, e é justo, porque as bandas militares já invadiram os córos ecclesiasticos. Não temos mais nada, mais nada. A civilisação vai extinguindo tudo. Espero ler ainda nos jornaes que um sujeito qualquer pediu privilegio para illuminar as igrejas a luz electrica ou para fazer santos mecanicos: um Christo que diga do alto da cruz, deixando pender a cabeça meiga: _Consummatum est!_ e em verdade estará tudo consummado. Estacou e olhando em frente disse sorrindo: --Olhe, ahi vem o commendador. Era meu tio, com effeito, que vinha dando com os braços e a sacudir a cabeça. --Onde se metteram vocês? --Na rua do Ouvidor, commendador, á sua procura. --Á minha procura!... É boa! --Á sua procura, meu tio, affirmei. --Então foi de tanto procurar que não nos achámos. E, sem mais dizer, foi impellindo o doutor para a victoria: --Vamos, vamos... --Mas, commendador... --Perdão... Hoje temos que conversar. Entrámos. Sentei-me num banquinho baixo em frente aos dois. Edgar fez estalar o chicote e partimos. Começavam a acender os lampiões das ruas. VIII O mundo é dos epicuristas, disse o doutor, ao fim do jantar, trincando uma amendoa para melhor saborear o kirsch. A vida psychologica tem a sua preoccupação: o ideal; a vida physiologica tem a sua avidez: a fome. O ideal é a ancia pelo absoluto--fome insaciavel, por isso os gastronomos são mais felizes do que os poetas. Meu tio, affectando conhecimentos, deu com a cabeça meio toldada, em signal de affirmação. --Eu comprehendo a sumptuosa antiguidade com os seus banquetes colossaes em que eram servidas rezes inteiras e grandes javalis com os colmilhos vinham ornar o centro da mesa illuminada a candelabros de ouro. Esses homens que nós outros, em assomos pueris de vaidade, chamamos barbaros, conheciam e praticavam com mais requinte a sciencia delicada do gozo fino. Nós hoje comemos para manter em equilibrio as funcções da vida, raramente sentimos prazer, tratamos de encher o vacuo materialmente, azafamadamente. As nossas refeições não têm solemnidade, não têm apparato, são feitas, como todos os outros actos da vida material, com tédio, com tristeza, funebremente. Ah! os antepassados magnificos!... Para elles a mesa era um altar onde se celebrava, com dignidade e volupia, o rito do estomago. Comprehendo o orgulho de Lucullo e as extravagancias excentricas de Apicius mandando apparelhar um navio para buscar ostras nas costas africanas. O triclinio era o aediculo do supremo gosto, o ádito do regalo. A civilisação rudimentar desses tempos era dictada pela esthetica. A propria politica, sempre avessa aos retoques esmerilhados da Arte, tinha a sua feição sympathica, tinha o seu cerimonial, exigindo para a primeira ala de representação a velhice sensorial e grave dos senadores, tão augustos na magestade impassivel da ancianidade, tão veneraveis na hieratica e silenciosa attitude de pais da patria que os barbaros da Gallia recuaram atemorisados, vendo-os immoveis e alvadios, sentados nas curúes do Capitolio. A cozinha tinha a sua esthetica especial. O cozinheiro romano era um artista. Para merecer os applausos de um patricio não era bastante saber temperar o môlho ou córar o peixe, era necessario conhecer o segredo de manter, para que não se evolasse, o perfume da vianda ou do pescado e mais ainda, commendador, era indispensavel saber vestir os pratos. Todas as peças tinham a sua toilette caracteristica, variando de tempos a tempos, conforme os caprichos da moda ou a imaginação do chefe das cozinhas. Uma ave exotica trazida, entre os despojos de uma conquista, de remotas paragens da Asia, era servida com a propria plumagem para que, antes da satisfação do paladar, a vista se regalasse; um cabrito montez vinha do forno entre folhagens frescas e verdoengas; havia pratos perfumados, outros que primavam pelo luxo maravilhoso e vario da verdura ornamental. Entre nós esse luxo, conservado por alguns retrogrados, não vai além das espetadas de rosas e de limões no costado dos bacoros de forno, as azeitonas que vão morar nas orbitas vasias e o classico ovo cozido cravado na dentuça. É verdade que os francezes pretendem resuscitar esse fausto elegante, mas como, commendador? montando _gateaux_ de gelatina diaphana, refolhando massas, facetando tortas de foie gras... Mas isso é infimo. Sabe, meu amigo, tenho uma nostalgia estranha--a nostalgia do passado. Quanto eu daria para ser commensal de um chefe barbaro, mesmo um bruto, como o huno que andou a murchar a herva dos campos com as patas do seu cavallo da steppe...! Quanto eu daria para estar no acampamento, depois da batalha, á hora do rancho, para ver cahirem ao peso das clavas, ainda molhadas de sangue inimigo, as rezes pacientes que vinham acompanhando o exercito; e com que delirio eu cercaria as fogueiras colossaes em que ellas fossem lançadas! Quanto eu daria, commendador! Trinchar um boi! Cravar-lhe no ventre uma faca, grande como uma espada de guerra e comer no concavo de um escudo! Estou enfarado da mesquinharia subtil do vol-au-vent. Um bom pedaço de carne sangrenta a rechinar na ponta de uma lança, hein, commendador? --Não temos estomago para taes coisas, doutor. --Isto sei eu. A humanidade vai degenerando miseravelmente. Não é sómente á mesa que ella confessa o seu abastardamento--é em tudo. Veja a Arte de hoje... Quem ha por ahi que ouse tentar um poema epico? Ninguem! A poesia moderna é effeminada e languida--vai pelas minuciosidades porque lhe falta a suprema força victoriosa dos antigos vates que punham num canto de epopéa exercitos de homens e legiões de deuses, todo o furor ardido das pelejas e toda a sensualidade: os troantes armistrondos das catapultas e as doces palavras meigas dos namorados. Vêde na Iliada os contrastes--Achilles e Agamenão invectivando-se, Diomedes rompendo as hostes troyanas com a sua lança formidavel, Thersyto giboso, a injuriar e a rir como uma satyra errante; Ulysses, a enredar traças, os deuses esvoaçando, uns pelos gregos, outros pelos priamides e, mais que tudo, esse episodio de um tão original e inaudito sensualismo: Paris salvo da lança aguda e bruta de Meneláu por Aphrodite que o retira do campo de duello, levando-o aconchegado ao seio ardente para dar-lhe repouso nos braços claros de Helena. Isto sim! isto é poesia! Hoje a preoccupação do poeta é o rhythmo, a sonoridade. São os discipulos de Apelles, commendador, são os discipulos de Apelles: fazem-na rica por absoluta impossibilidade de a fazerem bella. Os grandes deslocaram a montanha e a geração de hoje, anemica e enfezada, anda a respigar destroços para brunir bibelots que, ao mais leve contacto, quebram-se e desapparecem. Commendador, nós, os contemporaneos, polidos por dezenove seculos de civilisação, não valemos os errantes que sahiram dos valles acceitosos da India cantando, ao sol, pelas margens das aguas claras, os doces versos mysticos dos aryas. Virou o resto do licor que havia no calice e continuou no silencio attencioso: --Á nossa litteratura falta o caracter de originalidade. Não é propriamente uma litteratura nacional porque, por infelicidade, ninguem se preoccupa com a terra. Os olhos dos nossos poetas vêem as constellações de outros céus, as aguas de outros rios, a verdura de outras selvas. Quando trazem para o descante uma mulher, de preferencia rustica, porque a Poesia, por um resto de bucolismo, só comprehende o amor fiel na deveza campestre, vestem-a á moda da aldeia européa, como uma pastora de Alsacia, como uma montezina dos Alpes, porque a Musa indigena não se atreve a apresentar na estrophe a sertaneja patricia, mais linda do que a Amaryllida das eglogas de Virgilio, mais casta, se é possível, do que Miranda ou do que Agnés. Se é um homem, desce das montanhas frias da Suissa tocando a _ranz_ das vaccas dos companheiros de Winkelried. A paizagem é inverosimil, as aves que nella desferem são todas exoticas e muitas vezes até encontram-se no fundo de um parque, á luz da lua de maio, o rouxinol que canta e o cormoran que sonha. O cormoran... ora, francamente! A causa de tal aberração não é a ausencia do ideal plastico, porque ahi temos a natureza sempre nova e cheia de imprevistos; não é tambem a ausencia do ideal poetico porque, a meu ver, não ha paizagem mais suggestiva do que a nossa, cheia ainda do rumor da vida priméva, selvas, valles e montes, onde a lenda põe um mysterio em cada talisca, uma yara em cada regato, uma balada em todas as corollas, uma pastoral em todos os valles, um idyllio de amor em toda gruta, ardencia nos corações e inspiração nas almas. A causa é outra--é a difficuldade, porque é incomparavelmente mais difficil descrever a verdade do que colorir fantasias e sobretudo porque o nosso genio artistico é um producto immigrante: trabalha em nosso espirito como um colono labora nos campos e podemos dizer que as messes do sólo e da intelligencia nesta terra pauperrima são devidas ao elemento adventicio. Basta uma simples analyse da vida litteraria. Veja o commendador--somos ainda um povo em formação, começamos a encarar a vida e, na idade em que a Grecia foi lyrica, na idade juvenil em que todos os homens trataram de compôr poemas de religião e de esperança para abrigo da alma, nós desesperamos, somos pessimistas... Por convicção? por soffrimento? absolutamente não, por imitação apenas. Praguejamos no berço e pedimos a morte, o Nirvana. Começamos a ler pelo poema de Job. Mostre-me o periodo romantico, que é, por assim dizer, a adolescencia da Arte, na sua segunda phase, depois do renascimento? não tivemos. Saltámos para o naturalismo, que é a analyse, a rabugice caduca da litteratura e já vamos caminhando para a cachexia do decadismo, arrastados, inconscientemente, pelo habito inveterado da irresponsabilidade. Vamos no tropel dos allucinados escabujar na _charogne_, profanar tumulos para evocar procissões macabras, depravando o coração, depravando a benção. Peladan institue o erotismo, os eroticos emergem. Huysmans entra pela Idade-Média folheando as chronicas poentes dos archivos, apparecem aqui os satanicos; o mahatma apregôa as excellencias do budhismo, toda gente é budhista, como foi hypnotista na phase mais irritante das experiencias de Charcot, como foi cumberlandista quando aqui esteve Pedro Vals. Somos um povo incaracteristico; defeito de origem--não tivemos lutas, não conseguimos formar um periodo historico, habituámo-nos a receber o que nos davam, dahi a passividade desidiosa do nosso temperamento. Nossa alma varia de instante a instante, é por isso que somos tão faceis de adaptação. Forçaram o nosso altar, deixaram-nos sem crença e sem Deus, aluiram todo o passado meigo das tradições christans, que foram o conforto dos nossos pais e o incentivo que nos trouxe pelo caminho da Moral, abateram a cruz e mostraram á Virgem a Via Dolorosa para que ella partisse, e que fizemos nós, os christãos? assistimos impassiveis á hegira, vimos sahir dos altares os santos venerados pelas nossas mãis e sorrimos. Chamam a isso evolução... é possivel--eu chamo-lhe indifferença. E é assim em tudo. Em politica dizem que fazemos revoluções sem sangue. Ora, commendador... francamente, chega a ser ridiculo! --Mas é a verdade, doutor. --Uma triste verdade. Para mim a politica do brasileiro não vai além da urna. Dêem-lhe todas as fórmas de governo com a urna e elle estará contente. E essa dedicação ao vaso do suffragio, só comparavel á dos hebreus pela arca, não significa a confiança que o povo deposita no voto, porque toda a gente sabe que o voto, entre nós, é uma palavra. Mas a eleição é uma tradição de motim, por isso é que ella perdura; tanto é verdade que tenho certeza de que o Brasil politico cessará de existir no dia em que morrer o ultimo cabalista. Outro facto ainda, que attesta eloquentemente a nossa tendencia imitativa--é a mania que temos da applicação de meios administrativos, economicos e ainda politicos usados em casos normaes em outros paizes de condições bem differentes das nossas, de systema de organisação diverso, á anomalia da situação que atravessamos. É querer curar uma febre eruptiva com um sedativo que fez cessar a cephaléa do vizinho. Ridiculo, commendador, ridiculo e triste. E vertendo mais algumas gottas de kirsch: --Que me diz o senhor da moda? a moda por exemplo, esse supplicio imposto á mulher brasileira pela elegancia parisiense? --Eu acho-a divina... Gosto immenso da variedade, affirmou meu tio. --Tambem eu. Mas refiro-me aos disparates da mania vestiosa. Quando o inverno inteiriça Paris, nós aqui, nesta fornalha dos tropicos, desfazemo-nos em suor, estalamos, e as nossas mulheres, que se vestem pelos moldes da _Saison_ e do _Coquet_, embrulham-se em pelles, revestem-se de _arminhos_, trazem pesadas cachemiras e capas com que um groenlandez zombaria do mais duro inverno, na sua toca de neve. E nós outros apertamo-nos em cheviots felpudos, torrados, suando, simplesmente porque seria ridiculo para a senhora apresentar-se na calçada da rua do Ouvidor com uma toilette clara, de um panno fresco e leve e um simples chapéu de palha cercado de flores, e nós seriamos corridos a apupo se ousassemos affrontar o povo com um terno de linho e um chapéu panamá. Ha de convir, commendador, é ridiculo, é soberanamente ridiculo! Gravemente, com a repercussão profunda de um sino longinquo, o veneravel relogio interrompeu a facundia do doutor soando as dez horas. --Dez horas! exclamou elle sacando do bolso o seu chronometro. Perdôe-me, commendador, mas não acredito nas palavras da pendula domestica--e baixou os olhos para consultar: É estranho! dois relogios de accordo: dez horas justas! E, pondo-se de pé, a passar as mãos pelas pernas para alisar as calças: Vou deixal-os, disse. --Ainda é cedo, doutor. Vamos tomar um punch de champagne. --Oh! Acha então que tenho bebido pouco? Mas meu tio já havia acenado ao criado indicando um vaso bojudo, de crystal ceruleo, a cratéra, como lhe chamara o doutor, descobrindo-o entre os pesados jarrões da China, carregados de rosas. --Dê treguas ao theatro por uma noite, doutor. --Treguas! Mas eu não faço outra coisa. Ha mais de quatro mezes que não ponho os pés em theatro. Desde que d’aqui partiu a companhia lyrica, a não ser um ou outro concerto, uma ou outra soirée, passo as noites a ler ou a jogar o pocker. Oh! o theatro! exclamou com um risinho, passeiando ao longo da sala. --Não gosta? indaguei. --Adoro! mas o theatro, meu amigo, o theatro... não isto que por aqui ha com esse nome. Porque, afinal, penso eu, Arte não é a chufa banal que faz estourar a braguilha, nem a nudez de maillots que aguça o apetite erotico. O fim da Arte é mais nobre do que o da chalaça. Não foi com auxilio de rondós obscenos que Sophocles foi coroado vinte e tantas vezes. Shakespeare não teve necessidade de sumptuosas scenographias para vencer em Blackfriars--a lua era feita por um homem que atravessava a scena com uma lanterna. Molière não mantinha a seu serviço córos femininos convenientemente cevados para embasbacarem a volupia. Ah! meu amigo, as mulheres que iam ouvir Eschylo abortariam de novo visitando os nossos theatros... mas abortariam de tanto rir, as pobres mulheres, de tanto rir! E sentando-se: Sinceramente, vale a pena emparedar-se um homem entre dois desconhecidos em uma platéa asphyxiante para ouvir cantarolas e admirar meneios sensuaes de alméas sarapintadas? Vale a pena deixar-se o canto do gabinete e a companhia de um bom livro para ir ouvir as imprecações de um fidalgo furibundo, que vem á scena, com uma grande capa, alongando as pernas, evocar os manes dos avós e reconhecer um filho? Em geral esse homem, que durante cinco longos actos estropêa inimigos, é de tão perverso instincto que nem a syntaxe consegue, na maioria das vezes, escapar á sua furia. Que é que nos offerecem os theatros? o vaudeville que nos vem trazer, desnaturado pela traducção, o espirito de Paris e o dramalhão pretencioso e bufo, onde ha invariavelmente a luta das paixões--o filho reconhecido ou... outro disparate qualquer. De Arte nacional, que temos? absolutamente nada. --De quem a culpa? dos poetas, doutor, dos poetas que não trabalham. --Perdão; nem dos poetas nem dos emprezarios, commendador--a culpa é da Fatalidade, falo agora como Seneca, disse a rir, a culpa é da Fatalidade. Nisard, se bem me lembro, diz que Roma não teve drama porque não teve povo, o verdadeiro povo, porque o drama é a obra litteraria mais indigena e mais original de um paiz--não póde ser feita sem o concurso directo da massa popular, porque é ella que a consagra no theatro. E para que exista o drama é necessario que existam factos, que haja uma historia, subsidio que, infelizmente, não possuimos. Demais, o nosso povo, na sua collectiva densidade, é uma massa heterogenea, na qual o elemento adventicio faz desapparecer o elemento autochtone, absorvendo-o como uma cellula mais forte absorve a mais fraca. Somos victimas de uma conquista organica--talvez não me exprima bem, mas a phrase parece-me exacta e perfeita. Os factores que nos parecem revigorar debilitam-nos, tirando-nos toda a autonomia e repulsando-nos lentamente... Somos nós os estrangeiros na patria. Essa massa forasteira é que impõe o theatro, é que concorre ás casas de espectaculo para rever os seus costumes, para recordar trechos das suas primitivas glorias. Vêde os dramas--ou são portugueses, para o elemento que é, por assim dizer, a grande força activa do paiz, ou traduzidos do francês e agradam pela universalidade do assumpto, porque são as paixões modernas que existem em toda a parte; ou as operetas que são a nota viva e saltitante, que acarretam a nudez, o saracoteio, a bambochata e acendem a sensualidade... do Brasil nada. As poucas tentativas fallecem porque quem as podia levantar esquece-as e a razão é simples, commendador: é que nestes dramas não ha um fundo que impressione a collectividade: o povo, que é a patria na sua mais completa manifestação. É que o drama no Brasil não é fundado em uma these nacional, em um caso historico desses que exprimem uma gloria commum e que são a recordação de um momento ou de um facto. Não temos um heroe que encha com o seu prestigio todo o corpo de uma tragedia. E d’onde viemos nós? que epopéas demarcam a nossa victoria inicial? que altares relembram a religião primitiva? em que meandro ficam os tumulos dos que lutaram pela nossa liberdade e pela nossa crença? ha algum campo semeado de ossos do bravos que tivessem sahido em defesa da patria? não ha nada... não conhecemos a nossa origem, somos um povo do acaso com tres periodos de servidão--a servidão de colonia, a servidão do eito e a servidão do espirito. Só póde ter theatro um povo livre. Como havemos de rir se somos por temperamento tristes e melancolicos? E nem chorar podemos. Os antigos choravam pelos seus heroes, eram lagrimas que recordavam glorias épicas, e nós havemos de chorar! porque?... de que?... de vergonha? mas para isso ainda é preciso que appareça um audaz que escreva o drama dos pusillanimes. Não ha assumpto, commendador, não póde haver poetas. Ha um povo promiscuo, é para esse povo que os emprezarios trabalham, porque o brasileiro, como o romano da decadencia, contenta-se com os ursos sabios e com os saltimbancos. O criado, que chegava com a cratéra, poz remate á imprecação patriotica, e meu tio, servindo uma taça, passou-a delicadamente ao doutor exclamando: --Parece estar divino! Tocámos as taças e sorvemos demoradamente o punch que, em verdade, estava delicioso, porque o criado, perito em segredos de buvette, perfumara o champagne com alguma coisa que rescendia como a baunilha. Por fim, pousando a taça, interrompi o silencio com uma objecção subtil, não tanto para refutar os conselhos do doutor, como principalmente para arrancal-o á mudez em que se reservara, bambaleando a perna, a tamborilar com os dedos no bojo da cratéra. --Doutor se, como affirma, a causa da miseria litteraria em que jazemos vem da ausencia absoluta de factos, da esterilidade historica, somos um povo fadado ao silencio e á immobilidade: nem Arte escripta, nem Arte cinzelada. Jámais teremos a consolação suprema de rasgar um horizonte para que nelle possa refulgir um vulto de marmore ou para que nelle fique, eterna como a Odysséa, a constellação de um poema patrio. --É um engano. Isso que o meu amigo préga é o desalento, doutrina do desespero, propria das raças nullas. Somos um povo que começa, não temos um só periodo, um só estadio ainda, mas isso não quer dizer que sejamos um povo morto. Ainda não começámos a viver, esta é a verdade; ainda não começámos a viver. Temos elementos para vir a ser um povo artistico como foram os gregos: o meio, o caracter, o sentimento e até a providencia dos mares que nos distanciam do resto do mundo, isolando-nos no equador como para obrigar-nos a agir exclusivamente por influxo directo da zona que creia, ao mesmo tempo, a temperatura physica e a temperatura moral. O brasileiro não é um povo rudimentar sob o ponto de vista psychologico, não é. E, a proposito, permitta-me que faça aqui, muito á puridade, a minha profissão de fé. Tenho uma extravagante doutrina sobre a psychologia, que, em verdade, já me tem valido apupos. Retrahi-me e hoje apenas deixo presentir alguma coisa, assim em intimidade como estamos, por que não quero que vejam mais em minhas palavras pretenções a dogmas: são ligeiras idéas que desapparecem com a palestra. --Fale, doutor! Pedi com interesse. --Ah! meu caro, sou um «solitario». Vai achar ridiculas as minhas palavras... Em todo caso... Tomou uma attitude severa e falou. --Creio profunda e convencidamente nas phases de dynamisação psychica--a alma é um fluido perenne e immortal, activo e autonomo, que circula mysteriosamente pousando de corpo em corpo, como a abelha circula, pousando de flor em flor. Como uma suga o mel das flores, a outra absorve o mel da intelligencia, que é um producto complexo de funcções do cerebro isolado: a imaginação; cerebro-cardiacas: o sentimento; do instincto: a avidez; e da vontade: a ambição que é a tenacidade do desejo. Essas funcções só se manifestam na materia com o contacto da Alma, como as forças magneticas apenas se desenvolvem com a incidencia dos dois polos extremos. De longe em longe, colhendo em differentes vidas qualidades de um e qualidades do outro, a Alma encerra-se em um ser, immensamente farta, immensamente cheia, produzindo os genios, que são como grandes colmeias que reunem toda a essencia de multiplas variedades, todo o mel colhido atravéz de multiplas e variadas metempsychoses. É uma doutrina de louco, decididamente, e eu sou o primeiro a convir nisso, mas actualmente todas as doutrinas têm um fundo de insania, não é muito que surja uma inteira e completamente louca. Mas creia o amigo que é só assim que consigo comprehender e explicar o apparecimento dos homens cyclicos--Homero, que é a synthese de todo o drama épico desde o periodo pelasgico; Hesiodo, que é o mytho, a theogonia; Eschylo e Sophocles, que são a tragedia; Dante, que é o astro neutro posto no céu sombrio da Idade-Média, terrivel e tragico como Saturno, alumiando entretanto a manhan triumphal do renascimento; Shakespeare, que é o ponto de encontro das paixões humanas. Homens-collectivos que apparecem em uma éra determinada quando ha um espirito perfeito. Commendador, o futuro não contará a idade do homem pela data do seu nascimento, mas pelo numero de éras que tiver atravessado o espirito que o escolher e a lenda de Mathusalem será ridicula, porque haverá homens dez, vinte vezes millenares. Não é hoje uma verdade scientifica o atavismo? A humanidade é uma redundancia: evolução é um synonimo de substituição--progresso quer dizer: aperfeiçoamento. O povo tem uma expressão que define admiravelmente o principio cerebrino da minha psychologia: «As crianças de hoje nascem velhas.» É uma verdade: a vida repete-se. Demais, sendo a Alma uma essencia perfeita, virgem, original e fecunda e sendo ella a força concurrente para a vida do ser, era justo que nós outros fossemos produzindo constantemente idéas novas, novos principios, entretanto ahi está, de longo tempo, o aphorismo do Ecclesiaste como uma verdade: «_Nil novum sub sole._» Razão formidavel em favor da minha escola exclusiva--não póde produzir actos novos o que é de natureza antiga: repete, varia ampliando ou aperfeiçoando. Sendo _uma_ a causa, os effeitos serão invariavelmente os mesmos, mais ou menos aperfeiçoados pela combinação dualista: materia, espirito, impulso e meditação, acção e reacção. --O doutor é spirita? indagou meu tio com um leve tremor na voz. --Não, commendador... Spirita, eu! Sorriu com desdem, tomou um charuto da caixa, acendeu-o e continuou reclinado, com as pernas estendidas: --Mas, dizia eu, o brasileiro não é um povo rudimentar. Sem recorrer ás idéas expostas tenho uma observação que, posto não seja muito original, presta-se magnificamente. A nostalgia, que é o avesso da esperança, é a saudade na sua expressão mais nobre, porque é a saudade do absoluto, quasi que posso dizer assim, saudade da terra, do céu, dos rios, da selva, do homem, do ar, do rumor, de tudo que se amou, de tudo que se viu e sentiu além. Ora, commendador, para que exista a nostalgia, que é um effeito, é necessario que tenha existido uma causa. --Forçosamente, corroborou meu tio. --E qual é ella? Entretanto o brasileiro é nostalgico. Nostalgico de que? porque? pergunto. Que vida no Aquem viveu elle para que tenha saudade tão intensa? que outros astros o alumiaram? que outras selvas trilhou senão as do seu paiz? Meu tio deu de hombros. E o doutor, num impeto, pondo-se de pé como inspirado, disse: --Tenho, para mim, que Colombo conhecia a America antes de a ter visto--conhecia-a inconscientemente, porque nella vivera a Alma que o animava. A fé que elle tinha nos mares immensos era certeza, e essa doce melancolia que o acabrunhava quando avistava o oceano, póde ser que fosse um resultado de desanimo, porque era forçado a sopitar a sua paixão aventureira, mas no fundo, penso eu, era nostalgia da terra que era Ideal para a sua imaginação, que era verdade para a sua Alma. Meu tio escutava boquiaberto, com ligeiros fremitos, como se o doutor lhe estivesse revelando coisas de um mysterio absconso; arfava cançado, como se as phrases, que jorravam copiosas num catadupejar sonoro, dos labios facundos desse erudito moço, não lhe dessem tempo para respirar. A cabeça approvava machinalmente e os olhos, que traduziam profundo abalo de crenças e de convicções, abriam-se, cerravam-se, parecendo, ás vezes, querer saltar das orbitas onde rolavam arregaladamente, desatinados e aturdidos. --Realmente, doutor, disse cabeceando com enthusiasmo, realmente... e tomou a taça de punch engulindo gulosamente um sorvo. A sua philosophia, deixe lá, tem alguma coisa de verdade. Commigo tem-se dado o facto que citou. Ha occasiões em que parece que me recordo de uma outra existencia. --E ha de ter reconstituido pequenos episodios, commendador. --Pois não... Pois não... --E os casos de sympathia e de antipathia? bem querer a alguem que se vê pela primeira vez, detestar uma creatura que se encontra, ao acaso da travessia e que nos vem receber affavel e meigamente, toda bondade e blandicias? Que é isso senão uma prova evidente e cabal de que houve relações entre os espiritos encerrados em nosso corpo e no corpo da pessoa que se nos depara--relações de amor e de amizade, de despeito ou de odio, no impenetravel e nebuloso Aquem? Causas estranhas, phenomenos do incognoscivel. Luciano, o ironico, fartou-se de rir da doutrina de Pythagoras, mas deixem lá... deixem lá. Sacudiu um gesto como para afugentar idéas e disse: Mas deixemos divagações que não têm fundamento senão em conjecturas. O Mysterio seduz, mas o Mysterio é a Sphinge. Deixemos o caminho de Thebas, deixemos o enigma, vamos pelo terreno firme. E tocando-me delicadamente no hombro: Voltemos ao nosso thema. Dizia eu que possuimos elementos para vir a ser um povo artista como os gregos. É uma verdade, posto que desmentida diariamente pela improductividade e pela inercia esteril. Porque? porque não temos educação de ordem alguma. Physicamente, somos um povo hybrido, sem raça discriminada, sem antecedentes firmes; nascemos da amalgama, somos os epigonos de Babel. Essa miseria de origem reflecte-se no organismo. Dizem que o brasileiro é preguiçoso, languido e contemplativo. Ha quem lance esses vicios congenitos á conta do clima, é verdade, em parte, mas esquecem inteiramente a etiologia--que é a origem. O sangue que circula em nossas veias é uma mistura heterogenea de globulos que se destroem reciprocamente para que um sobrepuje e vença: o globulo africano dá-nos o banzo; o que herdámos dos navegadores dá-nos a actividade, a tenacidade arguta e trefega de investigação e o egoismo, que é um euphemismo de avareza; e, finalmente, o globulo virginal do sangue indigena. Em uns vence a saudade--é a vida do coração, são os sentimentaes; em outros supera o germen europeu e são os activos: homens de sciencia e de commercio, bem raros, infelizmente; nos ultimos, a força indigena prevalece e são os bravos e os sonhadores. Ha, entretanto, casos excepcionaes de fusão--a luta constante dos tres globulos: são os desorientados, homens indecisos, dubios, de existencia incerta, de vontade vária, sem idéa firme, sem iniciativa. Sobram-nos, por desgraça, esses casos de excepção--a maioria do nosso povo é constituida de anomalias. Não nos nacionalisaremos emquanto o tempo não fizer a differenciação necessaria. Além disso o clima torrido amollece, entibia, tornando o povo languido e nostalgico. Ha, todavia, um meio de combater essa teratologia organica--é a educação. Educação physica, o sabio artificio de que lança mão a Humanidade para aperfeiçoar a obra natural, enrijando os musculos, reforçando os ossos e concorrendo para vitalisar a intelligencia, garantindo a saude e o bom humor. Educação moral, que é a confortavel armadura do espirito que o premune e defende contra as ciladas constantes da vida de sociedade, porquanto fornece ao homem os conhecimentos praticos do bem e do util, creia o amor altruista estabelecendo a unidade entre os seres--um por todos, todos por um--formúla noções geraes sobre o destino na vida, mostrando as relações que devem existir entre os individuos e os fins de todos para o bem da communidade; estabelece as bases irreductiveis da familia e da sociedade dando a mais o vasto appendice da crença, que é a caixa de Pandora de onde a sciencia póde arrancar todos os dogmas, porque ha de sempre ficar no fundo, immarcessivel e consoladora, a Esperança. A educação moral, para mim, deve comprehender a educação civica--o culto dos maiores e o respeito pelos factos da tradição que levam o homem ao absoluto amor, o amor da Patria. Não temos. Nas escolas desconhecem de todo essa hygiene de espirito. Educação intellectual... O nosso povo, na sua maioria, é ignorante. Ha uma pequena parte de selecção que lê, outra parte que ouve e outra que não lê, nem ouve: o patricio, o plebeu e o servus, eis as tres castas. A primeira impõe, a segunda transmitte, a terceira executa--d’ahi a inconsciencia de todas as nossas manifestações collectivas. O povo, propriamente dito, é uma massa rude que serve de instrumento aos privilegiados. Essa casta superior, que podia impôr as letras e as Artes, é indifferente, porque não se educa na patria, educa-se no estrangeiro ou nas suas doutrinas, é lida em livros de fóra, visita museus na Europa, fala sobre exotismo e sente e pensa atravéz do sentimento e do pensamento dos seus educadores--são automatos do Occidente; d’ahi a impossibilidade de dilatação litteraria e artistica. Se se cuidasse da educação da Patria com elementos proprios, tratando-se de formar espiritos nacionaes, genuinamente nacionaes, dentro em breve teriamos Arte, porque o povo, ligando-se á terra pelo espirito, sentiria necessidade de conhecer-lhe os segredos e viria disso, talvez, a noção de patriotismo que ainda não existe entre nós. Antes de fazer Arte tratemos de fazer povo, eis o principio. Somos um grande coração... já alguem disse. Oh! a caridade proverbial do brasileiro, a sua hospitalidade só comparavel á dos arabes... Somos um grande coração, mas sem systole: recebemos a vida no que nos transmittem, mas não transmittimos absolutamente nada. Somos um coração sem systole, empanturrado de sangue como um odre, mas na analyse de um coagulo das nossas arterias um sabio paciente descobriria atomos de todo o sangue universal. Germens de todas as raças do mundo circulam dentro em nós e é justamente por isso que não somos nada, porque não temos identidade. Só ha um meio de tirar dessa miscellanea um povo--é educal-o, mas educal-o na escola austera do amor da Patria de modo que elle se converta a nacional, vivendo para sua terra, que bem merece que por ella vivam. Alma antiga em corpo antigo, eis o brasileiro--um povo macrobio no berço. Poz-se de pé d’um impeto e voltou-se para o relogio: --Como! onze horas! É estranho! Sacudiu-se todo, deu um puxão á sobrecasaca e, accendendo novo charuto: Até amanhan, commendador... --Já?! disse meu tio, com a voz cançada, suffocando um bocejo. --É muito tarde. E rindo: e o senhor está a cahir de somno. Até amanhan! Até amanhan! disse interrompendo meu tio, que ia provar que não estava absolutamente a cahir de somno. O criado entregou-lhe a cartola e a bengala. Levantámo-nos para acompanhal-o. Á porta, despedindo-se, vedou-nos a passagem para que não apanhassemos o sereno da noite e, apertando-me valentemente a mão: --Perdoe-me e não guarde resentimentos das minhas doutrinas--são inoffensivas. Rimos ambos e quando elle partiu ficámos a olhar e a vel-o seguir pelo jardim calado, alvissimo do luar, girando a bengala e cantarolando: _La gondola nera fuggiva..._ De longe atirou-nos o ultimo adeus: --Até amanhan... --Boa noite, doutor! dissemos ambos. E meu tio ajuntou atravéz de um bocejo sonoro: --Conversa bem, mas é meio doido... é meio doido... E, arrastando os passos, foi cahir mollemente na cadeira abbacial das refeições e do primeiro somno. IX O dia amanheceu baço e humido. Chovera pela madrugada. Meu tio, em candidos linhos, estirado num pliant de lona, com um jornal sobre os joelhos, olhava da varanda os rosaes ainda gottejantes. Saudando-me, interessou-se pela minha noite, indagando se não me assustara com os tremendos trovões da madrugada e, dizendo-lhe eu que nem os ouvira, lançou-me os olhos, admirado da valentia do meu somno de chumbo, affirmando--que o céu viera abaixo em raios e em agua. Sahimos ao jardim para ver os descalabros da tempestade nas roseiras e nas moutas de cravos e compungimo-nos, mais de uma vez, diante das esfolhadas de petalas ou á vista de um canteiro que a torrente da chuva escavacára. Mas já o jardineiro andava a recompor, pondo esteios, fincando espeques, ligando galhos, ajustando ramos, e meu tio, como se visitasse uma enfermaria de desastre, ia de arbusto em arbusto, sempre com uma phrase terna e cheia de condolencia, lastimando o botão que os ventos haviam arrancado ou a begonia pendida para a terra encharcada, quasi a morrer dos embates fataes da noite tempestuosa. Almoçámos tristemente--repasto funebre de exequias, sem palestra, com poucos vinhos. Os canarios, como se participassem da agonia das rosas, estavam encolhidos nos poleiros, mudos. Sahimos logo depois do almoço, porque meu tio não queria demorar-se mais a olhar a devastação do seu jardim, mas como o Jeronymo lhe promettesse «arranjar tudo», recompoz a physionomia e, quando entrámos para a victoria, já elle levava o rosto transfigurado e dizia a rir «que as almondegas estavam coriaceas», cravando nos dentes um resto de palito. Em caminho falámos do Dr. Gomes. --A proposito, meu tio, de que vive elle? --Tem uns predios, ganhou alguma coisa na praça á minha custa, accrescentou com superioridade. Deve possuir uns trezentos contos. Mas gasta muito, é um dissipador: o dinheiro foge-lhe das mãos como entrou. --É solteiro? --Solteiro. Vive com uma italiana bailarina, uma Denzi, Emilia Denzi. Bella mulher, boa voz, mas... E meu tio, num gesto eloquente, derreando a cabeça, entornou o polegar na guela e, com lastima, os olhos em branco: É uma pena! --E elle? --Tem theorias. Diz que é nevrose, que a culpa não é della, que aquillo é um mal hereditario e dá-lhe coisas a cheirar, e deita-a. É preciso vel-o. Já uma vez, lá em casa, foi um trabalho para conter a italiana. Entrou a beber e deu, a principio, para cantar ao piano, elle acompanhava-a tremulo, já desconfiado prevendo o desfecho. Cantou a _Traviata_ e uma barcarola; mas, de repente, poz-se a achincalhar a musica e, sem mais, apanhou as saias e saltou para o meio da sala atirando as pernas ao ar num can-can furioso. Por fim tomou de uma peanha a mais linda estatueta que eu possuia, partiu-a e atirou-me os cacos á cara; elle, porém, com um heroismo generoso, poz-se á minha frente, recebendo no peito o que a furia me arrojara. É um perigo! Um perigo, mas mulher bella e de carnes. Chegaramos ao largo, ao mesmo ponto em que, na vespera, haviamos estacionado, e meu tio impelliu-me para a rua, dizendo ao imperturbavel Edgar: Ás cinco! Iamos caminhando em direcção á rua do Ouvidor quando meu tio, parando repentinamente, perguntou-me: --Ó Anselmo, dize-me cá: tens dinheiro? Machinalmente levei a mão ao bolso, mas recolhi o gesto a tempo, respondendo, entre vexado e cubiçoso: --Pouco, meu tio, creio que duzentos ao todo... tenho ainda umas compras a fazer: lan e talagarça para Marocas, uma Senhora de Lourdes para a _velha_ e as obras do Casimiro para o Simão Carreira. Sem dizer palavra, meu tio sacou do bolso a enorme carteira empanturrada e tirou um macinho nitido, de notas largas, dobrou-o e deu-m’o sorrateiramente. Nem me preoccupei com a carteira, foi mesmo no bolso da calça que as guardei profundamente, acariciando-as. --Precisas conhecer o Rio... tens ahi a chave de todos os mysterios. Acolhi com respeito a peroração sentenciosa do meu generoso parente, e do mais intimo de minha alma elevou-se, como num suspiro subtil e estremecido, toda a minha gratidão: Obrigado, meu tio. Elle, porém, ou porque não ouvisse, ou para affectar indifferença á dadiva, estendeu-me a mão liberal com estas palavras: Deixo-te aqui. Tenho ás 3 horas assembléa geral da _Companhia Fomento Agricola_. Não te vás perder, vê lá! Anda como quizeres, mas não saias da rua do Ouvidor e, ás cinco, no Paschoal. Sabes onde é? --Pois não; sei. --Vê lá! --Vá descançado: Ás cinco horas no Paschoal. Separámo-nos. Fiquei algum tempo indeciso, sentindo-me mal na liberdade, receioso, timido, sem animo de atravessar sósinho a rua do Ouvidor. Parecia-me que toda aquella gente, que subia e descia, mirava-me achando-me desageitado e ridiculo, o ar tolo, os modos desalinhados. Meu terno tão perfeito, tres vezes provado e retocado por mestre Thomé Caminha, parecia-me largo e fofo, sem gosto, fazendo dobras nas costas, curto de mangas, curto de pernas, todo elle curto e largo, sem geito. Sentia-me mal e estive para correr ao alcance de meu tio, pedindo-lhe que me levasse á assembléa do _Fomento_, tal era o desanimo que de mim se apoderava ao ter de atravessar, sem companheiro, a rua que eu via diante dos olhos, atulhada de gente, apezar da ameaça sombria das nuvens que rolavam no céu, turgidas e tumidas de aguaceiros. Diante de uma vitrina lancei um rapido olhar de analyse e achei-me escorreito e liso, apenas o chapéu havia tombado para a esquerda; puxei-o e, estacando, a enrolar um cigarro, o olhar errante como se procurasse alguem, deixei-me estar algum tempo a invocar coragem para vencer a cobardia do meu espirito acanhado. Por fim atrevi os primeiros passos e fui caminhando vagarosamente, cauteloso, para não ir de encontro aos que vinham azafamados, indifferentes, abrindo caminho á força de hombros e cotovellos. A minha idéa era o Paschoal. Ali, ao menos, sentado a uma das mesas, ninguem daria por mim e poderia ficar até ás cinco á espera de meu tio, livre daquelles olhos que me pareciam despir, livre daquelles sorrisos que pareciam criticar os meus gestos selvagens e o meu lento e medroso caminhar de rustico. Mas, subitamente, como se despertasse dentro em mim uma nova energia, senti-me desembaraçado e altivo. Parti, pisando forte, a olhar d’alto a gente; mas ao cabo de alguns passos, um grupo de senhoras garrulas colheu-me num encontro amigo, no enleio expansivo de uma intimidade affectuosa, o fiquei collado á parede a ouvir beijos chochos trocados com precipitação e risinhos, emquanto um pequeno, vestido á maruja, mettia-se pelas minhas pernas empurrado pelas amistosas damas. Atroz menino! atrozes senhoras! Uf! Esbaforido e suado consegui desentalar-me do aperto intimo, maldizendo as minhas patricias que andam pelas ruas, como as formigas pelos trilhos da roça, esbarrando os labios em beijinhos. Afastei-me da calçada para evitar nova collisão e segui lançando os olhos adiante na esperança de descobrir o doutor que, segundo a affirmação peremptoria do meu tio, devia andar pela rua do Ouvidor digerindo o almoço e commentando os nossos erros politicos e os ultimos livros de França. Infelizmente, porém, cheguei ao Paschoal sem ter sequer divisado a sua sombra e conjecturei que se deixara ficar em casa amarrotando as housses dos divans em longos espreguiçamentos de tedio, com os seus poetas, em solidão ou tendo a seu lado a italiana, em toilette tenue de cambraia e rendas, mexendo grogs de cognacs, com um romance de Tosti nos joelhos. Um homem como o doutor não abandonaria o lar num dia como esse de spleen e de nevoa. Que viria fazer á rua senão chapinhar na lama e ouvir as queixas indignadas dos politicos, que presagiavam, com grande cópia de argumentos, um futuro tragico de assassinios e de roubos, de violencias e crimes barbaros? Que viria fazer á rua quando podia estar no tepido aconchego do seu «home» arrulhando nesse doce toscano, que foi o idioma dos amores, no tempo em que a humanidade, menos civilisada, amava? Não, meu tio errara na sua affirmação: o doutor não andava pela rua do Ouvidor, devia estar nas Laranjeiras, a reler poemas para distrahir a paixão bacchica da italiana iconoclasta, ou a traduzir os sabios conselhos de Martial sobre a felicidade, onde o poeta escreveu este hemistichio sobrio que, de per si, constitue um elemento de paz e de ventura: _nox non ebria..._ talvez nunca experimentado pela bailarina. Apezar de pensamentos taes, não me abandonava a esperança de o ver surgir de repente, muito correcto na sua toilette justa, espalhando em sorrisos o seu bom humor e a sua graça. Da porta do Paschoal estive longo tempo a contemplar o meio corpo de um homem que ficara á esquina, parado. Via-lhe apenas um lado: meia aba do frack, uma perna, metade do chapéu. Tive impetos de partir para reconhecel-o; mas, evitando-me os passos em vão, o homem voltou-se--era um sujeito moreno, abaçanado, com grandes bochechas molles picadas de bexigas--um bigodinho ralo descia-lhe pelos cantos da boca em duas gotteiras. Cançado, resolvi entrar. Havia uma mesa junto á porta, encostada a uma das columnas. Tomei-a. Pouca gente. Rapazes, o ar entediado, bebiam. O que eu vira no primeiro dia, lá estava abancado a ler a mesma tira, creio, a um pequenote de olhos espertos que bebia, sedentamente, a grandes goles, uma agua effervescente dando com a cabeça loura em signal de approvação. O da tira levantava gestos que deviam exprimir coisas de subido alcance ou guindava, com os dedos em feixe, tremulamente, numa ascensão olympica, a imagem ou a estrophe, e o outro, radiante, como um auditor romano dos que ouviam Estacio, sorria, acompanhando com um olhar ineffavel os dedos, que já iam pelo ar subindo, subindo sempre, á proporção que a voz se ia tornando cava e profunda com um rumor longinquo de trovões de estio. Quando o caixeiro veiu ter commigo, ouvi distinctamente o ultimo ronco e logo em seguida a voz infantil e clara do auditorio. --Bonito! Bonito! Delicioso, Mendes! Delicioso! e docemente, numa lisonja amavel, repetiu o verso final: Neste cymbio de prata... O resto do verso, que devia ser divino, perdeu-se no estouro de uma nova garrafa d’agua aberta para o pequeno enthusiastico e sedento. O da tira dobrou-a com indifferença e guardou-a no bolso interno do casaco atirando para cima da mesa uma nota. Na mesa contigua uma virago de luto mastigava gulosamente com um triturar famelico de mandibulas, diante de um velhote casmurro, que meditava levando, de vez em vez, á boca, escondida por trás da barba curta e amarellada, o copo de cerveja. A mulher devorava atabalhoadamente e elle, taciturno, parecia muito longe d’ali, com os olhinhos fitos no vago, em algum sonho de saudade, talvez na imagem sempre viva de quem se fôra e por quem elle trazia a cartola enrolada em crepe e a mulher insaciavel o merinó de luto. O caixeiro acudiu ao meu appello. Encommendei um grog. E voltei o olhar para os dois rapazes. O da tira tomara uma attitude de abandono, as pernas cruzadas, cahido sobre a bengala, cujo castão perdia-se-lhe na axilla; o pequeno accendera um cigarro e baforava, farto. Trouxeram-me o grog. Um tlim-tlim ao lado attrahiu-me a attenção. O caixeiro acudiu num salto. O velhote, sempre triste, passou a mão por sobre os destroços, responsabilisando-se por tudo, e empinou-se para sacar o dinheiro do bolso. A virago chupava os dentes com estrepito endireitando a capota ao espelho. Levantaram-se os dois. O velho dava pelos hombros da mulher e, magrinho, engelhadinho, fazia dó vel-o humilhado pela abundancia daquella Eva formidavel, de seios enormes, que o arrastava soberanamente como a cauda do seu vestido arrastava os palitos do chão. Fazia dó ver aquelle homem diminuto e franzino ao lado daquella fartura--e foram-se, ella adiante chupando os dentes, elle seguindo-a, com o guarda-chuva debaixo do braço, contando as notas do troco. Acompanhando com o olhar o pobre velho, que desapparecia no rasto da poderosa Cybele, passou-me pelo espirito este pensamento estranho: Esse homem apanha da mulher. E ri, ri francamente, imaginando o homunculo, em camisa de dormir, descalço, a saltar, a correr perseguido pela mulher possante que lhe atirava varadas ás pernas seccas e guedelhudas. Enfastiado de estar ali sósinho, resolvi tomar rumo, e como o caixeiro passasse, atirei-lhe dinheiro. Elle inclinou-se esfregando a mesa com um guardanapo e indagou: --Foi um grog? --Sim, um grog, disse-lhe e, lembrando-me de que era assiduo na casa, tive a feliz inspiração de interrogal-o: --Não esteve por aqui o Dr. Gomes de Almeida? --Sim, senhor; esteve aqui, mais um outro, um de barbas louras, e puxou das bochechas duas suissas imaginarias. --Ha muito tempo? --Ás onze e meia, mais ou menos. Retirou-se depois de perguntar-me se queria mais alguma coisa. Levantei-me para sahir: não havia, porém, chegado á porta quando alguem poz-se a bradar: --Ó senhor! Ó senhor! Voltei-me; era o caixeiro que me perseguia sorridente e apressado: --Olhe ali em baixo o Sr. doutor Gomes... --Onde? indaguei ancioso. --Acolá, ao fundo. Ainda não conseguira descobrir o paradeiro do illustre moço e já a sua voz clamava por mim de longe, festivamente: --Bemvindo seja o meu amigo! Avancei pressuroso e radiante, esgueirando-me por entre as cadeiras para cahir nos braços do meu recente amigo. Apertámo-nos e, em poucas palavras rapidas, contei a minha peregrinação pela rua nesse dia obscuro e inerte. O doutor, com um gesto vago, lançou apodos ao clima e, arrebatando-me para a mesa, apresentou-me a uma formosa mulher loura, em cujo rosto reconheci promptamente as pupillas azues mais claras do que a celagem, que tanto me haviam seduzido quando, pela primeira vez, palmilhei o lagedo da rua do Ouvidor. --Mlle. Marie, ou simplesmente Marion, a divina Marion... E á loura, com distincção: Dr. Anselmo Ribas, meu amigo. Curvei-me ao peso do titulo e diante da belleza. A divina Marion desabrochou um sorriso adoravel, todo doçura e graça, á flor dos labios finos e offereceu-me a pequenina mão apertada em uma luva côr de perola que lhe subia ao cotovello, enrugada e cheia de pulseiras. Commovido e tremulo tomei a mão leve de mademoiselle e que de esforços empreguei para não a levar aos labios! --_Mettez-vous ici..._ disse-me ella afastando-se com um rumor de sedas, comparavel ao que fazem os bandos de pombos bravos quando levantam o vôo das margens dos rios, na minha terra. Sorri e balbuciei com uma pronuncia tosca: _Je vous remercie bien._ O doutor affixou com habilidade e graça: --Meu amigo, exprima-se em vernaculo, sem cerimonia. Marion é de Paris, mas fluminense pelo coração. Mademoiselle asseverou galantemente com a cabeça loura. Sorri. --Iamos por um champagne e pela moral de Philetas. Falavamos do amor na accepção terna do termo, tão vilmente abastardado pelos actos civis e religiosos do casamento e bebiamos Clicquot frappé. Veja o amigo se está pelo thema e se aceita a bebida, que nesta casa é detestavel, valha a verdade. --Perfeitamente, disse voltando-me logo para os olhos doces de Marion. O doutor ergueu a garrafa esgotada e impoz ao caixeiro: --Outra e uma taça. E logo tornou: Para um celibatario de gosto, meu amigo, não ha actualmente no Rio melhor emprego de capital e, com a mão aberta, estendida, indicou-me Marion. Fala tres linguas e com uma voz... Não é esta que o amigo ouve, não, é bem differente--modulada em bemóes languidos. Ó Marion, dize alguma coisa no tom intimo, fala como se estivessemos no teu ninho. E mademoiselle, rolando os olhos, pipilou: --_Mon p’tit’!_ O doutor, em veia alegre, derreou-se perdido. --Ouviu? e ainda não é tudo! Quando ella diz: _Mon amour!_ e apertou o proprio peito estremecendo e demorando a exclamação. Ah! meu caro! _Mon amour!_ hein, Marion? Mademoiselle baixou as palpebras maliciosamente. E o doutor continuou: Executa Chopin e tem uma estante de classicos. E mais do que tudo isto--dezoito annos. --_Dix-neuf_, emendou Marion, dando com o leque uma pancadinha no hombro do doutor. _Dix-neuf_, Gomes. _Quand j’avais dix-huit ans j’connaissais pas encór’ l’amour..._ arrulhou endeixosa. --Pois sim, dezenove; mais um, que não apparece ainda á flor do rosto. Ah! porque os annos realisam o eterno principio da gotta d’agua, já citado por Montaigne--accumulam-se, accumulam-se sem que a gente se aperceba e, ás vezes, basta um dia para que a velhice transborde em rugas e em cabellos brancos. Não achas, Marion? O caixeiro serviu o champagne. Mademoiselle tomou a sua taça e, erguendo-a, cumprimentou-me: _M’sieur!_ --Mademoiselle! correspondi; e os crystaes tiniram. Mas (e aqui faço a confissão da perfidia covarde de que me tornei culpado) não foi só isso, por baixo da mesa senti que um pésinho roçava pelo meu carinhosamente e, num movimento allucinado, calquei tambem, com toda a violencia do meu amor e com todo o peso dos sapatos inglezes. Mademoiselle, sem um protesto, impassivel, bebia; e eu, num delirio indomavel, baixava os olhos attrahidos pela alvura do seu collo esgargalado, de uma tez fina onde passavam fremitos dourados. --Demora-se no Rio? indagou a divina Marion, rilhando as palavras. --Pouco, mademoiselle. --De onde é? --De Minas. --Ah! de Minas... Recolheu-se um instante e, pouco depois, perguntou-me com a sua voz mysteriosa, a encantadora voz de que falara o doutor: --Conhece em Juiz de Fóra, Amancio...? --Amancio! Amancio de que, mademoiselle? E os nossos pés trucidaram-se cruelmente. --Amancio de... Tocou os labios com o leque, elevou as pupillas num olhar extatico e nervosa: não sei de que... É um gordo, tem uma fazenda com muitos bois, faz queijo... --Não, mademoiselle, não conheço. Calámo-nos. O doutor, pensativo, desfazia os crystaes de gelo no champagne, balançando a taça. Mademoiselle tornou-se de novo extatica. De improviso o doutor chamou-me. --Tem algum compromisso para amanhan, Sr. Anselmo? --Nenhum, doutor. --Quer vir almoçar commigo? --Com todo gosto. --Podemos fazer uma ascensão ao Corcovado? Ainda não conhece o Corcovado? --Ainda não. --É bello! E dá-se commigo um caso estranho--sinto, de vez em quando, a necessidade da altura, tenho a mania satanica de contemplar da montanha as coisas inferiores. Já experimentou a delicia vaidosa de ver toda uma cidade a seus pés em nivel humilde? É delicioso, meu amigo. Demais, recebe-se o ar em primeira mão, fresco e puro, sem os toxicos da vida rasteira e certos de que a golfada que respiramos não andou pelas cavernas de pulmões enfermos. --Aceito com prazer, doutor... --Queres ser do bando, Marion? --Não é possivel, disse com lentidão mademoiselle trincando os labios. O doutor encarou-a e por fim sacudiu a cabeça resignado: --Pois iremos nós... Calquei o pésinho para ver se por meio delle conseguia vencer a caprichosa, mas com surpreza senti que me fugia esquivo. Insisti amoravel: --Então porque não vem comnosco, mademoiselle? --_Pas possible..._ disse com um momo abrindo e fechando com estardalhaço o leque. E pondo-se de pé, num impeto: --_Eh! bien... j’m’en vais..._ O doutor mirou-a. Mademoiselle estendeu-me a mãosinha:--_M’sieur..._ e friamente, dando as pontas dos dedos ao doutor:--_Au revoir!..._ --_Au revoir, Marie_; disse com lentidão cruzando as pernas e, quando a viu sahir, passando nervosamente a mão pelos cabellos, exclamou entediado. Idiota! --Zangou-se? indaguei com interesse. --Ciumes... Que quer o meu amigo? não ha um ser perfeito. Veja essa mulher divina... é ciumenta. Ciumenta a ponto de fazer tolices. Bolas...! E casmurro: Eu sei como tudo isto acaba: vão ambas para a rua! não ha que ver. Vão ambas para a rua... E recuperando o natural: Então está combinado? --Perfeitamente. Trincou um charuto e irrompeu assomado: --Um dia magnifico, não ha duvida... magnifico! enguliu um pouco de champagne e continuou: Não sei se o meu amigo cultiva a volupia do somno matinal, o somno das seis ás dez? É uma delicia! O somno da noite dorme-o todo o ser--o operario e o poeta, a agua gemente e a flor, mas o _extra_ languido, o somno tepido da indolencia, esse é exclusivo dos privilegiados que conhecem a vigilia--esse é incomparavel, porque, não sendo um acto normal, é um vicio e, como todo vicio, encanta. Eu penso assim. Difficilmente deixo os lençoes antes das dez. Acho que um homem de gosto deve encontrar o dia pleno, em viva luz, passaros cantando e tudo em ordem para recebel-o porque, sahir pela manhan, á hora em que a natureza se arranja, quando o sol nasce e os passaros acordam, produz em mim a mesma sensação de desgosto que experimento quando entro em uma sala de jantar no momento em que o copeiro estende a toalha. É odioso! Sou um commodista extremado--gosto de achar tudo prompto, limpo e nitido--o céu todo em sol, a mesa já florida. Haverá coisa mais ridicula para os olhos de um homem do que surprender a mulher amada diante do espelho, em penteador, sem meias, amaciando a cutis ou trançando os cabellos, ainda com os olhos empapuçados de somno? É desolador! Levanto-me tarde, desço para a ducha, visto-me--uma grande hora de trabalho lento, mirado e caprichoso--e ganho a frescura do jardim, uns metros de terra onde brotam cravos e bogaris, sob a copa frondosa de uma amendoeira amiga. Ahi leio pausadamente os jornaes e bebo o café e o cognac, ouvindo os meus canarios. Sem essas minudencias sou um homem inutil. Recolhi-me tarde, muito tarde, e sem somno. Reli uns capitulos de psychologia experimental e confesso que fiquei impressionado. Eram talvez quatro horas da manhan, cantavam gallos pela visinhança, quando consegui conciliar o somno. Pois ás seis fui violentamente acordado, porque um intimo carecia do meu auxilio para resolver uma questão magna. Note o meu amigo que sempre tive uma decidida vocação para a gynecologia, recuei diante do forceps e dos outros apparelhos de viabilidade fetal simplesmente porque as senhoras preferem dar á luz á noite... Se não fosse a hora incommoda preferida pela genese, eu seria hoje um parteiro notavel. Sou advogado, homem de leis e de rhetorica. Desci desesperado. Borrifei-me com um pouco d’agua, sorvi, ás pressas, um gole de café e, ainda em jupon, bocejando, recebi o intimo na minha sala de estudo. Quer saber o motivo da visita do meu illustre despertador? a crise de transportes. Baniu-me do leito para pedir-me um artigo violento contra a Central. Escrevi, deve sahir amanhan. É um horror! resente-se terrivelmente do meu estado de espirito. O intimo collaborou dando-me a assignatura, que é um mysterio de que elle faz segredo: _A alma de Frei Góes._ Não sei que quer dizer, mas presumo que ha dentro disso coisas de subido alcance. Mas agora, entre nós, que diabo tenho eu com a crise de transportes? Cruzou os braços e encarou-me. Que tenho eu com tudo isso? As cargas que apodreçam ao sol, pouco se me dá que haja ou não sal em Matto Grosso e sapatos em Goyaz. Que se arranjem, deixem-me em paz, deixem-me dormir. Que tenho eu com a crise? Houve uma pausa curta e o doutor tornou: Depois do artigo uma scena de ciumes. Uma mulher idiota que se revoltou porque um intrigante qualquer lhe foi dizer que andei seguindo os passos de uma hespanhola, no Polytheama. Virou o resto do champagne. Eu sentia-me meio atordoado--ardiam-me os olhos amortecidos de somno. --Mas, meu amigo, voltando á minha leitura da noite: confesso que estou deveras impressionado. Tem lido os modernos estudos psychicos? --Alguns. --E... que pensa da alma? indagou. --É uma hypothese, aventurei. --Como! uma hypothese? Não crê? Sorri, e entrei a falar como se dictasse: As minhas idéas sobre psychologia estacam diante dos tumulos: depois da lapide mais nada. Não posso comprehender essa verdade suprema dos philosophos romanticos--a vida posthuma. Alma é o atomo, alma é a monéra, alma é a cellula, alma é o sangue. Das causas puras, doutor, só podem derivar iguaes effeitos, entretanto o odio germina dentro em nós, o ciume, a aversão, a antipathia, abjecções proprias da materia, naturalmente affecta á podridão pela sua propria essencia--o verme. O nosso corpo é um thermometro, de que o sangue é o mercurio. Nos periodos pacificos e normaes marcamos os gráus baixos da tranquillidade; um pouco que o sangue ascenda ao cerebro, como o mercurio sobe, ao calor dos fortes estios ou das febres, temos a exaltação, o delirio, todos os horrores do desequilibrio mental, todas as concepções extravagantes e allucinadas. Creio no Nirvana porque adoro o silencio. Ao céu, ao promettido paraiso, falta a primeira condição: variedade. A vida eterna deve ser monotona. O meu ideal é o fim absoluto. Isto de vida, doutor, é um phenomeno de attracção de moleculas. O homem vem ao mundo pela mesma razão porque vem á arvore o fruto, o fio d’agua á rocha: fatalidade, sympathia, cohesão, tudo quanto quizerem, da vida physica, da vida material; mas de alma, espirito invariavel e eterno, sopro de Deus, etc., etc.... não percebo. Alma como conjunto dos sentidos, admitto. O beijo é uma premissa do amor, o amor é uma manifestação da alma. Doutor, estude a psychologia em uma criança: é um brutinho, incapaz de pensar, incapaz de outra coisa que não seja vagir e chupar tetas. A primeira manifestação é toda material: o choro, manifestação positiva do soffrimento ou do tedio, que é innato, e a fome manifestação do instincto--a alma mysteriosa não dá signal de si. Com o correr dos annos chegam os sentimentos, isto é, o aperfeiçoamento das sensações. É por meio delles que as fibras delicadas do cerebro e do coração vibram; essas vibrações formam a vida complexa do amor, do ciume, do desespero, do pensamento, etc. Para a velhice, com o declinio do corpo, todo o organismo definha e a alma, immortal e forte, em vez de sustar a queda da carne, auxilia-a porque os sentimentos affluem todos para a saudade, que é a velhice das paixões; ella é que vive até á caducidade, até á bestialisação, até á regressão ao primitivo estado de inconsciencia. Alma é a vibração da mocidade, alma é a ardencia do sangue. Infelizmente nós outros oscillamos entre dois crepusculos--a ignorancia da primeira idade e o pavor do fim dos annos. Não creio, doutor; em alma, não creio. --Mas, pelo amor de Deus, meu amigo... acudiu elle, vejo, pela prelecção que acaba de fazer, que é um materialista intransigente; isso, porém, não impede uma observação singela. Abriu um parenthesis para propôr mais champagne; recusei e elle continuou firmando-se nas minhas palavras: Vivemos entre dois crepusculos, disse o meu amigo, mas os crepusculos succedem-se numa eterna continuidade--as almas têm o occaso em um corpo, mas resurgem em outro. A alma existe como existe a luz e ha de existir até á ultima dynamisação. O corpo é um casulo. Como já lhe disse, creio firmemente na vida eterna das almas. A civilisação é o resultado da longa pratica do espirito humano: a carne é uma especie de alambique, mediador plastico entre a concepção e o movimento. Os homens que fizeram as primeiras obras, os donos das idéas iniciaes, são esses mesmos que as continuam. A morte é apenas uma solução de continuidade. Nós não fazemos outra coisa senão aperfeiçoar o que dantes fizemos. As idéas tem o seu alpha na antiga era. Ha uma estranha connexão entre o pensamento moderno e o modo de ver dos antigos--a synthese de hoje vem da analyse de hontem. Nós, a civilisação, estamos continuando a nossa obra barbara. Somos os mesmos. A alma de Lucrecio resurgiu em Virgilio e a de Pythagoras, antes de metter-se no corpo do sophista, animou Euphorbio, filho de Panthous. Quem sabe se dentro do meu amigo não vive a alma sceptica de Zenon? --Não, doutor, a alma que se aloja em meu corpo nunca perscrutou mysterios transcendentes--é a mais ingenua das almas, contenta-se com um pouco de sonho e com um pouco de amor. Como disse, as minhas idéas estacam diante dos tumulos. Depois da morte mais nada. --Mas, meu caro amigo, note que já os egypcios pensavam que «a morte é um meio e não um fim»--um meio de perpetuar a vida. A sciencia moderna vai desbravando o mysterio da immortalidade: o zaimph de Isis cahiu deixando a grande deusa descoberta, e são tão fortes e peremptorios os argumentos em favor da existencia perenne, que é hoje quasi um absurdo a negação da Eternidade da Alma. --É possivel, doutor. --É de uma arvore que murcha que se colhe a semente para as florescencias futuras. As suas idéas estacam á beira do tumulo, porque encontram o silencio completo? não; porque encontram a realização perfeita do absoluto? não; um cadaver, posto que vasio, existe. Nada se perde, nada é inutil. O espaço é o nada e o espaço existe. Que tem o espaço? constellações; a morte tem tambem os seus astros, o fogo fatuo, por exemplo, é uma estrella funeral. Demais se, como diz, as suas idéas estacam diante dos tumulos, devem igualmente estacar diante dos leitos. --O doutor maneja adoravelmente o paradoxo. --Perdão, não é o paradoxo, é a analogia. Diante de um dormitorio tem-se o exemplo perfeito, o symbolo, devo dizer, de uma pequena necropole: o leito é um esquife. Reza-se para dormir e reza-se para morrer; a lampada serve tanto para os mortos como para os que dormem. Uns e outros têm a mortalha... --Doutor, mas isto é francamente o que nós outros, pobres rusticos, chamamos Poesia. --Perdão, todo mysterio tem um fundo poetico. Mostre-me uma religião sem prophetas e os prophetas são os poetas esotericos. Mas continuando: o sonho não será a iniciação de uma outra existencia? O sonho não será uma previdencia? O corpo adormecido roja-se; parece que tem a nostalgia da terra; e a alma? paira, fica de vigilia como ficava, segundo o pensamento dos padres de Osiris, de guarda á mumia em que havia habitado. O somno é o tunnel por onde a alma atravessa. Meu caro amigo, não ha morte: Sisypho é o symbolo da vida. --Confesso, meu caro doutor, que apezar da belleza da sua doutrina, o meu espirito repelle-a. Escreva um poema com essas idéas, um poema de mysterio no gosto dos _Versos Dourados_. --Pudesse eu, meu caro! Sacou o relogio e poz-se de pé: Vamos sahir? Isto está funebre. --Tenho um encontro para as cinco. --Feminino? --Não, meu tio. --Ah! Então demoro-me mais alguns minutos. É cruel deixar um amigo abandonado nesta triste sala em um dia como o de hoje. E de repente: E se jantassemos juntos...?! --Onde? indaguei. --Por ahi, em uma baiúca qualquer. Pretexto para conversarmos. Temos a ameaça de uma noite terrivel, podemos atravessal-a queimando _punchs_ em algum gabinete, em companhia de alguem que nos ajude a arrastar o tedio até a madrugada. --Aceito, mas com a condição de impôr alguma coisa: iremos a um theatro, não para o espectaculo, pouco me preoccupo com o que se canta em palcos, mas confesso, em intimidade, que tenho um desejo louco de ver a caixa de um theatro... Dizem-se tantas coisas... --É horrivel, meu amigo, mas não pense que me recuso, póde dispôr de mim. E mais ainda, sei que não conhece o Rio á noite, proponho-me a mostrar-lhe, em uma noite, todos os mysterios desta cidade que começa a ter vicios. Joga? --Pouco. --Conhece a roleta? --Conheço. E o doutor percebeu pela expressão dos meus olhos que eu não era de todo indifferente á tavola. --Pois ha um meio de conciliarmos tudo; vamos jantar ao club. Voltando-se, o doutor deu com os olhos em meu tio, que assomára á porta, sempre jocundo, já acenando para o nosso lado. Levantámo-nos para recebel-o. --Meu caro doutor... e logo, dirigindo-se a mim: Então? como te arranjaste? --Perfeitamente. --Bem... e de improviso: Vem jantar comnosco, doutor? --Hoje não é possivel, e indicando-me: Vou mostrar ao amigo Anselmo o Rio de Janeiro, á noite. --Então, até amanhan. --Até amanhan, meu tio. --E não te cances muito, ajuntou com um sorriso: amanhan á noite temos a festa do Bessa, em Botafogo. E ao doutor: Lá nos encontraremos. --Não garanto. --E cuidado, Sr. Anselmo, cuidado! O Rio, á noite, é um perigo para os que vêem pouco. --Descance, commendador: eu vejo admiravelmente. X Em caminho o doutor, compenetrado da minha ignorancia das coisas do mundo, disse-me algumas palavras de conselho, expondo-me, em claros periodos, cheios de sinceridade, os riscos da afouteza quando não se está de sorte, e a profunda sciencia da roleta, que se resume em saber acompanhar a banca. Propoz-me um sector sempre feliz que, uma noite, em casa de certa Elisabeth Blayn, uma escosseza, lhe dera cinco contos e tanto. Falou-me da roda que frequentava o club--gente da melhor escolha: alto commercio, a magistratura, as letras, medicos. Podia-se estar á vontade e o banqueiro, um homem de moral intransigente, correcto e austero--tão digno a dar a bola como um juiz presidindo um conselho. Tomámos o bond. A tarde triste escurecia e o céu, pluvioso e grosso, pulverisava uma neblina tenue, finissima, como a garôa de Junho nos campos. Durante a viagem falámos rapidamente da _Débâcle_ e de uma loura franzina, de waterproof, que se acolhera a um canto e cruzara modestamente as mãos no collo sobre uma brochura ingleza. Iamos em corrida suave, por um leve declive, em frente ao mar, quando o doutor fez signal para que parassem. Descemos e eu, numa attracção amorosa, volvi os olhos mandando adeuses tristes á loura, que parecia embebida num sonho, tão distrahido tinha o doce e azulado olhar. --É ali! segredou-me o doutor, mostrando-me, num gesto subtil, uma larga porta, alta e nobre, onde rondava melancolicamente, com as mãos para as costas, um severo criado de casaca. Quando nos viu curvou-se gravemente. Subimos por uma escada de volta e, em cima, num vasto salão, forrado por um tapete fôfo, semeado de moveis, numa desordem encantadora, um moço magro, de oculos verdes, tirava tristonhamente de um Gaveau accordes melancolicos. --Guedes! O do piano voltou-se inopinado; mas, como o doutor desapparecera numa saleta cercada de cabides, mirou-me fazendo um leve cumprimento e baixou a cabeça terna, correndo os dedos pelo teclado numa escala sentimental. --Venha guardar o chapéu, amigo Anselmo. E na saleta o doutor preveniu-me: Esse typo que ahi está tirando gemidos ao piano é um famoso cábula. Teve uma charutaria e hoje vive a executar trechos de sentimento e valsas nas batotas e nos saráus dos bairros. Inculca um eterno palpite: o 9. Muito cuidado! Sahimos para a sala. O doutor, esfregando as mãos, aproximou-se do piano. --Chopin...? O dos oculos ergueu a cabeça exclamando: --Oh! doutor, bons olhos o vejam. Sacudiu-se todo como para espanar a tristeza d’alma e estendeu a mão affectuosamente. --Dr. Anselmo Ribas, meu amigo, apresentou o doutor e intimamente: O nosso Guedes. --Muito prazer, doutor, e estendeu-me a mão dos accordes, humida e molle e, logo, apressado, traquinando: Vamos para a sala, vamos... Já devem estar á mesa. Tomou-nos a frente, abriu uma porta e meus olhos cahiram sobre uma calva polida que reluzia, balançando, de leve, muito regular, como certas pendulas de relogios iconicos. Entrámos. Jantavam. O doutor, muito conhecido na casa, foi recebido com um extenso oh! de todos que cercavam a mesa ampla, de carvalho, arranjada como para um banquete, com grandes ramos de flores e puddings tremulos em pratos de porcelana. A mobilia, toda de carvalho, dava uma feição distincta e séria á sala, forrada de encerado inglez, com grandes reposteiros que pareciam descer do tecto. Creados celeres passavam sem rumor, de um lado para outro. O homem da calva agitava-se, com um guardanapo ao pescoço, esticando os braços para apanhar pedaços de pão numa corbelha de christofle, sempre a mastigar. Mirou-nos e sorriu para o doutor com a boca cheia. Sentámo-nos e logo foi-nos servida a sôpa. --Que tem feito, doutor? Por onde tem andado? indagou um homemzinho engelhado. --Negocios, meu caro. --Não imagina como tem sido lamentada a sua ausencia. Um gordo soprou ao doutor: «O 7 deu hontem tres vezes seguidas. O Monteiro lembrou-se logo do amigo.» E voltando-se para a esquerda: Hein, Monteiro? Uma voz balofa indagou: Que é? --O 7, hontem... --Homem, é exacto: tres vezes! E derreando-se sobre a mesa: Tres vezes, Gomes. --Sim, justamente porque eu não estava. E o 29? --Não foi mal, disse com circumspecção o gordo; creio que repetiu. Espere lá... Sacou do bolso uma tira crivada de numeros e, acavallando o pince-nez, consultou--13, 22... ahn... ahn... 29! disse com voz forte... ahn... 29! e... 29! Tres vezes! Dobrou discretamente as notas e guardou-as. --Vamos ver hoje. Da ponta da mesa uma voz esganiçada pediu vinho. E travou-se uma palestra viva, cruzada, em que os numeros entravam ás porções, atropelando-se. Discutia-se e, mais uma vez, ficou provado que á roleta não se podia applicar principio algum, porque não havia uma lei que se pudesse dizer exacta,--tudo dependia do acaso. Um rapazola citou Pascal, afiançando que o methodo do illustre autor das _Cartas provinciaes_ era de incontestavel merecimento. Entreolharam-se pasmados e o gordo, cuspindo o palito, indagou: --E você porque não segue os conselhos do tal Pascal? --Mas sigo, como não? --Ah! Então percebo: Pascal tem um methodo excellente para ensinar a ficar limpo. Houve uma gargalhada estrepitosa e o rapazola, corrido, procurou desculpar-se com o temperamento:--Que era um precipitado, sem paciencia, sem calma. --Qual, menino: só ha uma sciencia--é a sorte. Manda-me para cá a Escola Polytechnica em peso e quero ver se ella arranja alguma coisa com os calculos. --Esta é a verdade, disseram. --Qual Pascal, qual carapuça! Olha o Monteiro: tem horror ás mathematicas, é incapaz de sommar duas fracções... --Incapaz! affirmou o Monteiro sacudindo a mão diante dos olhos como para afugentar a visão da sciencia exacta. --Entretanto, perorou o gordo, é o que se vê--os numeros procuram-no. O jogo é como a mulher: quanto mais perseguido mais esquivo. Qual Pascal nem meio Pascal--a bola é que regula. --Está quente aqui, soprou uma voz. --Horrivel! ajuntou outra, esbaforida. --Vamos subir, convidou o calvo, e todos, concordando, já anciosos pelo primeiro golpe, accederam. --Sim, vamos subir. Ha pelo menos ar lá em cima. O doutor accendeu um charuto e, emquanto os grupos desappareciam por uma porta baixa, que abria sobre um largo patamar de cimento, entre duas escadas, uma que descia para o jardim, outra que subia para um novo corpo do edificio, estabelecemos as condições restrictas do jogo. --Nunca mais de duzentos mil réis... --Nunca mais! affirmei. E caminhámos por onde haviam desapparecido os grupos, ganhámos uma larga escada que levava a um terraço, ao fundo do qual havia a sala occupada exclusivamente pela comprida banca da roleta, já cercada de pontos anciosos. Justamente na ocasião em que assomámos a uma das portas, o calvo, sentado numa alta cadeira, ao centro da mesa, annunciava com solemnidade: --Cincoenta golpes, meus senhores. O Guedes já havia tomado posto junto ao rapazola que citara Pascal. O seu olhar cúpido atravessava a espessa bruma das lentes verdes e cravava-se no monte de fixas que o neophyto acariciava cheio de esperança, recapitulando baixinho os sabios principios do mestre. O gordo passeiava semeando fixas com calculo; ás vezes demorava sobre um numero, trincando o grosso beiço rubro, com as sobrancelhas repuxadas por uma meditação profunda e retirava-as, num accesso de palpite, recuando ou avançando para outro numero. Aproximámo-nos. O doutor, sempre supersticioso, não quiz entrar na primeira parada para jogar com segurança na sorte do banqueiro. O calvo atirou a bola que começou a gyrar, num silencio de anciedade--ouvia-se apenas o leve rumor que ella fazia circulando á borda da roleta, como um satellite minimo em torno de um grande astro, por fim foi amortecendo, amortecendo. O gordo, que acompanhava com ancia o gyro da bola, exclamou: --Está dormindo! e inspirado: é o 19! disse e precipitadamente atirou sobre o numero tres fixas. --É o 13, disse o Monteiro, carregando, com a cara á banda, um olho pisco, para evitar o fumo do cigarro. --Feito o jogo! annunciou o banqueiro. Recolheram-se todos e o calvo, gravemente, espalhando pelo tapete um olhar de exame, cantou. Duplo zero. Houve uma exclamação desabrida: o numero estava livre. O _rateau_ recolheu todas as fixas e já outras cahiam atabalhoadamente, algumas rolavam. Cruzavam-se braços afflictos. Os de uma ponta pediam obsequiosamente que lhes puzessem duas fixas no 3 ou no 8 e entregavam espichando-se; outros consultavam o _mostrador_ compenetrados, sisudos. O Guedes escrevia numa tira de papel. --100 fixas! exclamou o doutor e eu, sacando do bolso o dinheiro que me dera meu tio, dei a troco de outras tantas fixas uma nota de duzentos mil réis. --Quer o troco em cartões ou em dinheiro? --Em dinheiro, soprou-me o doutor. E eu, immediatamente: --Em dinheiro... Deram-me fixas brancas e ao doutor _sangue de boi_ e começámos a cobrir os numeros: elle seguindo o sector sempre feliz, eu indifferentemente, á discrição do acaso, atirando como quem semeia num campo, confiado na terra fertil. Já a bola gyrava quando o Guedes segredou-me em confidencia: --Olhe o 9, doutor; está vasio. --Sim, o 9, e atirei para o numero tres fixas. A minha largueza fez pasmar o Guedes. Olhou-me com enternecimento e gratidão como se me quizesse dizer na sua linguagem humilde: «que me agradecia a confiança depositada no seu palpite tão desconceituado, já ridiculo entre os pontos.» E sahiu da melancolia com palavras confortativas: --O doutor fez um jogo admiravel, vai ver. Mas já o banqueiro annunciava, com a sua gravidade de magistrado, oppondo embargos ao rapazola, que despejava fixas ás tontas: em pleno, nos esguichos, a cavallo, no grande, na terceira duzia, como se quizesse, de uma só vez, chamar ao seu bolso os cinco massos de notas que ali estavam accendendo a cobiça: --Jogo feito. --Prompto! Prompto... disse o retardatario, sem arredar os olhos do tapete. --18, cantou o calvo e o homem do _rateau_ começou a contagem: 35 amarellas. --Minhas, disse o rapazola coçando a nuca frenetico. --35 azues... O gordo, com a voz cheia, accusou: Do dégas. --105 brancas... eram minhas. O resto foi raspado. O Guedes, corrido, não disse palavra, limitou-se a molhar o lapis nos beiços para annotar e o rapazola, enxugando o suor da fronte, já sulcada de rugas, lastimava: «que sahira justamente o numero em que menos jogara.» O doutor, vendo-me carregado de fixas, felicitou-me, ajuntando em tom discreto--que não me precipitasse. --Descance... --Deve ser agora o 36, disse o Guedes timido. --Como o 36? porque? --É a somma de 18. --Vá lá o 36... Jogo por sua conta, e atirei sorrindo. O gordo, engasgado, a tossir, seguiu o meu palpite dizendo--que os estreantes são sempre felizes e atirou duas fixas sobre o 36. Tive impetos de declarar que jámais pensara em tal numero, que o palpite era do Guedes, mas o pobresinho voltara para o meu rosto os oculos verdes e, atravéz das lentes, pareceu-me que os seus olhinhos tristes imploravam. Calei-me. Deu o 15. --Apre! bradou o de Pascal. Que sorte! --15...! é do sector! disse o Monteiro sentenciosamente recolhendo 140 fixas--e com ironia, puxando o rapazola pela manga do veston: Applique-lhe os principios, homem. Applique-lhe os principios. --Qual! E agitando uma nota: Mais vinte fixas! Entrara um novo ponto--um velho moreno, magro, de cavaignac. Deu uma volta distribuindo apertos de mão e acercou-se do Guedes. --Que numeros têm dado? O Guedes entregou-lhe o papel. --Jogo feito! annunciou o banqueiro. Prompto! Prompto! disseram vozes e, grave, como sempre, o calvo annunciou: 33. Foi a minha sorte--280 fixas. O Monteiro felicitou-me: --Lindo golpe! O rapazola sorria batendo as mãos e, sem que eu lhe perguntasse, disse-me esticando o beiço: --Estou limpo!... --Nove horas, meu amigo; avisou-me o doutor. --Sim, sim; vamos já. É a minha ultima parada. E espalhei a esmo um punhado de fixas afastando-me, em seguida, para dar lugar ao novo ponto, que acompanhava todas as peripecias do jogo com vivissimo interesse. A roleta girou mais uma vez e o calvo, com a gravidade habitual, cantou: 18. --Em branco, disse o doutor puxando-me pelo braço. Os outros, arrebatados, iam arrumando novas camadas, atulhando as casas, com uma gana que seria para receiar se ali não estivesse, na presidencia fatal, o calvo com a sua serena impassibilidade. O rapazola, sacando do collete uma nota amarfanhada, berrou: --Jogam duas fixas no 17, e acamou a cedula sobre o numero com um murro. Quando me apresentei ao calvo para receber o valor das fixas, elle sorriu com ar augusto e dignou-se dirigir-me a palavra: --Então já? --Tenho compromissos... --Appareça, disse entregando-me o bolo. E o Guedes, solicito, sahindo ao meu encontro: Appareça, doutor. Venha jantar comnosco. --Pois sim, pois sim. Mas o doutor do terraço acenou-me, bradando sonoramente: «Boa noite, meus senhores!» Descemos. Quando passámos a volta do patamar, entrando na passagem que communicava com a sala, alguem, que se balançava numa cadeira, na penumbra humida de um socavão, indagou com um timbre feminino: se não queriamos tomar alguma coisa--cerveja, cognac? --Obrigado, agradeceu o doutor, e como eu lhe perguntasse quem era: --Hebe, disse elle sorrindo maliciosamente. Atravessámos a sala deserta, tomámos os chapéus e sahimos. A noite estava radiosamente estrellada. A chuva cessara de todo, deixando no ar uma frescura humida. No mar tranquillo estendia-se tremulamente o rastro diaphano do luar e sobre o muro do caes um grupo de homens cantava em vozeirada um rondó de opereta. --Apre! respira-se finalmente. --É verdade! Que forno esta casa! --Para mim principalmente: queima-me todo o dinheiro. E num tom convincente: Mas a gente é de escolha. --Pois não: roda magnifica. O proprio Guedes é excellente rapaz. --Excellente. Um admiravel companheiro, meio desconfiado... Vai ás nuvens quando alguem o chama de cábula. Sinto que não tivesse visto o Balduino, o _Pai_ 13, como é conhecido nas batotas. Jogador incorrigivel. Affirma que desde os 14 annos faz ronda ao _tapis vert_. Com 15 annos perdeu a legitima materna e anda agora a transviar o fruto amargo da labuta caseira--magros mil réis que a mulher e as filhas retiram da loja para onde cosem calças e colletes de brim. Mas é um excellente pai de familia, o Balduino! adora a sua gente, é tão amigo dos filhos como da roleta, é tão fiel á mulher como ao seu numero. Se consegue fazer uma feriasinha razoavel, que lhe dê para um mez, entra pela casa carregado de embrulhos, enche á farta a dispensa, paga as contas, resgata as joias, veste o rancho e accende uma vela de libra aos pés da Conceição para que lhe dê um pleno volumoso. Ao jantar levanta um brinde commovido ao magnifico numero, e toda a familia acompanha-o com religiosidade, tocam-se as taças e Balduino desenrola mais uma vez o seu grande plano de felicidade que elle mesmo, uma noite, contou-me ceiando commigo num gabinete do Bragança: «Entra com 20$, atira-os em pleno sobre o numero e ganha; deixa todo o lucro... e repete. Affronta a sorte, num accesso de coragem louca, e ganha ainda... é uma fortuna--não ousa arriscar mais, retira o bolo e, no dia seguinte, entra em ajuste de compra com um fazendeiro--fica-lhe com as terras e estabelece uma criação de gallinhas em grande escala. Novos calculos: tantas gallinhas, tantas posturas e faz-se exportador de frangos e de ovos, conseguindo accumular em 10 annos quantia superior a 5 mil contos. Apparecem então as ambições politicas--é outro jogo, porque Balduino, apezar de retirado, não póde esquecer, por gratidão, o seu inicio. Apresenta-se candidato, ganha a eleição, entra na camara com o diploma, faz o diabo, até que um dia, inopinadamente, cahe-lhe em casa uma pasta. Mas Balduino, sempre fiel, não entra em exercicio senão num dia 13--vai protelando, ha tantos meios de protelar: enfermidade, arranjos, coisas, até que chegue o dia... Ah! então o Brasil viverá em regalada paz com a sua administração cabulosa». Eis o seu romance. O certo é que Balduino tem feito Africas: teve camarote no Lyrico e apresentou-se com dignidade. Dizem que, em certos dias, passa como Lucullo. --Dava alguma coisa para ver esse typo. --Ora espere... hoje é...? --8. --Então podemos partir descançados--não vem cá. --Como sabe? --É que elle só joga nos dias impares: tem a superstição ás avessas. Caminhamos lentamente, em silencio; por fim observei ao meu amigo: --O senhor joga friamente. --É um engano, meu amigo; apparento. --Mas não se distrae. Parece que não acha prazer... --No jogo? muito! Penso com os modernos que dizem que o jogo é um prazer esthetico. O gozo do jogador, pela tenacidade da emoção prolongada e forte, pela ausencia do sentimento, porque é um phenomeno todo material de sensação, excede o do artista que contempla embevecido, por longo tempo, uma obra de genio. Os sentidos, no jogador enfebrecido, atrophiam-se e tornam-se uma especie de abstracção, algumas vezes excessiva, a ponto de o deixar em immobilidade de hypnotico, emquanto corre o azar da bola ou das cartas. O jogo opera como a morphina--excitando e abatendo: é um estupefaciente. A emoção é cruel sem deixar, por isso, de ser agradavel. Se não educa o gosto, educa as paixões: a luta com o acaso torna o homem indifferente, quasi stoico. Habituado ás contrariedades não soffre com os revezes, acha-os naturaes, aceita-os sem protesto, passivamente, como aceita as sortes da banca. Alguem descobriu que o jogo era uma manifestação da hysteria, foi talvez por isso que a sabia Europa instituiu para os hystericos dessa mania, o grande hospital de Monte-Carlo. Mas olhe o bond... vamos! E deitamos a correr em direcção ao bond. XI --Vamos refocilar na devassidão, disse o doutor quando nos apeamos. Infelizmente a besta que trazemos em nós exige esse mergulho de quando em quando. Os hygienistas não se aperceberam desta grande verdade: o homem espoja-se. O corpo exige, com a mesma tenacidade, o exercicio e a insania, a tensão dos musculos e o enervamento, como o espirito requer o real e o ideal. O vicio mantem em silencio a carne: é um repasto material. É preciso satisfazer o animal. Estudei profundamente o organismo do homem e cheguei á convicção de que a vida serena é um absurdo impraticavel. A vida deve sujeitar-se ás leis do movimento--a variedade é um facto. Confesso ao meu amigo que sou avesso ao deboche, detesto a vida de _noceur_; mas sinto, de longe em longe, necessidade de atravessar uma noite desfolhando rosas em champagne, no fundo de um gabinete discreto, com uma grisette que me recite a léria do amor, trincando lascas de fiambre e queimando cigarrilhas. Acho prazer, prazer perverso, porque sou um detestavel instincto. Estacou e disse-me de novo: um detestavel instincto. Se pudesse viver como me inspira o temperamento, garanto-lhe, meu amigo, que as chronicas terriveis de Gilles de Rais desappareceriam como banaes e pueris. Depravar a humanidade!... deve ser um prazer magnifico. Ver todo um mundo no vicio, numa orgia sardanapalesca, ao sol, cantando. O vinho a correr pelo leito dos rios. Em vez de barcas, grandes cantaros fluctuando; e gente a beber, a cambalear, a cahir, besuntada e tropega, crianças e velhos, virgens, monjas, tudo, a babel terrivel do satyrismo, num diluvio roxo escoado de todas as torneiras e de todas as vinhas... que delicia! E calmo: O vicio é uma necessidade, affirmo-lhe. Jogo e depravo-me como empanturro o estomago, como ingiro a medicina. Para mim a pilula e a esphera da roleta pertencem á mesma therapeutica, operam diversamente, mas operam. Para os males do figado calomelanos, para o tedio uma parada commovedora. As mulheres interessam-me pela estranheza do typo: adoro a mulher de amor, não pelo seu beijo, mas pelo seu estudo, porque é curioso ver como esses animaesinhos sabem attrahir. Algumas, pobres camponias, ainda com as mãos grossas do cajado com que andaram a pastorear nos campos, conhecem melhor a arte de agradar, as delicadas minudencias do amor que interessam, que prendem, que sensualisam, do que as eruditas educadas em finos _boudoirs_, lendo brochuras ardentes. Acho adoravel a cocotte--é um sexo neutro--alguma coisa de homem, a tactica commercial, alguma coisa de mulher, a hypocrisia. De resto, é uma valvula de segurança social. Um contemporaneo da academia, rapaz de finissimo espirito e talento não vulgar, dizia-me sempre: que sentia, de tempos a tempos, necessidade de embriagar-se. Encerrava-se e bebia. Era uma medicina. Aventurei citando Simão Carreira, que, nos momentos em que a musa lhe foge, vai ao pucarinho e derreia bebedo acordando, no dia seguinte, dyspeptico e amarrotado, mas com a imaginação fulgurante e provida para um novo canto do seu poema ou para meia duzia de sonetos, que immediatamente registra para o _Correio da Serra_, orgão superiormente litterario para as alturas em que vê a luz. --Mas é assim, meu amigo. A castidade atrophia, deprime, suffoca o espirito. O amor é um derivativo. Não o amor sentimento: o amor sensação. Afinal, que vamos nós buscar no fundo de um theatro, prazer? distracção? arte? não absolutamente: vamos cevar o animal. No meu programma de educação, inaplicavel, porque não tenciono perpetuar a minha crise de spleen, dando ao mundo um representante de meu tedio e das minhas desillusões, entraria, como curso fundamental--o vicio. O vicio, pois não. O epigono constitue o seu caracter com mais vigor nos camarins e nas tascas do que nas escolas. Que diabo ensina o mestre? ensina a evitar o vicio, o que vale dizer--mostra outro vicio. É uma verdade o que Comte deixou escripto: «Não se destroe senão o que se substitue.» Afinal a vida é uma constante marcha e a natureza tem as suas leis. Para seguir é preciso tomar rumo. O mestre diz que não se vá pela direita; então o caminho da moral é o da esquerda e ahi vai o pimpolho arrebatado pelo temperamento e induzido pela logica do pedagogo para peior deveza. E por fim a educação inutilisa um homem que podia ser perfeitamente aproveitado. Meu amigo, os primeiros ciumes fazem os futuros bravos, os primeiros amores fazem os futuros poetas. A moral é uma palavra van; toda a gente a pronuncia e poucos a praticam. Qual moral, qual nada!... o corpo exige. Emmudeceu de repente. Haviamos chegado a um largo, e na parte fronteira á rua por onde seguiramos, uma grande cauda de luz electrica alastrava o passeio argentando as arvores e, ás vezes, ganhando o céu como uma esteira de luar. --Variedades, disse-me o doutor. Mas se fossemos ao Sant’Anna? --Como quizer... E seguimos. O doutor, depois de um silencio, avisou-me: Mas não se illuda--olhe que a caixa de um theatro é um pouco peior que a caixa de Pandora... --E a esperança, doutor? --Fica á entrada, como no distico do Dante. Vai ver de perto a illusão, que é uma triste realidade. E voltando a rua: Eis-nos chegados, disse. Á porta do theatro formigava uma multidão impaciente. Logo que nos aproximámos, dois sujeitos avançaram pressurosos, offerecendo bilhetes:--que eram os melhores, que na casa só havia da ultima fila e perseguiam-nos tomando-nos o caminho, embaraçando-nos o passo, sofregos, afflictos. Safámo-nos briosamente e ganhámos a bilheteria. Tomei a frente ao doutor e, enfiando a mão pelo guichet, bradei: --Duas cadeiras! --Uma! Uma só, disse elle. --E o senhor? --Não preciso; tenho entrada. --Uma, emendei; uma cadeira. E, recebendo o papelucho das mãos do bilheteiro, examinei-o: Lettra L... que tal? --No inferno...! Mas como não tencionamos assistir, qualquer coisa serve. Vamos. O doutor encaminhou-se vaidosamente e confesso que, pela primeira vez em minha vida, senti picar-me a inveja vendo-o passar entre os porteiros grave, sem uma palavra, como se entrasse por sua casa. A mim tomaram o papelucho e rasgaram uma nesga entregando-me o resto; ao doutor disseram com respeito: Boa noite! Achei-me num estreito pateo de terra humida. Para um lado, um correr de portas verdes com um oculo ao alto; para outro lado, mais adiante, um balcão de bebidas--na mesma direcção um tablado coberto, cheio de mesas de zinco entre as quaes passavam atarefados caixeiros carregados de copos. Mulheres subiam e desciam opulentamente vestidas, saracoteando, com grandes leques de plumas, deitando olhares, franzindo sorrisos; outras tagarelavam em grandes rodas de rapazes, com gargalhadas estridentes; e uma velhusca, de preto, com uma barbicha no queixo, como as feiticeiras de Macbeth, estremecia, mostrando as gengivas desertas, rindo estridulamente aos galanteios de um meninote de chapéu de palha e terno de flanella branca. --Vê este seculo, meu amigo? --É a propria velhice... --É Venus ancestral. Essa mulher é o centro do mundo equivoco--é ella quem dirige as neophytas e dizem que tem um curso admiravel de sciencia. Dá lições diarias ás que pretendem fazer carreira pelo caminho que Laïs trilhou arrastando poetas e o tonel de Diogenes. É uma mulher digna de consideração: sem ella não haveria novos encantos, nem os languores imprevistos. A sabedoria está com os velhos, meu amigo. E, baixinho, soprou-me: Olhe a Marion, evitemol-a. Era, em verdade, a loura, a formosa loura ciumenta e aspera, que acariciara os meus sapatos com o pésinho minusculo. --Se a convidassemos para a ceia, doutor? --Não... não... Excede-se e dá para chorar a sua infelicidade, porque essa divina mulher tem saudades da patria e da honestidade e, quando bebe vinhos de França, lamenta não ter um filho e fica de tal modo nostalgica que, ao cabo da lamentação saudosa, é sempre necessario que venham tres homens para leval-a ao carro. Não... não...! Evitemol-a. Marion bebia e tão entretida estava com a sua garrafa de Apollinaris que não deu por nós. --É sobria, entretanto: bebe agua, á grega. --Sobria? quem...? Marion...?! porque está bebendo Apollinaris? Conheço muito essas medidas preventivas: é que ella conta ceiar, meu amigo, e está recompondo o estomago para um diluvio de Bourgogne. Mas vamos. Tomámos por uma das alas do theatro e, justamente quando voltei os olhos para a scena, entrava um grande diabo, brandindo um facho, a bradar coisas terriveis, ao clarão purpureo de fogos de bengala. A orchestra ia num crescendo infernal--quasi se não ouvia a declamação do maldito quando surgiu uma legião de diabos vermelhos, truculentos, dançando em torno do rei a berrar, a bramar, á proporção que os musicos, num delirio satanico, sopravam com furia, batiam com gana, dando ao espectador pasmado a idéa aproximada do que deve ser a musica nesse reino negregado de chammas, onde as almas penam torrando-se em labaredas inextinguiveis, sob abobadas de granito em brasa. Felizmente, porém, houve uma pancada vibrante e os demonios sumiram. Cahiu um novo panno: Uma aldeia risonha sob um ceu de azul, com uma igrejinha branca a um alto e na eira da herdade, no primeiro plano, entre médas de palha e instrumentos agrarios, camponios a espadellarem linho, cantando um villancico meigo. --Vê aquella velhota que ali vem por entre arvores...? É a Jesuina. --Por Deus! mas é uma antigualha! --Engana-se. É uma bella mulher. Vai convencer-se... Os homens, que se apertavam á minha frente, pouco me deixavam ver. Puz-me nas pontas dos pés, já interessado pela velhota quando, subitamente, vi surgir o demonio, sem archote, os braços cruzados, numa attitude hostil, e berrar: --Fada... não sei que... e uma infinidade de palavras que deviam ser de insulto, porque a velha poz-se tambem de entono e avançou hysterica, vociferando: --Ainda não!... Cahiram-lhe os andrajos, o cajado transformou-se em sceptro enramado de folhas de ouro e eu vi uma esplendida mulher, de fórmas admiraveis, resplandecente na sua toilette feerica. --Linda, com effeito, doutor! disse maravilhado. --Ah! é esplendida! E languido, com os olhos em alvo, trincando o beiço: E que mulher! A scena atroou aos berros dos camponios, que deitaram a correr espavoridos. Ficaram sós, desafiando-se--o diabo negro e a fada. Houve uma troca de palavras e novo _tchaan_! Pannos cruzaram-se acima e abaixo. Nova scena. Jardim florido, entre grutas. Mulheres: nymphas, disse-me o doutor, tangendo lyras e cantando. Cahiam do céu, como na lenda de Danae, palhetas de ouro. O diabo, estortegando, vencido, urrava com os joelhos em terra, e a fada, com um gesto cheio de magestade, mantinha-o subjugado e immovel. Romperam palmas e o panno veiu descendo lentamente. --Vamos falar á Jesuina. --Pois não, doutor. Pois não... E partimos atravéz da multidão que recuava. O doutor bateu á porta da caixa, e appareceu ao postigo uma cara ossea, macilenta, hispida de pellos, indagando soturnamente: Quem é? --Abre, Amaro. O cérbero sumiu-se batendo o postigo e logo abriu meia porta, por onde nos esgueirámos rapidamente. Ambiente de estufa--mal se podia respirar. Não haviamos ainda caminhado dois passos quando vi surgir a uma porta o truculento diabo, abanando-se, com um charuto nos beiços, muito ancho. O doutor acenou com os dedos um cumprimento intimo. Entre os bastidores torvelinhava a gente do movimento arrastando peças accessorias, içando nuvens, pregando sarrafos. Dois homens, agachados junto de uma rocha sarapintada, ajustavam cordeis, e um moreno, de sobrecasaca, a cara rapada, berrava para as bambolinas: --Ó Candido! ó Candido! desce mais essa vista! mais! mais, homem! Que diabo... mais! e bateu uma patada formidavel. --Mais á frente...! ordenava um outro, alto, de cavaignac, aos homens que collocavam a rocha... ahi... Um soldado, com o capacete atirado para o sinciput, passeava de um para outro lado, cantarolando. Um pequenote passou por mim esbaforido, arrastando uma carapaça de saurio com grandes escamas. Era difficil atravessar-se, porque de toda a parte surgiam genios, demonios, soldados, mulheres, atropelando-se, azafamados, lançando appellos, a correr, empurrando-se. O doutor avançou e, mostrando-me uma escada larga por onde desciam coristas trauteando, disse: --Vamos subir... Isto aqui em baixo é impossivel. E galgámos os degráus, ganhando um passadiço por onde andavam actores, refrescando-se com ventarolas. Um, em trajo de principe, vociferava no camarim, sacudindo uma gaforinha loura: --Que aquilo era uma vergonha, um nojo! E sahiu bradando: Ó Ferreira! ó Ferreira! Vocês não viram por ahi o Ferreira! Ah! grandissima besta!... --Mas que é? indagou um escudeiro acaçapado e ventrudo, arrastando a durindana ferrugenta. --Olha p’ra isto... e tomou a cabelleira nas pontas dos dedos. Isto é decente? Pois eu hei de entrar em scena com esta peruca?! Não entro, nem que me rachem! E berrou de novo: ó Ferreira! ó Ferreira! Outro assomou á porta de um camarim, em ceroulas, todo sarapintado: --Ó Ferreira! Onde é que se mette esse pedaço d’asno, não me dirão? Ó Ferreira! Passámos atravéz do alarido e, como olhasse por uma porta entreaberta, surprendi um lindo braço nú, de esbelto contorno e avisei o doutor. --Ahi? é uma certa Clotilde... detesta-me; de resto não vale um olhar: é mulher de banhas fofas. Vamos á nossa Jesuina. É aqui. Parou diante de uma porta e bateu: --Quem é. --Eu, Jesuina. --Eu, quem? Estou occupada. --O Gomes... --Ah! Espera... E a voz, mais proxima, indagou: Estás só? --Não, mas é como se estivesse: trago commigo o Amor que tem os olhos vendados. --Oh! filhinho... não estou em estado de receber. Mas a chave rangeu na fechadura, a porta descerrou-se e eu vi o rosto adoravel da fada. --Como vais? indagou lançando para o meu lado um olhar obliquo, e baixinho: Espera um momento, abro já, sim? Recolheu-se e voltámos a passear. Ainda gritavam pelo Ferreira. Debruçámo-nos á balaustrada: em baixo andavam soldados antigos, com grandes escudos rutilantes, jacarés arrastando caudas enormes, monos, demonios e camponezes, uma promiscuidade mirabolante, gente e animaes, em intimidade só comparavel á que existiu entre esse troço de salvados que andou pelas aguas do diluvio dentro da arca, para perpetuar as especies. Fios de luzes tremeluziam ao alto, por trás dos pannos. Subiam vistas, arrastavam-se bastidores--havia um grande rumor de faina. De repente uma voz fanha entoou Nu... unca percas a esp’rança e outra violenta e desesperada esbravejou: --Quem diabo tirou daqui as minhas botas? Isto é uma pocilga! Ah! seu Alvaro!... Quem diabo tirou daqui as minhas botas? Foi, foi, foi... outro cantarolou em tom de troça. Travou-se um dialogo azedo atravéz do tabique divisorio de dois camarins e riamos dos palavrões, quando uma velhota nos veiu dizer que--«madama estava prompta». Fomos immediatamente e, á porta, o doutor, lisonjeiro, indagou com ternura: --Dás licença, Titania? Entrámos. O doutor apresentou-me como «favorecido das musas.» Jesuina sorriu e mostrou-me um divan forrado de damasco vermelho. A velhota, que nos acompanhara, tomou de uma prateleira um par de sapatinhos brancos debruados á sarja, agachou-se e, com os pésinhos de Jesuina ao collo, calçou-os sem esforço, suavemente. E ella, delicada e meiga, voltando para o meu rosto os olhos admiraveis: --Desculpe-me, doutor. Vou concluindo a minha «toilette», porque, infelizmente, esse maldito contra-regra é de uma impaciencia feroz. A velhota levantou-se e foi ao canto. --Agora é que são ellas! disse Jesuina a rir. Vamos ao peior. E, franzindo a fronte serena: Que calor, hein? --Muito, disse eu, bufando. A velha voltou com uma cotta de seda imbrincada de ouro e deu-lh’a a vestir, primeiro um braço, outro depois, e as duas, a velhota de joelhos, Jesuina, muito direita, firme, obrigada pela pressão das barbatanas, começaram a abotoar, uma da fimbria para cima, outra da gola até á cinta, apressadas, magoando os dedos. Depois uma tira de filó em diagonal ao peito, cahindo em duas pontas soltas sobre um dos flancos; duas pulseiras em cada braço e, á cabeça, comprimindo os cabellos, um diadema altissimo com um brilhante á frente. --Prompta! exclamou a velhota levantando-se. --Graças a Deus! suspirou Jesuina sorrindo. E a vara? --Está aqui... --Estás divina! disse o doutor abraçando-a e beijando-lhe a nuca. --Oh! oh! É terrivel este seu amigo, disse-me. E o doutor, tomando a frente, impoz: --Hoje vens ceiar comnosco. --Hoje...?! --Hoje, e não admitto desculpas. --Se assim é, disse ella com um momo... que hei de fazer...? Verteu algumas gottas de perfume na palma da mão e esfregou-as dando-me depois a aspirar: --Delicioso! sussurrei, fungando. --Agradavel, não é? Mas a sineta vibrou e um mulatinho appareceu á porta: --D. Jesuina... --Vou já. --A que horas acaba esta rigolade? perguntou o doutor. --Meia-noite. --Pois até lá. E vai ter com Satanaz, que te espera. Despedi-me tambem e descemos. A orchestra executava os primeiros compassos de uma marcha infernal, quando, de novo, ganhámos a frescura do jardim. --Então, meu amigo? --Divina, disse eu. O diabo é que isto demora. Que havemos de fazer...? --Vamos á cerveja; não ha outro meio de fugir á insipidez. E abancámos. --E dizer que toda essa gente goza, ponderou o doutor, num tom melancolico de lastima. Isto que me enfada, que me provoca bocejos, faz as delicias de uma multidão. Olhe ali aquelle homem debruçado á balaustrada... Quanto eu daria para poder rir como elle! Decididamente esse casal do paraiso levou-nos o melhor da vida--a innocencia, deixando-nos em troca o tedio. Felizes os simples! Não imagina como invejo um desses homens que são specimens raros do animal primario, que se destacam, entre os civilisados, como um grande cedro num campo raso. Ás vezes, quando passo por uma dessas casas de pasto, onde o grosso povo de trabalho se ajunta para comer, tenho impetos de entrar, sentar-me no mesmo banco, acotovellando estivadores e canteiros, fascinado pela voracidade pantagruelica desses brutos que devoram pratos enormes, com mais apetite do que um de nós, em dias de fome, trincaria uma fatia de caça. Nós somos os degenerados. Que mais pode ambicionar um homem que já experimentou todas as sensações e que leu os materialistas? Que ideaes pode ter um ser esgotado? Nem riso nem pranto. Sinto-me vasio e inutil. Já não existem imprevistos para mim. Tudo dimana de causas naturaes, diz a philosophia, e acham os evolucionistas que feliz é o homem que conhece todos os phenomenos da natureza, que sabe dizer, sendo preciso, por que razão a pedra deriva a gotta d’agua, para onde caminham as correntes dos rios, quantos millenios tem Syrius, porque é pallida a lua, quaes são as causas que presidem aos fluxos dos mares, a origem do homem e tudo mais que a sciencia investigou para esterilisar os productos mais delicados do espirito que, a meu ver, são--a imaginação e a esperança. Felizes são esses pobres homens que crêem nas boas fadas dos caminhos e nos genios dos campos. Felizes são esses que vêem na Via Lactea o caminho sagrado dos reis magos, attribuindo a pulverisação das nebulosas ás patas dos dromedarios que vieram do Oriente parar á entrada da lapa em que Jesus dormia. Felizes são os que podem ainda imaginar mysterios... Oh! os crentes, os religiosos! esses é que são os bemaventurados, não no céu, aqui mesmo, na terra, porque esperam, porque não duvidam. Aquelle homem que ali está desfeito em gargalhadas nunca leu um aphorismo, desconhece a syntaxe e as causas finaes, nunca atravessou uma noite acotovellado á banca do jogo, nem de certo poliu os seus beijos procreadores--é um simples. Trabalha e crê, conhece o _Ave_ e respeita a Lei, ama e quando chega á casa, estafado e moído, o seu primeiro cuidado é para o filho mais novo--toma-o nos joelhos e brinca com elle a rir. E dorme em paz, porque não tem problemas a resolver nem gazes de dyspepsia. É um animal amoroso e puro... E sinceramente, não é preferivel levar a vida assim materialmente, em ignorancia beata, abençoando as estrellas cadentes e commungando, de vez em vez, a andar pelo mundo empanturrado de pessimismo, repetindo com o «Ecclesiaste» que tudo é vaidade? O homem não nasceu para maldizer sómente, creio eu. «A resignação é o heroismo da desgraça.» Um moralista exprimiu-se mais ou menos nestes termos, mas eu devo confessar que não tenho absolutamente o sangue heroico--sou um pusillanime. Dêem-me novidades, imprevistos, qualquer coisa que me commova: um grande amor, um grande odio. Infelizmente, porém, o amor adquiro-o como adquiro as luvas e os plastrons, por um preço, por outro, mas sempre a dinheiro... É sordido! É vil! Não foi para mealheiro que Deus, ou não sei quem, fez o coração. O amor é uma permuta de affectos e não um mercado. Mas que quer? comprar um beijo, pagar um sorriso, subornar uma meiguice... eis em que consiste a civilisação; isso é requinte, é espirito. Duas mulheres passaram por nós discutindo em dialecto aspero, esgrimindo com os leques, frementes, terriveis. As vozes subiam, já da platéa reclamavam silencio com prolongados «psios». Os homens, que cercavam a balaustrada, interessados no escandalo, vieram aproximando-se. Descia gente em tropel e as duas, uma em frente da outra, ameaçadoras, mirando-se roxas de furia, vociferavam com grandes gestos. Repentinamente brandiram os leques e engalfinharam-se--os chapéus rolaram para o chão, as fitas voaram e, apezar da immediata intervenção de alguns rapazes, as duas lutavam, já com os leques partidos, numa algazarra bravia. Na platéa havia gente de pé. Os actores, em scena, emmudeceram e o grande diabo, curioso, coçando o queixo agúdo, alongava os olhos procurando ver á distancia as heroinas. Os coristas, amontoados sem ordem, cochichavam. O regente voltara-se e varios musicos, de pé, olhavam curiosamente; um deixou-se estar sentado, aproveitando a balburdia para afinar o seu violino. Trilaram apitos, mas já haviam apartado as belligerantes. Appareceram praças e o povo foi descendo, em onda compacta, em direcção á porta. Ouvia-se ainda, de vez em vez, um guincho colerico. Por fim irrompeu uma assuada tremenda e gargalhadas estrepitosas abafaram as phrases violentas de uma das mulheres. Já no palco haviam recomposto a scena, o diabo carregara de novo o sobr’olho e, quando avançou para o ponto, sustentando uma nota grave, de novo o povo reclamou silencio e, pouco a pouco, foi recahindo a tranquillidade. --Foram presas, doutor? --Não, fazem-n’as sahir simplesmente. Estalaram palmas estrepitosas, olhámos: o panno vinha descendo lentamente sobre uma scena flammejante. --Falta-nos ainda um acto, suspirou o doutor. E não ha infelizmente duas outras mulheres ciumentas. Ao fim do espectaculo, depois de uma fulgurante apotheose no reino das perolas, de grandes pylonos côr de opala, regado d’aguas lactescentes, floridas de nelumbos por onde andavam cysnes alvadios, reino administrado pela magia dos olhos de Jesuina e pelos cordeis do machinista, veiu abaixo o panno ao som abemolado do côro triumphal das nymphas, que exaltavam o poder da soberana. O diabo, corrido e humilhado, estarrecido ao fundo, entre columnas gyratorias rugia, rolando os grandes olhos chammejantes e orlados de malacachetas. O povo, em delirio, prorompeu em gritos, victoriando a boa fada pelo seu nome humano, mais doce, talvez, que o da magica: --Á scena, Jesuina! Bravos a Jesuina! E uma voz isolada accrescentou num berro agudo: --Jesuina na ponta! E tudo desappareceu. A retirada foi rumorosa e lenta. O povo escoava aos empurrões como uma grossa e pesada torrente contida muito tempo pela comporta de uma represa. As luzes minguavam e, pouco a pouco, veiu cahindo a sombra; o silencio substituiu o rumor. O panno levantou-se de novo sobre um fundo de andaimes e de sarrafos. Fóra andava um meninote assobiando baixinho, com a bengala ao hombro, passeiando ao longo da varanda. --Vamos esperal-a á porta da caixa. E, em segredo, indicando-me o rapazito solitario, disse-me o doutor: --Ali está um que não nos perdoará a aventura de hoje. É um terrivel amoroso. Governa o partido da Jesuina. Só em flôres gasta todas as noites para mais de cinco mil réis. Já fez tirar uma polyanthéa glorificando a actriz que, incontestavelmente, tem um lindo collo, mas que desafina soffrivelmente e no terreno da concordancia é como um louco diante de um taboleiro de xadrez: baralha tudo. Emfim, como o fim utilitario da mulher é o amor, Jesuina cumpre admiravelmente o seu destino na vida, porque, sem encomios, é um bello exemplar do sexo. Começavam a sahir os actores; alguns com embrulhos debaixo do braço. Uma mulher, de mantilha, passou por nós ninando um pequerrucho. Um sujeito magricela, de longas pernas e farto bigode, com agudas saliencias de ossos, deu-nos boa noite em tom amigo. --Quem é? indaguei. --É o diabo; pois não conheceu...? é o diabo. Chama-se Silveira. Voltei-me para ver ainda uma vez o vencido, elle lá ia, murcho e sorumbatico, mascando uma ponta de charuto, triste, desmanchado, já sem os arreganhos terriveis, sem a attitude audaciosa e ostensiva com que surgira entre os seus sequazes, bradando pelas furias do Averno e arrancando gritos ás crianças. Ia abatido e não era, de certo, o poder da vara de Jesuina que o derreava, não, deviam ser preoccupações communs. Talvez tivesse um filho doente, sogra de perfeita saude ou, quem sabe se o pobre diabo não estava ameaçado de ser lançado á rua pelo senhorio feroz...? Fosse o que fosse, achei-o mais sentido dentro do frak e nas calças de brim do que na farpella purpurina de rei dos demonios, anniquilado pela magia das pupillas de uma mulher, tres vezes mais forte com as suas nymphas do que elle com a legião de bruxos negros e diabretes. Em seguida um casal, muito aconchegado, cochichando--a mulher, com uma indignação mal contida, elle calmo, grave, respondendo com pequenas phrases. Depois uma onda tumultuosa, com alarde, achincalhando coplas--os coristas. --Está demorando, disse o doutor impaciente. Mas no mesmo instante a porta abriu-se e Jesuina appareceu no patamar, seguida da velhota. --Salve a formosa apsara! saudou o doutor. --Estão cançados de esperar? indagou sorridente. --Nem por isso. Jesuina pareceu-me menos formosa no seu vestido marron e com a cabeça coberta por uma capota de veludo. Confesso--e vai nisto uma ingenua franqueza--confesso que a Jesuina que meus olhos aguardavam anciosos e desinsoffridos era a outra, a que eu vira no palco, entre nymphas, na nudez artistica do maillot, afoufada em rendas, com os cabellos soltos e á fronte o diadema régio. Era assim que eu esperava vel-a, de sorte que tive uma pequena desillusão quando ella assomou á porta, em toilette vulgar, como todas as mulheres, ella, que para mim não era outra senão a propria, a verdadeira fada das perolas, que apparecera em scena, affrontando o Demonio. O doutor sussurrou-lhe: --Aceita o braço que te offerece o meu amigo, tenho de dar um pulo á Maison para desfazer um compromisso. É um instante. Comprehendi a delicadeza do pretexto e adiantei-me pressuroso e ella, voltando para o meu rosto os olhos incomparaveis, ainda assim menores do que os que me haviam seduzido, indagou: --Onde vamos? --Onde quizer, disse-lhe. --Ao Bragança, não é? --Ao Bragança, sim, affirmou o doutor. E venham vindo porque já os encontro no Rocio. E até já. Partiu como uma frecha. --Thereza, podes ir, disse Jesuina á velhota. --Boa noite, meu senhor. Então até logo. --Adeus! E a velhota partiu compondo o chale. Sahimos. Á porta havia um homem de gorro, que nos offereceu um carro. --Sim, vamos, disse eu. --Oh! não vale a pena. Tomar um carro para ir ao Bragança! Não, vamos andando. E já intima, maliciosa, apertando-me o braço: É preguiçoso assim?... --Não, gosto de andar, faço leguas a pé, mas... E não me atrevi a dizer-lhe a verdade: eu não sabia onde era o Bragança. Felizmente, porém, o doutor surgiu a uma porta. --Oh! pois ainda vêm ahi...? E adiantando-se: Os corações já se fizeram amigos? E ella, repousando no meu braço, com um languido olhar e um doce sorriso: Creio que sim. --Creio que sim, corroborei sorrindo. Mas o doutor deteve-se para dizer em tom sentencioso: --Devo observar aos meus amigos que o amor é um sentimento digno, que deve ser cultivado como uma flor preciosa, mas acima do amor ha alguma coisa que é preciso não esquecer... --Deus! disse ella com beatitude. --Não, filha: o estomago. Temos um gabinete no Bragança á nossa espera. Depois do champagne gelado os beijos têm mais calor. É a reacção. Cá por mim, como pretendo passar a noite como Santo Antão, comerei alguma coisa solida... --Você só!? --Sem duvida. Quando se vai á Cythera é perigoso levar farnel. --Pois sim... E, com um muchocho, Jesuina achegou-se a mim. Senti-lhe as carnes... Que carnes! XII Triste manhan. Bocejei espreguiçando-me e estirei-me na cama, mas com que alquebramento! Sentia uma fadiga de longas jornadas, como se tivesse viajado sem repouso estiradas leguas ao sol, curtindo fome e sêde. Doíam-me as pernas, e que saburroso gosto, Deus meu! e que dormencia de idéas! Tentei, por vezes, saltar da cama, mas a energia abandonara-me. O corpo, apezar do esforço, abatia amollecidamente. Deixei-me estar deitado com os olhos no docel e, nessa attitude inerte, recapitulei as scenas da noite da vespera. A ceia! Regalado repasto! Lembro-me que começou por uma salada de lagosta, que o doutor acolheu com uma prelecção sobre os molluscos e Jesuina com palmas e gritinhos. O que veiu em seguida não sei bem e não me seria facil recordar porque, emquanto o criado substituia pratos e talheres, emquanto o doutor recitava dythirambos exaltando a excellencia dos vinhos de França e do Rheno, eu extasiava-me nos olhos de Jesuina que, de vez em vez, abrindo sobre as nossas cabeças o leque de pennas, como a aza do amor, protectora e discreta, dava-me um beijo, mais doce do que o vinho, oh Sunamita! mais doce do que os favos deliciosos das abelhas, Aristêu! A palestra erudita, finamente colorida e nobremente elegante do doutor, perdeuse. Era em vão que elle recapitulava as orgias primévas e os festins colossaes dos antigos. Que me importavam, a mim, as dionysiacas! Que me importavam os brodios de Roma e de Carthago se eu tinha ali, ao alcance da boca, a vinha por excellencia, que eram os labios da Jesuina. Que falasse o doutor, que não estancasse nunca a fluencia doutissima das suas palavras, Jesuina, com o seu arrulho de pomba mansa, prendia-me, absorvia-me todo e eu não tinha ouvidos senão para o que ella dizia e só aos seus beijos respondiam meus labios. Vinhos diversos subiram da adega preciosa do Bragança e da adega á minha cabeça. Provei de todos, porque Jesuina queria que eu bebesse á nossa felicidade, ao nosso amor eterno, á estrella que nos illuminara o encontro, aos seus olhos, á sua boca... e eu, vencido, bebia sem murmurar até que, por fim, o doutor, sempre fecundo em idéas, encommendou um punch em chammas, ardente como o nosso amor. Veiu numa grande terrina fulgurante e alumiou a mesa com um clarão tábido. O doutor, num assomo, ergueu a sua taça e pronunciou um brinde em que passaram, lembro-me vagamente, as gerações que adoravam Agni, o immortal, o lume eterno, e veiu pelos caminhos difficeis da historia, parando em todos os templos para mostrar, no mais reservado do ádyto, a chamma sempre vigilante, que é o symbolo da fé. E bebemos. Findam ahi as minhas memorias dessa noite. Do que mais houve não sei--tenho o estomago abrasado como se houvesse emborcado a terrina, engulindo vorazmente o punch em chammas. Meu tio, surgindo á porta do quarto, com uma physionomia grave e carregada, fulminou-me com o olhar. --Bom dia, meu tio. --Bom dia, disse-me elle, puxando uma cadeira para junto da cama. Compuz as cobertas, enfiei os dedos pelos cabellos para alisal-os e esperei grandes coisas porque, certamente, iam cahir grandes coisas da boca de meu tio. --Então, que foi isso hontem? --Isso que, meu tio...? --Ali! meu sobrinho, razão tem teu pai--elle é que está no caminho da verdade. Na carta que me escreveu disse-me que não te désse liberdade, que te trouxesse sempre debaixo das minhas vistas, porque és ainda uma criança, apezar dos bigodes que tens. Decididamente és ainda muito criança, concluiu meu tio, baixando a cabeça como fulminado por um pezar profundo. --Mas que houve, meu tio? --Que houve? ainda perguntas...! Disse e levantou-se. Foi a um canto e, tomando de cima de uma cadeira um casaco, que eu reconheci immediatamente, abriu-o diante de meus olhos. Estava enlameado e roto. --Que é isto, Anselmo...? Baixei os olhos e não tive uma palavra, mas confesso que eu mesmo não poderia dar o motivo daquellas nodoas nem daquelles rasgões. --Não sabes...? foi a ceia de hontem. --A ceia de hontem! --Sim, ficaste enlevado nos olhos de uma actriz e foste demais ao cantaro; finalmente, esquecendo as bôas regras da educação e do cavalheirismo, desmentindo o teu caracter e manchando o nome dos Ribas, quizeste... Mas tu estavas doido? indagou meu tio, assomado, agarrando a cabeça com ambas as mãos. Tu estavas doido, rapaz! --Não sei, meu tio. --Que diabo, eu tambem bebo... --Mas eu não bebo, meu tio, foi uma vez... um incidente... --Sim, um incidente, que teria funestas consequencias se, em vez do doutor, que é um cavalheiro, fosse outro homem. --Mas que houve?! Fale, pelo amor de Deus! --Que houve! Pois não te lembras que esmurraste o doutor num gabinete do Bragança!? --Eu! bradei saltando da cama. Eu...! --Tu?! Emmurcheci de vergonha e só levantei a voz para declarar peremptoriamente que partia á tarde, pelo nocturno. --Hoje? --Sim, meu tio: hoje mesmo e para o sempre! --Pois então avia-te, porque são quatro e meia. --Quatro e meia! Eu então estou dormindo...? --Ha doze horas, senhor meu sobrinho; ha doze horas! E solemne, sem mais dizer, retirou-se do quarto. Foi morrendo o rumor dos passos de meu tio e achei-me só com o meu remorso. Baixei os olhos para o pellego amarello e vi as minhas botinas manchadas como o nome immaculado e probo dos Ribas, que eu arrastara, sem escrupulo, pelos canaes do vicio, como um podengo estrafega e arrasta pelas sargetas um trapo. Tentei aturados esforços para reconstituir a scena nefanda que tanto me rebaixara aos olhos do meu digno tio, mas a embriaguez correra um denso véu sobre o passado. Sentei-me na cama como um bonzo e meditei sobre os acontecimentos dessa noite de depravação e delirio, mas só consegui lembrar-me dos olhos de Jesuina--divinas pupillas de mulher, supercilios divinos! Por fim o raciocinio foi desbastando, pouco a pouco, a densidão alcoolica e deduzi, com profunda logica que, se eu esmurrara o doutor, não fôra sem motivos, a menos que o punch illuminado me não tivesse enlouquecido por momentos. Mas do fundo do meu amor levantou-se o espectro terrivel do ciume--ah! fôra de certo o ciume o movel desse crime. O doutor, apezar das doutrinas que expende, é azevieiro como D. Juan e Jesuina não é mulher que se despreze, principalmente depois de uma terrina de punch em chammas, e assentei que quem armara o meu braço, quem fechara o meu punho para os murros fôra esse mesmo sentimento que fez do mouro apaixonado um estrangulador e que, em nossos dias, na cidade tranquilla do meu sertão, armou uma scena de escandalo na sacristia da igreja parochial em que me lavei dos peccados e ganhei o nome de Anselmo, entre o padre Coriolano e o sapateiro Gaudencio, afinador de pianos e trombone da philarmonica. O ciume...! Jesuina! devo-te a triste desgraça de ter molestado o meu illustre e douto cicerone. Se algum dia o domares com os teus olhos doces e crueis, arranca-lhe do fundo do odio o perdão para os murros que por teu amor lhe dei, lembrando-lhe que Jesus tambem perdoou, invocando piedosamente, com a santissima resignação de martyr, a clemencia do Pai para os legionarios: «Perdoai-lhes, meu Pai! elles não sabem o que fazem!» Eu tambem não sei que fiz, palavra de honra, posso mesmo ajuntar que não foi por querer. Que fazer? Correr á casa do doutor para pedir-lhe que relevasse a brutalidade do meu vinho brigão, confessar a minha fraqueza...? não. Decididamente só me restava um alvitre--voltar á minha terra e esconder entre as arvores, que me viram criança, boas arvores amigas que me carregaram tantas vezes nos seus braços verdes, a minha vergonha, o meu opprobrio. Era, de certo, a resolução mais acertada e mais digna. Saltei da cama e enfiei as calças, adiantando-me para o espelho, curioso de ver a devastação da minha physionomia e não foi sem pasmo que reconheci todos os meus traços intactos--apenas a barba, que apontava, punha-me uma orla azul pelo queixo e, em volta dos olhos radiados um halo roxo--no mais era eu mesmo, fresco e forte, com as minhas cores de serrano, com os meus cabellos negros, em bucres, como os do Apollo. Vendo-me, esqueci por momentos a estroinice e admirei-me e pensei com vaidade que Jesuina, no silencio do seu boudoir, quando se lembrasse de mim, havia de lastimar a minha ausencia e quem sabe se aquelles olhos formosos não humedeceriam lenços por minha causa, quando eu, já em caminho, de volta ao lar, fosse revendo esses campos monotonos e essas varzeas de uma eterna verdura por onde caminham rebanhos, mugindo, á luz de ouro das manhans. Pobre Jesuina...! suspirei commovido. Mas, de novo, appareceu-me a idéa da partida. Lancei os olhos a um canto e vi a minha maleta aberta, como se tambem quizesse demonstrar-me a necessidade imperiosa e inadiavel de seguir. Resignei-me e, mollemente, descalço, fui ao cabide buscar o jupon para retemperar-me no banheiro, lavando abundantemente o corpo, já que não podia fazer o mesmo á reputação. Desci. Meu tio, debruçado á varanda do jardim, extasiava-se no crepusculo, já prompto para jantar. O criado taciturno arranjava a mesa. Nas gaiolas os canarios cantavam estridulamente. Passei de leve como uma sombra; o criado lançou-me um olhar malicioso e baixou a cabeça. Refrescado e vestido vim tomar o meu lugar á mesa. O tio recebeu-me sem azedume, mais cordial e mais meigo e, quando provou o polme de ervilhas, com os beiços a escorrerem, arregalou-me os olhos como se me quizesse dizer que atacasse, porque estava delicioso! E até a hora dos badegetes não falámos. Foi justamente quando o criado poz diante de mim os peixes que descerrei os labios. --Não, meu tio, disse repudiando o vinho que elle me servia. --Como! peixe sem vinho...? estás doido! E, teimoso, verteu no meu calice verde as gottas de Chablis. O vinho é um reactivo, disse-me. Lá porque hontem houve aquella historia queres deixar de beber...? Historia!... O vinho é um tonico poderoso. Atiça-lhe! e piscou-me o olho. Corei e bebi umas gottas. --Então embarcas amanhan? --Impreterivelmente! --Mas que diabo vais fazer a Minas?... --Preciso. Meu pai chamou-me e meu tio bem sabe... --Ora, teu pai! Teu pai pensa que no Rio de Janeiro não ha outra coisa senão febre amarella. Deixa-te estar, homem... Goza a mocidade emquanto é tempo. --Não, meu tio, sigo amanhan. --Já sei, é por causa da scena do hotel. Pensas que o doutor tomou a sério as tuas bravatas? deixa-te disso. Elle tem criterio bastante para julgar essas coisas. Queres saber, sentiu-se tanto que até te trouxe á casa ao collo. --Como! Ao collo, meu tio! --Ao collo, sim, porque quando aqui chegaste foi um trabalho para que te tirassem do carro. Vinhas lacrimoso, soluçando, abraçado com o doutor, lamentando a perda da mulher amada e recitando emphaticamente versos do Simão Carreira. Esmurraste o doutor, mas, que diabo! murros de bebedo... E desatou a rir espalmando a mão larga e dadivosa sobre o meu hombro. Ora, o Anselmo! onde diabo foste achar tantas lagrimas? Teus olhos eram como duas torneiras abertas... Mas deixemos o que houve: aguas passadas... Vamos ao que serve: Temos hoje, á noite, a festa do Bessa. Esperam-te... --A mim, meu tio? --Então? Has de ir para a roça sem uma noção do grande mundo, do que chamam high-life? Não, senhor... E emborcou o copo de Bourgogne. XIII O baile do Bessa... (Commendador Saturnino Pecegueiro Bessa, 52 annos, da ordem de Christo, alguns gráus maçonicos, varios predios e duas filhas; viuvo.) O baile de 4 de Setembro, data do natal memoravel da beneficencia encarnada... como descrevel-o neste tempo curto que me resta emquanto arranjam a minha bagagem? Como descrevel-o assim asinha e de afogadilho sem retocar o estylo? Arte exige, e muita, a pintura de tão encantador e selecto convivio de damas e de cavalheiros. Não, não descrevo, tenho tempo de sobra para commettimento que demanda esmero e argucia, esmero para fazer com que brilhem, na fórma ingrata das letras, a graça das senhoras e o sorriso das senhoritas, sorriso que affixa o reclamo de um coração disponivel, sorriso com que a garridice poz em reserva obsoleta a quadra da cantiga que começa: Meu coração está vasio... etc., e argucia para penetrar o pensamento dos homens e as entrelinhas de uma certa viuva prematura, tão habil na seducção que... não é exagero dizer que essa notavel dama insinou em meu coração a mais inabalavel certeza da victoria dos meus olhos, pronunciando durante uma valsa de Strauss (o _Danubio azul_, que tem arrastado nas suas ondas harmoniosas muitos pares ao altar) duas phrases simples, mas de uma intenção clara e escandalosa que me fez corar. Simão Carreira, em uma ode immortal, explica que o pudor no homem é uma tolice... para as mulheres. Eu fui tolo durante os compassos de Strauss e a viuva acabou a noite nos braços de um estudante de pharmacia, mais lepido nas danças e mais desembaraçado em colloquios. O estudante, depois da quadrilha final, sabia o endereço da viuva e eu aqui estou amarfanhando o enxoval para a viagem de amanhan. Dançou-se até meia noite com orchestra, dessa hora para a madrugada senhoras revesaram-se ao piano. As filhas do commendador, gentis e conversadas, entretiveram-me com algumas observações de fina e atilada analyse--falaram-me, com enthusiasmo, das pelouses lamentando apenas a falta de fiscalisação e os tribofes. Asseguro que esse termo feio e desgracioso «tribofe» não é uma invenção cerebrina, cahiu dos labios de Mlle, como uma lesma cahe das petalas de uma rosa. Os diccionarios não o inserem por escrupulo e, em verdade, «tribofe» é horrivel. Falaram-me da opera lyrica e, como eu indagasse se tinham ouvido Wagner, uma affirmou--que sim! Mlle. Alice. A irman, porém, não se lembrava e foi preciso que a outra recordasse a estréa de um vestido de faille para que a doce e angelica Delphina sorrisse achando a vaga reminiscencia dum cavalleiro e dum cysne. Mlle. Delphina, romantica, durante uma languida habanera, falou-me, enternecida, do _Serge Panine_ e criticou a toilette exagerada da viuva que girava, com o busto em nudez, enlevada nas phrases therapeuticas do seu amoroso par. Do que ouvi, no vão de uma janella, emquanto D. Brites, contralto, cantava ao piano um melancolico romance de Tosti, ficaram-me as palavras do Dr. Silverio Torres, deputado da opposição, socialista. Explicou-me, entre outras coisas, que a miseria é um resultado da abundancia, como a lama é o resultado do excesso da chuva. O mundo, no seu rudimento, não conhecia a miseria, disse-me---ella appareceu com a primeira moeda. E teve este pensamento, que deve ficar eterno como um dogma de economia politica: «Quereis ver um paiz de fome? entrai num paiz de millionarios», e estendeu o braço para o jardim procurando mostrar-me além, na grande noite, esse paiz de fome: Lá está, é a Inglaterra. Olhei machinalmente e vi as estrellas do céu. O Rio, disse-me mais, vive sitiado pelo varegista. Nós não temos esquinas, temos vendas, barreiras onde o pobre vai diariamente pagar o seu imposto. O taverneiro occupa os extremos da rua e, ás vezes, assalta o centro--e esse excesso de mercado é uma das causas da luta de contingencia. A luz é a vida, o excesso de luz é a chamma, é o incendio, é a morte. O taverneiro estabelecido torna-se, em pouco tempo, o senhor do quarteirão. Por intermedio do caixeiro, que vareja o mais intimo recesso da casa e espia e ouve emquanto conduz a lenha, levando para o patrão, conjuntamente com o dinheiro, o segredo da vida privada do pobre, o taverneiro torna-se uma especie de suzerano--elle fia, elle sabe. É das vendas que vêm os grandes desesperos para o proletario, é das vendas que partem as diffamações mais crueis. Dirão:--mas o pobre podia libertar-se desse jugo fugindo ao balcão do taverneiro. Infelizmente assim não é--nem sempre o mealheiro tine na casa do operario, o amanhan é tenebroso e no dia em que elle, baldo de recursos, por molestia ou por desemprego, tentasse o credito para o alimento dos filhos, o taverneiro, que não desconhece o prazer dos deuses, vingar-se-ia. A venda é o terror do pobre porque é o escoadouro do seu trabalho e, muitas vezes, a causa das suas lagrimas. Concordei. Elle ainda me fez saber o que eu, até então, ignorava--que essas casas de penhores são uma instituição do luxo. E demonstrou com sabedoria: Esses estabelecimentos de recurso prompto só recebem joias e objectos de alto valor. O pobre, quando muito, possue o collar que enfeita o pescoço do filhinho, as bixas modestas da esposa, um relogio de prata para marcar a hora do trabalho--tudo isso que vale?! Entretanto vá o senhor a um dos leilões das casas de emprestimos e ha de ver--braceletes preciosissimos, solitarios offuscantes, diademas, chuveiros, toda a joalheria fidalga e cara, porque a outra nem sequer é apreçada. O pobre vai aos belchiores e não empenha, vende: o casaco dos domingos, a cama em que lhe nasceram os filhos, o oratorio dos santos protectores. Logo: quem empenha? os remediados, os ricos, para manutenção da apparencia. E perorou iracundo: o prego é uma instituição do luxo, fomenta o vicio e a hypocrisia. Iamos entrar em outras analyses quando o commendador Bessa, a conselho de meu tio, veiu tirar-me para uma valsa com a Ex.ᵐᵃ Snr.ᵃ D. Adelaide Fogget, esposa de um importador. Dancei e suei. E chamaram-nos para a ceia. Lauta e facunda, bons vinhos e tropos. Falaram todos, menos eu, que fujo á exhibição. D’entre os muitos discursos inspirados ficou-me o de um Bartholomeu de tal, gordo e curto, homemzinho redondo, um frasco. Louvou e bebeu com emphase; ao fim da terceira taça, rematou: que o commendador era da massa de D. João de Castro e explicou o parallelo. Perdi, infelizmente, a explicação porque Mlle. Delphina, que distribuiu os lugares, fez com que eu ficasse entre a contralto e o deputado opposicionista, de modo que, durante o transbordamento da facundia, os arroubos melomanicos da direita e as invectivas da esquerda distrahiram-me, ella que me dizia, com os olhos em alvo, que depois do _Vorrei morire_, só a morte, e elle que soprava maliciosamente aos meus ouvidos: Que áquillo só faltava o retrato a oleo. Uma balburdia chamou a nossa attenção applicada á ironia--era entre as senhoras. Todas as damas pediam ao deputado que respondesse por ellas ao brinde do pharmaceutico, que saudara na mulher a joia mais delicada sahida das mãos do Creador. E o deputado, mastigando, ás pressas, uma febra de presunto, empunhou a taça e disse coisas lindas, agradecendo em nome do sexo feminino. Depois da ceia (dezoito brindes e duas taças quebradas para que nunca mais concorressem a elevação dos dotes de um mortal, á mesa) voltámos ás danças. Grande coisa a vida! Já não baixo á terra fria sem o supremo gozo de ter passado uma noite em sociedade. Como é divertido um baile... Oh! simplicidade do meu campo, oh! cateretês da minha serra ingenua...! Ó noites no rancho, á beira da estrada, com a luz do luar, o bom cheiro dos bogaris abertos e a cantilena do serrano, ao som da viola, emquanto os curiangús contentes saltam piando na estrada lisa... Recolhi-me com a noite--ella a desapparecer no céu, eu a mergulhar nos lençoes, estafado e triste. Acordei ás tres da tarde, moído. Meu tio, mal soube que eu abrira os olhos, subiu ao meu quarto para dizer-me que o doutor estivera com elle; e deu-me um cartão. Li; era laconico e generoso. «Meu caro: Vim trazer-lhe o abraço de despedida. Parto para Belém no comboio da tarde. O meu caseiro escreveu-me, relativamente á venda de uma porcada (é o termo). Vou á verdade da vida--o interesse. Tenho um sitio e consolo-me das durezas e dos desenganos deste mundo cultivando rosas e criando porcos: o perfume e a linguiça, a floricultura amada dos atticos e o suino repellido pelo Koran. Levo commigo um livro seu que achei sobre um dunkerque: Eschylo. É um scaphandro para garantir o espirito. Boa viagem. Sempre affectuoso _Gomes_.» --Então, meu tio, exclamei radiante, elle não levou a mal os murros...? --Ora... A italiana não me atirou ao rosto _Amor e Psyché_, e eu?... Deixa-te disso. O mundo é um jogo de concessões. Deste-lhe um murro, amanhan ou depois elle t’o restituirá. Isto é assim. E, sem transição, cravou os seus olhos empapuçados no meu rosto: estava terno como uma mulher amorosa: --Anselmo, porque não te formas? Não temos na familia um homem de sciencia... Arrisquei o nome de meu tio padre--Cleofano Ribas... --Cleofano... nem para missas! Temos aqui uma academia livre, estás prompto em humanidades, sabes latim, que é a palavra de honra de convicção nas tribunas; porque não te matriculas? Em dois annos podes estar formado. Ficas commigo. Que diabo! é preciso que eu faça alguma coisa pela patria--quero deixar-lhe um bacharel. --Mas meu pai é contrario ás cartas. Desde que lhe receitaram tartaro para uma congestão hepatica tem horror aos homens formados. --Teu pai é um misanthropo. --Alceste, comparei sorrindo. --Qual Alceste, nem meio Alceste. E serio: Que Alceste? --De Molière, meu tio. --Ah! pensei que era o das loterias, esse é um excellente homem. Mas voltou logo á questão: Se queres escrevo a teu pai? --Tente, meu tio. Fiquei só na varanda emquanto Serapião Ribas, no seu gabinete, tratava de converter o irmão com uma longa epistola sobre o meu futuro. E o resto da ultima tarde foi de inenarravel tristeza. Os passaros pareciam chorar adeuses e havia no rumor vesperal dos ramos do jardim e na agua da rega, que jorrava sobre os canteiros, o suave e blandicioso timbre de uma voz conhecida que me dizia, queixosa: --Porque partes, ingrato? E eu? e o nosso amor?... --É impossivel, Jesuina, comprei passagem de ida e volta, disse enlevado. --Que é isso, rapaz? estás falando só? --Não, meu tio, falo com a minha illusão. E a noite veiu funebre, mas rutilante de astros. Ás quatro da manhan, cantavam os gallos pelos quintaes, quando o criado bateu á porta do meu quarto avisando-me--que o carro estava prompto. A lua viu-me atravessar o jardim e ella que conte os adeuses que fiz, mais tristes do que os de Boabdil á Granada. E emquanto durou a corrida, só tu, Jesuina, só tu, doce amor, mereceste os meus suspiros. XIV Tu, imprudente moço da parabola messianica, tu, de certo, sentiste, voltando ao lar, desilludido e pobre, a mesma impressão que me feriu o espirito quando, abrindo os olhos á luz clara da manhan, reconheci o meu quarto modesto, alvo como uma cella monastica, ornado singelamente com os meus instrumentos de caça. Ao fundo, num velho armario tosco, os livros das minhas leituras ao lado da mesa ampla e pesada das minhas meditações. Coisas minimas para as quaes raramente se voltavam meus olhos, como as mirei extasiado! E que prazer em folhear brochuras, em reler fragmentos, em passar a mão pelos couros estirados nos muros claros! E quem diria que eu, tão exigente outr’ora, achando infecto esse jornalesco patricio o _Phanal de Tamanduá_, havia de ler, desde o artigo de fundo sobre a questão do casamento do Braz Lamenha, infenso ao pretor e á lei, redigido pelo meu venerando mestre o reverendo Coriolano, até o annuncio do bazar do Pindella. Decididamente não ha nada para revigorar o amor como a saudade. Os rumores deliciavam-me e enterneciam-me--deixei-me estar muito tempo a ouvir o chofrar das aguas do moinho, perto do meu quarto, e descobri um encanto divino no balido das ovelhas que erravam pelos caminhos. Leve, longinquo, soava o sino da parochia, ora brando, ora forte, conforme a brisa e nasceu-me uma estranha curiosidade de saber se aquelles toques, que vinham pela manhan limpida, sonoros e festivaes, eram por algum santo ou pelo baptismo de mais um sertanejo. Mas, acalmando-me, entrei por uma duvida incoercivel recapitulando a vida fantastica desses oito dias aventurosos, que tão depressa correram. Pareceu-me que jámais passara além das montanhas levemente esfumadas no horizonte, reduzi essa viagem da minha imaginação a uma simples sortida de caça--a mesma fadiga que eu sentia era natural depois de tantas escaladas atrevidas, depois de tantos saltos temerarios, ravinas acima, penhascos abaixo. Que trazia eu que me demonstrasse ter vivido nessa cidade de luxo e de vicio, tão celebrada entre serras pelos que, uma vez, pisaram as suas ruas e admiraram o seu fausto? Que trazia eu como documentos affirmativos? a carta de meu tio...? Sim, era uma verdade a carta, tanto que arrancara a meu pai estas profundas palavras cheias de sabedoria: «Que eu me deixasse de sonhos. Que me dedicasse á terra, que é uma fonte perenne de riqueza, porque neste paiz a lavoura é que rende, e citou a phrase do estadista--isto é «um paiz essencialmente agricola» aconselhando-me que não a perdesse de memoria. Tudo mais, vaidade das vaidades.» E ajuntou: «que mais valia ter uma junta de bois e uma charrua para sulcar o solo do que todas as cartas das congregações. E, por fim, lembrou que a terra não produz perfidias nem calumnias e que viver entre as arvores é bem melhor do que viver entre os homens.» Convenci-me e decidi ficar no campo, lavrando. Sonha-se tanto! Já uma vez sonhei que era amante de Cleopatra. Vivi dois longos mezes felizes, de amor lascivo e de festas com a formosa rainha que me chamava: Ri-Ri. Com ella enlaçado subi o Nilo muitas vezes, numa barca de cedro, que tinha um cysne de ouro á prôa. Charmion sempre mimosa, cuidava dos meus cabellos lavando-os em essencias que vinham da Ethiopia e, até hoje, guardo a physionomia simiesca de um retinto nubio de nome André, (coisa estranha, nome exotico na terra de Isis), que era o encarregado de encher o rython de prata por onde bebiamos, Cleopatra e eu, e descia a comprar-me cigarros quando me faltavam. André...! é uma figura indelevel na minha memoria. Entretanto foi tudo sonho; porque, se a propria rainha, desligando-se das tiras com que os embalsamadores a prenderam, quebrando o seu sarcophago, viesse dizer-me que me pertencera um dia, eu lhe diria brutalmente na face: Mentes como uma bruxa, filha dos Pharaós! Sonho, puro sonho. Com o Rio não se teria dado o mesmo phenomeno? Porque a verdade é que todos quantos caminharam pelas ruas da cidade excelsa gabam-lhe as maravilhas e de todos ouvi narrações de aventuras que eu, nem mesmo em sonho, concebi: mulheres que desciam a entregar-se, arrulhando entre limoeiros em flor; outras, mais abrasadas, que, em furor de ciume, ameaçavam com escandalos e punhaes, e noites delirantes e mil coisas que os persas imaginosos não incluiram nos contos de Scherazada. Eu só não vivi: atravessei o Rio como uma sombra perdendo o fio do prazer quando já o tinha seguro e vendo differentemente de todos, atravéz do meu tedio e do meu sonho. Assim foi que achei a rua do Ouvidor infima e acanhada; assim foi que abandonei o jogo no momento em que começava a accumular; assim foi que apenas provei o beijo de Jesuina e perdi a viuva. Todos os factos experimentados, sem remate, interrompidos em meio, justamente como nos sonhos. Seria embriaguez?... Teria eu atravessado toda uma semana bebedo como Pedro _Macaco_, que confunde os dias com as noites e não tem, desde muito, a noção exacta do tempo? Não creio. Sonhei, foi sonho decididamente. É assim quando sonho, sempre ha de vir uma mulher para suppliciar-me: foi Cleopatra primeiro, amei-a muito e passou; agora Jesuina. A vida é um sonho. Quem sabe se não sonhei? Mas lá fóra ha uma voz que indaga--se cheguei do Rio. É Simão Carreira, sempre rouco, o mavioso lyrico. Então não, não é sonho. Não ha nada mais real do que um poeta e Simão que pergunta se cheguei é porque sabe que parti. Então os sonhadores são outros que me fizeram a descripção do Rio, sonhadores ou mentirosos, sonhadores, em summa, porque a mentira é um producto de sonho. Mas Jesuina!? Foi sonho como Cleopatra, como Charmion, como o nubio André. _Dreams! Dreams! Dreams!_ E a vida é isto: sonho ou tedio. Antes sonhar. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A CAPITAL FEDERAL (IMPRESSÕES DE UM SERTANEJO) *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. 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Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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